terça-feira, 24 de julho de 2018

CD2 Cap 31


Capítulo 31
Sobre as Coisas Como São e as Coisas que Decidimos Ser

On a stormy sea of moving emotion
Tossed about like a ship on the ocean
I set a course for winds of fortune
But I hear the voices say

Carry on, my wayward son
There'll be peace when you are done
Lay your weary head to rest
Don't you cry no more (no!)
(Carry On Wayward Son - Kansas)

Jeb

            — Então, o que há de tão novo que Sharon e Doc ainda não tenham contado?
Logan olhou para mim como se estivesse surpreso com o comentário. Fazia apenas um dia que ele e as garotas tinham voltado de Nova Orleans, mas o primeiro encontro entre humanos e Almas tinha sido há longínquos dois meses. Ficou combinado que haveria outros, mas Logan, Estrela e Cal estiveram todo esse tempo fora articulando-se com outros aliados e discutindo a viabilidade de algumas ideias que surgiram naquele dia, antes de ampliar de vez o diálogo entre os dois lados. Sendo assim, era de se imaginar que houvesse novidades, claro, mas não entendi porque ele tinha me chamado em particular antes da tal reunião que anunciara com todos para esta tarde.
— Vocês têm falado bastante sobre isso, imagino — comentou sem muito entusiasmo, como se seus pensamentos fossem outros, tanto que comecei a desconfiar que houvesse mesmo algo mais em seus motivos.
— O quê? Vai dizer que você não desconfiava que todas as conversas do último bimestre fossem sobre isso? Diabos, pois se até Jared conheceu David e Flora e voltou cheio de histórias otimistas, mesmo que tivesse saído daqui preparado para uma guerra, se fosse preciso. E essa reunião agora... Parece que tem alguma novidade importante, certo? Ou... é alguma outra coisa?
            — Não é exatamente sobre as negociações de paz que eu queria falar com você. É sobre uma coisa que eu fiz.
Logan fez uma espécie de careta e despenteou o cabelo, nervoso. Tentei imaginar o que poderia ser e, pelos sintomas, não gostei nada do prognóstico.
Quer dizer — ele continuou —, de certa forma tem a ver com a harmonia que desejamos entre humanos e Almas, então também vou contar aos outros, mas é que diz mais respeito a você do que a qualquer outra pessoa. Por isso achei que devíamos vir até aqui antes de eu ter que dizer para todo mundo.
            Estávamos fora de casa, naquele rochedo onde Logan passou a primeira noite no deserto quando chegou com Estrela. Não era novidade que viéssemos aqui de vez em quando, pois ele se sentia estranhamente confortável neste lugar empoeirado. O que também significava que quando o assunto era sério e particular, geralmente esta era sua primeira opção.
Por isso eu já tinha adivinhado que não se tratava de um passeio para jogar conversa fora, mas de algum jeito, até agora, eu tinha estado tranquilo quanto ao que poderia surgir, já que os assuntos difíceis estavam em suspenso desde a partida para Nova Orleans. Então eu vinha me permitindo apenas saborear o alívio do retorno deles. Não só de forma descompromissada, mas ingênua também, pelo jeito, porque estava parecendo que minha alegria simples duraria pouco. Pela cara dele, essa constatação ficava mais óbvia para mim a cada segundo.
De repente, meu bom humor se evaporou.
            — Sei. Diz respeito a mim e vai me deixar puto, não é? Já deu para perceber — arrisquei.
            — Sinto muito. Queria que tivesse um jeito mais fácil de dar a notícia. É sobre seu... — Logan abaixou os olhos por um momento e depois voltou a me fitar, expirando. —É sobre Logan Smith.
            Minha mente clareou como o céu quando uma nuvem destapa o sol. E, deixe-me dizer, falando assim parece uma coisa boa, mas não foi.
            — Diabos, moleque! O que foi que você fez? — perguntei, mas eu já sabia. Só existia uma notícia que ele poderia me dar nessas circunstâncias. E só havia uma coisa que ele poderia ter feito para ter certeza. Justamente o que eu tinha tentado impedir com toda minha enrolação. — Você não tem juízo?
            Mas que merda!
            — Eu precisava me certificar. Juro que tentei o máximo que pude. Estrela e Cal passaram muito tempo conversando com ele, usando as memórias que eu já tinha e tentando reavivar outras. Mas ele não acordou. Já faz muito tempo.
            Meu Deus.
            É claro que ele não tinha acordado. De certa forma, eu já sabia, por isso não queria que Logan passasse por essa situação. Ao mesmo tempo, convencê-lo ao menos a adiar essas decisões ainda me permitia estar ligado a um fio de esperança de que tudo poderia, incrivelmente, dar certo e eu teria os dois. Mas isso era quando eu pensava apenas em mim. Quando desconsiderava Logan, Estrela e Lindsay.  
Quando pensava neles, porém, ficava impossível fingir que não havia muita coisa em jogo. Inadmissível ignorar o quanto Logan, diretamente, teria se prejudicado. Minha sorte poderia ter sido sua ruína. E como diabos eu podia lidar com isso? Em outros tempos, talvez não parecesse tão impossível. Mas agora, desde o início dessa história toda, meu bom senso frio tinha ido pro brejo. Assim como o dele, aparentemente.
            — Idiota! — esbravejei. — Você não pensou, Logan? Lá em Nova Orleans... Sozinhos! Vocês são Almas, nem sempre entendem como agem os humanos, muito menos os desconhecidos! E se ele não fosse quem a gente espera? Se despertasse e tentasse fazer mal a você dentro do criotanque? Se magoasse Estrela ou Lindsay ou estivesse tão assustado que agredisse Cal? E se ele fugisse?
            — Logan Smith não é um estranho para mim, Jeb. Ele era uma boa pessoa, jamais faria essas coisas — O Logan que eu conhecia me repreendeu, indignado. — Não posso garantir que ele não ficaria assustado, mas nós estávamos preparados com os medicamentos adequados para acalmá-lo se acontecesse. Além disso, depois da primeira vez que tentamos, soubemos que ele não teria forças para fugir ou brigar antes de Estrela ou Cal terem tempo de explicar a situação. Em todos os despertares, o corpo precisou de algumas horas para se readaptar a uma condição normal.
            Eu não sabia o que dizer. Parecia que a cada palavra a coisa ficava pior. Quando eu me preocupava com o que podia ter acontecido com meu filho Alma, desrespeitava a memória do meu filho humano. E quando me preocupava com o humano, menosprezava o esforço da Alma. Mas o problema era que, de um jeito ou de outro, eu estava furioso com os riscos assumidos.
            — Espera — De repente, caí em mim quando registrei de verdade as palavras. — Que história é essa de “todos os despertares”? Quantas vezes você fez isso?
            “Quantas vezes se arriscou por mim?”, eu queria perguntar, mas se Logan achasse que eu me sentia culpado, seria bem capaz de minimizar a verdade. Mas eu conhecia esses “despertares”. Já tinha passado por um e, mesmo que as circunstâncias fossem bem diferentes, sabia o quanto uma única vez podia ser difícil. Então o que dizer de várias?
            — Eu... — ele hesitou, procurando inutilmente uma maneira de desconversar. — Nós resolvemos que seria mais seguro para o corpo se ele não ficasse vazio mais do que quatro ou cinco dias de cada vez. Então eu era inserido de volta para me fortalecer e passar um tempo com Lindsay, tentar que ela sentisse um pouco menos minha ausência e não percebesse nada de muito estranho.
            — Quantas vezes, Logan?
            — Cinco — ele respondeu, por fim, a boca numa linha reta.
            Cinco vezes. De vinte a vinte e cinco dias desacordado no total. Longe de Estrela e enganando a filha. Enfraquecendo-se mais a cada tentativa. Arriscando-se a perder a vida como a conhecia. Tudo por causa de uma suspeita estúpida que não pude guardar para mim.
            — Idiota — xinguei de novo, mas desta vez o puxei para meus braços.
Era a primeira vez que eu o abraçava. A primeira vez que aceitava me entregar a alguma coisa que não podia controlar. Quer dizer, a segunda. A primeira vez de verdade foi com Norah e por causa disso a segunda vez parecia tão significativa. Porque este rapaz podia ser meu filho com ela. E era no que eu mais queria acreditar.
Senti quando Logan retribuiu o gesto de forma insegura, logo depois aferrando-se ao abraço da mesma forma que eu. E então eu entendi. Ou melhor, admiti.
Admiti que não importava se ele tivesse nascido de Norah ou em uma estrela distante que eu só podia imaginar. Não importava se eu fosse seu pai de verdade ou se o destino tivesse nos juntado de forma absolutamente aleatória. Aquele era meu filho.
— Meu filho — murmurei.
— Desculpe, eu juro que tentei. Mas ele não vai voltar. Desculpe — ele respondeu com a voz alquebrada.
Isso fez com que as malditas lágrimas que ardiam em meus olhos, por fim, vencessem minha resistência e começassem a me escapar. Logan achava que tinha culpa por meu luto pelo filho que não conheci. Não era verdade e eu sabia que precisava fazê-lo entender que não havia culpa alguma.
Só não tinha forças naquele momento.
Porque ao mesmo tempo em que eu me despedia de um filho, sabendo que tudo o que jamais teria dele seriam memórias, recebia o outro em meus braços como se, de certa forma, ele tivesse nascido para mim naquele dia.
Mas não tinha, certo? Logan sempre havia sido meu garoto. Meu garoto milenar. O único capaz de me amar como pai, antes mesmo que eu tivesse a chance de qualquer ato que fizesse jus a esse papel. Aquele que tinha salvado minha vida e arriscado a própria em meu nome. E que o faria de novo e de novo se precisasse, a despeito de minhas objeções.
            — Você não tinha que ter feito isso — falei, as palavras abafadas em seu ombro. — Eu jamais te pediria que colocasse tudo a perder.
            — Eu sei. Por isso mesmo tive que fazer escondido. Porque você não pediria, mas precisava ser feito.
            — Idiota — repeti outra vez e ouvi sua risada baixa.
            — É, você já disse isso.
Fiquei esperando que ele se afastasse de mim, mas não aconteceu. Logan simplesmente ficou ali, se deixando abraçar, permitindo que eu vivesse aquele reconhecimento tardio de que meu coração podia bater no peito de outra pessoa.
Um filho.
Meu Deus.
Alguém que fazia por mim o que Logan tinha feito era um filho escolhido pela vida. O resto, a verdade, qualquer que fosse, não importava mais.
Acho que um minuto inteiro se passou antes que ele dissesse qualquer outra coisa, e eu apenas esperei.
— Sinto muito mesmo. — Foram suas próximas palavras.
            — Você não tem que sentir. — Finalmente me afastei para poder olhá-lo nos olhos. — Nunca vou esquecer o que você fez. Você estava jogando com sua vida, Logan.
            — Não é assim. Eu não morreria, você sabe.
            — Não diminua seu sacrifício. Ou o de Estrela. — Observei-o se encolher envergonhado, como já sabia que aconteceria quando eu a mencionasse. Logan odiava ver Estrela sofrer. O que só me fazia enxergar com mais clareza a dimensão do que ele tinha feito por mim e pelo Logan humano. — Se você impôs isso a ela e a si mesmo, se arriscou tudo o que podia acarretar para Lindsay, foi porque deu uma importância aos meus sentimentos que ninguém nunca havia dado. Mais do que eu mereço. E eu sei que você não morreria, mas teria que recomeçar toda sua vida com outro corpo e outra história.
Parei um pouco, tentando imaginar como seria e percebi que mal podia conceber a possibilidade, apesar de tudo. Mesmo assim, não tive dúvidas de que ele podia.
Você conseguiria, porque é um moleque ardiloso — continuei, orgulhoso, então me arrisquei a tocar seu rosto num gesto de carinho meio brusco e desajeitado. Era difícil controlar a vontade de tratá-lo como criança, mas ele era um homem feito e eu apenas não sabia como agir. — Você conseguiria, mas só Deus sabe o que isso poderia te custar. — Ele balançou a cabeça e sorriu, minimizando as coisas outra vez, teimoso como um bom Stryder. Mas eu não poderia estar falando mais sério. Não era só o meu futuro e o dele que estavam em jogo. Nem sequer o das pessoas diretamente envolvidas, como Lindsay e Estrela. Havia muito mais. — Diabos, o que seus amigos Almas pensariam quando soubessem?
            — Estrela teria escolhido alguma Alma com poucos laços na Terra, nenhum familiar. E nós o mandaríamos para um bom lugar. Meus amigos não entenderiam no começo, mas no fim não haveria o que pudessem fazer a respeito. De qualquer jeito, jamais voltariam atrás na palavra dada aos humanos. Muito menos por algo que eu fizesse — garantiu, parecendo muito certo disso. — Eles já estão envolvidos e não mudarão de ideia. Além do mais, uma vez que a questão já está sob os olhares dos representantes, não há como fingir que não existe. Por isso sei que não precisam mais de mim agora. A luta se tornou maior do que eu ou qualquer um de nós.
            Foi minha vez de balançar a cabeça em descrença.
            — Você sempre acha que tem jeito para tudo. E de certa forma eu admiro esta consciência de que o mundo existe além das coisas que você pode fazer. É preciso humildade nesta vida. Mas não agora, Logan. Neste momento, deixe-me apenas agradecer pelas coisas que você tem feito. Por todos nós.
            Ele sorriu daquele jeito que não lhe chegava aos olhos, depois se virou para olhar a paisagem. Sentei-me à sombra das rochas, como fizemos no primeiro dia, e esperei outra vez. Depois de alguns instantes, ele veio se sentar ao meu lado.
            — Você acha que eu fiz uma coisa boa, e todos me dizem que não devo sentir culpa por não ter dado certo, mas quando me permito sentir alívio por Logan Smith não ter acordado, eu me sinto traindo o primeiro ser que amei em minha existência. E isso é bem pior. Eu não convivi com ele, não dividimos mente e corpo como Peregrina e Melanie, mas eu o admirei e compreendi. Por isso é tão difícil conviver com o fato de que ele não teve chance de ser feliz como eu sou. Você é o melhor homem que conheci e ele merecia tê-lo tido como pai. Por isso peço desculpas, Jeb. Se ele for realmente seu filho, eu falhei com vocês simplesmente por estar aqui.
            Um pequeno cilindro fino e prateado apareceu quando Logan estendeu a mão diante de mim, oferecendo-me o objeto. A expressão no rosto dele fazia minhas entranhas se enrolarem em um nó aflitivo, porque tinha que haver um jeito de eu poupar ao menos um dos meus filhos de continuarem a sofrer, mas naquele instante não parecia nada claro como raios eu conseguiria.
            — O que é isso? — perguntei, engolindo minha fraqueza e tentando parecer firme.
            — Um teste de paternidade. — Logan retirou uma tampinha de uma das extremidades da peça que parecia uma caneta e a esfregou na mucosa da própria boca. — Você faz o mesmo agora do outro lado e teremos certeza. O resultado aparece no corpo do cilindro dentro de alguns segundos.
            Segurei o objeto em minhas mãos e o observei. Apesar da aparência extravagante de metal cromado que as Almas davam a todos os seus badulaques, parecia até uma coisa banal diante do que representava. Tão miraculoso em sua simplicidade quanto um termômetro de mercúrio que aponta uma febre com precisão. Da mesma forma, a resposta que precisávamos estava ali ao meu alcance, dentro de poucos instantes eu saberia.
            Tão simples.
            Por um momento, fiquei tentado a acabar logo com aquilo e descobrir a verdade, mas então pensei...
“E depois?”
O que é que existe depois da verdade? Como é que se lida com ela, caso seja diferente da que já está no coração? E assim eu soube o porquê estive adiando tanto aquele momento. O fato é que eu não estava preparado para ele e agora, principalmente, sabia que jamais estaria.
— Se Norah tiver mesmo me escondido um filho — expliquei —, não há nada que possa ser feito para remediar o que isso causou a todos nós. — Recolhi a tampa na mão dele e a coloquei-a de volta no cilindro. — Esse sofrimento é minha carga e é justo que assim seja, porque Logan Smith merece um pai que fique de luto por ele. Ninguém mais além de mim pode fazer isso. E quanto a você, não acho que haja outro mais disposto que eu a ser o pai que você também merece ter. Então, de qualquer jeito...
— Não estou entendendo. Você não quer saber?
— Essa resposta não me interessa mais. Eu já tenho a minha — disse, devolvendo o teste a Logan. — Faça o que quiser com isso, porque eu não vou babar aí. Agradeço a intenção, mas já está decidido.
— Jeb...
— Preste atenção, garoto. Você é meu filho em meu coração, está bem? E depois de tudo, sinto como se Logan Smith também fosse. Vou honrá-lo através do amor que posso dar a você. Um exame não vai mudar isso. Saber se a resposta é positiva ou negativa, também não. Então vou fazer o que sempre fiz e seguir meus instintos. Eles dizem que sou seu pai e fim.
— Mas mesmo que ele fosse seu filho, Jeb. Eu não sou...
Espalmei a mão diante dele, num gesto que pedia que se calasse. Eu sabia muito bem o que ele iria dizer, mas não estava mais disposto a ouvir.
— Me faça um favor, nunca mais diga que não é meu filho. Não gostei quando você disse a primeira vez e não quero escutar de novo. Talvez Logan Smith fosse meu filho biológico, talvez não. Nessas alturas, já lamentei tudo o que tinha que lamentar por ele não ter tido um pai, mesmo que não fosse eu. Mas essa parte da história não pode ser reescrita.
— Eu sei disso. Só não consigo evitar o pensamento de que se não fosse por mim, vocês teriam uma chance.
— Se não fosse por você, seria outra Alma e nós nem estaríamos aqui, porque ninguém abraçaria as memórias dele como você abraçou. Ninguém faria o que fez e você sabe disso! Ora essa, Logan, eu nem deveria precisar te dizer!
Procurei encará-lo da forma mais incisiva que pude, mas provavelmente só pareci um tolo implorando compreensão. A verdade era que eu estava diferente agora. Tudo estava. E não era como se fosse fácil para mim ser essa nova pessoa. Mesmo assim, precisava me esforçar e tentar entender o que ele sentia, porque isso era mais importante. Eu simplesmente não podia deixá-lo seguir pelo caminho em que estava indo.
— Nós somos homens práticos, filho. Sempre fomos. E se você pensar um pouco, vai chegar à mesma conclusão que eu. De que culpa é um sentimento improdutivo, porque não muda nada. Eu desisti dela nos últimos tempos. Desisti de me culpar e de procurar culpados. Você precisa fazer o mesmo e entender que sou incapaz de ver sua existência como a causa do que perdi. Eu sei que vocês Almas têm essa mania de se martirizar, mas você é esperto o bastante para saber que meu filho não estaria aqui comigo se você não existisse. Ele nunca esteve na minha vida e nem estaria agora, porque não foi sua chegada que nos separou. Muito pelo contrário. Você foi a forma de o universo nos dar outra chance.
Eu sabia que estava parecendo uma dessas pessoas que atribuem tudo ao destino, mas não pude evitar. As palavras me saíam estranhas e insuficientes, contudo eu tinha que dizê-las. Porque não era como se eu acreditasse de verdade que certas coisas estavam escritas, mas na sinuca da vida, algo tinha simplesmente feito com que a tacada certa fosse dada. Este velho jogador displicente não tinha mais nenhuma dúvida quanto a isso.
— Acho que Peg tinha razão quando disse que me culpar por tudo era minha maneira de ter algum controle sobre o incontrolável — ele lembrou e eu concordei. A pequena Peg não era uma moça de muitas palavras, mas sempre estava certa em cada uma delas. — Talvez seja meu jeito de processar as coisas, embora não seja lá muito inteligente.
— É seu modus operandi[1]. E, não, não é muito esperto mesmo, mas quem sou eu pra julgar? Depois de meses remoendo a dúvida, estou pedindo para você jogar a resposta definitiva fora. Quem seria capaz de achar isso são?
Logan balançou a cabeça sorrindo, depois coçou a nuca como se estivesse tentando compreender algo complicado.
—Eu acho que entendo por que você não quer arriscar uma resposta negativa — disse. — Por esse mesmo motivo me recusei a deixar a memória dele para trás. Porque nós somos os únicos que pensamos em Logan Smith e ele era alguém que mereceria ser lembrado. — O sorriso melancólico que tinha surgido de repente começou a se desmanchar devagar, e eu soube que estávamos fora da estrada outra vez. — Mas onde é que isso nos deixa, Jeb? Porque você está projetando algo em mim e não sei se posso lidar com isso. Eu não sou Logan Smith.
Jesus, Maria, José. Ele não quer mesmo entender, não é?
Francamente, a essas alturas, eu já conhecia e quase podia prever as reações típicas de Logan. E, na minha experiência, não podia haver nada mais típico do que ele me irritar até quando o momento era carregado de todas as outras emoções cruas que uma conversa dessas podia trazer. Mas a coisa toda era que, felizmente, eu conseguia ser um pouco melhor do que isso e não ia me deixar levar pela reação mais simplória dentre todas. Não mais. Menos ainda neste momento.
— Não acho que... — começou, mas o interrompi e tomei a palavra, me munindo de toda paciência que ele merecia.
— Você se lembra da nossa primeira conversa sobre Logan Smith?
— Na viagem para Tucson — assentiu —, quando fomos buscar os remédios para Estrela.
— Exatamente. Eu tinha dito a mim mesmo que preferia nascer de novo como um ganso antes de confiar em um Buscador nervosinho, mas horas depois eu estava lá naquele carro com você.
— Aquela história de Velho Ganso... — Ele soltou uma risada fraca, como se ressoasse mais no tempo passado do que no espaço presente. — Então era por isso os apelidos.
— Sim, era por isso. Uma bobagem, mas me ajudava a lembrar por que foi que decidi confiar. Em essência, no começo, foi por causa de Peg, eu acho. Porque ela me fez entender que Almas eram verdadeiras e vi essa verdade em você, no seu desespero por salvar Estrela e John. Mas depois, durante aquela conversa, eu entendi por que tinha feito a escolha certa. Você me disse que se importava com seu hospedeiro, que tinha aprendido a conhecê-lo e a compreender quem ele era. Achava que havia coisas em você, reações, sentimentos, percepções, que só existiam por causa dele, da personalidade à qual você acreditava que tinha se moldado.
— E você entendeu e me disse uma coisa que nunca vou esquecer. Você falou que ele não tinha desistido do próprio corpo, mas me aceitado como a parte que faltava. Que éramos um só — Logan completou com os olhos marejados.
— Para mim, sempre foram. Tudo o que eu conheço daquele Logan aprendi a amar em você. Porque naquele dia eu percebi que você era uma Alma boa como Peg e Sunny, mas era também um homem bom, com bons sentimentos humanos. Você é as duas coisas, Logan, como tem demonstrado sem nenhuma dúvida desde então. E essa, meu filho, é a nossa história. Não tem a ver com o que Norah fez, nem com como as coisas poderiam ter sido sem você na equação. Tem a ver com como as coisas são. Eu aceito isso, você precisa aceitar também.
Logan não reagiu. Seus punhos estavam fechados e os olhos vermelhos foram ficando mais verdes também, como sempre acontecia quando ele lutava com as coisas dentro de si.
— Escute bem, Logan, se não está entendendo, então vou ter que falar com todas as letras. Eu sei que você não é Logan Smith e eu não espero que seja, porque você é mais do que isso, é uma junção dos dois, e foi esse ser que eu aprendi a amar. Todas as vezes em que imaginei um filho, ele era exatamente como você. Soube disso no dia em que nos conhecemos e nunca, nunca pensei diferente. Naquele dia, não havia uma droga de razão para que nós confiássemos um no outro, mas você me entregou Estrela e eu a minha casa. E então você provou que eu estava certo e salvou minha vida, se arriscou por mim, foi meu melhor amigo quando eu não esperava nada.
“Em todos os meses em que esteve fora, não houve um único dia em que eu não pensasse em como você faria as coisas se estivesse aqui. Não houve um único momento em que eu não sentisse sua falta e me preocupasse. Então de novo te digo que essa é nossa história. De como já somos uma família na prática. Deixe que seja nosso futuro também. Permita que a gente possa dar um nome ao que já sentimos, porque eu sei que você me ama como pai tanto quanto eu te amo como filho.
Ele continuou na mesma postura de antes, parecendo pequeno como a estátua de um menino. Mas sua expressão vacilou, indicando que eu tinha acertado o alvo.
— Me diga, filho, se não é o mesmo que você quer? — insisti.
Não houve uma resposta imediata e compreendi que talvez ela demorasse um pouco a chegar, ao menos da forma definitiva e inequívoca que eu gostaria que fosse, mas eu esperaria quanto tempo precisasse esperar.
            Observei quando a primeira lágrima arduamente contida traçou seu caminho por seu rosto e, muito lentamente, de um jeito que parecia quase como se fosse apenas minha imaginação, vi quando ele assentiu.
            Passei meus braços por seus ombros e a cabeça dele pendeu em meu peito. Afaguei seus cabelos como se ele fosse uma criança e senti o que teste algum poderia me dar ou tirar.
Estava feito. Logan era meu filho porque tínhamos escolhido assim. A vida tinha nos dado aquilo e, no que dependesse de mim, eu não desperdiçaria o presente com lamúrias sobre o que poderia ter sido.
Ficamos daquele jeito por muito tempo, em um silêncio de paz.
Havia muita coisa a dizer, provavelmente. Mas não me importava. A única coisa que eu verdadeiramente precisava naquele momento e nos próximos estava ali em meu abraço.



[1] Seu jeito costumeiro de agir.

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