Capítulo 33
Maniqueísmos são simples, as verdades nem tanto
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world, you
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world, you
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one
But I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one
Logan
Estrela estava ao meu lado, como
sempre, e isso parecia tornar as coisas um pouco mais fáceis. Então me peguei
pensando em como Cal devia estar se saindo com as notícias difíceis, se é que
ele já tinha tido a coragem de despejá-las.
Em poucos minutos, porém, não
precisaria mais imaginar como seria e estremeci ao pensar no que teria que
dizer aos meus amigos.
Vou ter que matar as esperanças deles.
— Está tudo bem? —
Peregrina se aproximou, sentando ao nosso lado na mesa da cozinha depois do
jantar. Ian estava mais adiante brincando com John. — Vocês parecem
preocupados.
— Tudo está bem —
respondi. — Mas tenho algo a contar ao pessoal e não é uma notícia fácil.
— Como assim? —
perguntou Sunny, sentando-se à nossa frente, ao lado de Kyle que já estava lá. —
Ninguém entendeu por que Jeb convocou essa reunião agora. Mas eu conheço você,
Logan. Essa ausência longa me deixou preocupada.
Ela realmente me
conhecia bem. Além disso, estivera me sondando a noite toda. Kyle costumava
brincar que não conseguiríamos mentir para Sunny nem que tentássemos.
Mas não era apenas
ela que estivera me observando. Primeiro, Kyle seguiu meu olhar até onde
Lindsay estava com Sharon, depois voltou o rosto para mim de novo com uma
carranca que se pretendia ameaçadora.
— Você está
esquisito mesmo. Com cara de culpado. E tem só uma coisa... Ele correu a palma
da mão aberta sobre o próprio rosto, como quem tinha se dado conta de um grande
problema. — Você não fodeu as negociações de paz, fodeu?
Kyle era
impossível. E às vezes me fazia sentir uma vontade incontrolável de apertar seu
pescoço até a língua sair para fora da boca, porque apesar de aquele ser um
medo justo, ele me conhecia bem o suficiente para saber que nem tinha que me
perguntar algo daquele tipo. Para a sorte de nós dois, foi Estrela quem
respondeu com toda paciência.
— Nem que
quiséssemos, o que você sabe que não queremos e não iríamos querer nunca.
Estragar tudo não é mais possível a essas alturas, porque tem muita gente
engajada em fazer dar certo. Isso está além de nós agora.
— Nada está além de
ser fodido, amiguinha.
Engolir a língua.
Fazê-lo engolir a língua seria ainda melhor do que esganar o infeliz até
fazê-la saltar para fora.
— Será que você pode
controlar essa necessidade irrefreável de ser você mesmo? — retruquei.
— Irrefreável —
repetiu num tom de desdém. — Olha só essa palavrinha pedante. Às vezes você nem
fala que nem gente e ainda quer me criticar. Ninguém nunca reclamou que eu
fosse eu mesmo, se quer saber.
— Na sua cara —
rebati.
— Que graça! —
disse Melanie entrando na cozinha e rindo. — Kyle e Logan estavam com saudades
um do outro. — A expressão de Kyle para ela foi tão hilária que até mesmo eu
acabei dando risada, o que deu início a uma sessão de resmungos prontamente
ignorada por Mel. — Bem, meninos e meninas, sinto muito interromper a
confraternização, mas tio Jeb pediu para vocês colocarem as crianças para
dormir e irem se encontrar depois com o pessoal na sala de jogos, que é maior e
cabe todo mundo. Candy se ofereceu para ficar de olho neles depois para vocês
poderem ficar à vontade aqui. Estranho que ela nem pareceu curiosa...
Fazia sentido,
porque, àquelas alturas, Candy já devia saber de tudo. Levantei encarando Kyle
e ele me encarou de volta, mas por algum motivo a raiva entre nós sempre
evaporava rápido.
— A louça hoje é
nossa — ele disse, dando a mão a Sunny. — Mas eu sim estou curioso. Então não
comecem sem a gente. E só pra constar, estava meio parado aqui sem vocês, sim.
Sentimos muita falta da Lindy. Então é bom que estejam de volta.
Melanie brincou,
fazendo um coração com as mãos para Kyle que ele fez questão de fingir que não
viu. Depois ela me deu dois tapinhas nas costas e saiu empurrando Peg para fora
da cozinha.
— Agora vão. Quero
ver se antes da meia-noite vocês param de nos enrolar. Minha nossa, quanto
mistério!
Estrela riu.
— Você já se deu
conta — sussurrou em meu ouvido — de que tem uma prima maravilhosa?
Eu ri também, mas
não respondi. Porque, não, eu não tinha me dado conta de tudo o que ser um
Stryder envolvia. Mas o fato era que, pela primeira vez desde que tudo isso
começou, não rejeitei a ideia de que esta era, sim, minha família.
********
As crianças não
dormiram rápido. Estavam com saudades um do outro e a animação por estarem
juntos novamente só cedeu espaço para o sono quando este último se tornou
incontrolável. Mesmo assim, ainda havia tempo e, quando chegamos, a conversa já
tinha começado.
— Ei, Logan — Jared
chamou —, Jeb estava nos dizendo que a ideia dos armazéns já está pronta para
ser posta em prática. Boas notícias, hein! Não vamos mais precisar fazer
incursões longas agora.
Essa ideia era a
menina dos olhos de Jared, porque começou com ele. Flora o ajudou a desenvolver
e todos ficaram excitados com a possibilidade de disponibilizar mantimentos,
remédios e roupas em um lugar onde os humanos sobreviventes pudessem ter fácil
acesso a eles. Era, antes de tudo, um gesto de demonstração de boa vontade das
Almas, uma tentativa de facilitar a vida das células restantes. Mesmo assim,
sabíamos que levaria tempo até os humanos entenderem o objetivo.
— Sim, os Conselhos
de cada cidade do país já definiram os melhores lugares para os Víveres para a
Humanidade — expliquei, olhando para Jamie.
Ele tinha criado o
nome e ficado orgulhoso quando David propôs adotá-lo em contexto global. O
garoto sorriu e eu pensei que aquela era a risada do meu primo. Um pensamento
estranho para um gesto que eu já tinha visto um milhão de vezes antes.
Jamie sorrindo.
Melanie brincando.
Sharon fazendo
cafuné em um dos filhos de Lucina.
Minha família.
Desviei o pensamento,
sem saber como lidar com aquilo, e continuei.
— A logística, no
entanto, é difícil, porque esses armazéns não podem ser isolados demais ou o propósito
de contato se perde, mas também não podem ficar muito perto das concentrações
urbanas, ou os humanos não irão até eles por medo. De qualquer forma, estão definindo
os locais de construção baseados no mapeamento feito pelos Buscadores de locais
onde já houve evidências de atividade humana, como roubos, desaparecimentos,
invasões ou simples avistamentos.
— Avistamentos —
Jared riu da palavra. — Parece que os extraterrestres somos nós.
— Eu não quis dizer
isso — me apressei em corrigir, porque parecia mesmo estranho falar para
humanos sobre como eles eram os foragidos em seu próprio mundo. Ou no que
costumava ser um mundo só deles.
— Tudo bem, Logan,
é só uma piada, relaxe! — ele esclareceu. — Vocês são mesmo maioria absoluta
agora e temos que lidar com isso. Mas depois de tanto tempo acho que já dá pra
ser com um pouco de bom humor.
— Certo. Temos que
pensar no futuro agora — disse Jeb significativamente.
Era só outra
variação do tipo de fala que ele tinha me dirigido o dia todo, mas a cada vez
que ele dizia ficava menos abstrato, mais verdadeiro. E somado à minha reação a
Jared, percebi que estivera todo o tempo na defensiva desde que isso começou e que
eu devia mais do que isso aos meus amigos. Precisava equilibrar minhas “merdas”,
como diria Kyle, e tratar de transmitir alguma segurança, porque era do futuro
de todos nós que estávamos falando.
— De qualquer
jeito, o pessoal vai ter medo — opinou Brandt. — Isso só vai funcionar através
do boca a boca. Não adianta criar mensagens em telões ou mesmo por sinais de
rádio, que é como sabemos que algumas células se comunicam entre si. Isso pode
e deve ser feito também, mas humanos só vão confiar em outros humanos, ao menos
por enquanto. Sem ofensa. — Fiz um gesto com a mão para dizer que não me
importava que ele falasse assim. Afinal, era verdade. Então ele continuou: — O
problema é que apenas nós estamos trabalhando com as Almas, e todo nosso
conhecimento sobre os sobreviventes se restringe à nossa região. Como isso vai
acontecer em outros lugares?
— Ainda acho um
absurdo vocês terem denunciado nossa localização para eles — resmungou Lacey. —
É uma traição com as outras células, porque eles também ficam expostos, mas nem
participaram da decisão.
— É admirável sua
preocupação com os demais, Lacey — Sharon interferiu num tom irônico. — Mas nós
não revelamos localização alguma. Eles não quiseram saber e nos deram liberdade
de contar apenas o que achássemos prudente. Por isso, apesar para parecer que não
tínhamos confiança em David e Flora, não podíamos revelar segredos que não pertenciam
só a nós. A localização do nosso armazém foi determinada por Jared e Melanie,
pensando em um local que pudesse ser bom para todos, sem necessidade de revelar
localizações de células aos Buscadores.
— E eles entenderam
isso? Poxa que amorzinhos que esses parasitas são! Também pra que pressionar,
né? Em breve eles terão uma enorme ratoeira para se divertirem. E ainda vão
dizer que a ideia foi nossa. Parabéns, Jared.
A acidez na fala de
Lacey fez o maxilar de Sharon trincar de forma audível. Meses atrás, seria até
possível esperar que ela concordasse com a outra, mas agora Lacey estava completamente
sozinha ao destilar seu veneno, o que tornava suas tentativas cada vez mais
desesperadas e sórdidas.
— Ah, me desculpe —
disse Sharon. — Eu não sabia que tinha sido “nossa” ideia. Será que você pode
me lembrar qual parte mesmo teve a sua participação? Você estava lá dando a
cara a tapa comigo e com Doc, quando aceitamos a ideia de Logan de nos abrir ao
diálogo com as Almas? Ou será que você já esteve em alguma incursão com Jared e
os outros para garantir os alimentos que nos mantiveram vivos antes da chegada
de Peg? Você conseguiu algum remédio? Ou quem sabe combustível, ahn?
— Você não pode me
acusar de me aproveitar dos outros só porque sou a única que tem coragem de dar
opinião. Todo mundo aqui trabalha uns pelos outros de alguma forma, por isso
todo mundo tem direito de falar o que quiser.
— Chega disso — Jeb
decretou. — Falar o que quiser significa ter que lidar com a contrapartida,
Lacey. E agora é um pouco tarde para discordâncias. Você devia ter se oposto
antes de colocarmos qualquer plano em ação, antes de Logan e Estrela se
sacrificarem se infiltrando nos Conselhos e de Sharon, Doc e os demais se
revelarem a David e Flora. Neste ponto, só o que podemos fazer é confiar neles.
— Não se incomodem
com isso, pessoal — interferiu Mel. Eu estava mesmo estranhando que ela
estivesse tão quieta, mas de repente me dei conta. Melanie era como uma atiradora
de elite. Só precisava de um único tiro certeiro. — Vocês estão perdendo tempo
discutindo com Lacey, porque ela nunca quis fazer parte do debate. Foi por isso
que esperou até agora para falar, porque as opiniões dela nunca são boas o
bastante para serem relevantes, mas quando critica todo mundo ouve.
Atiradora de elite.
Acho que eu tinha acabado de encontrar a definição perfeita.
Percebi Ian
segurando o riso e evitei olhar para Kyle. Mas Peg sentia algum tipo de
responsabilidade pela vida de Lacey. E agora eu quase conseguia entender por
quê.
— Melanie! — ela
chamou com um tom leve de advertência.
— O que, Peg? Você
é muito complacente com essa mulher. Desde sempre! E ela continua tratando
todos vocês como lixo, como se devessem um favor arranjando a comida que ela
come e as roupas que veste.
Por um segundo,
desejei que Mel não tivesse tocado nesse assunto. Sempre foi um ponto delicado
para Peregrina, para todos nós, e agora era complicado para mim também. Não era
difícil prever que depois disso a discussão iria ladeira abaixo.
— E eles devem! —
esbravejou Lacey, como imaginei que faria. — Eu podia ter tido uma vida boa, e
em lugar disso estou enterrada neste buraco, porque essas lacraias resolveram
que nosso mundo era deles! E como se não bastasse, todo mundo aqui fica
assistindo às idas e vindas dos nossos alienígenas de estimação e acatando
quando eles decidem nosso futuro.
Dava para ver as
reações das pessoas à fala dela. As ponderações de quem provavelmente sentia o
mesmo, mas preferia ficar calado, por um senso de lealdade e gratidão. A mágoa
de Sunny e Peg. A raiva de Ian, Kyle, Melanie e Jared. A resposta atrevida
coçando a língua de Jamie. O receio de Jeb, que me olhava como se minha determinação
pudesse se quebrar e levar com ela tudo o que ele tinha conseguido com nossa
conversa de pai e filho.
— Você precisa
parar, Lacey. — Desta vez, para a surpresa geral, foi Magnólia quem falou. —
Não vou ser hipócrita de dizer que já não senti tudo isso, que ainda sinto às
vezes. Acho que ninguém aqui pode fingir que não se importa, que não preferiria
outra vida, mas o momento para isso passou, entende? Este é nosso presente. A nossa comunidade. Esta comunidade com
todos os seus membros. De que tanta mágoa vai adiantar? Que bem vai fazer pra
você ou pro resto de nós? Pelo contrário, só piora tudo. Você pode falar o que
pensa, mas não está ganhando nada com isso. Não está ajudando em nada. Só o que
está fazendo neste momento é gastar munição atirando no escuro, sem se
preocupar com quem pode ferir. Jeb está certo quando diz que agora é tarde para
mudar nossas decisões.
— Até parece que
vocês iam me ouvir quando deviam. Não tenho “querida” no nome. Como “querida
Peg”, “querida Sunny”, “querida Estrelinha” ...
— Que merda isso
quer dizer, hein? — Kyle a interrompeu. — E eu já não te proibi de dizer o nome
da minha mulher, cobra maldita?
— Viram só o que eu
disse? O que adianta falar se os parasitas são da família e eu sou a cobra
maldita, hein, Kyle? Quem é você para me proibir de qualquer coisa que seja, aliás?
Você só prova meu ponto.
— Eu e minha família somos aqueles que buscamos sua
comida, cretina ingrata. Embora no que dependesse de mim, eu não ligaria de
deixar você morrer de fome, Sunny é que tem pena. Então você tem sorte duas
vezes por ela existir. E por Peg ter salvado você também, já que estamos nisso
de explicar por que te aguentamos aqui. Por isso dobre sua língua!
— Ok. Então vamos
agir como se fosse exagero meu dizer que se elas não existissem eu não
precisaria de ninguém para buscar minha comida. Ou me salvar. Mas ao invés
disso estou apodrecendo num buraco escuro, porque minha vida acabou. Quer
dizer, eu continuo respirando, mas estou morta e enterrada, não estou? Talvez
se eu estivesse trepando com os homens do grupo vocês não se comportassem como
se eu fosse um peso. Foi a estratégia das honradas
parasitas...
Estrela apertou
minha mão como se tentasse me segurar na Terra, não sei se esperando que eu contra-atacasse
para nos proteger, ou que recuasse, sentindo o peso da culpa da qual vinha
tentando me livrar.
Mas eu estava farto
e Jeb tinha razão. A culpa era improdutiva. Egoísta até, naquela conjuntura. Porque
eu não podia fazer o tempo voltar. Não podia dar a vida de antes de volta para
os humanos. Ninguém podia. Mas isso não nos tornava maus. Era a nossa
sobrevivência também. Então não havia vilões. Cada vez mais eu tinha a
impressão de que raramente a vida era simples assim. Como se pudesse ser vista
através de simples maniqueísmos. Heróis e vilões. Bons e maus. Pessoas de quem
gostávamos e que queríamos manter por perto e pessoas odiosas a quem podíamos
nos dar ao luxo de evitar.
Não, nada era
simples assim.
O que também
justificava que eu não conseguisse mais reagir como teria feito antigamente,
como uma versão mais comedida e menos raivosa do que quer que Kyle ou Ian estivessem
imaginando responder. Por que por mais que Lacey destilasse ódio em cada
palavra, agora eu entendia o que ela sentia. Entendia todo o valor e o peso do
que tinha sido tirado dos humanos.
— Eu sinto muito, Lacey
— falei, provavelmente surpreendendo a todos. Porque a verdade era que aquela
mulher era a coisa mais próxima à perversidade que minha mente conseguia conceber
e meus sentimentos por ela eram correspondentes a essa impressão. Mas ainda
assim, o que eu ia dizer também cabia a ela. — Sei que não torna as coisas
menos dolorosas, mas minha espécie não entendia a complexidade daquilo com que
estávamos interferindo, das vidas que estávamos tomando. Porque foi isso que
nós fizemos. Para sobreviver. E agora nós estamos aqui e entendemos, mas não
podemos mais ir embora. Isso não salvaria seus entes queridos. Não mudaria as
coisas como são.
— E por isso você
sente muito? — ela retrucou com certa acidez. — Oh, obrigada, Logan. Agora me
diga o que exatamente eu faço com isso?
— Não sei. Estou
dando a você e aos outros a verdade. Mas não posso decidir como irão lidar com
ela — respondi, lembrando o que Estrela tinha me dito sobre isso estar fora do
meu controle. Eu só podia fazer minha parte.
— Vocês não
entendem — ela disse. E, por um instante, pareceu que suas defesas tinham
cedido um pouco, mas então ela se calou.
— Eu entendo, Lacey
— Peg tomou a palavra. — Foi o que sempre quis dizer. Você perdeu a Buscadora,
não é? Depois de tudo, ainda teve que lidar com isso.
— Eu fui uma de
vocês e perdi isso também — ela assentiu, fazendo uma careta de amargor que tenho
certeza de que Peg interpretou como luto, mas eu via como outro tipo de pesar.
Lacey não se
importava com a Alma da Buscadora — ou, até onde eu sabia, com nenhum outro ser
vivente —, o que ela queria era um lugar no mundo. Mas não qualquer lugar. Não uma
família ou uma comunidade. Ela queria um posto. Peregrina era simplesmente boa
demais para perceber isso.
— Sobre isso... —
intervi. — Os Buscadores precisam de ajuda. Como Brandt disse, humanos só irão
confiar em outros humanos, mas para isso precisamos localizá-los. Os Buscadores
têm uma boa noção de onde começar a procurar, mas vão precisar da nossa
experiência. E de humanos que se proponham a conversar com eles depois. Qualquer
um de nós pode ajudar, mas por sua experiência de campo, Lacey, acho que você
seria uma ótima adição às equipes de reconhecimento.
Pode ter sido impressão
minha, mas um sorriso quase imperceptível passou rapidamente pelo rosto da
mulher.
— Você está
insinuando que eu trabalhe com Buscadores?
— Você está louco,
Logan. Só pode — Kyle retrucou.
— Não estou louco.
E não estou insinuando nada. Eu pensei sobre isso. Lacey não gosta de ficar
aqui e ela sabe trabalhar com Almas. Já foi uma Buscadora. Vai ter um propósito
e nenhum motivo para colocá-lo a perder. Afinal, qual seria o objetivo de
sabotar a paz?
— Eu não faria isso
— ela afirmou com a maior convicção que eu já tinha visto em seu rosto e ouvido
em sua voz. Não havia ironia, malícia ou sequer a pretensão de se provar digna.
Apenas pura objetividade.
— E depois, quando
as equipes de reconhecimento tiverem encontrado as células, mandaremos alguém
mais diplomático. Ian seria minha primeira opção. Mas Jeb, Melanie e Nate também
têm muito a acrescentar nessa parte do trabalho.
— Eu quero ajudar —
disse Ian. — É o futuro do meu filho também. Quero fazer o que puder. Honestamente,
já estava começando a me incomodar não poder fazer nada. — Ele riu,
constrangido.
Peg aprovou com um
gesto de cabeça.
— Todos nós
precisaremos trabalhar muito daqui pra frente.
— Certamente — concordei
com ela. — David sugeriu que Jared poderia ajudar a coordenar as unidades do
programa de Víveres para a Humanidade da região, determinando quais tipos de
mercadorias se fariam mais necessárias e práticas em cada época do ano. E Cal
acredita ser importante que alguns humanos se mudassem para perto de cada armazém,
para ajudar a mostrar aos relutantes que é seguro ir até lá e, claro, informar
o que precisa ser reposto.
— Podemos fazer
isso — disse Paige, olhando para Andy, que concordava com ela.
— Sem ofensas, mas
seria bom ter um lugar só para nós dois. E ter contato com outros humanos
também, além de manter o vínculo com vocês de tempos em tempos — Andy começou a
elaborar, animado.
— Pelo menos por um
tempo — completou Paige. — Mas acho que estamos tão acostumados a vocês que
sentiremos falta rápido. Eu gosto de cozinhar para muita gente.
— Você pode
cozinhar muito para uma pessoa só — Andy provocou, passando a mão em círculos
sobre a barriga, e todos riram.
Havia sorrisos e
planos. As conversas paralelas enchiam o ar de esperança.
— E o que
acontecerá com o resto de nós, Logan? — perguntou Lucina. — Quer dizer, eu concordaria
em zelar por um dos armazéns se fosse preciso, mas, sinceramente, não quero
mais viver isolada. Quero que meus filhos possam ir à escola e conhecer gente.
Os olhos de Lucina
brilhavam e, por um breve instante, ela pousou a mão sobre o peito, logo abaixo
da garganta, como se não acreditasse que aquelas palavras cheias de novos propósitos
e sonhos tinham acabado de brotar dali.
— A ideia é o restabelecimento
completo da convivência. Como parte da nossa sociedade, vocês terão os mesmos
direitos e obrigações de qualquer Alma — respondi para ela, sorrindo. — Assim,
vocês poderão escolher onde querem morar e com quem. Não vão precisar se isolar,
se não quiserem.
— A antiga
estrutura de prédios e condomínios foi mantida, de acordo com o que me lembro —
Melanie argumentou. — Eles foram melhorados e houve uma redistribuição mais igualitária
dos espaços, mas ainda há a possibilidade de morarmos todos próximos, de manter
nossa família.
— E trabalho? —
perguntou Lucina. — Você está dizendo que teríamos deveres também, o que eu
entendo. Mas nunca compreendi bem como funciona isso, já que não existe mais dinheiro.
— Funciona como
aqui, todo mundo trabalhando por todo mundo. As habilidades individuais são respeitadas:
Buscadores, Curandeiros, Confortadores, Comunicadores, Agricultores... Cada um
realiza o trabalho para o qual tem mais talento. Mas certas funções, como
limpeza e manutenção das cidades e a mentoria nas escolas são divididas por
todos, de acordo com suas possibilidades. Os Conselheiros identificam as
necessidades e os Buscadores organizam os turnos.
— E se alguém se negar?
— Isso não
acontece. Todos entendem e colaboram com as necessidades coletivas da forma que
podem. Mesmo assim, ninguém é obrigado a nada.
— Eu nunca pensei
que diria isto, Logan. — Lucina suspirou animada, segurando a minha mão. — Mas é
bonito o mundo que vocês fizeram. Estou ansiosa para aprender mais.
— Vocês já
entendem, Lucina — declarou Estrela. — Já vivemos isso aqui. Já temos espírito
de coletividade. E foram todos vocês que criaram. Nós aprendemos mais com vocês
e com Peg do que com nossa espécie.
— Vai dar tudo
certo — garanti a ela. — David está em contato com Representantes de todo país.
Dentre eles, há os chamados Embaixadores que se correspondem com outros Embaixadores
pelo mundo. Todos estão mobilizados, pensando nas melhores formas de
estabelecer a paz em cada comunidade. E, o mais importante para nós, nossos
amigos do Conselho de Nova Orleans precisam de nossa colaboração, de nossas
ideias, porque somos multiplicadores agora. O que fazemos e pensamos aqui ressoa
por todo planeta, sendo adaptado às circunstâncias de cada comunidade, pelo
menos até encontrarem humanos locais dispostos a ajudar.
— E só temos que
agradecer a vocês dois — disse Peg a mim e à Estrela.
— Todos temos nosso
papel. O seu não é menor — respondi a ela, sorrindo. — É pelos nossos filhos.
— Quem diria que
chegaríamos aqui — admirou-se Kyle, e Sunny riu, feliz.
Meus amigos estavam
empolgados. Eu estava empolgado. E a sensação era como um sopro de ar fresco em
pleno verão opressivo.
Era tão tentador
apenas me deixar viajar nas asas de toda aquela esperança que quase perdi a
coragem de tocar em outros assuntos. Até mesmo Jeb, pela primeira vez no que
provavelmente era muito tempo, estava imerso na leveza de um momento que não
tinha nossas questões individuais como centro. Mas foi um comentário que Jared
fez a Melanie que me trouxe de volta à realidade.
— ...eles estão
cientes de que talvez haja episódios de violência, Mel. Mas nós não deixaremos
nada acontecer com nossos amigos. Pensaremos nas melhores estratégias junto com
os Buscadores, mas não há garantias onde não houver humanos como nós para fazer
as abordagens iniciais. As pessoas estão isoladas há muito tempo, vivendo
sabe-se lá em que condições. Nós aqui temos sorte, mas os outros...
— O trabalho será
lento — interrompi, mesmo que a conversa entre os dois fosse incialmente baixa
e particular. — Progressivo, mas lento. E quanto mais os humanos se envolverem,
mais fácil. De início, seremos apenas nós e o pessoal do Nate, mas com o tempo
outros ajudarão também, continuarão o trabalho até conseguirmos chegar a todos
os cantos, a outros países até.
— Nós sabemos — respondeu
Jared. — Mas precisamos estar preparados para reações de todos os tipos. Não
são todos que conseguirão superar o ódio e viver em sociedade com aqueles que
consideram inimigos. Não acho que terão força numérica para se impor de forma
violenta, nem organização para mais do que alguns levantes ineficazes, mas isso
não os impedirá de tentar, principalmente se acreditarem mesmo que os Buscadores
não os reprimirão mais.
— Os Buscadores e
os Conselhos estão determinados a não reagir com violência, mas como sempre estarão
vigilantes para garantir a segurança e integridade de todos. Os humanos que nos
ameaçarem serão contidos com sprays de Dormir ou, em casos mais extremos, com
armas de paralisium. Nesse caso serão
devidamente socorridos e curados depois, e se ninguém conseguir convencê-los a
dialogar pacificamente, serão levados de volta ao seu lugar de origem e
vigiados para que não sejam mais uma ameaça. Mas uma vez que o acesso aos armazéns
permanecerá garantido a eles também, acreditamos que cedo ou tarde haverá uma
possibilidade de retomar o diálogo. É promessa dos Representantes que nenhuma
resistência os fará desistirem da paz.
— Vocês são
otimistas.
— Temos que ser.
Mas, como você disse, estamos cientes das possibilidades de violência e até de perdas.
No entanto, não é muito diferente do que tem sido durante todo o tempo em que
estamos aqui. Buscadores morrem. Almas comuns são agredidas por saqueadores. Há
sequestros e desaparecimentos, como vocês todos bem sabem. Essas coisas sempre
aconteceram. Não há de ser pior agora que temos a possibilidade de conversar,
de aprender e ensinar com o contato. Vocês pararam de sequestrar os de nossa
espécie para tentar retiradas sem sucesso quando Peg mostrou a vocês como
funcionava. E, depois de um tempo, os sobreviventes se convencerão de que não
poderão ter seus entes queridos de volta.
— Esse é outro
problema — disse Mel. — Kyle tentou com Jodi. Muita gente vai tentar também,
até descobrir as dificuldades.
— Não dá certo —
decretei. — As retiradas não funcionam.
— Eu sei que não dá
certo para alguns, já para outros... não é certeza! Deu certo comigo, com Lacey
e com Candy. Sei que já faz muito tempo, mas talvez... As pessoas vão querer
tentar e essa é outra coisa com que teremos que lidar. Talvez seja o maior de
todos os desafios para vivermos em paz.
— Preciso confessar
pra você, cara — disse Jared. — Eu mesmo estou lutando com a ideia. Consigo ver
o tamanho do problema que isso pode causar e também o quanto é improvável que
as pessoas que amamos tenham sobrevivido por tanto tempo. Mas você acha possível...?
— Vocês precisam acreditar
no que eu digo. Eu sei que não dá
certo.
— Nós também,
racionalmente falando. Mas são as pessoas que amamos. Não se pode esperar
racionalidade — argumentou Lily, se pronunciando pela primeira vez.
— Talvez nem todos
sejam como eu, Logan — Sunny interferiu. — Eu tentei e não funcionou, mas pode
funcionar com alguns. Não podemos garantir...
— Eu sei que não dá
certo, Sunny, e posso garantir que o tempo de inserção é um fator proibitivo.
Quando você tentou, já sabia que não funcionaria, mas havia uma possibilidade,
por causa do que aconteceu com as outras. Mas quanto tempo faz a última vez que
vocês tentaram? Cinco anos? Com Melanie e Peg foi diferente, com Lacey uma
exceção, com Candy um tiro no escuro que deu certo. Mas estamos falando de
Almas que estão no mesmo corpo há mais de uma década! Mesmo assim, eu também
achei que houvesse uma chance e, quando eu tentei, apostei nessa possibilidade,
mas quase morri por causa disso.
— Você tentou? — Sunny
questionou. — Não estou entendendo. Quando? Por quê?
Estrela baixou os
olhos, apertando minha mão. Jeb pigarreou, desconfortável, parecendo infeliz.
— Ah, meu irmão! —
Sunny veio para mais perto de mim e segurou meu rosto entre as mãos, sondando
meu olhar. — O que foi que você fez?
Peg, compadecida e
terna, mudava o olhar de mim para Estrela e depois para Jeb, como se, de alguma
forma, pudesse adivinhar. Kyle parecia meio aborrecido comigo, mas não dava
para ter certeza, talvez só estivesse intrigado. O resto das pessoas estava
simplesmente curiosa demais para me deixar antever qualquer outra emoção.
Era impossível
prever a reação que teriam, mas não dava mais para voltar atrás. Nunca teria
sido possível esconder deles, de qualquer maneira.
Tinha chegado a
hora de tirar aquele peso do meu peito.
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