terça-feira, 9 de outubro de 2018

CD2 Cap 33


Capítulo 33
Maniqueísmos são simples, as verdades nem tanto

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world, you
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one
(Imagine – John Lennon)


Logan

Estrela estava ao meu lado, como sempre, e isso parecia tornar as coisas um pouco mais fáceis. Então me peguei pensando em como Cal devia estar se saindo com as notícias difíceis, se é que ele já tinha tido a coragem de despejá-las.
Em poucos minutos, porém, não precisaria mais imaginar como seria e estremeci ao pensar no que teria que dizer aos meus amigos.
Vou ter que matar as esperanças deles.
— Está tudo bem? — Peregrina se aproximou, sentando ao nosso lado na mesa da cozinha depois do jantar. Ian estava mais adiante brincando com John. — Vocês parecem preocupados.
— Tudo está bem — respondi. — Mas tenho algo a contar ao pessoal e não é uma notícia fácil.
— Como assim? — perguntou Sunny, sentando-se à nossa frente, ao lado de Kyle que já estava lá. — Ninguém entendeu por que Jeb convocou essa reunião agora. Mas eu conheço você, Logan. Essa ausência longa me deixou preocupada.
Ela realmente me conhecia bem. Além disso, estivera me sondando a noite toda. Kyle costumava brincar que não conseguiríamos mentir para Sunny nem que tentássemos.
Mas não era apenas ela que estivera me observando. Primeiro, Kyle seguiu meu olhar até onde Lindsay estava com Sharon, depois voltou o rosto para mim de novo com uma carranca que se pretendia ameaçadora.
— Você está esquisito mesmo. Com cara de culpado. E tem só uma coisa... Ele correu a palma da mão aberta sobre o próprio rosto, como quem tinha se dado conta de um grande problema. — Você não fodeu as negociações de paz, fodeu?
Kyle era impossível. E às vezes me fazia sentir uma vontade incontrolável de apertar seu pescoço até a língua sair para fora da boca, porque apesar de aquele ser um medo justo, ele me conhecia bem o suficiente para saber que nem tinha que me perguntar algo daquele tipo. Para a sorte de nós dois, foi Estrela quem respondeu com toda paciência.
— Nem que quiséssemos, o que você sabe que não queremos e não iríamos querer nunca. Estragar tudo não é mais possível a essas alturas, porque tem muita gente engajada em fazer dar certo. Isso está além de nós agora.
— Nada está além de ser fodido, amiguinha.
Engolir a língua. Fazê-lo engolir a língua seria ainda melhor do que esganar o infeliz até fazê-la saltar para fora.
— Será que você pode controlar essa necessidade irrefreável de ser você mesmo? — retruquei.
— Irrefreável — repetiu num tom de desdém. — Olha só essa palavrinha pedante. Às vezes você nem fala que nem gente e ainda quer me criticar. Ninguém nunca reclamou que eu fosse eu mesmo, se quer saber.
— Na sua cara — rebati.
— Que graça! — disse Melanie entrando na cozinha e rindo. — Kyle e Logan estavam com saudades um do outro. — A expressão de Kyle para ela foi tão hilária que até mesmo eu acabei dando risada, o que deu início a uma sessão de resmungos prontamente ignorada por Mel. — Bem, meninos e meninas, sinto muito interromper a confraternização, mas tio Jeb pediu para vocês colocarem as crianças para dormir e irem se encontrar depois com o pessoal na sala de jogos, que é maior e cabe todo mundo. Candy se ofereceu para ficar de olho neles depois para vocês poderem ficar à vontade aqui. Estranho que ela nem pareceu curiosa...
Fazia sentido, porque, àquelas alturas, Candy já devia saber de tudo. Levantei encarando Kyle e ele me encarou de volta, mas por algum motivo a raiva entre nós sempre evaporava rápido.
— A louça hoje é nossa — ele disse, dando a mão a Sunny. — Mas eu sim estou curioso. Então não comecem sem a gente. E só pra constar, estava meio parado aqui sem vocês, sim. Sentimos muita falta da Lindy. Então é bom que estejam de volta.
Melanie brincou, fazendo um coração com as mãos para Kyle que ele fez questão de fingir que não viu. Depois ela me deu dois tapinhas nas costas e saiu empurrando Peg para fora da cozinha.
— Agora vão. Quero ver se antes da meia-noite vocês param de nos enrolar. Minha nossa, quanto mistério!
Estrela riu.
— Você já se deu conta — sussurrou em meu ouvido — de que tem uma prima maravilhosa?
Eu ri também, mas não respondi. Porque, não, eu não tinha me dado conta de tudo o que ser um Stryder envolvia. Mas o fato era que, pela primeira vez desde que tudo isso começou, não rejeitei a ideia de que esta era, sim, minha família.
********
As crianças não dormiram rápido. Estavam com saudades um do outro e a animação por estarem juntos novamente só cedeu espaço para o sono quando este último se tornou incontrolável. Mesmo assim, ainda havia tempo e, quando chegamos, a conversa já tinha começado.
— Ei, Logan — Jared chamou —, Jeb estava nos dizendo que a ideia dos armazéns já está pronta para ser posta em prática. Boas notícias, hein! Não vamos mais precisar fazer incursões longas agora.
Essa ideia era a menina dos olhos de Jared, porque começou com ele. Flora o ajudou a desenvolver e todos ficaram excitados com a possibilidade de disponibilizar mantimentos, remédios e roupas em um lugar onde os humanos sobreviventes pudessem ter fácil acesso a eles. Era, antes de tudo, um gesto de demonstração de boa vontade das Almas, uma tentativa de facilitar a vida das células restantes. Mesmo assim, sabíamos que levaria tempo até os humanos entenderem o objetivo.
— Sim, os Conselhos de cada cidade do país já definiram os melhores lugares para os Víveres para a Humanidade — expliquei, olhando para Jamie.
Ele tinha criado o nome e ficado orgulhoso quando David propôs adotá-lo em contexto global. O garoto sorriu e eu pensei que aquela era a risada do meu primo. Um pensamento estranho para um gesto que eu já tinha visto um milhão de vezes antes.
Jamie sorrindo.
Melanie brincando.
Sharon fazendo cafuné em um dos filhos de Lucina.
Minha família.
Desviei o pensamento, sem saber como lidar com aquilo, e continuei.
— A logística, no entanto, é difícil, porque esses armazéns não podem ser isolados demais ou o propósito de contato se perde, mas também não podem ficar muito perto das concentrações urbanas, ou os humanos não irão até eles por medo. De qualquer forma, estão definindo os locais de construção baseados no mapeamento feito pelos Buscadores de locais onde já houve evidências de atividade humana, como roubos, desaparecimentos, invasões ou simples avistamentos.
— Avistamentos — Jared riu da palavra. — Parece que os extraterrestres somos nós.
— Eu não quis dizer isso — me apressei em corrigir, porque parecia mesmo estranho falar para humanos sobre como eles eram os foragidos em seu próprio mundo. Ou no que costumava ser um mundo só deles.
— Tudo bem, Logan, é só uma piada, relaxe! — ele esclareceu. — Vocês são mesmo maioria absoluta agora e temos que lidar com isso. Mas depois de tanto tempo acho que já dá pra ser com um pouco de bom humor.
— Certo. Temos que pensar no futuro agora — disse Jeb significativamente.
Era só outra variação do tipo de fala que ele tinha me dirigido o dia todo, mas a cada vez que ele dizia ficava menos abstrato, mais verdadeiro. E somado à minha reação a Jared, percebi que estivera todo o tempo na defensiva desde que isso começou e que eu devia mais do que isso aos meus amigos. Precisava equilibrar minhas “merdas”, como diria Kyle, e tratar de transmitir alguma segurança, porque era do futuro de todos nós que estávamos falando.
— De qualquer jeito, o pessoal vai ter medo — opinou Brandt. — Isso só vai funcionar através do boca a boca. Não adianta criar mensagens em telões ou mesmo por sinais de rádio, que é como sabemos que algumas células se comunicam entre si. Isso pode e deve ser feito também, mas humanos só vão confiar em outros humanos, ao menos por enquanto. Sem ofensa. — Fiz um gesto com a mão para dizer que não me importava que ele falasse assim. Afinal, era verdade. Então ele continuou: — O problema é que apenas nós estamos trabalhando com as Almas, e todo nosso conhecimento sobre os sobreviventes se restringe à nossa região. Como isso vai acontecer em outros lugares?
— Ainda acho um absurdo vocês terem denunciado nossa localização para eles — resmungou Lacey. — É uma traição com as outras células, porque eles também ficam expostos, mas nem participaram da decisão.
— É admirável sua preocupação com os demais, Lacey — Sharon interferiu num tom irônico. — Mas nós não revelamos localização alguma. Eles não quiseram saber e nos deram liberdade de contar apenas o que achássemos prudente. Por isso, apesar para parecer que não tínhamos confiança em David e Flora, não podíamos revelar segredos que não pertenciam só a nós. A localização do nosso armazém foi determinada por Jared e Melanie, pensando em um local que pudesse ser bom para todos, sem necessidade de revelar localizações de células aos Buscadores.
— E eles entenderam isso? Poxa que amorzinhos que esses parasitas são! Também pra que pressionar, né? Em breve eles terão uma enorme ratoeira para se divertirem. E ainda vão dizer que a ideia foi nossa. Parabéns, Jared.
A acidez na fala de Lacey fez o maxilar de Sharon trincar de forma audível. Meses atrás, seria até possível esperar que ela concordasse com a outra, mas agora Lacey estava completamente sozinha ao destilar seu veneno, o que tornava suas tentativas cada vez mais desesperadas e sórdidas.
— Ah, me desculpe — disse Sharon. — Eu não sabia que tinha sido “nossa” ideia. Será que você pode me lembrar qual parte mesmo teve a sua participação? Você estava lá dando a cara a tapa comigo e com Doc, quando aceitamos a ideia de Logan de nos abrir ao diálogo com as Almas? Ou será que você já esteve em alguma incursão com Jared e os outros para garantir os alimentos que nos mantiveram vivos antes da chegada de Peg? Você conseguiu algum remédio? Ou quem sabe combustível, ahn?
— Você não pode me acusar de me aproveitar dos outros só porque sou a única que tem coragem de dar opinião. Todo mundo aqui trabalha uns pelos outros de alguma forma, por isso todo mundo tem direito de falar o que quiser.
— Chega disso — Jeb decretou. — Falar o que quiser significa ter que lidar com a contrapartida, Lacey. E agora é um pouco tarde para discordâncias. Você devia ter se oposto antes de colocarmos qualquer plano em ação, antes de Logan e Estrela se sacrificarem se infiltrando nos Conselhos e de Sharon, Doc e os demais se revelarem a David e Flora. Neste ponto, só o que podemos fazer é confiar neles.
— Não se incomodem com isso, pessoal — interferiu Mel. Eu estava mesmo estranhando que ela estivesse tão quieta, mas de repente me dei conta. Melanie era como uma atiradora de elite. Só precisava de um único tiro certeiro. — Vocês estão perdendo tempo discutindo com Lacey, porque ela nunca quis fazer parte do debate. Foi por isso que esperou até agora para falar, porque as opiniões dela nunca são boas o bastante para serem relevantes, mas quando critica todo mundo ouve.
Atiradora de elite. Acho que eu tinha acabado de encontrar a definição perfeita.
Percebi Ian segurando o riso e evitei olhar para Kyle. Mas Peg sentia algum tipo de responsabilidade pela vida de Lacey. E agora eu quase conseguia entender por quê.
— Melanie! — ela chamou com um tom leve de advertência.
— O que, Peg? Você é muito complacente com essa mulher. Desde sempre! E ela continua tratando todos vocês como lixo, como se devessem um favor arranjando a comida que ela come e as roupas que veste.
Por um segundo, desejei que Mel não tivesse tocado nesse assunto. Sempre foi um ponto delicado para Peregrina, para todos nós, e agora era complicado para mim também. Não era difícil prever que depois disso a discussão iria ladeira abaixo.

— E eles devem! — esbravejou Lacey, como imaginei que faria. — Eu podia ter tido uma vida boa, e em lugar disso estou enterrada neste buraco, porque essas lacraias resolveram que nosso mundo era deles! E como se não bastasse, todo mundo aqui fica assistindo às idas e vindas dos nossos alienígenas de estimação e acatando quando eles decidem nosso futuro.
Dava para ver as reações das pessoas à fala dela. As ponderações de quem provavelmente sentia o mesmo, mas preferia ficar calado, por um senso de lealdade e gratidão. A mágoa de Sunny e Peg. A raiva de Ian, Kyle, Melanie e Jared. A resposta atrevida coçando a língua de Jamie. O receio de Jeb, que me olhava como se minha determinação pudesse se quebrar e levar com ela tudo o que ele tinha conseguido com nossa conversa de pai e filho.
— Você precisa parar, Lacey. — Desta vez, para a surpresa geral, foi Magnólia quem falou. — Não vou ser hipócrita de dizer que já não senti tudo isso, que ainda sinto às vezes. Acho que ninguém aqui pode fingir que não se importa, que não preferiria outra vida, mas o momento para isso passou, entende? Este é nosso presente. A nossa comunidade. Esta comunidade com todos os seus membros. De que tanta mágoa vai adiantar? Que bem vai fazer pra você ou pro resto de nós? Pelo contrário, só piora tudo. Você pode falar o que pensa, mas não está ganhando nada com isso. Não está ajudando em nada. Só o que está fazendo neste momento é gastar munição atirando no escuro, sem se preocupar com quem pode ferir. Jeb está certo quando diz que agora é tarde para mudar nossas decisões.
— Até parece que vocês iam me ouvir quando deviam. Não tenho “querida” no nome. Como “querida Peg”, “querida Sunny”, “querida Estrelinha” ...
— Que merda isso quer dizer, hein? — Kyle a interrompeu. — E eu já não te proibi de dizer o nome da minha mulher, cobra maldita?
— Viram só o que eu disse? O que adianta falar se os parasitas são da família e eu sou a cobra maldita, hein, Kyle? Quem é você para me proibir de qualquer coisa que seja, aliás? Você só prova meu ponto.
— Eu e minha família somos aqueles que buscamos sua comida, cretina ingrata. Embora no que dependesse de mim, eu não ligaria de deixar você morrer de fome, Sunny é que tem pena. Então você tem sorte duas vezes por ela existir. E por Peg ter salvado você também, já que estamos nisso de explicar por que te aguentamos aqui. Por isso dobre sua língua!
— Ok. Então vamos agir como se fosse exagero meu dizer que se elas não existissem eu não precisaria de ninguém para buscar minha comida. Ou me salvar. Mas ao invés disso estou apodrecendo num buraco escuro, porque minha vida acabou. Quer dizer, eu continuo respirando, mas estou morta e enterrada, não estou? Talvez se eu estivesse trepando com os homens do grupo vocês não se comportassem como se eu fosse um peso. Foi a estratégia das honradas parasitas...
Estrela apertou minha mão como se tentasse me segurar na Terra, não sei se esperando que eu contra-atacasse para nos proteger, ou que recuasse, sentindo o peso da culpa da qual vinha tentando me livrar.
Mas eu estava farto e Jeb tinha razão. A culpa era improdutiva. Egoísta até, naquela conjuntura. Porque eu não podia fazer o tempo voltar. Não podia dar a vida de antes de volta para os humanos. Ninguém podia. Mas isso não nos tornava maus. Era a nossa sobrevivência também. Então não havia vilões. Cada vez mais eu tinha a impressão de que raramente a vida era simples assim. Como se pudesse ser vista através de simples maniqueísmos. Heróis e vilões. Bons e maus. Pessoas de quem gostávamos e que queríamos manter por perto e pessoas odiosas a quem podíamos nos dar ao luxo de evitar.
Não, nada era simples assim.
O que também justificava que eu não conseguisse mais reagir como teria feito antigamente, como uma versão mais comedida e menos raivosa do que quer que Kyle ou Ian estivessem imaginando responder. Por que por mais que Lacey destilasse ódio em cada palavra, agora eu entendia o que ela sentia. Entendia todo o valor e o peso do que tinha sido tirado dos humanos.
— Eu sinto muito, Lacey — falei, provavelmente surpreendendo a todos. Porque a verdade era que aquela mulher era a coisa mais próxima à perversidade que minha mente conseguia conceber e meus sentimentos por ela eram correspondentes a essa impressão. Mas ainda assim, o que eu ia dizer também cabia a ela. — Sei que não torna as coisas menos dolorosas, mas minha espécie não entendia a complexidade daquilo com que estávamos interferindo, das vidas que estávamos tomando. Porque foi isso que nós fizemos. Para sobreviver. E agora nós estamos aqui e entendemos, mas não podemos mais ir embora. Isso não salvaria seus entes queridos. Não mudaria as coisas como são.
— E por isso você sente muito? — ela retrucou com certa acidez. — Oh, obrigada, Logan. Agora me diga o que exatamente eu faço com isso?
— Não sei. Estou dando a você e aos outros a verdade. Mas não posso decidir como irão lidar com ela — respondi, lembrando o que Estrela tinha me dito sobre isso estar fora do meu controle. Eu só podia fazer minha parte.
— Vocês não entendem — ela disse. E, por um instante, pareceu que suas defesas tinham cedido um pouco, mas então ela se calou.
— Eu entendo, Lacey — Peg tomou a palavra. — Foi o que sempre quis dizer. Você perdeu a Buscadora, não é? Depois de tudo, ainda teve que lidar com isso.
— Eu fui uma de vocês e perdi isso também — ela assentiu, fazendo uma careta de amargor que tenho certeza de que Peg interpretou como luto, mas eu via como outro tipo de pesar.
Lacey não se importava com a Alma da Buscadora — ou, até onde eu sabia, com nenhum outro ser vivente —, o que ela queria era um lugar no mundo. Mas não qualquer lugar. Não uma família ou uma comunidade. Ela queria um posto. Peregrina era simplesmente boa demais para perceber isso.
— Sobre isso... — intervi. — Os Buscadores precisam de ajuda. Como Brandt disse, humanos só irão confiar em outros humanos, mas para isso precisamos localizá-los. Os Buscadores têm uma boa noção de onde começar a procurar, mas vão precisar da nossa experiência. E de humanos que se proponham a conversar com eles depois. Qualquer um de nós pode ajudar, mas por sua experiência de campo, Lacey, acho que você seria uma ótima adição às equipes de reconhecimento.
Pode ter sido impressão minha, mas um sorriso quase imperceptível passou rapidamente pelo rosto da mulher.
— Você está insinuando que eu trabalhe com Buscadores?
— Você está louco, Logan. Só pode — Kyle retrucou.
— Não estou louco. E não estou insinuando nada. Eu pensei sobre isso. Lacey não gosta de ficar aqui e ela sabe trabalhar com Almas. Já foi uma Buscadora. Vai ter um propósito e nenhum motivo para colocá-lo a perder. Afinal, qual seria o objetivo de sabotar a paz?
— Eu não faria isso — ela afirmou com a maior convicção que eu já tinha visto em seu rosto e ouvido em sua voz. Não havia ironia, malícia ou sequer a pretensão de se provar digna. Apenas pura objetividade.
— E depois, quando as equipes de reconhecimento tiverem encontrado as células, mandaremos alguém mais diplomático. Ian seria minha primeira opção. Mas Jeb, Melanie e Nate também têm muito a acrescentar nessa parte do trabalho.
— Eu quero ajudar — disse Ian. — É o futuro do meu filho também. Quero fazer o que puder. Honestamente, já estava começando a me incomodar não poder fazer nada. — Ele riu, constrangido.
Peg aprovou com um gesto de cabeça.
— Todos nós precisaremos trabalhar muito daqui pra frente.
— Certamente — concordei com ela. — David sugeriu que Jared poderia ajudar a coordenar as unidades do programa de Víveres para a Humanidade da região, determinando quais tipos de mercadorias se fariam mais necessárias e práticas em cada época do ano. E Cal acredita ser importante que alguns humanos se mudassem para perto de cada armazém, para ajudar a mostrar aos relutantes que é seguro ir até lá e, claro, informar o que precisa ser reposto.
— Podemos fazer isso — disse Paige, olhando para Andy, que concordava com ela.
— Sem ofensas, mas seria bom ter um lugar só para nós dois. E ter contato com outros humanos também, além de manter o vínculo com vocês de tempos em tempos — Andy começou a elaborar, animado.
— Pelo menos por um tempo — completou Paige. — Mas acho que estamos tão acostumados a vocês que sentiremos falta rápido. Eu gosto de cozinhar para muita gente.
— Você pode cozinhar muito para uma pessoa só — Andy provocou, passando a mão em círculos sobre a barriga, e todos riram.
Havia sorrisos e planos. As conversas paralelas enchiam o ar de esperança.
— E o que acontecerá com o resto de nós, Logan? — perguntou Lucina. — Quer dizer, eu concordaria em zelar por um dos armazéns se fosse preciso, mas, sinceramente, não quero mais viver isolada. Quero que meus filhos possam ir à escola e conhecer gente.
Os olhos de Lucina brilhavam e, por um breve instante, ela pousou a mão sobre o peito, logo abaixo da garganta, como se não acreditasse que aquelas palavras cheias de novos propósitos e sonhos tinham acabado de brotar dali.
— A ideia é o restabelecimento completo da convivência. Como parte da nossa sociedade, vocês terão os mesmos direitos e obrigações de qualquer Alma — respondi para ela, sorrindo. — Assim, vocês poderão escolher onde querem morar e com quem. Não vão precisar se isolar, se não quiserem.
— A antiga estrutura de prédios e condomínios foi mantida, de acordo com o que me lembro — Melanie argumentou. — Eles foram melhorados e houve uma redistribuição mais igualitária dos espaços, mas ainda há a possibilidade de morarmos todos próximos, de manter nossa família.
— E trabalho? — perguntou Lucina. — Você está dizendo que teríamos deveres também, o que eu entendo. Mas nunca compreendi bem como funciona isso, já que não existe mais dinheiro.
— Funciona como aqui, todo mundo trabalhando por todo mundo. As habilidades individuais são respeitadas: Buscadores, Curandeiros, Confortadores, Comunicadores, Agricultores... Cada um realiza o trabalho para o qual tem mais talento. Mas certas funções, como limpeza e manutenção das cidades e a mentoria nas escolas são divididas por todos, de acordo com suas possibilidades. Os Conselheiros identificam as necessidades e os Buscadores organizam os turnos.
— E se alguém se negar?
— Isso não acontece. Todos entendem e colaboram com as necessidades coletivas da forma que podem. Mesmo assim, ninguém é obrigado a nada.
— Eu nunca pensei que diria isto, Logan. — Lucina suspirou animada, segurando a minha mão. — Mas é bonito o mundo que vocês fizeram. Estou ansiosa para aprender mais.
— Vocês já entendem, Lucina — declarou Estrela. — Já vivemos isso aqui. Já temos espírito de coletividade. E foram todos vocês que criaram. Nós aprendemos mais com vocês e com Peg do que com nossa espécie.
— Vai dar tudo certo — garanti a ela. — David está em contato com Representantes de todo país. Dentre eles, há os chamados Embaixadores que se correspondem com outros Embaixadores pelo mundo. Todos estão mobilizados, pensando nas melhores formas de estabelecer a paz em cada comunidade. E, o mais importante para nós, nossos amigos do Conselho de Nova Orleans precisam de nossa colaboração, de nossas ideias, porque somos multiplicadores agora. O que fazemos e pensamos aqui ressoa por todo planeta, sendo adaptado às circunstâncias de cada comunidade, pelo menos até encontrarem humanos locais dispostos a ajudar.
— E só temos que agradecer a vocês dois — disse Peg a mim e à Estrela.
— Todos temos nosso papel. O seu não é menor — respondi a ela, sorrindo. — É pelos nossos filhos.
— Quem diria que chegaríamos aqui — admirou-se Kyle, e Sunny riu, feliz.
Meus amigos estavam empolgados. Eu estava empolgado. E a sensação era como um sopro de ar fresco em pleno verão opressivo.
Era tão tentador apenas me deixar viajar nas asas de toda aquela esperança que quase perdi a coragem de tocar em outros assuntos. Até mesmo Jeb, pela primeira vez no que provavelmente era muito tempo, estava imerso na leveza de um momento que não tinha nossas questões individuais como centro. Mas foi um comentário que Jared fez a Melanie que me trouxe de volta à realidade.
— ...eles estão cientes de que talvez haja episódios de violência, Mel. Mas nós não deixaremos nada acontecer com nossos amigos. Pensaremos nas melhores estratégias junto com os Buscadores, mas não há garantias onde não houver humanos como nós para fazer as abordagens iniciais. As pessoas estão isoladas há muito tempo, vivendo sabe-se lá em que condições. Nós aqui temos sorte, mas os outros...  
— O trabalho será lento — interrompi, mesmo que a conversa entre os dois fosse incialmente baixa e particular. — Progressivo, mas lento. E quanto mais os humanos se envolverem, mais fácil. De início, seremos apenas nós e o pessoal do Nate, mas com o tempo outros ajudarão também, continuarão o trabalho até conseguirmos chegar a todos os cantos, a outros países até.
— Nós sabemos — respondeu Jared. — Mas precisamos estar preparados para reações de todos os tipos. Não são todos que conseguirão superar o ódio e viver em sociedade com aqueles que consideram inimigos. Não acho que terão força numérica para se impor de forma violenta, nem organização para mais do que alguns levantes ineficazes, mas isso não os impedirá de tentar, principalmente se acreditarem mesmo que os Buscadores não os reprimirão mais.
— Os Buscadores e os Conselhos estão determinados a não reagir com violência, mas como sempre estarão vigilantes para garantir a segurança e integridade de todos. Os humanos que nos ameaçarem serão contidos com sprays de Dormir ou, em casos mais extremos, com armas de paralisium. Nesse caso serão devidamente socorridos e curados depois, e se ninguém conseguir convencê-los a dialogar pacificamente, serão levados de volta ao seu lugar de origem e vigiados para que não sejam mais uma ameaça. Mas uma vez que o acesso aos armazéns permanecerá garantido a eles também, acreditamos que cedo ou tarde haverá uma possibilidade de retomar o diálogo. É promessa dos Representantes que nenhuma resistência os fará desistirem da paz.
— Vocês são otimistas.
— Temos que ser. Mas, como você disse, estamos cientes das possibilidades de violência e até de perdas. No entanto, não é muito diferente do que tem sido durante todo o tempo em que estamos aqui. Buscadores morrem. Almas comuns são agredidas por saqueadores. Há sequestros e desaparecimentos, como vocês todos bem sabem. Essas coisas sempre aconteceram. Não há de ser pior agora que temos a possibilidade de conversar, de aprender e ensinar com o contato. Vocês pararam de sequestrar os de nossa espécie para tentar retiradas sem sucesso quando Peg mostrou a vocês como funcionava. E, depois de um tempo, os sobreviventes se convencerão de que não poderão ter seus entes queridos de volta.
— Esse é outro problema — disse Mel. — Kyle tentou com Jodi. Muita gente vai tentar também, até descobrir as dificuldades.
— Não dá certo — decretei. — As retiradas não funcionam.
— Eu sei que não dá certo para alguns, já para outros... não é certeza! Deu certo comigo, com Lacey e com Candy. Sei que já faz muito tempo, mas talvez... As pessoas vão querer tentar e essa é outra coisa com que teremos que lidar. Talvez seja o maior de todos os desafios para vivermos em paz.
— Preciso confessar pra você, cara — disse Jared. — Eu mesmo estou lutando com a ideia. Consigo ver o tamanho do problema que isso pode causar e também o quanto é improvável que as pessoas que amamos tenham sobrevivido por tanto tempo. Mas você acha possível...?
— Vocês precisam acreditar no que eu digo. Eu sei que não dá certo.
— Nós também, racionalmente falando. Mas são as pessoas que amamos. Não se pode esperar racionalidade — argumentou Lily, se pronunciando pela primeira vez.
— Talvez nem todos sejam como eu, Logan — Sunny interferiu. — Eu tentei e não funcionou, mas pode funcionar com alguns. Não podemos garantir...
— Eu sei que não dá certo, Sunny, e posso garantir que o tempo de inserção é um fator proibitivo. Quando você tentou, já sabia que não funcionaria, mas havia uma possibilidade, por causa do que aconteceu com as outras. Mas quanto tempo faz a última vez que vocês tentaram? Cinco anos? Com Melanie e Peg foi diferente, com Lacey uma exceção, com Candy um tiro no escuro que deu certo. Mas estamos falando de Almas que estão no mesmo corpo há mais de uma década! Mesmo assim, eu também achei que houvesse uma chance e, quando eu tentei, apostei nessa possibilidade, mas quase morri por causa disso.
— Você tentou? — Sunny questionou. — Não estou entendendo. Quando? Por quê?
Estrela baixou os olhos, apertando minha mão. Jeb pigarreou, desconfortável, parecendo infeliz.
— Ah, meu irmão! — Sunny veio para mais perto de mim e segurou meu rosto entre as mãos, sondando meu olhar. — O que foi que você fez?
Peg, compadecida e terna, mudava o olhar de mim para Estrela e depois para Jeb, como se, de alguma forma, pudesse adivinhar. Kyle parecia meio aborrecido comigo, mas não dava para ter certeza, talvez só estivesse intrigado. O resto das pessoas estava simplesmente curiosa demais para me deixar antever qualquer outra emoção.
Era impossível prever a reação que teriam, mas não dava mais para voltar atrás. Nunca teria sido possível esconder deles, de qualquer maneira.
Tinha chegado a hora de tirar aquele peso do meu peito.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentem e façam uma Autora Feliz!!!

Visitas ao Amigas Fanfics

Entre a Luz e as Sombras

Entre a luz e a sombras. Confira já.