quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

AQ - Capítulo 3

O despertador soou pontualmente às 5h da manhã, e eu sabia que, mesmo sentindo tanto cansaço, eu não poderia protelar e desfrutar da minha cama por mais tempo.

Levantei-me de pronto, alongando meus músculos preguiçosamente, e deixando que me escapasse um bocejo. Corajosamente, me dirigi ao banheiro, fiz minha higiene pessoal, e tomei um bom banho, lavando os cabelos e esperando que esse gesto tão simplório conseguisse me manter desperta por mais tempo.

Quando essa parte do meu ‘ritual matinal’ já estava concluída, apressei-me em me encarregar das demais tarefas. Preparei o café da manhã, tendo o cuidado de depositá-lo sobre a mesa, para que quando papai acordasse não tivesse trabalho algum. Em seguida, beberiquei um pouco de leite com chocolate e mordisquei uma maçã enquanto agarrava os livros da faculdade sobre o balcão da cozinha, e corria até o ponto de ônibus.

Por sorte, cheguei bem a tempo e, já garanti a certeza de que não me atrasaria para o primeiro período. Agora, tudo de que eu precisava, era conseguir me manter acordada, e prestar atenção em tudo o que a senhora Evans — minha nada amável professora — falaria no decorrer da classe.

Essa jornada dupla não estava se mostrando nada fácil, porque a faculdade não era tão perto assim da minha casa. Na verdade, era a cinquenta e dois quilômetros nada perto da minha casa, e isso não ajudava muito. Principalmente se eu decidisse contar com o fato de que após as aulas, eu tinha que comparecer ao meu emprego de estoquista em um mercado pequeno, às margens do centro da cidade.

Era muito escasso encontrar um estabelecimento daquele tipo, na verdade, aquele era o único que eu conhecia, ou ao menos já tinha ouvido falar. Acontece que os proprietários eram um casal na faixa dos sessenta anos, que tinha como única ambição estar em contato com os clientes, e servi-los da melhor forma possível. Obviamente seu sustento vinha dali, e talvez por isso eles tratassem com tanto empenho a cada um de seus fregueses.

O senhor e a senhora Burke eram pessoas adoráveis, e trabalhar para eles foi a melhor que já me aconteceu. Não que meu horário fosse altamente flexível, mas eles toleravam meus atrasos como ninguém, e isso sem contar que, em época de exames, havia dias em que eles me liberavam uma hora mais cedo.

Meu salário não era grande coisa, porém me permitia cobrir os gastos com a faculdade sem precisar contar com a ajuda de meu pai, o que já era uma enorme satisfação. Eu não precisava de ainda mais motivos para amolá-lo, até porque minha lista já era bem longa.

Eu sabia que minha avó, Nora Rimes, jamais havia me perdoado por todas as coisas que eu acabei trazendo para sua até então, imaculada família. Mas não era exatamente minha culpa, certo?

O fato de minha mãe, Emily, ter morrido durante o parto. O fato de nunca ter aparecido alguém para reclamar minha paternidade. O fato de Frederick e Ana terem se divorciado.

A verdade é que eu não escolhi nenhuma dessas coisas, mas todas elas só se tornaram verdade por minha causa, devido ao meu nascimento. Eu gostaria de poder mudar tudo. Devolver a vida à minha mãe, fazer com que Ana e Frederick ainda estivessem juntos e com seus próprios filhos e, não ter sido a causadora de tanta mágoa no coração de Nora. Apesar de tudo, ela e Frederick eram minha única família e, mesmo não sendo sua pessoa favorita, eu não queria que nada de mal lhes acontecesse.

Contudo, às vezes era como se eu tivesse um carma, implicando para que meus verdadeiros desejos jamais se concretizassem. Minha avó mal olhava para mim, porque sempre disse que sou culpada pela morte de Emily, e pelo divórcio de Frederick. Ela costuma dizer que eu trouxe desgraça para sua casa, e manchei o nome da família!

Esse pensamento, antes, tinha um gosto amargo, mas atualmente venho procurando não pensar muito sobre isso. No fundo, eu aceitei minha realidade, e procuro esquecer parte das dores que meu passado me trouxe. Não era como se eu pudesse apagar as marcas na minha pele, mas eu fazia o melhor para escondê-las. Para minha sorte e para o meu azar, todas as vezes em que Frederick me batia por tocar no nome de Ana, ou por irritá-lo tentando mostrar-lhe algum desenho bobo, ele me obrigava a ir para o banho, independente do horário que fosse.

A parte de sorte, era que isso fazia com que ele pudesse me marcar em lugares fáceis de esconder. A parte de azar, era que desse modo doía bem mais.

Aos nove anos, eu finalmente entendi que, forçar minha presença não era a forma mais inteligente de ganhar o amor do meu pai, então, passei a cuidar dos serviços da casa. Eu pensava que isso pudesse fazer com que Frederick gostasse de mim.

Bem, eu estava errada.

Sou necessária, útil. E minha importância termina aí.

Ao menos Frederick deixou de realmente me bater há quase cinco anos, e isso foi um alívio. Desde então, são apenas algumas agressões verbais, e alguns empurrões quando tento fazê-lo parar de beber, dizendo-lhe que já foi o suficiente.

Eu poderia ir embora. Poderia deixar tudo para trás, e me ver livre de toda dor e de todo sofrimento. Ao menos da parte palpável de tudo isso. No entanto, minha consciência não me deixava, porque eu não conseguia parar de pensar no fato de que, de certa forma, minha avó tinha razão. Por minha causa Ana foi embora, então, que tipo de pessoa eu seria se abandonasse Frederick, também?

***

— Ler um texto, qualquer texto, vai muito além da ação mecânica! É preciso senti-lo...

— Eu com certeza sinto uma vontade gigantesca de ir embora, nesse exato momento — Emma sibilou ao meu lado, zombando das palavras da senhora Evans, e arrancando-me um risinho baixo.

— Só mais dois minutos, e estaremos livres — murmurei de volta para ela.

Emma Galvin me lançou uma piscadela de cumplicidade, e apoiou seu queixo sobre as mãos cruzadas.

Ela e eu éramos melhores amigas desde a oitava série, quando sua família se mudou para uma cidade vizinha à minha, e frequentamos a mesma escola.

Sempre extrovertida e com ideias mirabolantes, Emma se apaixonava ao menos duas vezes ao ano, impreterivelmente, e não descansava até ser correspondida. Ou quase isso. A verdade era que, com a mesma facilidade com a qual se apaixonava, Emma se desapaixonava, e sempre deixava um coração partido nesse processo.

Um coração que não era o seu, só para constar.

Talvez a culpa não fosse inteiramente dela, e a genética tivesse uma parcela, também. Como não amar uma garota tão bonita quanto Emma? Seu rosto fino era emoldurado por uma cascata de cachos louros, que alcançavam a altura de seus ombros, e seus olhos eram de um azul claro, que se enfureciam facilmente quando ela era contrariada. Seus lábios finos jamais ficavam sem uma camada rósea de gloss, e suas pernas longas e delgadas, em geral, permaneciam à mostra.

Uma companhia excelente, que trouxe um pouco mais de divertimento aos meus dias. Além do mais, não importava o que acontecesse, mas eu sempre poderia contar com Emma.

Quando o sinal finalmente tocou, nós nos encaminhamos para a lanchonete da própria faculdade, onde eu escolhi um pedaço de pizza para comer, e um suco de uva para beber. Emma pediu o mesmo que eu, acrescido de um cupcake. E um pedaço de torta de maçã.

— Eu não sei como você consegue comer tanto — comentei num sorriso, assim que nos sentamos.

— Nem eu — admitiu com uma gargalhada, levando um generoso pedaço de pizza à boca logo em seguida. — Mas comer, definitivamente, é o meu hobby favorito!

— Você já diz isso há quatro anos — eu revirei os olhos. — Eu só gostaria de saber aonde vai parar tudo isso!

— Tenho uma boa genética! — Emma deu de ombros, indiferente.

De fato, sua genética era mesmo muito generosa. A mãe de Emma, senhora Galvin, era uma versão mais velha da filha. E aparentemente, não tão mais velha

— Sorte a sua!

— Mas, esquecendo um pouco a minha genética — Emma falou acomodando-se melhor em sua cadeira. — Você já viu o mais novo casal, por aí?

Eu encarei Emma seriamente, assistindo-a fazer algo semelhante. Contudo, sua expressão estava irônica, e não séria.

— Não — disse-lhe por fim. — Eu não vi, e nem me interessa ver! Emma, por que nós não falamos de outra coisa?

— Porque você precisa enfrentar o passado, Vickie! — ralhou. — Caramba! Já se passaram mais de dois anos desde a formatura no colégio, e você continua nesse estado de negação...

— Eu não estou em negação! — protestei interrompendo-a. — Mas o que Brad faz, não me interessa!

— Vickie...

— Outro assunto, Emma! — pedi olhando fixamente em seus olhos.

— Essa é a prova de que você não se esqueceu, Vickie...

— E de que forma eu deveria fazer isso, exatamente? — inquiri numa risada nervosa. — Contando a você todos os detalhes? — testei ironicamente. — Como se você não soubesse de tudo o que aconteceu naquela noite!

— Não se trata apenas do que aconteceu naquela noite! Trata-se de como isso vem afetando sua vida! — explicou-se.

— Eu não estou deixando que isso afete a minha vida...

— Ah, não? — ela inquiriu zombeteira. — Então esse seu autoisolamento é algo que você planejava desde sempre? — provocou.

— Se eu estivesse me autoisolando, não estaria escutando enquanto você insiste em trazer meu passado à tona! — alertei-a.

— Tudo o que eu quero, Vickie, é que você supere isso! Que você consiga olhar pra trás e enfrentar tudo o que aconteceu sem sentir dor! Eu me importo com você, quero que siga sua vida...

— É o que eu estou fazendo, Emma! — sussurrei-lhe em resposta. — Estou tentando seguir em frente.

— Então está fazendo isso do jeito errado, porque sua vida continua estacionada, e eu não vou apenas assistir a isso sem fazer nada! — advertiu-me seriamente.

Eu suspirei, derrotada.

Falar do passado não era bom.

Dessa parte do meu passado, mais especificamente, era ainda pior.

Tudo o que eu queria, era poder esquecer tudo isso. Esquecer-me de todas as coisas que eu insistia em me lembrar.

Emma estava certa.

Eu não superei. Não segui em frente, porque não consegui encarar os fatos!

Como eu poderia dizer a mim mesma que, o que acontecera na noite do baile de formatura, foi minha culpa? Minha responsabilidade?

Isso seria o mesmo que admitir que eu fui culpada por todas as coisas das quais minha avó me acusava, também? Ou quem sabe minha adolescência manchada fosse apenas o reflexo da minha infância infeliz?

Onde, exatamente, minha vida começou a seguir o caminho errado, de forma definitiva?

Por que eu não conseguia erradicar todas essas marcas?

Não importava o que eu fizesse, aparentemente elas jamais me deixariam, porque não era das marcas físicas que eu estava falando. E não que elas não existissem, contudo, as marcas na alma doíam mais, porque estavam muito próximas de feridas ainda abertas que, como Emma constatou, ainda não estavam cicatrizadas.

A pior parte, é que nem mesmo sei se, algum dia, elas estarão.

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