Capítulo 29 — De Esperança e Dor
The door is open to go through
If I could I would come, too
But the path is made by you
As you're walking start singing and stop talking
If I could I would come, too
But the path is made by you
As you're walking start singing and stop talking
Oh, if I could hear myself when I say
(Oh love) love is bigger than anything in its way
(Oh love) love is bigger than anything in its way
So young to be the words of your own
song
I know the rage in you is strong
Write a world where we can belong
To each other and sing it like no other
I know the rage in you is strong
Write a world where we can belong
To each other and sing it like no other
(Love Is Bigger Than Anything In It’s Way – U2)
Doc
Sharon
acha intrigante a minha maneira de ver o mundo.
É bonitinha, ela diz, o que é um
adjetivo estranho para uma mulher como ela.
Um
furacão. Uma ruiva explosiva, no melhor e no pior sentido.
No
mundo de antes, talvez ela não perdesse dois segundos comigo, porque eu sou
aquele cara em quem ninguém nunca repara por mais tempo do que isso.
Não chega a ser um
problema, porque estou acostumado. E também não é que eu seja um sujeito
totalmente desinteressante. Já me disseram que sou cínico demais para ter baixa
autoestima. Portanto essa não é um tipo banal de constatação autodepreciativa.
É só o jeito como as
coisas são.
Somos diferentes, as
pessoas. E eu gosto de observar essas diferenças. Observo, tiro conclusões,
catalogo em minha mente. Acho que cheguei a uma boa noção de como as coisas
funcionam fazendo isso. Por esse motivo tenho um respeito saudável pela
agressividade natural de cada um, pela maneira como os indivíduos encaram suas
paixões, suas perdas e frustrações. Na maior parte do tempo, tento não
interferir nas decisões de ninguém e reservar meus julgamentos para quando são
requisitados.
Essa é a parte que Sharon
acha “bonitinha”. Do ponto de vista dela, eu sou paciente e sei lidar com os
outros de forma empática. Palavras da bela ruiva que eu simplesmente aceito de
bom grado, tentando não ficar muito envaidecido para não estragar a boa
impressão. Porque nesta nova realidade eu sou o tipo de homem por quem ela se
interessou e na vida toda, aparentemente, essas são qualidades que ela aprecia
muito.
Entenda, Sharon era
professora de crianças no mundo de antes. E continuou exercendo essa vocação em
nossa célula. Primeiro com Jamie, Kate, Isaiah e Liberdade. Depois com os
pequenos John e Lindsay, na medida do que a pouca idade deles permite. Empatia
e paciência são, portanto, condições que ela considera sine qua non [1]
para um ser humano de respeito.
Pouca gente sabe disso,
porém.
Porque ela acabou criando
para si uma carapuça impenetrável de mulher furiosa e inacessível. Uma defesa
que as circunstâncias da vida fizeram parecer necessária. Mas é uma capa
destacável. Prova disso era que estávamos juntos ali, à espera de seres que ela
tinha passados a década vendo como inimigos.
— Eles parecem amigáveis —
comentou nervosa enquanto ajeitava repetidamente os óculos escuros, nossa
tática para reduzir o impacto de nossos olhos humanos sobre os amigos de Logan.
— Fique calma, Shar. Temos
tudo sob controle.
— Temos? — ela perguntou
com aquele jeito provocativo que, por minha vez, sempre achei tão atraente.
Mesmo naquela situação, a
capacidade que Sharon tinha de, com um palavra ou um olhar, me fazer questionar
o que acreditava ainda era muito mais interessante do que o conforto das
certezas. Então apenas sorri em resposta e segurei firme a mão dela.
Observei-os de longe,
descendo do carro com Logan. Uma jovem negra e um senhor oriental com aquele
típico ar venerável de filmes de artes marciais. A claridade da tarde batendo
em cheio em seus rostos me impediu de sondar suas expressões, mas fiquei
imaginando o que eles viam em nós também, ali do outro lado. Que tipo de
expectativas tinham? Era muito difícil teorizar àquela altura.
Obviamente, embora não
conhecessem seus interlocutores, David e Flora não estavam alheios ao assunto que
os trouxera até ali. Houve uma conversa prévia com Logan, conforme combinamos,
mas ainda assim estávamos bastante nervosos com o modo como tudo transcorreria
quando soubessem que éramos humanos.
Parecia loucura que
estivessem vindo às cegas a um encontro no meio de uma estrada rural, à beira
de uma plantação por onde poderíamos desaparecer rapidamente por uma rota
pré-traçada e nos encontrar com Jared e Brandt do outro lado para fugir. E onde
também se escondiam, a uma distância segura e em pontos diferentes, Lily e
Jamie, devidamente armados com as pistolas de paralisium com que Logan os treinou. Mesmo assim, eu podia entender
por que eles não tinham sido capazes de vislumbrar perigo algum.
Porque, exatamente como
nós, confiavam em Logan.
Essa ao menos era outra
coisa que tínhamos em comum e talvez devesse ser um motivo para não nos
preocuparmos tanto. Ainda que eu pudesse adivinhar os olhares tensos de Lily e
Jamie, sentir o suor que empapava a mão de Sharon na minha e a gagueira que
ameaçava tomar minha voz.
Foi consenso que não
deveríamos dar a eles um aviso prévio de com quem estavam lidando. Por mais que
Logan e Estrela confiassem nos dois, nós ainda precisávamos, naquele ponto, do
pouco senso de segurança que o elemento surpresa fornecia, dando-nos uma ilusão
de vantagem.
No entanto, eu começava a
questionar se aquela tinha sido mesmo a melhor estratégia.
Como falar de confiança,
da possibilidade de igualdade, enquanto víamos a nós mesmos em uma posição tão
diferente dessa?
Finalmente,
a alguns passos de nós, pude olhá-los bem e perceber que David sorria
inocentemente, enquanto Flora parecia intrigada, olhando de nós para Logan. Então
tudo aconteceu ao mesmo tempo.
Por um milésimo de
segundo, ela parou e ele continuou seu movimento, a mão estendida em nossa
direção, em cumprimento. Sharon moveu-se instintiva e milimetricamente para
trás, como se achasse que algo naquele gesto pudesse representar perigo. Flora
pousou a mão no braço de David, abaixando-o suavemente.
— Não queremos assustar
vocês — disse em um tom quase maternal.
O cenho de David
franziu-se em confusão, mas em seguida os óculos que usávamos chamaram sua
atenção e, antes mesmo que eu tivesse a chance de tirar os meus, vi que ele
também tinha entendido o que éramos.
— Humanos — murmurou. —
Como...?
— Meu nome é Eustace
Miller — despejei, surpreendendo a mim mesmo também. — Mas no mundo de agora
todos me chamam de Doc.
Recebi um breve olhar de
censura de Logan e sabia, mesmo sem ver, que Sharon devia estar furiosa comigo
por contrariar os nossos planos e dar meu nome real. Queríamos que eles
soubessem o mínimo possível sobre nós, mas ali, diante dos dois, eu
simplesmente não conseguia vislumbrar uma conversa honesta que começasse com
uma falsa apresentação, com uma mentira tão básica e ainda assim tão definidora.
De alguma forma, senti
que Logan concordava comigo quando veio para junto de mim e bateu de leve no
meu ombro. Esse gesto de confiança me deu segurança e, olhando diretamente para
David, foi minha vez de estender-lhe um cumprimento que ele correspondeu sem
nenhuma hesitação visível.
— Ah, um médico — ele
disse. — Eu também já fui um. Quer dizer, David Yoshida era. Mas no mundo de
agora, como você disse, pode me chamar apenas de David. Eu sou um Conselheiro,
assim como meus dois amigos aqui. Sou um Representante também. Cuidamos do bem
comum, por assim dizer.
— Sim, eu sei. É um
prazer conhecê-lo, David — respondi. — E a você, Flora. Como vai?
Flora sorriu para mim e
aceitou a mão que eu lhe oferecia com curiosidade acentuada. Então ela olhou
para Sharon, à espera de alguma reação que não veio naquele momento.
—
É muito bom conhecê-los — falou empolgada de qualquer forma. — Mas... como...?
Como foi que Tempestade Solar encontrou vocês?
—
Logan — ele corrigiu. — Meu nome é Logan. E essas pessoas têm sido nossos
amigos... Nossa família há muito
tempo.
—
“Nossa”? — ela questionou, sem deixar que o plural lhe escapasse.
—
Sim. Há outros deles e outros de nós vivendo juntos — expliquei. — Somos uma
família grande. Logan e sua esposa foram os últimos a chegar, mas têm nos
ajudado a sobreviver com dignidade. E tenho orgulho de dizer que ajudei a trazer
a pequena Lindsay ao mundo.
—
Mas isso é simplesmente fantástico! — Flora vibrou.
Ouvi
Sharon suspirar e senti que a tensão estava quebrada, talvez pela jovialidade
da menina, talvez pela agudeza óbvia da familiaridade com as Almas que eu havia
mencionado. De qualquer jeito, ela se aproximou.
—
Perdoem meu comportamento — pediu. — Não queria fazer parecer que estava com
medo. Só estávamos nervosos com a reação de vocês.
—
Nós entendemos. Vocês não são os primeiros humanos que conhecemos, claro, mas
todos os outros são nascidos em nossas comunidades. Então também é bem estranho
para nós — disse Flora, se aproximando de Sharon como uma criança curiosa,
destemida e vagamente sem critério. — Seus olhos são lindos!
—
Obrigada — ela respondeu um pouco sem graça, mas inteiramente desarmada pela
espontaneidade inocente da menina. — Eu... Nós tínhamos muito a dizer, mas
francamente já não sei por onde começar.
—
Então permita-me, senhorita — disse David com uma cortesia que pareceria meio
exagerada para qualquer um, mas para ele servia como uma luva. — Nós
gostaríamos de retribuir a confiança que estão nos depositando. Por isso
podemos começar pela garantia de que não perguntaremos nada além do que
quiserem revelar. Estamos aqui para ouvir. E se no final dessa conversa vocês
decidirem partir para longe de nós, recebam a nossa palavra de que jamais os
procuraremos.
—
Ah, mas, por favor, não façam isso! — pediu Flora, me lembrando perfeitamente a
forma como Jamie Stryder conseguia as coisas. David riu.
—
De fato. Seja lá o que for que viemos fazer aqui, desejamos que não seja a
última vez que nos vemos, porque tenho a sensação de que o motivo de nos
encontrarmos é porque temos projetos semelhantes para o futuro, não é mesmo?
—
Logan nos disse o que os Representantes pretendem. A evacuação em massa,
segundo decisão dos humanos — esclareceu Sharon. — É incrível imaginar que isso
seja possível, mas ajudou a mudar meu ponto de vista. Pela primeira vez em
muito tempo, eu pude voltar a desejar a liberdade. — Então ela se virou para
mim e sorriu, lembrando uma conversa que tivéramos tempos atrás. — E filhos. Esse
mundo que consigo imaginar torna possível acreditar nisso. Nossa esperança é
conseguir uma forma dessa mudança de perspectiva acontecer com outros
resistentes também. Tanto do nosso lado quanto do de vocês.
—
Entendo que provavelmente vocês acharam que tinham que nos convencer, mas já
estamos convencidos — argumentou David. — Apenas nos faltava a certeza de que
os humanos, em especial os resistentes, estavam abertos ao diálogo. Contudo,
senhorita, temo que da mesma forma que Flora e eu não podemos falar por todos
de nossa espécie, vocês também não podem falar pela de vocês.
—
Talvez não — intervi. — Mas precisamos começar de algum lugar. A invasão, a
perda de nosso mundo e de nossos entes queridos é uma ferida aberta, não
podemos negar. Porém é fato consumado. É preciso agora lidar com o que nos
restou e o que nos resta é o futuro. Continuaremos como fugitivos ou tentaremos
restaurar a paz?
—
Colocada assim, a questão é muito lógica — observou Flora. — Mas essa visão é
racional demais, não combina com as atitudes passionais que aprendemos aqui.
Nós não conhecíamos o ódio, a culpa, o medo, mas agora compreendemos a
violência desses sentimentos. Os humanos nos odeiam, por isso muitas Almas
sentem medo.
Sharon
se retesou, do jeito que fazia quando estava procurando as palavras certas e
não encontrava, e pude sentir a frustração da qual eu mesmo compartilhava,
porque simplesmente não havia a coisa certa a dizer ali. Flora tinha razão,
havia muito medo e ódio entre nós.
Tínhamos
ensaiado aquela conversa dezenas de vezes com Peg e Estrela, tentando imaginar
o que dizer a respeito de cada objeção que pudesse ser levantada. Mas a questão
era que, por mais que tentassem, as Almas aculturadas não podiam compartilhar
da perspectiva daquelas que conheciam os humanos apenas como inimigos. Por isso,
como nas nossas inúmeras conversas anteriores, estávamos de volta ao mesmo beco
sem saída onde sempre acabávamos e de onde nunca conseguíamos escapatória.
Como em todas as outras
vezes, diante da objeção mais previsível de todas, estávamos subitamente sem
argumentos.
— Não estamos dizendo que
não seja possível — emendou David, a título de consolo. — Apenas que há uma
jornada longa a ser galgada com pequenos passos. Mas estamos juntos nela.
— Não é impossível — disse
Sharon. — O ódio... Ele existe, mas pode
ser superado.
— É nossa grande
esperança também — concordou David. — Mas as outras Almas...
— Eu odeio vocês — ela o
interrompeu, e todos os olhos se arregalaram na direção dela, exceto pelos de
David, que se tornaram ainda mais compassivos do que antes, como se de algum
jeito pudesse compreender muito bem. — Mas... — Sharon fungou, lágrimas se
adivinhando em sua voz. — Não é como... Não é uma declaração de guerra,
entendem? Deixem-me explicar.
Até eu, que estava
acostumado aos arroubos de Sharon, fiquei surpreso pelo caminho que ela
escolheu, mas de alguma forma David parecia tentar acompanhá-la.
— Estamos ouvindo, criança
— ele disse baixo e respeitosamente.
— Sim, queremos entender —
confirmou Flora.
Sharon respirou fundo
outra vez e se preparou. Sem saber o que fazer, Logan e eu apenas esperamos.
E talvez — não que eu fosse
admitir isso para ela — uma pequena oração pelas causas impossíveis tenha me
voltado subitamente à memória.
— Quando vocês começaram
a chegar, meu tio percebeu que havia algo estranho, algo a ser temido. Bem,
vocês não podem negar que... — Sharon esfregou as costas da mão no nariz,
depois limpou uma lágrima fujona, respirando um pouco para firmar a voz. — Não
dá pra negar que ele tinha razão, embora quase ninguém tenha acreditado. Ele é
um homem muito excêntrico, meu tio. Diferente. Os humanos não confiam no
diferente.
“É o irmão da minha mãe,
ela o ama e eu também, mas eu estava no que parecia o auge da minha vida,
preocupada com inúmeras outras coisas, construindo meu futuro, então... Certo,
ele nos alertou. Minha mãe queria acreditar, mas meu pai estava cético e eu também.
Percebíamos as estranhezas, mas simplesmente era mais fácil achar que meu tio
estava louco e que nossa própria imaginação tinha sido contaminada por ele, que
ia ficar tudo bem se parássemos de procurar algo errado. Então nós ficamos
tempo demais cegos pelo conforto de nossas certezas, até já ser muito tarde...
Segurei a mão dela, todavia
ciente de que nada seria o bastante para amenizar a dor daquelas lembranças,
porque agora eu entendia aonde ela queria chegar.
Para mim tinha sido muito
fácil. Jeb era meu único amigo de verdade. Eu fui com ele sem hesitar, porque
não tinha nada de importante para deixar para trás.
Um consultório de cidade
pequena, umas idas ao bar para satisfazer um gosto nocivo por álcool que eu tentava
controlar, mas que de vez em quando me permitia, um casamento desfeito e alguns
conhecidos. Essa era minha bagagem. O que me impedia de “empacotar” tudo e ir
numa aventura, mesmo que não desse em nada?
Mas então eu vi.
A Sra. Fowley, minha
paciente mais antiga e que tinha se resignado a um diagnóstico de linfoma em
seus estágios finais. Em um dia eu estava lidando com a ideia de que em menos
de um mês provavelmente estaria em seu velório. E no outro, a velhinha esbanjava
disposição fazendo exercícios no parque.
Não resisti e quis falar
com ela, cheguei mesmo a vislumbrar o brilho prateado em seus olhos, mas Jeb me
impediu, dizendo que devíamos fugir de qualquer interação que não fosse indispensável.
Eu não soube bem o que pensar na hora, mas naquela noite mesmo, me vi dentro de
um furgão com Jeb e outros “loucos” partindo para o deserto. Depois disso,
quanto mais eu me distanciava da vida de antes, mais suspeita ela me parecia,
até que não houve mais dúvidas.
Para Sharon, no entanto,
o processo tinha acontecido de forma abrupta e violenta. E ela tinha guardado o veneno indissolúvel
disso.
— Meu pai e eu não
conseguíamos mais negar que havia algo errado — continuou. — Todo mundo estava
se comportando estranho e os sinais estavam por toda parte, acordos para a paz
mundial e coisas assim. — Ela riu amargamente da ironia. — Minha mãe insistia que devíamos ir encontrar
meu tio e nós finalmente concordamos. Acho que os vizinhos desconfiaram da
movimentação estranha e nos convidaram para um jantar. Vizinhos com quem mal
falávamos! Meu pai garantiu que estaríamos lá em algumas horas, mas em vez
disso nós fugimos imediatamente.
Os olhos dela estavam
vermelhos e outra lágrima fujona correu por seu rosto atormentado. Pouquíssimas
vezes eu a tinha visto assim e a primeira foi quando me contou aquela história.
Exatamente nesse ponto, se muito não me engano. Passei meus braços em torno
dela para sustentar parte de seu peso e tive vontade de enxugar a lágrima, mas
sabia que ela não gostaria que eu fizesse isso.
Gestos de carinho a
comoviam e a deixavam vulnerável. E ela não gostava que a vissem assim. Por
isso eu sabia o quanto estava sendo difícil contar aquilo a Logan e a dois
estranhos, ainda que tão gentis.
— Nós estávamos
assustados e meu pai pisou fundo no acelerador. Aquilo atraiu a atenção de
outros motoristas, que agora eu sei que eram Buscadores, e fomos perseguidos
por um bom trecho de estrada. A gente conseguiu ganhar um pouco de distância e
achamos que tínhamos despistado quem nos seguia, mas ainda estávamos muito
rápido e então... Não sei explicar como, meu pai perdeu a direção e o carro
capotou — ela disse de um jeito comovido, as lágrimas que não permitia que
corressem embargando sua voz. — Eu não sei o que aconteceu, que tipo de milagre...
só sei que minha mãe e eu mal nos ferimos. Mas meu pai... ele ficou preso nas ferragens.
Vivo e consciente, mas estava com tanta dor! Tinha muitos cortes e a perna
presa sangrava demais. Minha mãe e eu tentamos tirá-lo dali, mas os outros
carros estavam se aproximando, dava para ouvir o barulho. Mas a gente não podia
sair, não podia!
Finalmente a represa
cedeu e as lágrimas começaram a correr de verdade. A voz de Sharon falhou e as
pernas oscilaram um pouco, confiando o peso do corpo dela a mim, que a
segurava. Achei que ela não conseguiria prosseguir daquele ponto e decidi terminar
aquela tortura. Que ela brigasse comigo depois, se achasse devido, mas eu não
suportava mais vê-la se esforçar para pôr para fora lembranças que a machucavam
tanto.
— Pelo que me
descreveram, a artéria femoral dele estava lesionada — expliquei no lugar dela.
— A hemorragia era impossível de conter e ele teria morrido de qualquer jeito.
Mas as duas não conseguiam deixá-lo.
— Ele tinha uma arma.
Minha mãe tapou meus olhos quando entendeu. Mas eu ouvi. O grito dela. Eu ouvi
tudo.
Sharon estava chorando
muito agora. Logan tinha baixado os olhos e Flora tampava a boca com as mãos
como se segurasse um grito.
Como homem do campo acostumado
ao abate de animais, Seth, o pai de Sharon, sabia o que aquele ferimento
significava. Então ele tinha entrado em desespero e tirado a própria vida para
que ela e Maggie pudessem ganhar minutos preciosos e fugir sem se preocupar em deixá-lo
para trás. E ele tinha conseguido. Aquela atitude salvou as duas. Mas tinha
também transformado seus corações de uma forma perturbadoramente inegável que
eu ainda me esforçava para entender em sua totalidade.
— Sinto profundamente por
sua dor — David se aproximou e segurou uma das mãos de Sharon. Ela não se negou
ao contato. Em vez disso, levantou o rosto enterrado em meu ombro e olhou para
ele.
— É isso que eu quero
dizer — pronunciou com a voz entrecortada. — Eu nunca achei que isso fosse
possível — ela indicou as mãos juntas. — Na minha cabeça, as Almas destruíram
minha família. Mas no meu coração, eu sei que não foi o senhor, ou Flora, ou
Logan ou nenhuma outra. Sei que nenhum de vocês queria que isso acontecesse
comigo.
— Não. De jeito nenhum! —
Flora admitiu. — Eu faria qualquer coisa para evitar se pudesse.
— Eu sei. Agora eu sei. Não conheço você, mas
conheço Logan e sei o que ele fez para salvar a vida do meu tio. Talvez um dia
ele conte. E o que a esposa dele fez por um amigo e pela Alma que salvou minha
prima. O que outras Almas que conhecemos fizeram e fazem. Eu nunca admiti isso —
Sharon sorriu para Logan e ele retribuiu —, mas nunca conheci seres mais
propensos à empatia e dispostos ao sacrifício. Levou tempo para que eu conseguisse
acreditar que a linha entre inimigos e amigos não existia mais, mas eu entendi.
Eles tiveram paciência de me esperar compreender e agora posso retribuir
explicando aos outros também. Mesmo que leve tempo.
— Tempo — murmurou Flora.
— Fico imaginando quantas feridas podíamos ter curado se tivéssemos pensado em
tudo isso antes. Quanta fome podia ter sido saciada! É inadmissível que haja
sofrimento em um mundo onde há fartura e boa vontade. Mas creio que boa vontade
seja um processo que estabelece seus próprios prazos, não é?
— Creio que sim — Sharon
sorriu de um jeito tristonho. — Mas às vezes só o que é preciso para dar o
primeiro passo é conhecer quem está do lado oposto da estrada. É o único jeito
de não termos medo. Ou ódio — completou. — A propósito, meu nome é Sharon Stryder
Jones. E estou muito feliz em conhecer vocês. Também espero que não seja a
última vez.
— Se é de sua vontade,
Sharon Stryder Jones, e da sua, Doc, não será. Estamos cientes de que haverá percalços,
tropeços e até mesmo perdas, porque nem todos compreenderão rapidamente — David
declarou. — Contudo, não podemos mais admitir um mundo apartado dos humanos,
não podemos nos conformar com seu sofrimento. Por isso vale a pena lutar. E daqui
para frente, vocês têm mais do que aliados. Têm amigos. Podem nos considerar
como os novos integrantes da sua grande família.
Nós sorrimos uns para os
outros, esperançosos. E meus dedos finalmente secaram as lágrimas no rosto
daquela mulher tão vulnerável quanto resiliente. Tão teimosa quando podia ser
inteligente quando seus ideais mais profundos eram postos em xeque.
Por um tempo, continuamos
conversando até o momento em que Lily e Jamie se juntaram a nós quando Logan os
chamou pelo celular, para surpresa e agrado de David e Flora. Uma hora depois,
sentados no chão de terra porque estávamos cansados, Jared e Brandt, desconfiados,
mas dispostos, atenderam ao nosso chamado e vieram também. Quando a tarde se
punha, concordamos que ainda havia muito a dizer e prometemos que voltaríamos.
De fato, aquela foi a
primeira de muitas vezes.
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