Capítulo 8 – Cicatrizes
Scar
tissue that I wished you saw
Sarcastic
mister know it all
Close
your eyes and I'll kiss you 'cause
With
the birds I'll share
With
the birds I'll share
This
lonely view
With
the birds I'll share
This
lonely view
(Scar Tissue – Red Hot Chili
Peppers)
Kyle
A
gente se acostuma com tudo na vida. E consegue até gostar de algumas coisas
que, se o mundo fosse do jeito que queríamos, não deveriam estar ali.
Cicatrizes, por exemplo. Você pode
fazer o gênero quero-ser-Chuck-Norris e fingir que está perfeitamente
confortável com elas, mas a verdade é que até o cara mais durão sente dor e,
por um tempo, aquela pele feia, rosada e disforme é um lembrete indesejável
daquilo que você gostaria que não fosse verdade. Que você não é melhor que os
outros, e que o mundo pode te ferir mesmo que você tente se blindar. Como se
fosse possível.
Dor acontece. E não há nada que a
gente possa fazer a respeito.
Mas então, num dia qualquer, você se
olha no espelho e não odeia mais o que vê. A pele diferente passou a ser parte
integrante do resto e as lembranças não doem mais do que as coisas com que você
se acostumou a viver. Você passou por aquilo. E acabou. Para o bem ou para o
mal, você está ali, pronto para um novo dia.
Patrick James O’Shea era o nome de
meu pai. Não sei como ele se chama agora. Quero dizer, a Alma. Eu sei que o
velho Paddy não existe mais. Não sou tão burro. Mas às vezes me pego
imaginando... Se ele se lembra de
nós, de mim. Se ainda existe alguém que possa lembrar as lembranças de meu pai.
Sunny diz que às vezes eles
esquecem. Depois de um tempo, quase tudo é apagado quando não se tem nada por
perto que os faça lembrar. Ian e eu partimos. Nós o deixamos lá. Então talvez
ele não se lembre.
Eu me odeio por isso.
Ou odiava, não sei. Depois de tantos
anos, o ódio se tornou uma cicatriz. Assim como as Almas. Não é uma comparação
bonita, mas quem liga? Não sou um cara de palavras bonitas, de qualquer
maneira. O fato é que Almas são como cicatrizes. Como um todo, quero dizer. A
coisa da invasão e de roubar nosso mundo. É parte da gente agora.
Não me entenda mal, a pele ainda
está vermelha e sensível. Eu ainda odeio os malditos parasitas. Mas só os que
estão lá, do outro lado. Eles podem ser bondosos uns com os outros e aquela
coisa toda, mas não são as criaturinhas benevolentes que gostam de pensar que
são. Não são perfeitos, embora sejam melhores do que nós. Eles também matam.
Também roubam. É diferente, mas também é igual.
É só que isso já não tem a mesma
importância agora. Até eu sei que as coisas não são tão simples. Talvez eu
saiba disso até melhor que os outros, porque o fato é que, como todas as
cicatrizes, esta se tornou parte de mim. E a coisa com as partes da gente é que
acaba se tornando meio antinatural não gostar delas.
Primeiro aconteceu com Ian, depois
comigo e, antes que eu pudesse achar que fosse algo de família, aconteceu com
os outros também. As Almas vieram e passaram a fazer parte de quem somos. Do
nosso grupo. De nossa sobrevivência. E, de repente, gostávamos delas. Mais do
que gostávamos. De repente, não havia mais o outro lado no que dizia respeito a
elas. Sem que tivéssemos percebido, tínhamos nos tornado uma coisa só.
E era por isso que eu estava ali.
Tentando ajudar um cara que, em outros tempos, eu deixaria morrer seco se ele
dependesse de mim para um copo d’água. E quer saber o pior? Estava sendo legal
de bom grado, porque, como tantas vezes minha mãe tentou ensinar, a gravidade é
implacável em fazer nossos cuspes para cima caírem de volta em nossa testa, e
eu meio que passei a considerar Logan meu amigo.
Uma porra de Buscador. Meu amigo.
Caramba.
— Você precisa contar pra Estrela
antes. Ter certeza de que ela concorda. Acho que ela não ia gostar de saber que
você tomou uma decisão dessas sem conversar com ela.
Jesus Cristo! Em que planeta eu
estaria preocupado com a vida amorosa de um amigo alienígena mesmo? Ah, é.
Neste aqui. É uma droga de mundo estranho, como diz meu irmão. Saudades de
quando a coisa mais esquisita que eu já tinha visto era alguém que gostasse de
álgebra.
— É claro — ele respondeu
simplesmente.
É óbvio, Kyle! É claro que o
senhor-pensa-em-tudo-antes-de-todo-mundo já pensou nisso também. Às vezes é bem
difícil gostar desse cara.
— Estrela não vai se opor, ela sabe
que não há riscos — ele disse, mas depois parou. Demorei um segundo para
perceber, de modo que tive que me virar para trás em nosso caminho para
encontrá-lo me encarando de um jeito estranho. — Tem só uma coisa... É uma
possibilidade remota, considerado tudo, mas pode acontecer. Se Jeb... Se ele morrer
e Estrela demorar para perceber, se não houver tempo de me transferir para um
criotanque...
— Isso não vai acontecer. Um de nós
vai com vocês. Alguém dirige e o outro apenas fica de olho.
— Eu disse que a possibilidade era
remota, mas se Jeb morrer, as pessoas vão ficar perdidas sem ele. Por um tempo,
pelo menos. E você vai precisar cuidar deles se eu não estiver aqui para tentar.
Até mesmo de Jared, eu acho, porque vai ser difícil para ele também. Você sabe
ser racional quando necessário e é disso que eles vão precisar.
— Escuta aqui, você está insinuando
que se você não voltar ninguém vai dar conta do recado? Está se achando o
vice-Jeb, por acaso? Esqueceu que você foi o último a chegar e que a gente se
virava muito bem sem você? Ou quem foi que ficou tão descontrolado que ia pôr
tudo a perder com um plano idiota? Depois você não sabe por que eu te acho
arrogante.
— Você sabe o que eu quis dizer,
Kyle. Dá para aprender a aceitar um elogio? Estou dizendo que você é melhor
para lidar com isso, justamente porque não deixa ninguém fazer besteiras, mesmo
tendo as suas próprias para se orgulhar.
— Você chama isso de elogio?
— É o melhor que você vai conseguir.
Não force a barra.
Ele me lançou um olhar duro, irritado,
mas depois pareceu levar outras coisas em consideração além da raiva que eu
despertava nele de vez em quando. Ou quase sempre.
Era engraçado como eu conseguia esse
efeito sem nem mesmo tentar. Tive vontade de rir, mas fiquei calado. Não sou
assim tão cretino que não possa deixar para me divertir depois.
— Estou te pedindo ajuda, ok? — ele
continuou. E não tive outro remédio senão levar a sério. Eu sabia o quanto era
difícil ter que dizer aquelas coisas, então assenti para que ele soubesse que
eu estava escutando bem. De repente, brincar não tinha mais sentido nenhum. —
Mesmo que eu volte, se eu tiver falhado... Não vou estar em condições de ajudar
vocês a manterem as coisas em ordem. E se eu não voltar...
— Eu sei. A Estrela e a Lindy —
disse eu, quando ficou claro que completar a frase parecia tão difícil quanto
engolir um prego. — Vou cuidar delas. Você sabe que sim.
Que droga! Eu amava aquela menininha
tanto que seria capaz de buscar a Lua se ela me pedisse. É claro que eu
cuidaria dela. E da mãe dela também, se fosse preciso.
— Não deixe Estrela se culpar,
porque é isso que ela vai tentar fazer se ninguém a impedir. E a minha filha...
Só garanta que ela não perca muito tempo pensando em mim. Ela é pequena, não
vai se lembrar de muita coisa sobre o pai se eu não estiver aqui. Não faz
sentido fazê-la crescer achando que precisa se apegar a lembranças minhas.
Deixa-a esquecer.
Vou te contar uma coisa, esta merda
toda de autossacrifício das Almas me irrita muito às vezes. Era só somar dois
mais dois naquela conversa para perceber que Logan estava querendo que eu o
substituísse, que fosse o pai de quem a filha dele se lembraria, caso ele não
estivesse aqui. Era uma coisa bonita, se eu fosse pensar bem a respeito,
porque, como eu disse, eu amava Lindsay. Mas era justamente por isso que eu não
queria pensar a respeito.
Você pode tapar um buraco, mas aí o que
você tem é um buraco tapado. Um remendo no lugar de uma coisa que já foi
inteira e não é mais. Parece algo babaca de se dizer, mas não é. A gente perde
partes de si e coloca outras no lugar. Se machuca e fica com as cicatrizes. É a
vida. Mas perdas são sempre perdas.
— Você é pai dela, imbecil. Não é o
tipo de coisa que dê pra apagar. Eu não vou cuidar para que ela te esqueça. Também
não quero que ela sofra, mas não é assim que as coisas funcionam. Agora chega
desse drama, antes que eu retire tudo o que disse sobre te respeitar.
Logan apenas riu um pouco, me
olhando com aquele ar insuportável que ele tinha às vezes de “eu manjo você,
seu humano simplório, agora vá e faça exatamente o que eu pedi”, porque ele
sempre sabia quando suas palavras tinham atingido o alvo. Só que a carga de
sentimentalismo desta noite já estava pesada demais para que eu me dispusesse a
aguentar essas merdas. Afinal de contas, nós tínhamos um velho precisando ser
removido às pressas para o hospital ou o quê? Jesus!
— Só cala essa boca e vai logo fazer
o que precisa.
— Obrigado, Kyle — ele respondeu,
como se eu tivesse dito que estava achando aquela cena linda.
Às vezes eu acho que as coisas
acontecem de um jeito inteiramente diferente na mente daquele maluco.
— Tá, tá — concordei, porque eu só
queria mesmo era que aquela conversa chegasse ao fim.
Depois disso, fizemos o resto do
caminho calados, atentos à escuridão que tomava conta do corredor, quebrada
apenas pela luz que se projetava através da entrada do hospital de Doc.
Entramos ainda em silêncio, sondando o ambiente. De alguma forma, eles já
pareciam esperar que alguma coisa tivesse mudado, já que a urgência do plano
original — que ninguém sabia muito bem qual era, por falar nisso — parecia não
estar mais ali.
— Como ele está? — Logan perguntou a
Estrela, apontando com a cabeça para um Jeb adormecido. Ou pelo menos eu
esperava que ele estivesse só dormindo.
— Descansando. Estável, por enquanto
— ela respondeu.
Logan só assentiu e abaixou um pouco
a cabeça, desviando o olhar. Quase comecei a rir, porque se me perguntassem, eu
diria que ele estava começando a rever a historinha de “Estrela não vai se
opor”. Eu também achava que ela ia concordar, porque, pensando friamente, não
havia mesmo risco nenhum, mas sei lá o quanto as mulheres entendem de análises
frias. Até que seria divertido, em outras circunstâncias, ver o senhor-macho-alfa-alienígena
lidando com quem realmente mandava. Naquele momento, no entanto, eu só estava
com um pouco de pena.
— Posso falar com você um instante?
— ele perguntou, finalmente.
Estrela não disse nada, mas estava
na cara que ela já tinha captado alguma coisa no ar. Esta é outra coisa em
relação às mulheres: elas sempre sabem quando a gente está prestes a dizer
alguma coisa que vai irritá-las ou algo assim. No caso de Logan, entretanto, a
situação parecia não estar tão feia, porque ela fez aquela cara de “dai-me
paciência” que Sunny faz para mim com frequência — aquela que significa que ela
já se convenceu a me dar uma chance antes mesmo de eu tentar pra valer — e se
encaminhou para fora, com ele logo atrás.
Melanie fez menção de ir atrás
deles, mas acabou desistindo, parecendo meio confusa e um tanto frustrada.
— Eu pensei que ele tivesse vindo
aqui buscar o Jeb. Vai demorar mais quanto tempo agora?
— Ele veio — intercedi. — Só que
houve uma mudança de planos na forma de fazer isso e o Logan precisa... hum...
— Dizer para a mulher que vai trocar o
próprio hospedeiro pelo de um cara à beira da morte? Cara, isso vai ser
esquisito para ela! Certeza. — Ele precisa explicar o novo plano a ela. — É, acho que isso resume.
—
Mas por que só a ela?
— Olha, Mel, só dê um tempo a eles,
ok?
— Tudo bem. Então me explique você.
Parece que está sabendo de bem mais do que eu.
Bem, na verdade não vi mal nenhum em
já ir adiantando as coisas. Afinal, quanto mais rápido fizéssemos aquilo e
puséssemos o pé na estrada, melhor para todo mundo. Dei uma última olhada em
Jeb para confirmar se ele estava mesmo dormindo, mas fiz um movimento com a
mão, chamando o pessoal para um canto, mesmo assim. Não podia arriscar que o
velho teimoso ouvisse as palavras da minha boca. De todo mundo, eu era a pessoa
menos indicada para pôr as frases numa ordem que não fizesse tudo parecer uma
tentativa de assassinato ou coisa pior.
— Logan vai pedir para Estrela
inseri-lo em Jeb. — Aí, não falei? Até
que não ficou parecendo uma tentativa de assassinato, mas que ficou estranho,
ficou. — Quer dizer... bom, é... Ah, vocês entenderam! A coisa toda de
tomar o corpo dele e tal. —Tomar o corpo
dele? Pelo amor de Deus, O’Shea! Recomponha-se. — O lugar. Eu quiser dizer
o lugar. Logan vai no lugar de Jeb até a Instalação de Cura. Já que seria tão
complicado levar um humano.
Eu estava esperando que as pessoas
olhassem para mim como se eu tivesse dito que bebês devem saltar de paraquedas
e que me perguntassem como foi que deixei o Buscador pensar numa insanidade
como aquela, mas não foi isso que aconteceu. Na realidade, ninguém falou nada
por uns bons trinta segundos, o que, naquelas circunstâncias, parecia mais com
meia hora do que com meio minuto. Eles só ficaram trocando olhares uns com os
outros até que Doc quebrou o silêncio.
— Até que parece uma boa ideia.
— É — confirmou Mel, mas ela ainda
parecia hesitante. Eu imaginava o porquê, claro. Apesar de toda a vibe “igualdade, liberdade,
fraternidade” que existia entre ela e Peg, aposto que deve ter sido o inferno
para as duas ter que viver daquele jeito. Quase fico contente que não tenha
acontecido com Jodi e Sunny. Quase. — Mas acho que tio Jeb não vai aceitar numa
boa.
— Você acha? — perguntou Jared ironicamente. — Ele não vai aceitar nem em
um milhão de anos.
— Mas é para salvar a vida dele —
retrucou Ian. — Eu sei que não deve ser fácil, mas vale a pena tentar, não
vale? — Parecia uma pergunta geral, mas era dirigida a Mel, todo mundo percebeu.
Porque de todos nós ali dentro, ela era a única que sabia dizer como era ter
alguém literalmente dentro da própria cabeça. Mesmo sendo um amigo.
— Vale — ela disse, depois de pensar
por meio segundo. Não havia nenhuma dúvida quanto ao resultado final no rosto
dela. — É isso ou morrer. E morrer está fora de questão quando a solução é
tão... simples.
Certo. Simples não era bem a
palavra, mas ninguém queria discutir com a garota que sobreviveu à coisa toda.
Obviamente.
— Talvez Jeb não precisasse saber —
arrisquei. Eu só queria que tudo aquilo acabasse logo. Crises me deixavam
maluco. — Talvez Doc pudesse dar a ele um daqueles troços que faz a pessoa
apagar.
— De jeito nenhum, Kyle! — Doc
começou a protestar. — Não vou agir contra a vontade dele. Isso é antiético.
— Não acho que o juramento de
Hipócrates ainda esteja valendo quando você é o único médico do mundo, Doc.
Precisamos ser práticos.
— Não é o médico falando aqui,
Jared. É o amigo. Fazer isso seria desleal. Uma vez você me obrigou a trair
Peg. E fico feliz que tenha feito isso. Mas não quero ter que fazer algo assim
novamente. Nenhum de nós estava sendo racional e achávamos que não havia outra
maneira. Mas Jeb pode ser levado a entender as possibilidades.
Tem um barulho que Ian faz quando
alguma coisa o irrita. É uma espécie de rosnado baixo que fica lá no fundo da
garganta. Para ouvidos destreinados, é baixo o suficiente para se perder em
meio às vozes de uma conversa, mas eu tenho PhD em Tortura Emocional de Irmão
Caçula e ouvi o barulho antes mesmo que acontecesse. Hora errada para Doc tocar
no assunto quase-deixei-Peg-morrer-só-porque-ela-me-pediu-com-jeitinho. Aliás,
a única hora certa de falar disso seria antes dos dedos de Ian se fecharem no
pescoço dele. Pergunte se alguma vez voltamos a falar sobre o episódio da sala
de banhos? Tipo, eu tentei matar a namorada dele, ele tentou convencer os outros
a me expulsarem daqui para morrer à minha própria sorte. Estamos quites. Eu
acho. Mas não falamos sobre isso.
— Agora você vem falar em lealdade? — meu irmão perguntou. Não, na
verdade, “perguntar” seria uma palavra bonitinha para o que ele fez. “Cuspiu
marimbondos” parece mais apropriado.
— Como eu disse, a situação de agora
é bem diversa daquela — respondeu Doc, indiferente, como se estivesse apenas
dando algum tipo de resposta pré-programada na qual não estava especialmente
concentrado. Ele nem percebeu a agressividade da pergunta. Para falar a
verdade, acho que ele já estava “ausente do recinto”, imerso em algum tipo de
cogitação que não dividiria conosco.
Doc tinha uma tendência estranha a
se fechar no próprio mundo. Como aqueles caras com quem eu era legal no Ensino
Médio só para que colocassem meu nome nos trabalhos. E às vezes ele podia ser
bem inocente também, como naquela hora. Como é que aquele cara sobrevivia no
mundo de antes estava além da minha compreensão, mas aquilo não era exatamente
relevante. Assim como a raiva incurada de Ian. E Mel, que tinha aprendido a
conhecer meu irmão quase tão bem quanto eu, percebeu também e pôs fim à
discussão.
— Ele vai acordar. Não tem chance de
ele passar pelo processo sem voltar à consciência em momento nenhum. Não o tio
Jeb. É besteira ficar discutindo isso, porque cedo ou tarde ele vai acordar e
aí vai ser um inferno para o Logan. E depois para nós. Está fora de cogitação
fazê-lo passar pela experiência de acordar com alguém dentro da própria cabeça
sem ter sido avisado antes. Vocês beberam ou o quê?
Quando ela disse isso, todo mundo
caiu na real e pareceu meio envergonhado, até mesmo eu, embora não estivesse
totalmente arrependido de ter dado a ideia. Era só que, de novo, Mel era a
única ali que sabia o que estava falando. Felizmente, Logan e Estrela
apareceram e a gente pôde ignorar o momento estranho para se fixar no que viria
a seguir.
Acho que todo mundo estava meio que
esperando que eles tomassem a decisão sozinhos, porque quando ela pegou o Acordar
e o posicionou diante do rosto do Jeb sem perguntar o que a gente achava,
ninguém protestou.
Alea
jacta est[1],
a sorte está lançada. Acho que era isso que o Asterix dizia nos desenhos, não
era?
— Jeb — Logan chamou devagar. O
velho demorou um pouco a abrir os olhos, mas quando abriu não disse nada.
Parecia cansado demais. — Precisamos conversar.
— Nada bom começa com essas
palavras, mas vá em frente. — Jeb fez um gesto com a mão, ligeiramente
impaciente. Aquela enrolação toda nunca foi o estilo dele.
— Nós não podemos levar você à
Instalação de Cura. É impraticável. Riscos demais.
Jeb deu um tipo de suspiro
resignado. Quer dizer, dava para ver que ele não estava exatamente animado para
morrer, porque quem estaria? Mas a verdade é que, depois do que pensamos que
tivesse sido o fim do mundo para nós, a gente meio que se acostumou com a ideia
de que o bem do grupo valia nossa morte. Minha mãe ficaria “orgulhosa” se
percebesse que a humanidade precisou ficar quase extinta para que eu pusesse o
bem dos outros em primeiro plano. É, pode me julgar, eu não costumava ser um
cara legal antes, mas as coisas mudaram. E eu já tinha posto o meu na reta por
aquelas pessoas tantas vezes, que entendia muito bem porque Jeb não estava se
lamentando.
— Todo mundo tem sua hora, garoto —
ele falou, por fim. — Eu disse isso a você.
— Mas você sabe que eu faria mesmo
assim. Você sabe que eu encararia os riscos sozinho se esse fosse o único
jeito.
— Logan. — Havia uma advertência
muito clara na voz de Jeb. — Você quer me ouvir uma vez na vida? Não vou deixar
você desperdiçar o tempo que me resta pondo todo mundo doido. Você não vai
fazer nada...
— Mas acontece que esse não é o
único jeito — Logan interrompeu os protestos e todos nós ficamos com aquela
cara de goleiro antes do pênalti. — Quer dizer, você precisa ir até lá, mas não como humano.
Ele não disse mais nada depois
disso, apenas ficou esperando que Jeb ligasse os pontos sozinho, o que
aconteceu mais rápido do que comigo, provavelmente. Não que desse para a gente
ter certeza, porque eu nunca vou conseguir entender como aquele velho consegue
fazer a mesma cara para dizer “boa noite” ou “vá se f...” com a mesma
tranquilidade.
— Tudo bem — Jeb disse, bem quando
eu achei que ele fosse se levantar e levar Logan para o raio que o partisse
pessoalmente.
— O quê?
Sim, “o quê?” era a pergunta de um
milhão de dólares. Se dinheiro ainda valesse alguma coisa, estou certo de que
teríamos dado todo o nosso para entender como Jeb não estava dizendo todos os
disparates e xingamentos que existiam na nossa língua e mais um tanto em
espanhol, só para ter certeza de que Logan estava entendendo que ninguém ia
“pegar carona na cachola dele como se fosse uma droga de táxi” ou sei lá o quê.
— Eu disse que tudo bem, embora eu
saiba que você não estava exatamente pedindo minha permissão. Você deixou bem
claro que não estava interessado nela quando saiu daqui batendo os cascos pelo
chão.
E agora eu já podia dizer que tinha
visto tudo no mundo. Um planeta dominado por alienígenas invasores de corpos?
Confere. Eu me apaixonar por uma delas? Confere. Acabar me tornando amigo de
outro? Confere. Bebês do mundo pós-apocalíptico? Confere. Jeb dando permissão
para alguém entrar na cabeça dele? Pois é. Confere. Mundo estranho.
— Para ser sincero, eu não tenho
certeza se estava pedindo sua permissão, mas achei que tinha obrigação de te
avisar — Logan explicou. E é o tipo da coisa que eu não diria, porque já que
ele aceitou, era melhor fazer tudo logo sem provocá-lo, antes que ele mudasse
de ideia. Mas, pelo visto, quem era eu para achar que sabia alguma coisa?
— Ah, obrigado pela consideração,
Buscador. Mas esteja avisado: fique longe de minhas lembranças.
Não sei se Logan entendeu bem o tom
de voz de Jeb, mas deixa eu explicar a você como foi que eu ouvi a frase:
“Fique longe de minhas lembranças ou vou quebrar um osso seu para cada uma que
você roubar. Fui claro?”
Para mim, mais claro que cristal.
— Acredite, Jeb. Isso não vai ser
exatamente férias para mim. Também não gosto da ideia de dividir minha cabeça
com você, mas não é algo que eu possa evitar. Pensei que você estivesse ciente
das consequências quando disse sim tão rápido.
— Eu disse sim porque conheço você.
Sei que você se colocaria em risco tentando me salvar e que se culparia pelo
resto da vida quando os outros te impedissem. Além do mais, estou a fim de
fazer hora extra por aqui se puder. Então por que gastar tempo com uma
discussão que eu não venceria mesmo se tivesse razão? Só não venha me dizer que
não há uma forma de bloquear os pensamentos do hospedeiro, porque isso é
ridículo. Vocês não sobreviveriam a nós se fosse de outra maneira.
— A consciência dos hospedeiros é
sublimada, Jeb. É assim que os pensamentos deles, junto com a maioria das
lembranças, desaparecem. Mas você vai estar vivo, pensando ao mesmo tempo em
que eu. Mesmo que te coloquemos em algum estado de dormência, não há como
prever quais, porque não é uma questão de se
mas sim de quais, memórias suas
vão se misturar com as minhas.
Eu estava tão distraído com a
conversa que me esqueci de reparar em Mel, mas todo mundo voltou os olhos para
ela quando percebemos que ela tinha aberto caminho em nosso pequeno grupo e
estava indo em direção a Jeb. Às vezes chegava a assustar o quanto a expressão
daquela garota parecia dura quando ela metia algo na cabeça, e, naquele
momento, era exatamente isso o que a gente estava vendo. Melanie não deixaria
passar a oportunidade de salvar o tio nem que tivesse que entrar ela mesma na
cabeça dele. À base de marretadas, se fosse preciso. Claro que depois disso não
ia adiantar nada arrumar o coração do velho, mas ela teria provado seu ponto.
— Tio, escute, eu sobrevivi a isso.
O senhor vai conseguir também. Logan não vai estar tentando acessar as suas
memórias, o que vai tornar tudo mais fácil do que foi para mim. Ele vai
ajudá-lo a manter as paredes que eu vou ajudá-lo a erguer. O que acha? — ela
perguntou, segurando as mãos dele e olhando-o nos olhos.
Não quero parecer sensível nem nada,
mas se fosse Johnny olhando para mim daquele jeito, ou Lindy, não acho que
seria fácil dizer não para o que quer que fosse.
— Tem razão, pequena. Você já passou
por coisas piores. Então, vamos lá, me ensine logo antes que eu me sinta um
velho resmungão que dificulta a vida de todo mundo. Até porque, estou cansado
demais para continuar discutindo com esse teimoso aí — disse Jeb apontando para
Logan, que ia protestar, mas recebeu um olhar de Melanie que o fez parar a
tempo.
— Certo, então escute: esqueça seu
corpo. Quanto mais brigar com Logan pela posse de seus sentidos, mais fora de
foco eles ficarão. Imagine seus olhos vendo e seus ouvidos escutando e sua
mente obedecerá, mas não tente tomar o controle de seu corpo. A saída é aceitar
isso. Não tente evitar os sentimentos também, porque se tentar sufocá-los eles
controlarão vocês dois, e o mais forte, que no caso será o Logan, dadas as
circunstâncias, assumirá o controle e você ficará sem nada.
Nós todos escutávamos, tentando dar
sentido àquelas palavras, porque no mundo em que vivíamos não era uma lição a
ser desprezada. De jeito nenhum. Provavelmente não era nada agradável para
Melanie estar lembrando aqueles momentos com tantos detalhes, só que agora
parecia uma ótima ideia que ela falasse tudo o que pudesse, então ela
continuou:
— ...imagine-se cercado de paredes. Dessa
forma, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.
— Assim que vocês acordarem —
acrescentou Estrela —, nenhum dos dois vai ter controle sobre o fluxo de
memórias, mas isso não tem importância, porque as coisas de que vão se lembrar
primeiro são estas que estão acontecendo agora, pouco antes de vocês fecharem
os olhos.
— Sim — confirmou Mel. — Mas no
resto do tempo, as paredes vão ajudar a manter vocês dois separados. Faça isso
você também, Logan. Imagine suas próprias paredes se precisar. Isso vai manter
as lembranças separadas, mas em hipótese alguma tentem controlar os pensamentos
um do outro. É uma luta perdida que só vai desgastá-los, então é melhor tentar
coordená-los em turnos, como em uma conversa.
— Tudo bem — disse Logan. — Eu não
tenho nada a esconder, nada que eu queira proteger especialmente, minhas
memórias principais são sobre vocês. Além disso, vou estar mais focado em cumprir
aquilo a que me propus. Mesmo assim, vai ser difícil fingir para as outras
Almas se minha cabeça estiver uma bagunça. Então vou fazer o possível para manter
nossas mentes separadas.
— Fique firme lá dentro, tio Jeb. A
vontade de se entregar é muito difícil de combater. Resistir dói. Não subestime
o que o senhor faria para se livrar disso.
— Ficarei firme. Vou me lembrar de
você o tempo todo, pequena.
Pequena. Eu nunca tinha ouvido Jeb
chamar Melanie assim antes, mas ele tinha feito isso duas vezes nos últimos
minutos. O engraçado é que nas duas vezes ela reagiu como se fosse algo familiar
e nada incomum. Vai ver que era um apelidinho carinhoso de outros tempos, quem
sabe de quando Melanie era, de fato, pequena, porque agora ela não era. Só sei
que tornava o negócio mais estranho de se ver do que era de se esperar. Pelo
menos para mim.
Comecei a lembrar que às vezes eu
chamava Jodi assim, mas parei porque ela ria de mim dizendo que era brega. Não
era uma lembrança importante nem nada, mas pensar nela enquanto Melanie dizia
aquelas coisas sobre paredes fazia com que eu me sentisse como se, de repente,
as cavernas tivessem ficado pequenas demais. Talvez eu devesse me oferecer para
ir junto com eles e sair dali o mais rápido possível. Pelo menos por algumas
horas.
— Eu vou junto. Vou estar lá para
ajudar vocês dois a controlarem tudo — Mel decretou, antes que eu tivesse
chance de me candidatar.
Merda. Provavelmente, isso
significava que Jared iria também. Ele não a deixaria por conta própria numa
situação assim e ninguém esperava que deixasse. Então eu ficaria aqui, porque
três humanos onde a rigor não precisaria haver nenhum já era uma multidão.
— Você precisa vigiar o tempo todo —
eu disse, lembrando do que Logan tinha falado quando estávamos só nós dois. —
Se Jeb morrer no caminho, vocês precisam tirar o Logan de lá imediatamente.
— Kyle! — O idiota de quem eu estava
tentando cuidar chamou minha atenção. Aparentemente, dizer que Jeb podia morrer
era algo indelicado.
Caralho,
quanta frescura!
—
Tá certo. Então que se dane você. Só acho que é melhor levar um criotanque.
— Kyle tem razão — Estrela interviu.
Finalmente alguém com senso nesta história.
— Obrigado, Estrelinha.
Ela só me deu um sorrisinho de lado,
mas Logan me olhou com aquela cara de dragão cuspindo fogo que ele fazia às
vezes. Eu não estava nem aí. Ele que se danasse.
— Jared dirige e nós duas vigiamos.
Quando entrarmos no hospital, vocês se escondem no lugar mais escuro que
encontrarem e não saiam de lá até eu voltar, certo?
Todo mundo concordou e as coisas
foram feitas rapidamente a partir dali. Eu acho. Na verdade, não fiquei lá para
ter certeza. Ver Jeb acordando com olhos prateados, enquanto ele e Logan faziam
alguma espécie de luta-livre lá dentro da cabeça maluca do velho me parecia
estranho demais. E eu já estava farto de coisas estranhas por hoje.
Estava escuro, mas quando entrei em
nosso quarto, meus olhados acostumados puderam ver que Sunny estava dormindo
com Lindy enroladinha em seus braços. Gosto de crianças. Nunca fui de sonhar
com o futuro nem nada assim, mesmo quando isso era permitido, mas sempre
imaginei que Jodi e eu teríamos filhos. Aí, por um segundo, fiquei paralisado,
sem ter certeza do que a visão me causava, porque as lembranças de Jodi estavam
em toda parte agora, e olhar para Sunny e sentir carinho por ela me fazia
sentir estranho. Eu amava quem estava ali, mas nunca consegui deixar de amar
quem deveria estar.
Deitei-me ao lado de Sunny e Lindy,
sabendo que seria inútil. Eu passaria aquela noite em claro mesmo que não
houvesse coisas demais em minha cabeça. Mesmo que as palavras de Mel não aparecessem
do lado de dentro de minhas pálpebras em letras garrafais cada vez que eu
tentava fechar os olhos.
Resistir
dói. Resistir dói.
Eu ficaria pensando naquilo a noite
toda, mas, mesmo assim, preferia estar ali com Sunny a ficar zanzando pelo
hospital, vendo os minutos se transformarem em horas intermináveis enquanto as
ideias me queimavam como brasas.
A
vontade de se entregar é muito difícil de combater. Resistir dói.
Ou talvez as ideias me queimassem
aonde quer que eu fosse.
Olhei para Sunny dormindo ao meu
lado e imaginei Jodi em seu lugar. Por um momento mais longo do que deveria, me
apeguei àquela imagem e percebi o quanto eu ainda sentia falta dela e o quanto
eu tinha sido sempre injusto, condenando Jodi por não ter lutado. Permitindo a
mim mesmo ter raiva de Sunny tantas vezes. Agindo de um jeito que ela não
merecia. Culpando ambas por uma dor que era só minha. Por algo que já tinha se
tornado uma cicatriz que eu insistia em reabrir.
Sunny abriu os olhos quando beijei
sua têmpora, pedindo perdão em silêncio. Para ela e para Jodi.
— O que foi? Como está Jeb?
— Está bem — Ouvi-a respirar
aliviada, embora ela não soubesse exatamente a gravidade da situação. Resolvi
contar os detalhes, testando se ela estava realmente acordada. Talvez pudéssemos
conversar um pouco a respeito. Talvez eu pudesse pedir desculpas. — Ele aceitou
dividir a cabeça com Logan e eles estão indo para o hospital agora.
— Dividir a cabeça?
Mas quando comecei a explicar, ela
já tinha adormecido de novo. Sunny sempre dormiu como uma pedra, como se
houvesse um pequeno interruptor em sua cabeça equipado apenas com o modo
“desligar”. Sorri um pouco. Nessa parte ela e Jodi sempre foram exatamente
iguais. Mas só nessa parte.
Acho que era por isso que eu nunca tinha
confundido as duas, apesar de tudo. Nunca consegui. Porque Sunny é suave,
delicada e é o tipo de criatura com a qual ninguém pensaria que eu pudesse
lidar. Nós combinamos tanto quanto um elefante com uma loja de cristais. Mas
Jodi era igual a mim. Esquentada, boca suja, nunca levava desaforo para casa. O
tipo de garota que falava o que pensava e fazia o que queria sem se importar
com mais nada.
Eu nunca deixaria de amá-la. E a
falta dela nunca deixaria de doer.
Mas eu também amava Sunny. E isso me
curava. Fechava os cortes em meu coração.
Dor acontece. E não há nada que a
gente possa fazer a respeito. Mas se esperar tempo suficiente, você pode vir a
amar as cicatrizes. As minhas, pelo menos, me faziam parecer um cara melhor. Na
maioria do tempo.
[1] Na
verdade, a frase é atribuída ao romano Júlio César, mas Kyle não era exatamente
um bom aluno.
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