quinta-feira, 7 de agosto de 2014

CD2 Capítulo 8


Capítulo 8 – Cicatrizes

Scar tissue that I wished you saw
Sarcastic mister know it all
Close your eyes and I'll kiss you 'cause
With the birds I'll share
With the birds I'll share
This lonely view
With the birds I'll share
This lonely view

(Scar Tissue – Red Hot Chili Peppers)

Kyle

            A gente se acostuma com tudo na vida. E consegue até gostar de algumas coisas que, se o mundo fosse do jeito que queríamos, não deveriam estar ali.
            Cicatrizes, por exemplo. Você pode fazer o gênero quero-ser-Chuck-Norris e fingir que está perfeitamente confortável com elas, mas a verdade é que até o cara mais durão sente dor e, por um tempo, aquela pele feia, rosada e disforme é um lembrete indesejável daquilo que você gostaria que não fosse verdade. Que você não é melhor que os outros, e que o mundo pode te ferir mesmo que você tente se blindar. Como se fosse possível.
            Dor acontece. E não há nada que a gente possa fazer a respeito.
            Mas então, num dia qualquer, você se olha no espelho e não odeia mais o que vê. A pele diferente passou a ser parte integrante do resto e as lembranças não doem mais do que as coisas com que você se acostumou a viver. Você passou por aquilo. E acabou. Para o bem ou para o mal, você está ali, pronto para um novo dia.
            Patrick James O’Shea era o nome de meu pai. Não sei como ele se chama agora. Quero dizer, a Alma. Eu sei que o velho Paddy não existe mais. Não sou tão burro. Mas às vezes me pego imaginando... Se ele se lembra de nós, de mim. Se ainda existe alguém que possa lembrar as lembranças de meu pai.
            Sunny diz que às vezes eles esquecem. Depois de um tempo, quase tudo é apagado quando não se tem nada por perto que os faça lembrar. Ian e eu partimos. Nós o deixamos lá. Então talvez ele não se lembre.
            Eu me odeio por isso.
            Ou odiava, não sei. Depois de tantos anos, o ódio se tornou uma cicatriz. Assim como as Almas. Não é uma comparação bonita, mas quem liga? Não sou um cara de palavras bonitas, de qualquer maneira. O fato é que Almas são como cicatrizes. Como um todo, quero dizer. A coisa da invasão e de roubar nosso mundo. É parte da gente agora.
            Não me entenda mal, a pele ainda está vermelha e sensível. Eu ainda odeio os malditos parasitas. Mas só os que estão lá, do outro lado. Eles podem ser bondosos uns com os outros e aquela coisa toda, mas não são as criaturinhas benevolentes que gostam de pensar que são. Não são perfeitos, embora sejam melhores do que nós. Eles também matam. Também roubam. É diferente, mas também é igual.
            É só que isso já não tem a mesma importância agora. Até eu sei que as coisas não são tão simples. Talvez eu saiba disso até melhor que os outros, porque o fato é que, como todas as cicatrizes, esta se tornou parte de mim. E a coisa com as partes da gente é que acaba se tornando meio antinatural não gostar delas.
            Primeiro aconteceu com Ian, depois comigo e, antes que eu pudesse achar que fosse algo de família, aconteceu com os outros também. As Almas vieram e passaram a fazer parte de quem somos. Do nosso grupo. De nossa sobrevivência. E, de repente, gostávamos delas. Mais do que gostávamos. De repente, não havia mais o outro lado no que dizia respeito a elas. Sem que tivéssemos percebido, tínhamos nos tornado uma coisa só.
            E era por isso que eu estava ali. Tentando ajudar um cara que, em outros tempos, eu deixaria morrer seco se ele dependesse de mim para um copo d’água. E quer saber o pior? Estava sendo legal de bom grado, porque, como tantas vezes minha mãe tentou ensinar, a gravidade é implacável em fazer nossos cuspes para cima caírem de volta em nossa testa, e eu meio que passei a considerar Logan meu amigo.
            Uma porra de Buscador. Meu amigo. Caramba.
            — Você precisa contar pra Estrela antes. Ter certeza de que ela concorda. Acho que ela não ia gostar de saber que você tomou uma decisão dessas sem conversar com ela.
            Jesus Cristo! Em que planeta eu estaria preocupado com a vida amorosa de um amigo alienígena mesmo? Ah, é. Neste aqui. É uma droga de mundo estranho, como diz meu irmão. Saudades de quando a coisa mais esquisita que eu já tinha visto era alguém que gostasse de álgebra.
            — É claro — ele respondeu simplesmente.
            É óbvio, Kyle! É claro que o senhor-pensa-em-tudo-antes-de-todo-mundo já pensou nisso também. Às vezes é bem difícil gostar desse cara.
            — Estrela não vai se opor, ela sabe que não há riscos — ele disse, mas depois parou. Demorei um segundo para perceber, de modo que tive que me virar para trás em nosso caminho para encontrá-lo me encarando de um jeito estranho. — Tem só uma coisa... É uma possibilidade remota, considerado tudo, mas pode acontecer. Se Jeb... Se ele morrer e Estrela demorar para perceber, se não houver tempo de me transferir para um criotanque...
            — Isso não vai acontecer. Um de nós vai com vocês. Alguém dirige e o outro apenas fica de olho.
            — Eu disse que a possibilidade era remota, mas se Jeb morrer, as pessoas vão ficar perdidas sem ele. Por um tempo, pelo menos. E você vai precisar cuidar deles se eu não estiver aqui para tentar. Até mesmo de Jared, eu acho, porque vai ser difícil para ele também. Você sabe ser racional quando necessário e é disso que eles vão precisar.
            — Escuta aqui, você está insinuando que se você não voltar ninguém vai dar conta do recado? Está se achando o vice-Jeb, por acaso? Esqueceu que você foi o último a chegar e que a gente se virava muito bem sem você? Ou quem foi que ficou tão descontrolado que ia pôr tudo a perder com um plano idiota? Depois você não sabe por que eu te acho arrogante.
            — Você sabe o que eu quis dizer, Kyle. Dá para aprender a aceitar um elogio? Estou dizendo que você é melhor para lidar com isso, justamente porque não deixa ninguém fazer besteiras, mesmo tendo as suas próprias para se orgulhar.
            — Você chama isso de elogio?
            — É o melhor que você vai conseguir. Não force a barra.
            Ele me lançou um olhar duro, irritado, mas depois pareceu levar outras coisas em consideração além da raiva que eu despertava nele de vez em quando. Ou quase sempre.
            Era engraçado como eu conseguia esse efeito sem nem mesmo tentar. Tive vontade de rir, mas fiquei calado. Não sou assim tão cretino que não possa deixar para me divertir depois.
            — Estou te pedindo ajuda, ok? — ele continuou. E não tive outro remédio senão levar a sério. Eu sabia o quanto era difícil ter que dizer aquelas coisas, então assenti para que ele soubesse que eu estava escutando bem. De repente, brincar não tinha mais sentido nenhum. — Mesmo que eu volte, se eu tiver falhado... Não vou estar em condições de ajudar vocês a manterem as coisas em ordem. E se eu não voltar...
            — Eu sei. A Estrela e a Lindy — disse eu, quando ficou claro que completar a frase parecia tão difícil quanto engolir um prego. — Vou cuidar delas. Você sabe que sim.
            Que droga! Eu amava aquela menininha tanto que seria capaz de buscar a Lua se ela me pedisse. É claro que eu cuidaria dela. E da mãe dela também, se fosse preciso.
            — Não deixe Estrela se culpar, porque é isso que ela vai tentar fazer se ninguém a impedir. E a minha filha... Só garanta que ela não perca muito tempo pensando em mim. Ela é pequena, não vai se lembrar de muita coisa sobre o pai se eu não estiver aqui. Não faz sentido fazê-la crescer achando que precisa se apegar a lembranças minhas. Deixa-a esquecer.
            Vou te contar uma coisa, esta merda toda de autossacrifício das Almas me irrita muito às vezes. Era só somar dois mais dois naquela conversa para perceber que Logan estava querendo que eu o substituísse, que fosse o pai de quem a filha dele se lembraria, caso ele não estivesse aqui. Era uma coisa bonita, se eu fosse pensar bem a respeito, porque, como eu disse, eu amava Lindsay. Mas era justamente por isso que eu não queria pensar a respeito.
            Você pode tapar um buraco, mas aí o que você tem é um buraco tapado. Um remendo no lugar de uma coisa que já foi inteira e não é mais. Parece algo babaca de se dizer, mas não é. A gente perde partes de si e coloca outras no lugar. Se machuca e fica com as cicatrizes. É a vida. Mas perdas são sempre perdas.
            — Você é pai dela, imbecil. Não é o tipo de coisa que dê pra apagar. Eu não vou cuidar para que ela te esqueça. Também não quero que ela sofra, mas não é assim que as coisas funcionam. Agora chega desse drama, antes que eu retire tudo o que disse sobre te respeitar.
            Logan apenas riu um pouco, me olhando com aquele ar insuportável que ele tinha às vezes de “eu manjo você, seu humano simplório, agora vá e faça exatamente o que eu pedi”, porque ele sempre sabia quando suas palavras tinham atingido o alvo. Só que a carga de sentimentalismo desta noite já estava pesada demais para que eu me dispusesse a aguentar essas merdas. Afinal de contas, nós tínhamos um velho precisando ser removido às pressas para o hospital ou o quê? Jesus!
            — Só cala essa boca e vai logo fazer o que precisa.
            — Obrigado, Kyle — ele respondeu, como se eu tivesse dito que estava achando aquela cena linda.
            Às vezes eu acho que as coisas acontecem de um jeito inteiramente diferente na mente daquele maluco.
            — Tá, tá — concordei, porque eu só queria mesmo era que aquela conversa chegasse ao fim.
            Depois disso, fizemos o resto do caminho calados, atentos à escuridão que tomava conta do corredor, quebrada apenas pela luz que se projetava através da entrada do hospital de Doc. Entramos ainda em silêncio, sondando o ambiente. De alguma forma, eles já pareciam esperar que alguma coisa tivesse mudado, já que a urgência do plano original — que ninguém sabia muito bem qual era, por falar nisso — parecia não estar mais ali.
            — Como ele está? — Logan perguntou a Estrela, apontando com a cabeça para um Jeb adormecido. Ou pelo menos eu esperava que ele estivesse só dormindo.
            — Descansando. Estável, por enquanto — ela respondeu.
            Logan só assentiu e abaixou um pouco a cabeça, desviando o olhar. Quase comecei a rir, porque se me perguntassem, eu diria que ele estava começando a rever a historinha de “Estrela não vai se opor”. Eu também achava que ela ia concordar, porque, pensando friamente, não havia mesmo risco nenhum, mas sei lá o quanto as mulheres entendem de análises frias. Até que seria divertido, em outras circunstâncias, ver o senhor-macho-alfa-alienígena lidando com quem realmente mandava. Naquele momento, no entanto, eu só estava com um pouco de pena.
            — Posso falar com você um instante? — ele perguntou, finalmente.
            Estrela não disse nada, mas estava na cara que ela já tinha captado alguma coisa no ar. Esta é outra coisa em relação às mulheres: elas sempre sabem quando a gente está prestes a dizer alguma coisa que vai irritá-las ou algo assim. No caso de Logan, entretanto, a situação parecia não estar tão feia, porque ela fez aquela cara de “dai-me paciência” que Sunny faz para mim com frequência — aquela que significa que ela já se convenceu a me dar uma chance antes mesmo de eu tentar pra valer — e se encaminhou para fora, com ele logo atrás.
            Melanie fez menção de ir atrás deles, mas acabou desistindo, parecendo meio confusa e um tanto frustrada.
            — Eu pensei que ele tivesse vindo aqui buscar o Jeb. Vai demorar mais quanto tempo agora?
            — Ele veio — intercedi. — Só que houve uma mudança de planos na forma de fazer isso e o Logan precisa... hum... — Dizer para a mulher que vai trocar o próprio hospedeiro pelo de um cara à beira da morte? Cara, isso vai ser esquisito para ela! Certeza. — Ele precisa explicar o novo plano a ela. — É, acho que isso resume.
            — Mas por que só a ela?
            — Olha, Mel, só dê um tempo a eles, ok?
            — Tudo bem. Então me explique você. Parece que está sabendo de bem mais do que eu.
            Bem, na verdade não vi mal nenhum em já ir adiantando as coisas. Afinal, quanto mais rápido fizéssemos aquilo e puséssemos o pé na estrada, melhor para todo mundo. Dei uma última olhada em Jeb para confirmar se ele estava mesmo dormindo, mas fiz um movimento com a mão, chamando o pessoal para um canto, mesmo assim. Não podia arriscar que o velho teimoso ouvisse as palavras da minha boca. De todo mundo, eu era a pessoa menos indicada para pôr as frases numa ordem que não fizesse tudo parecer uma tentativa de assassinato ou coisa pior.
            — Logan vai pedir para Estrela inseri-lo em Jeb. — Aí, não falei? Até que não ficou parecendo uma tentativa de assassinato, mas que ficou estranho, ficou. — Quer dizer... bom, é... Ah, vocês entenderam! A coisa toda de tomar o corpo dele e tal. —Tomar o corpo dele? Pelo amor de Deus, O’Shea! Recomponha-se. — O lugar. Eu quiser dizer o lugar. Logan vai no lugar de Jeb até a Instalação de Cura. Já que seria tão complicado levar um humano.
            Eu estava esperando que as pessoas olhassem para mim como se eu tivesse dito que bebês devem saltar de paraquedas e que me perguntassem como foi que deixei o Buscador pensar numa insanidade como aquela, mas não foi isso que aconteceu. Na realidade, ninguém falou nada por uns bons trinta segundos, o que, naquelas circunstâncias, parecia mais com meia hora do que com meio minuto. Eles só ficaram trocando olhares uns com os outros até que Doc quebrou o silêncio.
            — Até que parece uma boa ideia.
            — É — confirmou Mel, mas ela ainda parecia hesitante. Eu imaginava o porquê, claro. Apesar de toda a vibe “igualdade, liberdade, fraternidade” que existia entre ela e Peg, aposto que deve ter sido o inferno para as duas ter que viver daquele jeito. Quase fico contente que não tenha acontecido com Jodi e Sunny. Quase. — Mas acho que tio Jeb não vai aceitar numa boa.
            — Você acha? — perguntou Jared ironicamente. — Ele não vai aceitar nem em um milhão de anos.
            — Mas é para salvar a vida dele — retrucou Ian. — Eu sei que não deve ser fácil, mas vale a pena tentar, não vale? — Parecia uma pergunta geral, mas era dirigida a Mel, todo mundo percebeu. Porque de todos nós ali dentro, ela era a única que sabia dizer como era ter alguém literalmente dentro da própria cabeça. Mesmo sendo um amigo.
            — Vale — ela disse, depois de pensar por meio segundo. Não havia nenhuma dúvida quanto ao resultado final no rosto dela. — É isso ou morrer. E morrer está fora de questão quando a solução é tão... simples.
            Certo. Simples não era bem a palavra, mas ninguém queria discutir com a garota que sobreviveu à coisa toda. Obviamente.
            — Talvez Jeb não precisasse saber — arrisquei. Eu só queria que tudo aquilo acabasse logo. Crises me deixavam maluco. — Talvez Doc pudesse dar a ele um daqueles troços que faz a pessoa apagar.
            — De jeito nenhum, Kyle! — Doc começou a protestar. — Não vou agir contra a vontade dele. Isso é antiético.
            — Não acho que o juramento de Hipócrates ainda esteja valendo quando você é o único médico do mundo, Doc. Precisamos ser práticos.
            — Não é o médico falando aqui, Jared. É o amigo. Fazer isso seria desleal. Uma vez você me obrigou a trair Peg. E fico feliz que tenha feito isso. Mas não quero ter que fazer algo assim novamente. Nenhum de nós estava sendo racional e achávamos que não havia outra maneira. Mas Jeb pode ser levado a entender as possibilidades.
            Tem um barulho que Ian faz quando alguma coisa o irrita. É uma espécie de rosnado baixo que fica lá no fundo da garganta. Para ouvidos destreinados, é baixo o suficiente para se perder em meio às vozes de uma conversa, mas eu tenho PhD em Tortura Emocional de Irmão Caçula e ouvi o barulho antes mesmo que acontecesse. Hora errada para Doc tocar no assunto quase-deixei-Peg-morrer-só-porque-ela-me-pediu-com-jeitinho. Aliás, a única hora certa de falar disso seria antes dos dedos de Ian se fecharem no pescoço dele. Pergunte se alguma vez voltamos a falar sobre o episódio da sala de banhos? Tipo, eu tentei matar a namorada dele, ele tentou convencer os outros a me expulsarem daqui para morrer à minha própria sorte. Estamos quites. Eu acho. Mas não falamos sobre isso.
            — Agora você vem falar em lealdade? — meu irmão perguntou. Não, na verdade, “perguntar” seria uma palavra bonitinha para o que ele fez. “Cuspiu marimbondos” parece mais apropriado.
            — Como eu disse, a situação de agora é bem diversa daquela — respondeu Doc, indiferente, como se estivesse apenas dando algum tipo de resposta pré-programada na qual não estava especialmente concentrado. Ele nem percebeu a agressividade da pergunta. Para falar a verdade, acho que ele já estava “ausente do recinto”, imerso em algum tipo de cogitação que não dividiria conosco.
            Doc tinha uma tendência estranha a se fechar no próprio mundo. Como aqueles caras com quem eu era legal no Ensino Médio só para que colocassem meu nome nos trabalhos. E às vezes ele podia ser bem inocente também, como naquela hora. Como é que aquele cara sobrevivia no mundo de antes estava além da minha compreensão, mas aquilo não era exatamente relevante. Assim como a raiva incurada de Ian. E Mel, que tinha aprendido a conhecer meu irmão quase tão bem quanto eu, percebeu também e pôs fim à discussão.
            — Ele vai acordar. Não tem chance de ele passar pelo processo sem voltar à consciência em momento nenhum. Não o tio Jeb. É besteira ficar discutindo isso, porque cedo ou tarde ele vai acordar e aí vai ser um inferno para o Logan. E depois para nós. Está fora de cogitação fazê-lo passar pela experiência de acordar com alguém dentro da própria cabeça sem ter sido avisado antes. Vocês beberam ou o quê?
            Quando ela disse isso, todo mundo caiu na real e pareceu meio envergonhado, até mesmo eu, embora não estivesse totalmente arrependido de ter dado a ideia. Era só que, de novo, Mel era a única ali que sabia o que estava falando. Felizmente, Logan e Estrela apareceram e a gente pôde ignorar o momento estranho para se fixar no que viria a seguir.
            Acho que todo mundo estava meio que esperando que eles tomassem a decisão sozinhos, porque quando ela pegou o Acordar e o posicionou diante do rosto do Jeb sem perguntar o que a gente achava, ninguém protestou.
            Alea jacta est[1], a sorte está lançada. Acho que era isso que o Asterix dizia nos desenhos, não era?
            — Jeb — Logan chamou devagar. O velho demorou um pouco a abrir os olhos, mas quando abriu não disse nada. Parecia cansado demais. — Precisamos conversar.
            — Nada bom começa com essas palavras, mas vá em frente. — Jeb fez um gesto com a mão, ligeiramente impaciente. Aquela enrolação toda nunca foi o estilo dele.
            — Nós não podemos levar você à Instalação de Cura. É impraticável. Riscos demais.
            Jeb deu um tipo de suspiro resignado. Quer dizer, dava para ver que ele não estava exatamente animado para morrer, porque quem estaria? Mas a verdade é que, depois do que pensamos que tivesse sido o fim do mundo para nós, a gente meio que se acostumou com a ideia de que o bem do grupo valia nossa morte. Minha mãe ficaria “orgulhosa” se percebesse que a humanidade precisou ficar quase extinta para que eu pusesse o bem dos outros em primeiro plano. É, pode me julgar, eu não costumava ser um cara legal antes, mas as coisas mudaram. E eu já tinha posto o meu na reta por aquelas pessoas tantas vezes, que entendia muito bem porque Jeb não estava se lamentando.
            — Todo mundo tem sua hora, garoto — ele falou, por fim. — Eu disse isso a você.
            — Mas você sabe que eu faria mesmo assim. Você sabe que eu encararia os riscos sozinho se esse fosse o único jeito.
            — Logan. — Havia uma advertência muito clara na voz de Jeb. — Você quer me ouvir uma vez na vida? Não vou deixar você desperdiçar o tempo que me resta pondo todo mundo doido. Você não vai fazer nada...
            — Mas acontece que esse não é o único jeito — Logan interrompeu os protestos e todos nós ficamos com aquela cara de goleiro antes do pênalti. — Quer dizer, você precisa ir até lá, mas não como humano.
            Ele não disse mais nada depois disso, apenas ficou esperando que Jeb ligasse os pontos sozinho, o que aconteceu mais rápido do que comigo, provavelmente. Não que desse para a gente ter certeza, porque eu nunca vou conseguir entender como aquele velho consegue fazer a mesma cara para dizer “boa noite” ou “vá se f...” com a mesma tranquilidade.
            — Tudo bem — Jeb disse, bem quando eu achei que ele fosse se levantar e levar Logan para o raio que o partisse pessoalmente.
            — O quê?
            Sim, “o quê?” era a pergunta de um milhão de dólares. Se dinheiro ainda valesse alguma coisa, estou certo de que teríamos dado todo o nosso para entender como Jeb não estava dizendo todos os disparates e xingamentos que existiam na nossa língua e mais um tanto em espanhol, só para ter certeza de que Logan estava entendendo que ninguém ia “pegar carona na cachola dele como se fosse uma droga de táxi” ou sei lá o quê.
            — Eu disse que tudo bem, embora eu saiba que você não estava exatamente pedindo minha permissão. Você deixou bem claro que não estava interessado nela quando saiu daqui batendo os cascos pelo chão.
            E agora eu já podia dizer que tinha visto tudo no mundo. Um planeta dominado por alienígenas invasores de corpos? Confere. Eu me apaixonar por uma delas? Confere. Acabar me tornando amigo de outro? Confere. Bebês do mundo pós-apocalíptico? Confere. Jeb dando permissão para alguém entrar na cabeça dele? Pois é. Confere. Mundo estranho.
            — Para ser sincero, eu não tenho certeza se estava pedindo sua permissão, mas achei que tinha obrigação de te avisar — Logan explicou. E é o tipo da coisa que eu não diria, porque já que ele aceitou, era melhor fazer tudo logo sem provocá-lo, antes que ele mudasse de ideia. Mas, pelo visto, quem era eu para achar que sabia alguma coisa?
            — Ah, obrigado pela consideração, Buscador. Mas esteja avisado: fique longe de minhas lembranças.
            Não sei se Logan entendeu bem o tom de voz de Jeb, mas deixa eu explicar a você como foi que eu ouvi a frase: “Fique longe de minhas lembranças ou vou quebrar um osso seu para cada uma que você roubar. Fui claro?”
            Para mim, mais claro que cristal.
            — Acredite, Jeb. Isso não vai ser exatamente férias para mim. Também não gosto da ideia de dividir minha cabeça com você, mas não é algo que eu possa evitar. Pensei que você estivesse ciente das consequências quando disse sim tão rápido.
            — Eu disse sim porque conheço você. Sei que você se colocaria em risco tentando me salvar e que se culparia pelo resto da vida quando os outros te impedissem. Além do mais, estou a fim de fazer hora extra por aqui se puder. Então por que gastar tempo com uma discussão que eu não venceria mesmo se tivesse razão? Só não venha me dizer que não há uma forma de bloquear os pensamentos do hospedeiro, porque isso é ridículo. Vocês não sobreviveriam a nós se fosse de outra maneira.
            — A consciência dos hospedeiros é sublimada, Jeb. É assim que os pensamentos deles, junto com a maioria das lembranças, desaparecem. Mas você vai estar vivo, pensando ao mesmo tempo em que eu. Mesmo que te coloquemos em algum estado de dormência, não há como prever quais, porque não é uma questão de se mas sim de quais, memórias suas vão se misturar com as minhas.
            Eu estava tão distraído com a conversa que me esqueci de reparar em Mel, mas todo mundo voltou os olhos para ela quando percebemos que ela tinha aberto caminho em nosso pequeno grupo e estava indo em direção a Jeb. Às vezes chegava a assustar o quanto a expressão daquela garota parecia dura quando ela metia algo na cabeça, e, naquele momento, era exatamente isso o que a gente estava vendo. Melanie não deixaria passar a oportunidade de salvar o tio nem que tivesse que entrar ela mesma na cabeça dele. À base de marretadas, se fosse preciso. Claro que depois disso não ia adiantar nada arrumar o coração do velho, mas ela teria provado seu ponto.
            — Tio, escute, eu sobrevivi a isso. O senhor vai conseguir também. Logan não vai estar tentando acessar as suas memórias, o que vai tornar tudo mais fácil do que foi para mim. Ele vai ajudá-lo a manter as paredes que eu vou ajudá-lo a erguer. O que acha? — ela perguntou, segurando as mãos dele e olhando-o nos olhos.
            Não quero parecer sensível nem nada, mas se fosse Johnny olhando para mim daquele jeito, ou Lindy, não acho que seria fácil dizer não para o que quer que fosse.
            — Tem razão, pequena. Você já passou por coisas piores. Então, vamos lá, me ensine logo antes que eu me sinta um velho resmungão que dificulta a vida de todo mundo. Até porque, estou cansado demais para continuar discutindo com esse teimoso aí — disse Jeb apontando para Logan, que ia protestar, mas recebeu um olhar de Melanie que o fez parar a tempo.
            — Certo, então escute: esqueça seu corpo. Quanto mais brigar com Logan pela posse de seus sentidos, mais fora de foco eles ficarão. Imagine seus olhos vendo e seus ouvidos escutando e sua mente obedecerá, mas não tente tomar o controle de seu corpo. A saída é aceitar isso. Não tente evitar os sentimentos também, porque se tentar sufocá-los eles controlarão vocês dois, e o mais forte, que no caso será o Logan, dadas as circunstâncias, assumirá o controle e você ficará sem nada.
            Nós todos escutávamos, tentando dar sentido àquelas palavras, porque no mundo em que vivíamos não era uma lição a ser desprezada. De jeito nenhum. Provavelmente não era nada agradável para Melanie estar lembrando aqueles momentos com tantos detalhes, só que agora parecia uma ótima ideia que ela falasse tudo o que pudesse, então ela continuou:
            — ...imagine-se cercado de paredes. Dessa forma, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.
            — Assim que vocês acordarem — acrescentou Estrela —, nenhum dos dois vai ter controle sobre o fluxo de memórias, mas isso não tem importância, porque as coisas de que vão se lembrar primeiro são estas que estão acontecendo agora, pouco antes de vocês fecharem os olhos.
            — Sim — confirmou Mel. — Mas no resto do tempo, as paredes vão ajudar a manter vocês dois separados. Faça isso você também, Logan. Imagine suas próprias paredes se precisar. Isso vai manter as lembranças separadas, mas em hipótese alguma tentem controlar os pensamentos um do outro. É uma luta perdida que só vai desgastá-los, então é melhor tentar coordená-los em turnos, como em uma conversa.
            — Tudo bem — disse Logan. — Eu não tenho nada a esconder, nada que eu queira proteger especialmente, minhas memórias principais são sobre vocês. Além disso, vou estar mais focado em cumprir aquilo a que me propus. Mesmo assim, vai ser difícil fingir para as outras Almas se minha cabeça estiver uma bagunça. Então vou fazer o possível para manter nossas mentes separadas.
            — Fique firme lá dentro, tio Jeb. A vontade de se entregar é muito difícil de combater. Resistir dói. Não subestime o que o senhor faria para se livrar disso.
            — Ficarei firme. Vou me lembrar de você o tempo todo, pequena.
            Pequena. Eu nunca tinha ouvido Jeb chamar Melanie assim antes, mas ele tinha feito isso duas vezes nos últimos minutos. O engraçado é que nas duas vezes ela reagiu como se fosse algo familiar e nada incomum. Vai ver que era um apelidinho carinhoso de outros tempos, quem sabe de quando Melanie era, de fato, pequena, porque agora ela não era. Só sei que tornava o negócio mais estranho de se ver do que era de se esperar. Pelo menos para mim.
            Comecei a lembrar que às vezes eu chamava Jodi assim, mas parei porque ela ria de mim dizendo que era brega. Não era uma lembrança importante nem nada, mas pensar nela enquanto Melanie dizia aquelas coisas sobre paredes fazia com que eu me sentisse como se, de repente, as cavernas tivessem ficado pequenas demais. Talvez eu devesse me oferecer para ir junto com eles e sair dali o mais rápido possível. Pelo menos por algumas horas.
            — Eu vou junto. Vou estar lá para ajudar vocês dois a controlarem tudo — Mel decretou, antes que eu tivesse chance de me candidatar.
            Merda. Provavelmente, isso significava que Jared iria também. Ele não a deixaria por conta própria numa situação assim e ninguém esperava que deixasse. Então eu ficaria aqui, porque três humanos onde a rigor não precisaria haver nenhum já era uma multidão.
            — Você precisa vigiar o tempo todo — eu disse, lembrando do que Logan tinha falado quando estávamos só nós dois. — Se Jeb morrer no caminho, vocês precisam tirar o Logan de lá imediatamente.
            — Kyle! — O idiota de quem eu estava tentando cuidar chamou minha atenção. Aparentemente, dizer que Jeb podia morrer era algo indelicado.
            Caralho, quanta frescura!
            — Tá certo. Então que se dane você. Só acho que é melhor levar um criotanque.
            — Kyle tem razão — Estrela interviu. Finalmente alguém com senso nesta história.
            — Obrigado, Estrelinha.
            Ela só me deu um sorrisinho de lado, mas Logan me olhou com aquela cara de dragão cuspindo fogo que ele fazia às vezes. Eu não estava nem aí. Ele que se danasse.
            — Jared dirige e nós duas vigiamos. Quando entrarmos no hospital, vocês se escondem no lugar mais escuro que encontrarem e não saiam de lá até eu voltar, certo?
            Todo mundo concordou e as coisas foram feitas rapidamente a partir dali. Eu acho. Na verdade, não fiquei lá para ter certeza. Ver Jeb acordando com olhos prateados, enquanto ele e Logan faziam alguma espécie de luta-livre lá dentro da cabeça maluca do velho me parecia estranho demais. E eu já estava farto de coisas estranhas por hoje.
            Estava escuro, mas quando entrei em nosso quarto, meus olhados acostumados puderam ver que Sunny estava dormindo com Lindy enroladinha em seus braços. Gosto de crianças. Nunca fui de sonhar com o futuro nem nada assim, mesmo quando isso era permitido, mas sempre imaginei que Jodi e eu teríamos filhos. Aí, por um segundo, fiquei paralisado, sem ter certeza do que a visão me causava, porque as lembranças de Jodi estavam em toda parte agora, e olhar para Sunny e sentir carinho por ela me fazia sentir estranho. Eu amava quem estava ali, mas nunca consegui deixar de amar quem deveria estar.
            Deitei-me ao lado de Sunny e Lindy, sabendo que seria inútil. Eu passaria aquela noite em claro mesmo que não houvesse coisas demais em minha cabeça. Mesmo que as palavras de Mel não aparecessem do lado de dentro de minhas pálpebras em letras garrafais cada vez que eu tentava fechar os olhos.
            Resistir dói. Resistir dói.
            Eu ficaria pensando naquilo a noite toda, mas, mesmo assim, preferia estar ali com Sunny a ficar zanzando pelo hospital, vendo os minutos se transformarem em horas intermináveis enquanto as ideias me queimavam como brasas.
            A vontade de se entregar é muito difícil de combater. Resistir dói.
            Ou talvez as ideias me queimassem aonde quer que eu fosse.
            Olhei para Sunny dormindo ao meu lado e imaginei Jodi em seu lugar. Por um momento mais longo do que deveria, me apeguei àquela imagem e percebi o quanto eu ainda sentia falta dela e o quanto eu tinha sido sempre injusto, condenando Jodi por não ter lutado. Permitindo a mim mesmo ter raiva de Sunny tantas vezes. Agindo de um jeito que ela não merecia. Culpando ambas por uma dor que era só minha. Por algo que já tinha se tornado uma cicatriz que eu insistia em reabrir.
            Sunny abriu os olhos quando beijei sua têmpora, pedindo perdão em silêncio. Para ela e para Jodi.
            — O que foi? Como está Jeb?
            — Está bem — Ouvi-a respirar aliviada, embora ela não soubesse exatamente a gravidade da situação. Resolvi contar os detalhes, testando se ela estava realmente acordada. Talvez pudéssemos conversar um pouco a respeito. Talvez eu pudesse pedir desculpas. — Ele aceitou dividir a cabeça com Logan e eles estão indo para o hospital agora.
            — Dividir a cabeça?
            Mas quando comecei a explicar, ela já tinha adormecido de novo. Sunny sempre dormiu como uma pedra, como se houvesse um pequeno interruptor em sua cabeça equipado apenas com o modo “desligar”. Sorri um pouco. Nessa parte ela e Jodi sempre foram exatamente iguais. Mas só nessa parte.
            Acho que era por isso que eu nunca tinha confundido as duas, apesar de tudo. Nunca consegui. Porque Sunny é suave, delicada e é o tipo de criatura com a qual ninguém pensaria que eu pudesse lidar. Nós combinamos tanto quanto um elefante com uma loja de cristais. Mas Jodi era igual a mim. Esquentada, boca suja, nunca levava desaforo para casa. O tipo de garota que falava o que pensava e fazia o que queria sem se importar com mais nada.           
            Eu nunca deixaria de amá-la. E a falta dela nunca deixaria de doer.
            Mas eu também amava Sunny. E isso me curava. Fechava os cortes em meu coração.
            Dor acontece. E não há nada que a gente possa fazer a respeito. Mas se esperar tempo suficiente, você pode vir a amar as cicatrizes. As minhas, pelo menos, me faziam parecer um cara melhor. Na maioria do tempo.
             





[1] Na verdade, a frase é atribuída ao romano Júlio César, mas Kyle não era exatamente um bom aluno.

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