Capítulo 7 - Juntos
If this is to end in
fire
Then we shall burn
together
Watch the flames climb
higher into the night
Calling out father,
oh, stand by and we will
Watch the flames burn
on and on
The mountainside
And if we should die
tonight
Then we should all die
together
(I See Fire – Ed Sheeran)
Logan
— E depois o quê? Nós apontamos uma
arma para a cabeça de algum Curandeiro e o obrigamos a fazer o procedimento? —
provocou Kyle. — Se ele não se mijar de medo antes... Pode dar certo. Até
alguém apertar algum botão de pânico maluco e 458 buscadores aparecerem para
nos pegar... É. Eu acho mesmo que isso pode dar certo.
— Kyle, agora não é hora para ironia
— Ian tentou corrigi-lo. Inutilmente.
— Tem razão. Devo guardar todo o meu
estoque de cinismo pra dizer para Almas apavoradas que eu não sou um humano com
uma arma apontada para um deles.
— Ninguém falou em apontar uma arma
para eles. Logan tem um plano, não é? — disse Melanie, dirigindo-me um olhar
esperançoso.
— Eu tenho — garanti para tranquilizá-la,
mas se eu pudesse ser mais específico, confessaria que ainda não, pelo menos
não um plano completo e sem falhas. Eu
estava, na verdade, formulando-o naquele exato momento, ocupando minha mente
com a análise de todos os possíveis reveses e de como contorná-los. Seria útil
contar com a ajuda dos outros para isso, sem dúvida. Mas eu conhecia o
suficiente dos humanos para saber que às vezes era muito mais importante
parecer confiante do que ter argumentos. O medo que eles sentiam poderia
facilmente desbancar qualquer plano, antes mesmo que ele tivesse uma chance de
ser posto em prática. E, francamente, eu podia entender isso bem, já que estava
tentando não me deixar derrotar por minha própria antecipação do quanto as
coisas podiam dar errado.
— Sahuarita — disse eu, porque
precisava explicar que já tinha, pelo menos, uma boa ideia do que fazer. — Fica
no mesmo condado de Tucson, o que significa que fica perto daqui. Nós já
estivemos lá uma vez, durante uma incursão. É uma cidade pequena, por isso evitamos
visitá-la com frequência, mas é grande o suficiente para não sermos
reconhecidos como forasteiros assim facilmente. Será madrugada, talvez 3 horas
da manhã, quando chegarmos lá. A Instalação de Cura é um lugar pequeno, pouco
mais que uma clínica, e provavelmente estará vazia nesse horário.
Uma luz se acendeu nos olhos de
Estrela quando mencionei a cidade. Na verdade, tinha sido ela quem estivera lá,
há cerca de dois anos, quando suspeitou que estivesse grávida e procurou uma
Instalação para confirmar. Era ela quem tinha me dito que o lugar era pequeno,
e que devíamos mantê-lo em mente no caso de um dia precisarmos conseguir
remédios rapidamente. Então, bem, acho que o momento chegou, embora precisemos
de algo mais complicado do que poucos frascos que possamos roubar.
— Haverá alguém na recepção e um
Curandeiro para o caso de emergências — disse ela em meu apoio, tentando
resgatar tudo o que se lembrava sobre a dinâmica noturna das Instalações de
Cura. — Talvez alguém trabalhando na limpeza, algum aprendiz que tenha ficado
para trás, dando assistência a alguém. Mas não creio que haja mais do que
quatro ou cinco pessoas transitando por ali às 3 da manhã. E a viagem não é
muito longa, Jeb pode aguentar. Não precisamos nos preocupar que eles não
tenham o necessário, porque todas as Instalações são perfeitamente equipadas,
por menores que sejam. Pode ser uma boa solução.
— Certo. Nós vamos precisar de
alguém que entre primeiro e alegue algum mal-estar simples, algo que possa ser
resolvido rapidamente, apenas para checar quantas pessoas estão lá dentro.
Depois, criaremos uma distração.
— Eu posso fazer isso — disse Mel,
ansiosa por ajudar. — Posso quebrar algo, fazer barulho e depois sair correndo
para longe.
— De jeito nenhum — Jared e eu
dissemos em uníssono.
Melanie nos olhou com sua expressão
costumeira de desafio. Ela não aceitaria o que chamava de “baboseira de macho
protetor”.
— Eu posso cuidar de mim mesma
melhor do que todo mundo aqui. Fiz isso durante anos e eu era só uma criança.
Então, só pra constar, valeu a tentativa, mas não preciso que vocês me
protejam. Vou fazer o que tiver que fazer para ajudar e pronto.
— Não se trata disso, Mel — objetei,
porque, de fato, não se tratava. — Mas qualquer distração que um de vocês,
humanos, possa causar, se esgotará rapidamente. Nós vamos precisar de mais
tempo do que isso. Algo que não só os atraia todos para fora, como também que
os mantenha ocupados por vários minutos. Além do mais, não podemos arriscar que
um de vocês seja pego. Nós podemos sustentar qualquer mentira, simplesmente
porque somos Almas, mas a presença de humanos não é algo que possamos encobrir.
— Mas você e Estrela não vão
conseguir fazer isso sozinhos — insistiu Melanie.
— Eu sei. É por isso que vamos
precisar que ao menos uma das garotas nos ajude — respondi, tendo em mente
incluir Sunny e Peg em meus planos, já que humanos só tornariam tudo mais
perigoso do que já era.
— Nem pensar — Kyle vociferou, sem
conseguir conter sua irritação, mesmo que Doc olhasse feio para ele.
Ian, pelo menos, teve a decência de
respeitar o hospital e a delicadeza de não se opor diretamente a mim ou a Mel,
ciente de que aquilo provavelmente geraria um enfrentamento desnecessário
naquele momento, mas sua postura e expressão deixavam claro que ele concordava
com o irmão. No que dependesse deles, nenhuma das duas teria qualquer coisa a
ver com aquela aventura arriscada. E foi quando me dei conta disso que,
finalmente, minha própria irritação veio à tona e já não pôde mais ser contida.
— Bem, acho que a decisão pertence a
elas, não é? Não a vocês. Eu entendo o instinto de protegê-las. Acreditem, das
coisas deste mundo essa é a que mais faz sentido para mim, e, por isso mesmo,
se eu achasse que uma delas correria perigo, iria sozinho. Ou vocês acham que
eu arriscaria a segurança de Peg ou Sunny? Acham que eu arriscaria a vida de
minha própria mulher, da mãe de minha filha?
— Não, você não arriscaria — disse
Ian, sendo razoável como Kyle provavelmente não seria capaz de ser, ainda que
soubesse o significado da palavra. — Mas você não está agindo como você mesmo,
Logan. Quando se trata de Jeb, você perde o foco. E por mais que ache que tem
as coisas sob controle, não pode negar que isso é perigoso.
— Nenhum de nós está em perigo de
verdade, a menos que esteja acompanhado de um humano. Por mais que vocês não
gostem de admitir isso, sabem que é verdade.
— Certo, nada de humanos, então —
disse Kyle. — Pensando bem, você até que tem razão. Três ou quatro Almas
poderiam fazer isso dar certo, mas o que vocês pretendem fazer com relação a
Jeb? Afinal, o propósito da coisa toda é colocá-lo lá dentro, mas não é como se
desse para disfarçar quem ele é.
— Bem, esse é o objetivo da
distração, não é? — interferiu Mel. — Nós o colocamos lá dentro sem ninguém
ver. Estrela faz a cirurgia e depois nós damos um jeito de tirá-lo de lá.
— Olha, Mel... — Jared hesitou por
uns segundos, depois pareceu tomar coragem de dizer algo que ele sabia que não
seria bem recebido. — Logan... Eu entendo o empenho de vocês, mas nenhum dos
dois está sendo racional. Eu também me importo com ele, não quero... — ele
bufou e balançou a cabeça, hesitando mais uma vez. — Não quero que aconteça o
pior, mas alguém precisa pensar como Jeb pensaria. E ele não ia querer que
arriscássemos todo mundo por ele.
— Então a gente senta e espera ele
morrer. É isso? — retrucou Melanie.
Não.
—
Pessoas morrem, filha — uma voz fraca, mas resoluta decretou.
Enquanto discutíamos, Jeb tinha acordado
e ouvido parte da conversa, provavelmente o trecho em que Jared apelava para
que fôssemos racionais e não colocássemos o grupo todo em risco por causa de um
só.
— Não tente se sentar, Jeb, você
precisa ficar deitado por causa da circulação — aconselhou Doc, já ao lado dele
quando meu amigo tentou, imprudentemente, içar o corpo sobre o catre, caindo
para trás de novo imediatamente.
Jeb se esforçou para falar. Ele
parecia pálido e ofegante. O esforço que tinha tentado fazer o exaurira e sua
respiração era curta, embora sua expressão não denotasse dor.
— Desistam. Eu não vou... — Mais
esforço e mais dificuldade em respirar. Doc e Estrela estavam ao lado dele, mas
não havia nada que pudessem fazer. Era quase penoso de olhar. — A lugar nenhum...
Não vou a lugar nenhum.
Simples. Direto. Preciso. Um
perfeito Stryder. O mesmo velho ganso teimoso de sempre.
O mesmo velho teimoso que não
chegaria ao dia de amanhã.
— Bem, que pena que você não esteja
em condições de fazer nada para evitar. Porque eu sim estou em condições de
fazer o que quiser. Saímos em 20 minutos. Estrela, esteja pronta.
Beijei-a suavemente na testa,
sentindo que ela assentia em meu benefício, mas que estava preocupada. Eu tinha
que encontrar uma maneira realmente eficiente de solucionar tudo, e essa ideia
me sobrecarregava. De repente, aquele lugar, aquelas pessoas, a iminência das
coisas... Tudo aquilo foi demais para mim e tive que me afastar.
Ouvi Jeb chamar meu nome. A voz
fraca não tornava a demanda do chamado menos exigente e meu primeiro instinto
foi o de atendê-lo. Mesmo assim, não voltei atrás. Pela primeira vez desde que
o conheci, eu sabia o que ele ia dizer. E pela primeira vez, eu não queria
ouvir.
******
Entrei em meu quarto pretendendo
arrumar às pressas uma bolsa para a incursão. Tinha que pegar a roupa que me
identificasse como Buscador, além de uma outra mais comum, porque eu ainda não
tinha certeza do que seria melhor. Minha arma não ficava mais aqui desde que
Lindsay começou a andar e a mexer em tudo. Então eu precisava correr ao esconderijo
alto entre as pedras do depósito, onde passamos a guardá-la.
Também precisava ir até Peg e Sunny,
se é que Ian e Kyle já não teriam feito isso, e eu provavelmente teria que
enfrentar a resistência deles novamente. Mas que fosse. Eu o faria. Ter que me
despedir de minha filha é o que seria mais difícil. Neste exato momento, eu
precisava do sorriso de Lindsay, da vozinha dela em meu ouvido, quase tanto
quanto de ar, mas, ao mesmo tempo, desejava que ela não estivesse acordada para
que eu não tivesse que explicar. Por uma razão que arranhava os cantos de meus
pensamentos, mas que eu não estava pronto para admitir, simplesmente pareceria
errado demais dizer que voltaria logo.
E, então, depois de tudo, eu
certamente teria que dizer a Melanie que ficasse, argumentar que ela seria de
mais ajuda aqui, onde poderia coordenar, ao lado de Jared, uma evacuação de
emergência. Uma fuga. Caso as coisas dessem errado.
O que eu estava fazendo?
As coisas podiam dar errado. E
muito. Meu plano era todo cheio de furos e só ia até certo ponto. Peg podia
entrar, alegando uma enxaqueca ou algo assim, andar pelos corredores com alguma
desculpa e checar quantas Almas teríamos que enganar. Mas não havia como
garantir que não houvesse alguém que lhe escapasse e que poderia se tornar um
problema no momento decisivo, como um Curandeiro fechado em um quarto tirando
um cochilo, por exemplo.
Eu podia causar danos sérios a mim
mesmo, simular um acidente que me fizesse sangrar o suficiente para desmaiar.
Então Sunny causaria uma comoção, pediria socorro para o irmão que tinha caído
no estacionamento antes de conseguir completar o percurso até a entrada. Mas
como garantir que todos os presentes sairiam em meu auxílio? E o quão prudente
era estar desacordado quando eu era a principal linha de defesa das garotas,
caso houvesse Buscadores por perto?
Jeb seria levado para dentro quando
Sunny tivesse conseguido atrair as Almas para fora e a entrada ficasse livre.
Alguém forte teria que se encarregar de transportá-lo, provavelmente Kyle ou
Ian, já que eu não imaginava nenhum dos dois ficando aqui enquanto suas
mulheres estivessem lá fora. Estrela faria o que fosse preciso e eu,
recuperado, encontraria uma maneira de tirá-los de lá. Supondo que tudo
funcionasse do jeito previsto e eles não fossem descobertos antes do tempo. Mas
e se caso isso acontecesse, o que faríamos? O velho plano suicida que eu tanto
rechaçara? Ou eu seria capaz de agir com violência contra outras Almas, meus
semelhantes?
Era insustentável. Meu suposto plano
era ingênuo, incompleto e absurdo.
Talvez nós conseguíssemos, mas
talvez eu condenasse a todos. E eu não podia. Jared tinha razão, nós não
podíamos. Mesmo que do outro lado da balança pendesse a vida daquele que salvou
a todos nós.
Eu podia entender a lógica disso,
deste equilíbrio obscuro entre o que tem valor para nós e o que é realmente
importante no quadro geral das coisas. Avaliar esse quadro e agir de acordo com
ele estava na natureza de minha espécie. Ainda assim, eu não era mais o mesmo e
não conseguia mais aceitar que tivéssemos que fazer esse tipo de escolha. O
valor de um indivíduo em oposição ao valor do grupo. A resposta era óbvia até
mesmo para um humano, mais acostumado à dureza de escolhas egoístas. Mesmo
assim, o que era claro como água nunca me pareceu tão errado.
Como poderia ser certo simplesmente
cruzar os braços e deixá-lo partir?
Sentei-me no chão, no espaço
apertado entre a pequena cômoda e o berço que Jeb fez à mão para Lindsay, antes
mesmo de ela nascer. Não vi quando minhas mãos, movendo-se além de qualquer
comando, se fecharam em punhos, mas senti-me poderosamente ciente da frustração
se acumulando, prestes a explodir. Eu queria bater em alguma coisa, socar a
primeira superfície que pudesse alcançar. Não pude evitar que os nós dos dedos
de minha mão esquerda se espatifassem contra a madeira da lateral da cômoda, a
pele ralando-se com a força do impacto, a dor se espalhando pelos ossos delicadamente
intrincados da mão.
Era algo estúpido de se fazer. A
primeira coisa que alguém que já foi obrigado a usar os punhos aprende, é que
existe só uma coisa que dói quase tanto quanto levar um soco: ter que desferir
um. Na academia de polícia aprende-se a maneira certa de se fazer isso, um
jeito de causar menos dano, mas eu não estava interessado em me preservar.
Talvez a dor trouxesse alguma clareza. Talvez pudesse suavizar o que eu sentia
por dentro.
— Você não está pelado aí nem nada,
né? — A voz irritante ribombou como um trovão, e muito me surpreendeu que não
tivesse acordado todos nos quartos ao redor.
— Saia daqui, Kyle!
— Estou entrando. E é bom você estar
decente senão quebro sua cara. — Ele já estava praticamente dentro de meu
quarto quando disse isso, e olhou para a madeira quebrada com desdém, como se
aquilo parecesse normal para ele. — Canhoto, é? Nunca tinha reparado. Você
deveria ter usado o travesseiro ou batido no colchão. É meio ridículo, mas pelo
menos a raiva vai embora sem levar sua carne junto, imbecil.
— Gentil de sua parte se preocupar.
Agora saia daqui.
— Não estou preocupado. Mas Estrela
está. E todo mundo também.
— E dentre todos, você foi a escolha
mais óbvia para vir até aqui me dissuadir? Estranho.
— Escolha? — Kyle riu alto. — Não
houve bem uma convenção para decidir quem vinha ver como a boneca estava. Seu
chilique não é exatamente prioridade. Se você não notou, temos problemas
maiores.
— Não, nem tinha notado. Ainda bem
que você me avisou. Mas e agora? Vai começar logo a despejar as razões pelas
quais devemos deixar Jeb morrer, ou vai sair daqui e me deixar pensar direito?
— Certo. Porque você está tendo
muito sucesso nisso. Obviamente. — Ele não precisava apontar para as lascas de
madeira no chão ou para meu estado deplorável e confuso para que eu entendesse
a provocação, mas mesmo assim o fez, porque aquele era Kyle O’Shea, afinal de
contas, e ele não perderia a oportunidade. — Bem se vê que você está com tudo
resolvido nessa sua cabeça oca.
— De qualquer jeito, eu sou o único
que parece disposto a tentar.
— Aham, Superman, porque sem você o
que seria da humanidade? Não sabia que Almas também podiam vir de Krypton.
Eu ia perguntar do que ele estava
falando, mas a verdade é que não havia energia em mim, ou vontade, ou neurônios
para serem gastos com as brincadeiras inoportunas de Kyle, então simplesmente
fiquei em silêncio.
— Você não sabe mesmo pedir ajuda,
não é? — ele continuou.
— Quê!? Você veio... me ajudar!?
— De jeito nenhum. Não vou deixar
você sair daqui com esse seu plano capenga. Acredite, cara, não estou só
cuidando de todo mundo, estou protegendo você de si mesmo também.
Ele tinha se esborrachado na minha
cama, agindo como se o lugar fosse dele. A única coisa que me impedia de
ignorar essa conversa estranha e ir embora carregando Jeb era que Kyle estava
entre eu e a porta. Mas do jeito que as coisas estavam indo, eu passaria por
cima dele sem nenhum remorso, se ele não tivesse se sentado e continuado a
falar:
— Olha só, eu sei que você não está
nem aí quando eu digo que não vou te deixar sair, porque você vai tentar de
qualquer jeito. Mas você também sabe que eu não vou sair daqui, não importa o
que você faça. Então só cala a boca e escuta, tá?
— Não tenho tempo para...
— Eu disse pra você calar a boca.
Tenha um pouco de respeito, porque eu estou tentando dizer uma coisa e já é
difícil o suficiente admitir para mim mesmo, tanto mais deixar você saber...
Eu ia articular alguma coisa em
resposta. De fato, abri a boca para fazê-lo, mas não encontrei nenhuma palavra.
Eu podia escutá-lo por alguns segundos ou podia derrubá-lo, ir embora e me
arrepender depois. No fim, optei por escutar.
— A verdade é que... eu respeito você. Admiro sua lealdade. Sei
que você provavelmente está pensando em me dar uma gravata ou um soco na cara,
qualquer coisa que te ajude a passar por mim, e eu gosto disso. Gosto de gente
que sabe o que precisa fazer e faz sem pestanejar. Como eu.
Ele ficou em silêncio por um
segundo, deixando suas palavras assentarem em minha consciência, ou talvez
pensando no que diria a seguir. Eu não sabia o que dizer, exceto que entendia o
que ele estava falando. Por menos que eu gostasse de admitir, via muito de mim
em Kyle. Então ele deu um suspiro pensativo, daqueles que ficavam muito
estranhos nele, depois continuou:
— Você sabe sobre Jodi, não é? O que
eu fiz antes de vocês chegarem aqui?
É claro que eu sabia a história
sobre como Sunny tinha vindo parar neste lugar. Kyle certamente estava ciente
disso e a pergunta era, obviamente, retórica. Mesmo assim, ele parecia esperar
por uma resposta, então assenti, confirmando.
— Acho que isso faz de mim o maior
especialista local em pôr as pessoas em perigo, porque as coisas podiam ter
dado totalmente errado e eu sabia disso. Mesmo assim, não pensei em meu irmão
ou em mais ninguém aqui quando fiz aquilo. Simplesmente ignorei todos os
riscos.
Kyle fez outra pausa durante a qual
eu só fiquei observando aquele homem que, de uma forma completamente imprevista,
tinha se tornado uma espécie de “irmão de armas”, um amigo na acepção mais
tipicamente humana da palavra. Pensei um pouco no que estava ouvindo enquanto o
analisava. Eu sempre soube que ele era mais inteligente do que sua brutalidade
ensaiada deixavam antever, mas ele nunca tinha me parecido tão sofrido, nem
muito menos tão centrado quanto agora.
— Gosto de pensar que aprendi a
lição, mas a verdade é que eu tive sorte. E a sorte é uma péssima professora.
Quando penso naquele dia, quando penso que Sunny não estaria aqui e que eu
nunca teria certeza de que Jodi se foi de verdade, eu sei, sem precisar ir
muito fundo, que faria tudo de novo. E não tem um dia em que eu não pense em
fazer o mesmo pelo meu pai...
— Ele também se foi, Kyle. Eu sinto
muito, de verdade. Mas...
— Eu sei, eu sei. Tudo o que eu
teria seria outra Alma sequestrada num corpo do qual eu não conseguiria dispor.
Eu sei. Ian e eu já tivemos essa conversa muitas vezes. Mas o meu ponto é: eu
sei o que você está sentindo. Talvez eu seja a pessoa que mais entende você
neste momento. E tenho certeza de que se eu não te ajudar, você vai fazer uma
besteira como a que eu fiz, e como a que eu penso em fazer todos os dias, e
pode ser que você não tenha tanta sorte quanto eu. Pode ser que você coloque
minha família e a sua em perigo. Meu sobrinho Johnny e a Lindy, e todo o resto
das pessoas que amamos e até as que não gostamos tanto.
— Então você veio aqui para... —
Pensei por um momento, mas a verdade é que eu estava cansado, confuso e
assustado, minha mente não estava trabalhando em seu melhor. — O que você veio
fazer aqui, afinal?
— Vim impedir você de arriscar todo
mundo e te ajudar a pensar num jeito de salvar o seu velho.
Meu
velho?
—
Bom, um pouco de ajuda poderia ser útil. Então acho que... obrigado? — testei,
meio sem graça, mas a palavra pareceu boa, afinal. Adequada. Momentos assim
eram estranhos pra mim, mas era bom sentir que havia um amigo disposto a
ponderar comigo, mesmo que pensar em Kyle dessa maneira sempre parecesse um
pouco insólito. — A verdade é que essa conversa toda me desarmou e... eu
realmente estou me sentindo sozinho o suficiente para não ser o cara orgulhoso
que posso ser às vezes.
— Ah, viu? Eu quase gosto de você quando
não está agindo como um babaca arrogante e metido a autossuficiente.
Tive que rir dessa vez. E o som saiu
raspado de minha garganta como se fosse a coisa mais estranha que meu corpo
podia produzir. Acho que fazia tempo que eu não ria.
— Tarde demais para “eu quase gosto
de você” — retruquei. — Você acabou de declarar seu amor por mim. É meio que
irreversível quando se é assim tão romântico!
Eu
realmente estou brincando quando o mundo está desmoronando ao meu redor?
Tirei um segundo para ficar atônito
comigo mesmo. Kyle era a única pessoa que conseguia esse efeito. Ele era capaz
de me levar da irritação profunda à brincadeira inconsequente e atípica de mim
em segundos. Eu não sabia se isso era bom ou ruim, mas, no momento, me fez
sentir melhor.
— Eu disse que te respeitava, nunca
disse que gostava de você, seu merda! E se você contar a alguém que eu falei
essas coisas, eu nego e depois quebro sua cara.
— Bom, acho que, nessas
circunstâncias, tentar quebrar minha
cara seria o mesmo que confessar que me ama. Mas tudo bem, cara. Eu respeito
isso. E “respeito” você também. — Fiz questão de fazer aspas no ar para
provocá-lo, e então completei: — Às vezes. Quando você não está sendo um babaca
arrogante e metido a autossuficiente.
— Rá rá! Então somos iguais, é isso?
Pena que você não consegue ser engraçado como eu. E nem criativo, porque,
francamente, esse seu plano é uma merda!
— Eu sei — confessei, voltando a me
sentir aturdido diante de tanta impotência.
— Bom, então vamos fazer com que ele
deixe de ser tão ruim. A coisa toda de entrarmos escondido até que não é má
ideia, o problema é que se você vai estar ocupado distraindo os caras lá na
frente, algum de nós vai precisar entrar carregando Jeb, porque ele não vai
conseguir chegar sozinho. Mas mesmo que eu consiga entrar e sair sem ser
notado, Jeb ainda estará lá dentro. Estou supondo que no fim ele vai estar bem
o suficiente para sair com as próprias pernas, então o humano que entrar com
ele, provavelmente euzinho aqui, não vai precisar ficar lá dentro. Só que
quando ele estivesse saindo, teríamos que arrumar uma nova distração.
— Ou outra saída — conjecturei. — Se
ao menos houvesse uma saída lateral, ou nos fundos... Se não souberem que vocês
estão lá dentro, não há motivo para vigiarem uma porta menos utilizada, por
exemplo. Aliás, não há motivo para nem um tipo de vigilância.
— É uma possibilidade, mas para isso
teríamos que garantir que conseguiríamos entrar sem problemas. E que também não
seríamos pegos em flagrante enquanto Estrela estivesse trabalhando. Eu não
teria problemas em deixar alguém desacordado, se for preciso. Mas isso
complicaria consideravelmente as coisas. Principalmente porque eles saberiam
que há humanos sendo ajudados por Almas em algum lugar das redondezas. Eles
poderiam vir atrás de nós depois.
— Isso sem contar que você estaria
sozinho para garantir a sua segurança e a de Estrela e Jeb. Se você for pego de
surpresa e não conseguir reagir...
— Pouco provável — Kyle me
interrompeu.
— Bastante provável — continuei. —
Tanto quanto eles chamarem ajuda quando perceberem algo errado e vocês acabarem
cercados por Buscadores.
— E se você o levasse dizendo que
Jeb é um de vocês? Ele tem a cicatriz na nuca. Todos nós fizemos uma por
precaução. Assim ele entraria sem problemas, nós não precisaríamos nos
preocupar em sermos flagrados em plena cirurgia, e poderíamos reservar a
distração para a hora de irmos embora.
— É arriscado também. Em algum
momento eles o despertariam.
— E assim que ele abrisse os olhos
estaria acabado. Verdade.
Kyle soltou um palavrão qualquer e
eu deixei escapar o ar num bufo de frustração. Parecia não haver saída do
labirinto em que nossas mentes perambulavam, as paredes se fechando bruscamente
cada vez que tentávamos nos iludir com uma solução.
De todas as coisas com que me
defrontei, de todas as coisas com que tinha aprendido a me preocupar, a
irreversibilidade da morte para os humanos era a pior delas. Quando chegar a
hora de meu hospedeiro eu ficarei com ele, enfrentarei essa inevitabilidade da
qual não se pode escapar indefinidamente. É uma decisão que todos nós daqui
tomamos, assim como Peg antes de nós, porque este é nosso lugar no universo e
não podemos sobreviver a ele. Estou em paz com isso. Mas isso não quer dizer
que aceitei não lutar quando se trata dos outros, quando se trata de uma vida
que poderia ser salva com tanta facilidade.
Tudo poderia ser muito fácil. Tudo deveria ser muito fácil. Se Jeb fosse um
de nós, o problema já estaria resolvido. Ninguém questionaria seu direito de
existir, ninguém tentaria torná-lo o que não é ou o consideraria uma ameaça a
ser eliminada. Conhecê-lo não teria importância, porque ele seria como qualquer
outro de nós. E era aí que estava o grande paradoxo, porque conhecê-lo era
saber que ele precisava viver, que este lugar e as pessoas daqui precisavam
dele. Que eu precisava dele. Mas sua
humanidade, aquilo que, ironicamente, o tornava especial, era o que o mataria
no final das contas.
Se ao menos...
— Kyle!
Percebi que tinha quase gritado
quando ele deu uma espécie de pulo ao levantar os olhos perdidos para mim.
Levantei-me finalmente do canto onde tinha estado por tanto tempo derrotado.
Não havia mais tempo a perder. Tudo estaria resolvido ao amanhecer.
— Estava na nossa cara o tempo todo!
— De uma hora para outra, era como se tudo que antes era impenetrável e
impossível fosse razoável e simples, exequível. Como se as luzes de uma cidade
vista ao longe se acendessem todas de uma única vez após um blecaute. —Como foi
que não vimos isso antes? Céus! Quer dizer, era tão fácil! Bom, fácil, não. Mas
é a única solução. E era tão óbvio!
— Quer se acalmar e me dizer do que
está falando? O que estava na nossa cara o tempo todo?
— É simples: se nós não podemos
levar um humano até lá, não levaremos. Eu vou no lugar dele.
— Cara, você ainda está falando
grego pra mim. Eu pensei que o problema todo fosse que o Jeb tem que estar lá
por causa da máquina de circulação, ou sei lá o quê.
— Bem, o corpo dele precisa estar.
A expressão de Kyle passou
gradativamente da neutralidade para a descrença, e então para a estupefação.
Fazia sentido, ele não podia negar. Daria certo, isso também era difícil de
contestar. Mas só porque era óbvio não queria dizer que não fosse a ideia mais
maluca que eu poderia ter.
— Meu Deus. Você tentando
convencê-lo... — Kyle riu alto, quase gargalhando. — Por favor, diga que vai me
deixar ver isso.
De fato, eu teria uma conversa
difícil pela frente. Mas não estava nem perto de ser a pior coisa desta noite.
E desta vez eu não seria demovido por nada.