terça-feira, 26 de abril de 2016

CD2 Cap 22

Capítulo 22 — Sobre Espelhos ou Janelas

Working on the future
Floating on fate
Faced the circunstances
Cleared up the shades, so
(...)
And I've tried,
Maybe you deny
Words of peace
For the future of our lives
Bring to me
Something else than a broken heart
I won't wait 'till my life is wasted
... maybe I wanna die some other day

(Make Believe – Angra)

Ian
            Sempre tentei não me preocupar demais com o futuro. Afinal, meio que perdeu o sentido quando todo o controle saiu de nossas mãos, exatamente na época em que o mundo deixou de ser nosso.  A verdade é que essa não é o tipo de postura que se pode manter por muito tempo quando se é pai e outro ser ocupa quase todos os seus pensamentos e prioridades, até mesmo sem que você perceba. Mas ainda assim, eu dava meu melhor.
            Em nome do máximo de tranquilidade que pudesse alcançar, eu tentava ser o cara que não se incomodava em ficar preso no hotel ou escondido no carro quando, durante as incursões, Peg levava John para conhecer o mundo das Almas, para andar livre, mesmo que só por algumas horas, pelos caminhos que eu não sabia se ele poderia herdar. Não era fácil, mas eu resistia bravamente aos apelos dele para que eu fosse junto, e fazia cara de sereno quando Peg me lançava aquele olhar de quem se desculpava, porque só o que importava era meu filho. E ela, claro. Era bom saber que os dois podiam viver isso juntos, mesmo que o futuro fosse sempre tão incerto.
            No entanto, pensar que esse era o máximo que eu podia fazer era tão difícil quanto uma equação matemática complexa, daquelas que seria preciso admitir que eu não era inteligente o bastante para resolver. Por isso fiquei feliz que alguém, mesmo que não pudesse ser eu, estivesse disposto a resolver aquelas contas complicadas, porque, mais uma vez, meu filho era mais importante que meu orgulho.
            — Você está realmente me dizendo que as Almas pretendem deixar o planeta? — perguntei a Logan, agora que ele e sua família estavam de volta.
            — Não todas, e nem imediatamente. Mas sim, pretendem.
            — Isso não faz sentido — reclamou Kyle, e eu me encolhi imaginando que ele pudesse falar alguma besteira ofensiva, mas a verdade é que também me parecia muito estranho. — Depois de tudo, eles vão simplesmente jogar fora os corpos dos humanos?
            — Não é assim! A intenção é respeitar o ciclo de vida natural dos hospedeiros e depois partir, porque entendemos que o aumento da população humana vai, a longo prazo, tornar uma permanência em massa insustentável.
            — Eles ficarão até os corpos hospedeiros morrerem, então? Porque não tem a cara de pau de tomarem os corpos dos próprios filhos. Falando claramente, é isso que você quer dizer?
            Já que, claro, meu irmão era muito sutil quando falava claramente.
            — As coisas são diferentes agora — Logan se limitou a afirmar, mas todo mundo entendeu. Ele estava confirmando o que Kyle tinha dito. — Na hora certa, os planos de evacuação em massa serão expostos para a sociedade humana.
            — É a sobrevivência da espécie de vocês — lembrou Doc. — Não posso acreditar que vocês a comprometeriam, ainda que em nome de sua descendência híbrida.
            Eu detestava os termos que Eustace — esse nome nunca perdia a graça — usava de vez em quando. “Descendência híbrida”! Como se as diferenças fossem o foco.  Considerando que John era um desses “híbridos”, eu podia dizer que uma vez que se forma uma família, os outros fazem parte de você, como órgãos do seu corpo ou algo assim. Então, embora parecesse inusitado a princípio, não havia nada de estranho nas Almas se sacrificarem pelos humanos. Pais sempre seriam pais.
            — Nossas mães têm que morrer para nos dar a vida, Doc. É natural para nossa espécie priorizar a descendência e o bem comum — explicou Peg, ecoando meu pensamento.
            — Além do mais — completou Logan —, nossa sobrevivência não será comprometida. Há outras colonizações em potencial, além das já estabelecidas. A saúde do planeta está assegurada, mas consideradas as novas informações que temos, a permanência de todos causaria um problema de sustentabilidade, de qualquer maneira.
            — Novas informações? — Jeb perguntou, imediatamente notando que as notícias não paravam por aí.
            Estrela assumiu a palavra, nitidamente se preparando para o que parecia uma longa exposição:
            — Quando você ficou doente, os Curandeiros me chamaram a atenção por você ter ficado tanto tempo não apenas sem fazer qualquer exame, mas por não ter aproveitado as técnicas novas. Na ocasião não pude perguntar, parecia muito óbvio para ela e eu fiquei com medo de estragar nosso disfarce revelando que não estava atualizada com a ciência médica. Mas no tempo que passamos em Nova Orleans, pude pesquisar devidamente. O que eu descobri foi que, movidos pela escassez cada vez maior de hospedeiros, nossos cientistas vêm trabalhando em técnicas apuradas para deter o envelhecimento, e estão conseguindo ótimos resultados. Somado aos recursos a que todos têm acesso agora: medicina avançada, alimentação saudável, ausência de acidentes e de problemas com saneamento básico; isso aumentou e muito a expectativa de vida. Todas as causas naturais de morte foram praticamente extintas.
            — Exatamente de quanto estamos falando? — perguntei.
            — No mínimo mais cinquenta anos para cada pessoa, dependendo da idade em que os tratamentos começarem e de quantas vezes forem utilizados.
            — Espantoso! — disse Doc, mas apesar de tudo não conseguimos ficar assim tão empolgados. No final, isso queria dizer que essa tal retirada demoraria muito mais tempo do que podíamos imaginar.
            — Não sei, ainda me parece uma coisa meio incoerente — opinou Jared. — E incrível também, pensar que darão o direito de escolha para os humanos. Com essa história de respeitar o ciclo de vida dos hospedeiros, como vai funcionar? Não faz muito sentido.
            — Os hospedeiros estão sendo conservados com esses tratamentos, mas muitos optaram por não se submeterem a eles. Não são todas as Almas que conseguiram se adaptar à Terra, então muitos pretendem partir de qualquer maneira — explicou Logan. — A escolha a que os Representantes se referem é em relação aos que querem ficar, à possibilidade de manter uma sociedade mista pelo tempo que os tratamentos permitirem, ou se vão optar pelo fim natural dessa convivência. Acontece que estamos falando agora de humanos cujas famílias são compostas principalmente por Almas. Pais, avós, amigos, talvez até mesmo cônjuges futuramente. Então as perspectivas são otimistas para aqueles que gostariam de permanecer aqui. O que estamos buscando, essencialmente, são maneiras de conviver de forma mais equilibrada, com regras que façam sentido para ambos os lados. Ou, melhor ainda, alcançar um estado em que as coisas não sejam vistas mais nesses termos e estejamos todos de um lado só.
            — Seria maravilhoso — disse Peg, e tive certeza de que ela estava se permitindo ir mais longe nesse sonho, pensando se, de algum modo, eu também poderia me incluir nele. De repente, seu semblante retomou o tom realista. — Mas e quanto à superpopulação? O planeta não pode comportar tantas pessoas assim, não quando sua expectativa de vida é tão grande e os nascimentos continuam a acontecer.
            — Sim, essa é questão a ser levada em conta. Nossa tecnologia possibilita que qualquer tipo de solo se torne fecundo e habitável, a ausência de corrupção e de desigualdades sociais permitem a prosperidade de todos. Ainda assim, a preocupação com a sustentabilidade permanece. É por isso que muitos se recusam a prolongar seu tempo de vida. E é por causa disso também que mesmo que a criogenia nos permita conservar hospedeiros se for preciso, não há mais novas levas de Almas chegando ao planeta. Eventualmente, mesmo com o prolongamento da vida apenas os humanos vão prosperar.
            — A verdade — Estrela completou — é que as técnicas de conservação foram inventadas para os humanos. Porque muitas Almas não conseguiam lidar com a ideia de que seus descendentes pudessem sucumbir em um tempo de vida em que talvez elas ainda estivessem aqui. A questão da mortalidade tem sido complicada de lidar. Este planeta impõe desafios inéditos a nós. Estamos nos adaptando à medida que acontecem. E também tentando nos antecipar a alguns.
            — O fato é que tudo ainda é muito incerto — disse Jeb. — Para nós sobreviventes não muda muita coisa. Eu gostaria de pensar que um dia poderíamos voltar para o mundo maior, para ajudar a construir essa nova sociedade que parece surgir a cada dia. Cada vez que nos adaptamos à chegada de um de vocês me fez pensar que temos muito com que contribuir, mas isso continua sendo impossível.
            — Pois eu acho que um dia podemos voltar — Logan interviu entusiasmado. — Eu estive em um Conselho, e pretendo fazer isso outras vezes, em outras cidades, me articulando com Almas que possam ser nossas aliadas. Podemos fazer isso, descobrir a existência de outras células e incentivar que os aculturados, se existirem, se infiltrem na sociedade maior...
            — Ei, calma aí, garoto! Você está ambicioso demais.
            — Não estou, Jeb. Sei que é possível, porque descobri que não são poucos que pensam como nós. Falaremos com Cal, procuraremos Fords Águas Claras, o Curandeiro que Peg julgou tão receptivo, e meus colegas Flora e David, de Nova Orleans. Não precisamos contar a eles todos os fatos, vamos ser muito cuidadosos. Mas aos poucos, bem aos poucos, podemos fazer os outros perceberem que os sobreviventes podem ser reinseridos à sociedade. Podemos ir devagar, mas devemos começar de algum lugar.
            — Eu acho que Logan tem razão. Eu me arriscaria a conhecer alguma dessas Almas e provar que não sou perigoso — disse meu irmão num rompante, como quase todas as suas ideias “brilhantes”.
            Sunny estava com as crianças, mas se estivesse conosco se encolheria diante da perspectiva. Ver Kyle argumentando pela paz era meio como a ideia de amassar pão com um rifle. Talvez até funcionasse, mas com certeza havia jeito melhor.
Jared olhou para ele e não conseguiu conter uma risada discreta.
            — Sem ofensa, Kyle. Mas acho que nem você nem eu seríamos os modelos ideais.
            — E quem você sugere, então? Eu não estou disposto a arriscar ninguém.
            Nisso ele tinha razão. Nós não podíamos tomar uma decisão como essa por ninguém além de nós mesmos, porque se desse errado...
            — Eu... Bom, em nome da ciência, é... Eu sempre quis... — Doc começou a gaguejar, incerto sobre o que queria dizer. Então Sharon, calada até então, de repente fez o que ninguém imaginava.
            — Nós faríamos isso! — ela disse. — Eu e o Doc conversaríamos com as Almas que vocês achassem que poderiam nos ajudar.
            Assim. “Almas”. Nada de ETs, alienígenas, parasitas ou qualquer coisa depreciativa. Nada de hesitação ou desconfiança. Só pura disposição em colaborar. Aparentemente.
            — Seria perfeito, Sharon — Estrela falou com suavidade, e todo mundo ficou simplesmente ali, sem ação depois disso.
Eu bem que gostaria de estar por perto quando contássemos isso a Maggie. Ou não. Dependeria da proximidade dela com uma arma.
— Vocês estão sonhando alto demais. — Jeb nos trouxe de volta à realidade. — Temos que dar um passo de cada vez. E analisar item por item desta conversa detalhadamente, até esgotar todas as possibilidades de dar errado. Não podem simplesmente abordar um estranho, ainda mais alguém que seja influente e por isso potencialmente também perigoso, e expor a existência de esconderijos, mesmo que não deem detalhes sobre eles. Vocês teriam que estar dispostos a usar de violência se não desse certo, para poderem fugir em segurança. E isso complicaria mais as coisas. Então vamos com calma nesses planos!
Logan chegou a abrir a boca para argumentar, mas fosse o que fosse que ele ia dizer morreu em sua garganta. Sharon e Kyle também pareciam querer falar, mas ninguém disse nada no final das contas. Nós sabíamos que Jeb estava certo, que ele sempre era a voz da razão que podia nos faltar às vezes.
Por um minuto, eu me deixei levar pela possibilidade de passear com meu filho e minha mulher como teria sido antes. De levar John à escola e ao treino de futebol. De ir ao cinema com Peg, mesmo que fosse para assistir àqueles filmes estúpidos que as Almas faziam.  Coisas assim, com sutis variações, devem ter passado pela cabeça de todo mundo. E não era de se surpreender que agora estivéssemos desanimados com o choque de realidade.
— Ouçam aqui, vocês não precisam ficar com essas caras de gatos que tomaram banho de água fria — Jeb tentou remendar. —  Só o que digo é que se queremos garantir que nosso esconderijo esteja aqui para voltarmos, precisamos ser cuidadosos. Apenas isso. Nunca tive medo de arriscar e não vai ser agora, diante de uma coisa que certamente vale a pena como essa, que eu iria me acovardar.
— Eu achei que era impossível ter fé de novo — disse Sharon. — Mas o fato de estarmos vivos e de ainda termos possibilidades, mesmo que sejam remotas, me faz pensar que... Bom, eu acho que temos uma chance e eu me recuso a ter medo! E quanto a vocês?
— Tio Jeb tem razão quando diz que devemos planejar bem nossos passos, mas eu estou dentro, com toda certeza!
            Ultimamente, Mel vinha aprimorando o talento dos Stryder em observar as conversas e depois dar a palavra final, e era exatamente isso o que essa frase era: uma conclusão. Só que não só dela, mas de todos nós.
            Quando Peregrina chegou, no começo de tudo, mudou nossa visão sobre o “inimigo”. De repente, nós entendemos que o outro lado podia ser um espelho, não um muro, porque as Almas sentiam, amavam e sofriam como nós. E o que Logan estava tentando nos descortinar agora era a possibilidade de transformar esse espelho em janela, provando aos outros lá fora o que nós aqui dentro já sabíamos: que éramos muito mais parecidos do que se podia imaginar. Sinceramente, se até Sharon pôde ser convencida, as Almas também poderiam.
Naquela noite, Peg e eu imaginamos um mundo como queríamos que fosse, sem muros e esconderijos. Só janelas e grandes portas que se abriam para infinitas possibilidades para John. E nas horas que se seguiram, eu quase podia escutar os sonhos que ecoavam pelos corredores fechados e escapavam para a liberdade dos caminhos escondidos pelo deserto.


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