Capítulo 22 — Sobre Espelhos ou Janelas
Working on the future
Floating on fate
Faced the circunstances
Cleared up the shades, so
(...)
And I've tried,
Maybe you deny
Words of peace
For the future of our lives
Bring to me
Something else than a broken heart
I won't wait 'till my life is wasted
... maybe I wanna die some other day
(Make Believe – Angra)
Ian
Sempre
tentei não me preocupar demais com o futuro. Afinal, meio que perdeu o sentido
quando todo o controle saiu de nossas mãos, exatamente na época em que o mundo
deixou de ser nosso. A verdade é que
essa não é o tipo de postura que se pode manter por muito tempo quando se é pai
e outro ser ocupa quase todos os seus pensamentos e prioridades, até mesmo sem
que você perceba. Mas ainda assim, eu dava meu melhor.
Em
nome do máximo de tranquilidade que pudesse alcançar, eu tentava ser o cara que
não se incomodava em ficar preso no hotel ou escondido no carro quando, durante
as incursões, Peg levava John para conhecer o mundo das Almas, para andar
livre, mesmo que só por algumas horas, pelos caminhos que eu não sabia se ele
poderia herdar. Não era fácil, mas eu resistia bravamente aos apelos dele para
que eu fosse junto, e fazia cara de sereno quando Peg me lançava aquele olhar
de quem se desculpava, porque só o que importava era meu filho. E ela, claro.
Era bom saber que os dois podiam viver isso juntos, mesmo que o futuro fosse
sempre tão incerto.
No
entanto, pensar que esse era o máximo que eu podia fazer era tão difícil quanto
uma equação matemática complexa, daquelas que seria preciso admitir que eu não
era inteligente o bastante para resolver. Por isso fiquei feliz que alguém,
mesmo que não pudesse ser eu, estivesse disposto a resolver aquelas contas
complicadas, porque, mais uma vez, meu filho era mais importante que meu
orgulho.
—
Você está realmente me dizendo que as Almas pretendem deixar o planeta? —
perguntei a Logan, agora que ele e sua família estavam de volta.
—
Não todas, e nem imediatamente. Mas sim, pretendem.
—
Isso não faz sentido — reclamou Kyle, e eu me encolhi imaginando que ele
pudesse falar alguma besteira ofensiva, mas a verdade é que também me parecia
muito estranho. — Depois de tudo, eles vão simplesmente jogar fora os corpos
dos humanos?
—
Não é assim! A intenção é respeitar o ciclo de vida natural dos hospedeiros e
depois partir, porque entendemos que o aumento da população humana vai, a longo
prazo, tornar uma permanência em massa insustentável.
—
Eles ficarão até os corpos hospedeiros morrerem, então? Porque não tem a cara
de pau de tomarem os corpos dos próprios filhos. Falando claramente, é isso que
você quer dizer?
Já
que, claro, meu irmão era muito sutil quando falava claramente.
—
As coisas são diferentes agora — Logan se limitou a afirmar, mas todo mundo
entendeu. Ele estava confirmando o que Kyle tinha dito. — Na hora certa, os
planos de evacuação em massa serão expostos para a sociedade humana.
—
É a sobrevivência da espécie de vocês — lembrou Doc. — Não posso acreditar que
vocês a comprometeriam, ainda que em nome de sua descendência híbrida.
Eu
detestava os termos que Eustace — esse nome nunca perdia a graça — usava de vez
em quando. “Descendência híbrida”! Como se as diferenças fossem o foco. Considerando que John era um desses
“híbridos”, eu podia dizer que uma vez que se forma uma família, os outros
fazem parte de você, como órgãos do seu corpo ou algo assim. Então, embora
parecesse inusitado a princípio, não havia nada de estranho nas Almas se
sacrificarem pelos humanos. Pais sempre seriam pais.
—
Nossas mães têm que morrer para nos dar a vida, Doc. É natural para nossa
espécie priorizar a descendência e o bem comum — explicou Peg, ecoando meu
pensamento.
—
Além do mais — completou Logan —, nossa sobrevivência não será comprometida. Há
outras colonizações em potencial, além das já estabelecidas. A saúde do planeta
está assegurada, mas consideradas as novas informações que temos, a permanência
de todos causaria um problema de sustentabilidade, de qualquer maneira.
—
Novas informações? — Jeb perguntou, imediatamente notando que as notícias não
paravam por aí.
Estrela
assumiu a palavra, nitidamente se preparando para o que parecia uma longa
exposição:
—
Quando você ficou doente, os Curandeiros me chamaram a atenção por você ter
ficado tanto tempo não apenas sem fazer qualquer exame, mas por não ter
aproveitado as técnicas novas. Na ocasião não pude perguntar, parecia muito
óbvio para ela e eu fiquei com medo de estragar nosso disfarce revelando que
não estava atualizada com a ciência médica. Mas no tempo que passamos em Nova
Orleans, pude pesquisar devidamente. O que eu descobri foi que, movidos pela
escassez cada vez maior de hospedeiros, nossos cientistas vêm trabalhando em
técnicas apuradas para deter o envelhecimento, e estão conseguindo ótimos
resultados. Somado aos recursos a que todos têm acesso agora: medicina
avançada, alimentação saudável, ausência de acidentes e de problemas com
saneamento básico; isso aumentou e muito a expectativa de vida. Todas as causas
naturais de morte foram praticamente extintas.
—
Exatamente de quanto estamos falando? — perguntei.
—
No mínimo mais cinquenta anos para cada pessoa, dependendo da idade em que os
tratamentos começarem e de quantas vezes forem utilizados.
—
Espantoso! — disse Doc, mas apesar de tudo não conseguimos ficar assim tão
empolgados. No final, isso queria dizer que essa tal retirada demoraria muito
mais tempo do que podíamos imaginar.
—
Não sei, ainda me parece uma coisa meio incoerente — opinou Jared. — E incrível
também, pensar que darão o direito de escolha para os humanos. Com essa
história de respeitar o ciclo de vida dos hospedeiros, como vai funcionar? Não
faz muito sentido.
—
Os hospedeiros estão sendo conservados com esses tratamentos, mas muitos
optaram por não se submeterem a eles. Não são todas as Almas que conseguiram se
adaptar à Terra, então muitos pretendem partir de qualquer maneira — explicou
Logan. — A escolha a que os Representantes se referem é em relação aos que
querem ficar, à possibilidade de manter uma sociedade mista pelo tempo que os
tratamentos permitirem, ou se vão optar pelo fim natural dessa convivência.
Acontece que estamos falando agora de humanos cujas famílias são compostas
principalmente por Almas. Pais, avós, amigos, talvez até mesmo cônjuges
futuramente. Então as perspectivas são otimistas para aqueles que gostariam de
permanecer aqui. O que estamos buscando, essencialmente, são maneiras de conviver
de forma mais equilibrada, com regras que façam sentido para ambos os lados.
Ou, melhor ainda, alcançar um estado em que as coisas não sejam vistas mais
nesses termos e estejamos todos de um lado só.
—
Seria maravilhoso — disse Peg, e tive certeza de que ela estava se permitindo
ir mais longe nesse sonho, pensando se, de algum modo, eu também poderia me
incluir nele. De repente, seu semblante retomou o tom realista. — Mas e quanto
à superpopulação? O planeta não pode comportar tantas pessoas assim, não quando
sua expectativa de vida é tão grande e os nascimentos continuam a acontecer.
—
Sim, essa é questão a ser levada em conta. Nossa tecnologia possibilita que
qualquer tipo de solo se torne fecundo e habitável, a ausência de corrupção e
de desigualdades sociais permitem a prosperidade de todos. Ainda assim, a
preocupação com a sustentabilidade permanece. É por isso que muitos se recusam
a prolongar seu tempo de vida. E é por causa disso também que mesmo que a
criogenia nos permita conservar hospedeiros se for preciso, não há mais novas
levas de Almas chegando ao planeta. Eventualmente, mesmo com o prolongamento da
vida apenas os humanos vão prosperar.
—
A verdade — Estrela completou — é que as técnicas de conservação foram
inventadas para os humanos. Porque muitas Almas não conseguiam lidar com a
ideia de que seus descendentes pudessem sucumbir em um tempo de vida em que talvez
elas ainda estivessem aqui. A questão da mortalidade tem sido complicada de
lidar. Este planeta impõe desafios inéditos a nós. Estamos nos adaptando à
medida que acontecem. E também tentando nos antecipar a alguns.
—
O fato é que tudo ainda é muito incerto — disse Jeb. — Para nós sobreviventes
não muda muita coisa. Eu gostaria de pensar que um dia poderíamos voltar para o
mundo maior, para ajudar a construir essa nova sociedade que parece surgir a
cada dia. Cada vez que nos adaptamos à chegada de um de vocês me fez pensar que
temos muito com que contribuir, mas isso continua sendo impossível.
—
Pois eu acho que um dia podemos voltar — Logan interviu entusiasmado. — Eu
estive em um Conselho, e pretendo fazer isso outras vezes, em outras cidades,
me articulando com Almas que possam ser nossas aliadas. Podemos fazer isso,
descobrir a existência de outras células e incentivar que os aculturados, se
existirem, se infiltrem na sociedade maior...
—
Ei, calma aí, garoto! Você está ambicioso demais.
—
Não estou, Jeb. Sei que é possível, porque descobri que não são poucos que
pensam como nós. Falaremos com Cal, procuraremos Fords Águas Claras, o
Curandeiro que Peg julgou tão receptivo, e meus colegas Flora e David, de Nova
Orleans. Não precisamos contar a eles todos os fatos, vamos ser muito
cuidadosos. Mas aos poucos, bem aos poucos, podemos fazer os outros perceberem
que os sobreviventes podem ser reinseridos à sociedade. Podemos ir devagar, mas
devemos começar de algum lugar.
—
Eu acho que Logan tem razão. Eu me arriscaria a conhecer alguma dessas Almas e
provar que não sou perigoso — disse meu irmão num rompante, como quase todas as
suas ideias “brilhantes”.
Sunny
estava com as crianças, mas se estivesse conosco se encolheria diante da
perspectiva. Ver Kyle argumentando pela paz era meio como a ideia de amassar
pão com um rifle. Talvez até funcionasse, mas com certeza havia jeito melhor.
Jared olhou para ele e não
conseguiu conter uma risada discreta.
—
Sem ofensa, Kyle. Mas acho que nem você nem eu seríamos os modelos ideais.
—
E quem você sugere, então? Eu não estou disposto a arriscar ninguém.
Nisso
ele tinha razão. Nós não podíamos tomar uma decisão como essa por ninguém além
de nós mesmos, porque se desse errado...
—
Eu... Bom, em nome da ciência, é... Eu sempre quis... — Doc começou a gaguejar,
incerto sobre o que queria dizer. Então Sharon, calada até então, de repente
fez o que ninguém imaginava.
—
Nós faríamos isso! — ela disse. — Eu e o Doc conversaríamos com as Almas que
vocês achassem que poderiam nos ajudar.
Assim.
“Almas”. Nada de ETs, alienígenas, parasitas ou qualquer coisa depreciativa.
Nada de hesitação ou desconfiança. Só pura disposição em colaborar.
Aparentemente.
—
Seria perfeito, Sharon — Estrela falou com suavidade, e todo mundo ficou
simplesmente ali, sem ação depois disso.
Eu bem que gostaria de
estar por perto quando contássemos isso a Maggie. Ou não. Dependeria da
proximidade dela com uma arma.
— Vocês estão sonhando
alto demais. — Jeb nos trouxe de volta à realidade. — Temos que dar um passo de
cada vez. E analisar item por item desta conversa detalhadamente, até esgotar
todas as possibilidades de dar errado. Não podem simplesmente abordar um
estranho, ainda mais alguém que seja influente e por isso potencialmente também
perigoso, e expor a existência de esconderijos, mesmo que não deem detalhes
sobre eles. Vocês teriam que estar dispostos a usar de violência se não desse
certo, para poderem fugir em segurança. E isso complicaria mais as coisas.
Então vamos com calma nesses planos!
Logan chegou a abrir a
boca para argumentar, mas fosse o que fosse que ele ia dizer morreu em sua garganta.
Sharon e Kyle também pareciam querer falar, mas ninguém disse nada no final das
contas. Nós sabíamos que Jeb estava certo, que ele sempre era a voz da razão
que podia nos faltar às vezes.
Por um minuto, eu me
deixei levar pela possibilidade de passear com meu filho e minha mulher como
teria sido antes. De levar John à escola e ao treino de futebol. De ir ao
cinema com Peg, mesmo que fosse para assistir àqueles filmes estúpidos que as
Almas faziam. Coisas assim, com sutis
variações, devem ter passado pela cabeça de todo mundo. E não era de se
surpreender que agora estivéssemos desanimados com o choque de realidade.
— Ouçam aqui, vocês não
precisam ficar com essas caras de gatos que tomaram banho de água fria — Jeb
tentou remendar. — Só o que digo é que
se queremos garantir que nosso esconderijo esteja aqui para voltarmos,
precisamos ser cuidadosos. Apenas isso. Nunca tive medo de arriscar e não vai
ser agora, diante de uma coisa que certamente vale a pena como essa, que eu
iria me acovardar.
— Eu achei que era
impossível ter fé de novo — disse Sharon. — Mas o fato de estarmos vivos e de
ainda termos possibilidades, mesmo que sejam remotas, me faz pensar que... Bom,
eu acho que temos uma chance e eu me recuso a ter medo! E quanto a vocês?
— Tio Jeb tem razão
quando diz que devemos planejar bem nossos passos, mas eu estou dentro, com
toda certeza!
Ultimamente,
Mel vinha aprimorando o talento dos Stryder em observar as conversas e depois dar
a palavra final, e era exatamente isso o que essa frase era: uma conclusão. Só
que não só dela, mas de todos nós.
Quando
Peregrina chegou, no começo de tudo, mudou nossa visão sobre o “inimigo”. De
repente, nós entendemos que o outro lado podia ser um espelho, não um muro,
porque as Almas sentiam, amavam e sofriam como nós. E o que Logan estava
tentando nos descortinar agora era a possibilidade de transformar esse espelho
em janela, provando aos outros lá fora o que nós aqui dentro já sabíamos: que
éramos muito mais parecidos do que se podia imaginar. Sinceramente, se até
Sharon pôde ser convencida, as Almas também poderiam.
Naquela noite, Peg e eu
imaginamos um mundo como queríamos que fosse, sem muros e esconderijos. Só
janelas e grandes portas que se abriam para infinitas possibilidades para John.
E nas horas que se seguiram, eu quase podia escutar os sonhos que ecoavam pelos
corredores fechados e escapavam para a liberdade dos caminhos escondidos pelo
deserto.