sábado, 29 de novembro de 2014

Capítulo 9 - CD2


Capítulo 9 – Minha mente, sua mente

How long, how long will I slide
Separate my side, I don't
I don't believe it's bad
Slittin' my throat
It's all I ever

I heard your voice through a photograph
I thought it up it brought up the past
Once you know you can never go back
I've gotta take it on the other side

(Otherside – Red Hot Chili Peppers)


Logan

            O primeiro jorro de lembranças não é como eu esperava. Não o último momento importante, não a sensação de ir embora. Mas, sim, imagens embaralhadas, tiradas e postas muito rápido umas sobre as outras, como cartas jogadas sobre a mesa no início de um jogo. Imagens fragmentadas e sobrepostas.

            Crianças correndo entre as árvores de uma fazenda. A sensação gelada de um pulo no riacho. O gosto de laranja.

            Uma enorme varanda de madeira onde um homem canta enquanto dedilha seu violão distraidamente. A voz dele é bonita. Lembra alguém. Eu sei. Mas a imagem já está distante demais para ser tocada.

            Enquanto isso, uma mulher pendura lençóis brancos em um varal que parece não ter fim. Eles balançam com o vento como se fossem bandeiras. Aquele é um reino. A mão da mulher se fecha em concha contra a minha bochecha. Posso sentir a aspereza macia da pele que cheira a sabão e comida quentinha, mas não consigo ouvir o que ela me diz. Os olhos dela são como um rio. Parecem continuar. Sempre.

            É noite no deserto. Gosto de como o céu estrelado sobre minha cabeça faz a solidão parecer bonita. Cabelos longos se espalham pelo travesseiro. Espalham-se pela minha alma também. Alguma coisa nasce nas rochas. Um hibisco.

            Uma vez. Esta vai ser a única vez.

            Meu peito dói. A sensação de solavanco que se tornou desagradavelmente familiar me assalta com força. Como se eu estivesse me afogando de dentro para fora.     
            Olho para mim mesmo e então entendo como isso é possível. Não sou eu. É o garoto que costumava ser um Buscador. Gosto dele. Nunca consegui evitar. Falo com ele, mas ele não responde, está confuso. Apenas me olha de volta surpreso.

            — Imagine-se cercado de paredes. Dessa forma, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.
            Outra lembrança, mas essa é diferente. Não parece que foi assim que aconteceu. Acho que me lembro da frase, mas em uma situação distinta. As palavras enigmáticas não combinam com a menininha que as diz.
            Observo-a com mais atenção. Não é muito pequena, na verdade. Deve ter uns 11 anos, talvez, mas não tenho tanta certeza. É morena, usa um uniforme de futebol e rabo de cavalo. Tem um olhar perspicaz, mas ainda me parece infantil o bastante. A pele de seu nariz e embaixo dos olhos, no alto das bochechas, está vermelha de sol, parece que ela passou o dia todo brincando. Seu rosto me é muito familiar, mas não consigo...          Lembro de pensar que aquela criança conseguiria enxergar através de qualquer parede que a forçassem a erguer. Ela é inteligente, forte...

            “Melanie.”
            Levo um susto. Faz muito tempo que não me assusto. Eu acho. Mas é outra coisa sobre a qual não tenho certeza.
            O quê...
            “Minha sobrinha. É como gosto de me lembrar dela. Por que você está se lembrando das coisas do meu jeito?”
            Eu... Ahn... Não sei.
            “Acorde, Logan! Eu é que sou novato nisso e você é que está perdido?”
            Logan. É quem eu sou. O nome me diz tantas coisas quanto as palavras contidas em uma biblioteca. Consigo me lembrar agora. Minha história. E o intruso em minha cabeça... Não, eu é que sou o intruso. Por isso as coisas parecem não funcionar tão bem e eu me sinto como se me movesse em gelatina.
            Sua mente é estranha.
            “Que simpático. Agora tente se lembrar do porquê de estarmos juntos aqui.”
            Jeb. É ele quem está comigo. Preciso salvá-lo.
            Sim, eu me lembro.
            “Ótimo. Porque eu não esqueci. Agora vamos encontrar um jeito de fazer isso funcionar...”
            Não acho que eu esteja lembrando as coisas do seu jeito. Acho que era você o tempo todo. Lembrei de coisas antes de você acordar.
            “Que coisas?”
            Não sei bem o que elas significam. Uma fazenda, um varal, riacho... Você se sentindo mal.
            “Bem, pare de lembrar minhas lembranças. Foi esse o combinado. O quebra-cabeça é meu, eu é que entendo das peças.”
            Não estou tentando invadir sua mente. Acontece que estamos fracos, eu e você. As coisas escapam pelas frestas.

            O despertar embaralha a percepção de tempo. Tudo isso pode ter transcorrido durante uns poucos segundos apenas, ou vários minutos, não sei. Aqui dentro não importa realmente. O que sei é que ele fica em silêncio por um tempo que me parece, paradoxalmente, tão indefinido quanto longo. É um alívio, mas também me angustia. Como ficar sozinho numa grande casa habitada por uma família numerosa.
            Jeb?
            Começo a temer que algo tenha dado errado. Há um propósito nisso tudo, mas esse propósito não inclui o silêncio dele.

            Então eu vejo. Paredes. Portas batendo. O estrondo me assusta e abro os olhos.

            — Tudo bem? Você está bem?
            A voz era familiar, mas parecia ligeiramente diferente. Era a voz de uma menina para estes ouvidos. Delicada demais. A cadência quase estrangeira com que soava para este hospedeiro me fazia associá-la com prata. A mesma que brilhava no fundo dos olhos escuros.
            O rosto dela se destacava em meio aos outros, também tão familiares. Procurei reconhecê-los também. Melanie, Jared, Ian, Doc. Os nomes chegaram com relativa rapidez, mas suas feições me pareciam diferentes. Através dos olhos deste hospedeiro, Doc me parecia menos excêntrico, Jared menos duro, Ian mais juvenil e Melanie... mais familiar! Tão bonita quanto poderia ser. Um misto da menina com uniforme de futebol e da mulher com jeito de guerreira. Meu olhar se demorou um pouco em cada um, mas logo voltou a buscar aquela que eu reconheceria em qualquer circunstância, a única que meus olhos realmente queriam ver.
            — Estrela.
            Era estranho, porque eu sabia que aquela não era minha voz, mas ao dizer o nome dela era assim que me parecia, como a voz humana que eu tinha ouvido sempre, dizendo a palavra que mais importava.
            Ela me observou preocupada, os olhos escuros perscrutando minhas reações lentas. Tentei me fixar neles, porque embora tudo o mais parecesse diferente, os olhos dela ainda eram os mesmos. Quando eu a conheci, eles olhavam para mim de outro rosto, tinham outra cor, outro formato. Mas a ternura que existia neles havia sempre permanecido. E mesmo que agora fosse eu que estivesse em outro corpo, aqueles olhos continuavam sendo para mim.
            — Oi — cumprimentei, exercendo meu direito de me sentir um pouco bobo.
            — Olá — ela disse, sorrindo e tocando de leve minha mão.
            Meus novos dedos sentiram seu toque e despertaram. Estendi a mão, sentindo como se meu braço pesasse uma tonelada. Eu não estava acostumado a me sentir fraco e aquilo me incomodava. Em algum lugar ali bem perto, estava o corpo que eu reconhecia como meu: forte, disposto, resistente. A sensação fazia falta. Enfrentar o mundo num corpo mais velho e, ao menos naquele momento, tão fragilizado, me parecia extremamente desafiador. Acostumar-me com aquilo seria uma experiência no mínimo singular.
            “Bem-vindo à velhice, garoto. Me lembre de esfregar isso na sua cara da próxima vez que vier com aquela história de sou-um-ser-milenar. Tem muita graça vindo de alguém com 30 anos.”
            Eu vou precisar mesmo te lembrar de esfregar alguma coisa na minha cara? Você vive para fazer isso!
            “Quanta falta de humor!”
            Continuei concentrado em me adaptar ao novo corpo, movendo-me devagar. Era um tanto frustrante o esforço que cada movimento demandava devido à doença.
            — Não se esforce muito — alertou Estrela. — Jeb precisa repousar o máximo possível. Ele está aí com você? Vocês dois estão bem?
            “Pode apostar que ainda estou aqui, Estrelinha.”
            — Sim, estamos bem — respondi por ambos.
            Devia ser difícil não poder ser ouvido. Embora lidar com outra consciência além da minha não fosse exatamente um passeio no parque, estarmos os dois aqui provavelmente era bem pior para ele do que para mim.
            “Fichinha”, ironizou Jeb.
            Minha expressão deve ter parecido algo desalentada, porque Estrela segurou minha mão e tocou meu rosto.
            — Vamos resolver isso logo. Vai ficar tudo bem — ela disse, tentando me acalmar. A sensação era tão boa que nem me importei que os dedos dela estivessem, na realidade, tocando outra pessoa.
            Era Estrela. Tudo o que havia de imutável em nós se reconhecia.
            Um assovio prolongado me chamou de volta ao diálogo interno.
            “Carambola Maria Viola!”
            Quê?O que diabos quer dizer isso?
            “Nada. Só que eu invento minhas próprias interjeições quando a ocasião é digna de tal. E, rapaz, estou admirado!”
            Com o que, exatamente?

            Uma sequência de imagens e sensações envolvendo Estrela passou pela minha cabeça vinda de um ponto de vista ímpar, como se alguém pudesse olhar o lado de dentro de meu cérebro e mostrá-las para mim.
            Estrela ainda no corpo de Peg, deitada na cama da Instalação de Cura. A sensação de que sua fragilidade testava os limites de minha sanidade. O medo de perdê-la reavivando e reinventando lembranças até então esquecidas. O desespero disfarçado de fúria quando achei que não a veria nunca mais. A hospedeira nova. Uma cujo coração podia finalmente me pertencer por inteiro. Nós dois juntos. As lágrimas de felicidade dela quando John nasceu. E Lindsay. Nossa filha. Irrevogavelmente fundidos.

            O que é isso? O que você está fazendo?
            Finalmente eu entendia a resistência dele em me deixar entrar. Aquelas eram minhas lembranças e eu não o queria ali.
            Pare com isso!
            “Eu não estou fazendo nada, você não percebeu? É você mesmo quem está deixando escapar. Eu só estava... Bom, estava tentando lidar com os sentimentos que você trouxe para o meu corpo. Sabia que você a amava, mas eu não fazia ideia de que era assim. Já faz muito tempo para mim. Não gosto dessas sensações.”
            Sentimentos que eu trouxe para o seu corpo? Você está querendo dizer que está apaixonado pela minha mulher!?
            “Estou querendo dizer que você é apaixonado por ela. O que eu estou é ficando enjoado com o quanto! Trate de controlar suas emoções!”
            Talvez seja a minha identidade tentando se sobrepor à sua.
            “Pois guarde sua identidade para seu próprio corpo. Obrigado. Concentre-se nas paredes, como Mel nos ensinou.”

            — Logan — Estrela me chamou, interrompendo a discussão. — Nós vamos mover você agora, tudo bem?
            Meneei a cabeça, consentindo, mas tudo naquilo me incomodava. Eu sabia que era preciso preservar a energia do corpo de Jeb ao máximo, mas a sensação de impotência sempre foi opressiva demais para mim.
            “Também não gosto da ideia, mas a menos que você consiga mover minhas pernas melhor do que eu estava conseguindo, vamos ter que aceitar a situação.”
            Não respondi. Apenas deixei Ian e Jared levantarem o catre com meu corpo cansado e quase inerte em cima, e tentei me concentrar em não odiá-los por, neste momento, depender completamente da força deles. Jeb não disse nada, mas eu podia sentir a interrogação em sua mente.
            Não estou acostumado a precisar de ninguém.
            “Todo mundo precisa de alguém de vez em quando, garoto.”
            Pois eu não tenho boas lembranças das vezes em que precisei de ajuda.

            Fome. A sensação de estar sempre no limite entre o desejo minimamente satisfeito e o estômago vazio. Não era o suficiente para me matar ou mesmo para enfraquecer meu corpo. Apenas para manter minha mente prisioneira da próxima vez. Haveria uma próxima vez? Em que ponto o prato seria tirado de mim como se eu devesse ter controle de quando estar saciado?
            Trabalhar além de minhas forças. Sofrer as consequências se não o fizesse. Deixar tudo limpo, mas ter a sensação de estar sempre sujo. Nunca dizer nada a ninguém. Nem na escola, nem em lugar algum. Mesmo quando as marcas no meu corpo revelavam a verdade que todos se esforçavam por ignorar.
            Lindsay morrendo sem ajuda.

            “Essas lembranças são... suas?”
            Sim, minhas. Dele. Mas minhas também.
            Jeb não sabia nada sobre meu passado. Ninguém ali sabia, exceto Estrela. Mas não era nenhum segredo. Nada que eu fizesse questão de guardar. Eram só coisas sobre as quais eu nunca tinha achado necessário falar.
            “Quem eram aquelas pessoas?”
            Responsáveis. Lares provisórios.

            Silêncio. Não havia nada a dizer.

******

            Eu me sentia cansado, muito cansado.
            Algum tempo havia se passado e eu supunha que estivéssemos quase chegando, embora sem ver a estrada não desse para ter certeza de qual distância já tínhamos percorrido. Estávamos no furgão, meu corpo acomodado no chão forrado com lençóis e almofadas, enquanto Estrela ia ao meu lado e Jared e Mel iam à frente, conduzindo o veículo numa velocidade que alertaria qualquer Alma que calhasse de cruzar nosso caminho.
            Não pensamos nisso direito, a bem da verdade. Mesmo que estivéssemos acostumados a arranjos como aquele, seria mais prudente que Estrela estivesse dirigindo e os humanos ficassem escondidos aqui atrás comigo. Por outro lado, com a sensação em meu peito ficando mais opressiva a cada instante, a velocidade de Jared era mais desejável àquela altura.
            Teríamos que contar com a proteção da madrugada para que ninguém percebesse. E com o fato de que há anos as estradas ao redor de Picacho Peek, onde humanos tinham sido flagrados uma vez, já não eram mais vigiadas. Os Buscadores provavelmente acreditavam que os membros daquela resistência estivessem mortos, ou que tivessem fugido para longe. A natureza pacífica de nossa espécie tornava até mesmo os mais vigilantes imprudentes.
            “A ilusão de superioridade é a mãe da passividade.”
            A voz de Jeb estava fraca em minha mente agora. Vez ou outra, como naquela hora, ele completava um pensamento meu com algum de seus comentários sarcásticos, mas seus próprios raciocínios estavam ficando inacabados e escassos, e isso me assustava. Em condições normais, eu não acharia que a consciência dele pudesse sucumbir, mas mente e corpo estavam ligados, afinal, e a fraqueza deste alimentava a fraqueza daquela.
            Converse comigo, Jeb! Não caia no sono. Nós temos que ficar acordados.
            “Fácil pra você falar.”
            Não, não é fácil. Mas ainda me resta mais energia do que a você. E não é minha mente que está em risco aqui. Vamos, me ajude a te ajudar. Precisamos continuar conversando.

            Silêncio de novo. Um lampejo da mulher que dormia sob a lua do deserto passou pela minha cabeça. Eles faziam muito aquilo. Acampar sob as estrelas.

            Dormir... Sob as estrelas ou em qualquer lugar. Parecia tentador para mim também. Tanto que meus pensamentos perderam o sentido por alguns instantes. Fiquei apenas atribuindo cores e cheiros aos sons em minha cabeça, e insistindo em concluir um raciocínio qualquer que já não conseguia mais saber por que era importante.
           
            Norah. O nome me chamou de volta ao mesmo tempo em que o carinho que Estrela fez em meu cabelo me despertou. Embora eu não tivesse dito nada a ela sobre meu medo de que Jeb perdesse a consciência se eu dormisse, acho que ela compartilhava de meu receio. Toda vez que meus olhos se fechavam, ela me fazia acordar. Por causa disso, suspeitei que aquilo não fosse exatamente uma lembrança, mas, talvez, um fragmento de sonho.
            Jeb?
            Nenhuma resposta. Insisti.
            Jeb?
            “Ahn?”
            Nós estávamos mesmo dormindo, não é?
            “Parece que sim.”
            Não podemos deixar isso acontecer. Se dormirmos eu não vou saber se sua consciência continua aqui ou foi suprimida.
            “Não pretendo ir a lugar algum.”
            Eu sei. Nem eu pretendo deixar. Mas a supressão da consciência do hospedeiro é um processo natural e, no momento, precisamos estar alertas o bastante para controlá-lo. Então converse comigo.
            Eu podia falar com Estrela, ou mesmo com Mel ou Jared, pedir a ajuda deles para que suas mentes mais alertas, e certamente mais despertas, encontrassem algum assunto para nos manter distraídos, mas não estava certo se qualquer conversa do tipo manteria Jeb acordado. Além disso, era mais fácil assim, sem ter que de fato organizar minhas ideias em palavras pronunciáveis e compreensíveis. Até esse esforço me parecia demais.
            Me conte sobre a mulher, pedi, num último esforço para engendrar um diálogo.
            “Mulher?”
            Norah.
            Ela agora tinha um nome. E um rosto. Ou... antes... apenas a impressão de sua beleza. Eu podia ver seus olhos claros iluminados pela luz da fogueira, mas a imagem me foi tirada antes que eu pudesse saber mais. Ele ainda estava forte o suficiente para reprimir as lembranças que parecia acostumado a rejeitar.
            Nós sonhamos com ela, lembra?
            “Certo. Eu me lembro agora. Bem, não tem muito pra falar. Eu gostava dela. Ela me chutou. Fim. Não é meu assunto preferido.”
            Senti a onda de raiva que o pensamento liberou, como magma pulsante sob a rocha adormecida. Não queria forçá-lo a falar de coisas que lhe faziam mal, mas a raiva o despertava um pouco e eu realmente precisava que ele ficasse acordado, então continuei.
            Por quê?
            “Por que não é meu assunto preferido?”
            Por que não deu certo? Você a amava.
            “Às vezes isso não é suficiente.”
            Deveria ser.
            “O que você quer que eu diga, garoto? Eu já não pensava nisso há muito tempo. Você ainda não viveu aqui tempo suficiente para saber que é besteira procurar sentido em assuntos encerrados, mas eu sim. Esta conversa não me interessa.”
            Estamos falando disso porque o assunto desperta uma reação em você. Eu só estou tentando fazer você pensar em coisas que te deixem acordado. A lembrança voltou à sua mente duas vezes hoje. Deve haver uma razão.
            “Sim, a de que você nem está tentando trabalhar nas paredes entre nós. Em vez disso, está achando mais interessante desenterrar fantasmas indesejados e remexer em coisas que não te dizem respeito.”
            Tenho tanto controle das lembranças que me chegam quanto você. Mas, acredite, nada disso é interessante para mim.

            Eu também não gostava nada daquilo. Sabia que ele tinha visto lapsos de mim. Ou do humano cujas lembranças me moldaram. Quando mais cedo naquela noite, minha própria raiva tinha escorrido como areia fina pelas imperfeições de minha armadura traidora, eu sabia que ele vislumbrara o caminho das vielas escuras e sem saída de que tive que aprender a desviar. E eu não o queria ali. Não queria que ele me visse vulnerável ou que minha dor pudesse contaminá-lo. Não queria que ele sentisse pena de mim como sentiu.
            Então, sim, eu podia entender sua relutância. Podia entender que ele protegesse as causas de suas mágoas e as enterrasse no fundo da memória, onde ninguém mais pudesse adivinhá-las. Mais do que ninguém, eu sabia que certas coisas só mereciam o silêncio em nossas almas.
            Desculpe.       
            Foi apenas um minuto. Talvez dois. Um punhado de segundos em que, aborrecidos com a conversa e irritados um com o outro, permitimos que nossas mentes divagassem em direções independentes. Pode ser que tenha sido o balanço suave e constante do carro em movimento na estrada tranquila, ou que eu não tenha percebido os instantes se alongarem, como quando os diálogos de um filme não fazem mais sentido porque você não notou que o sono lhe roubou algumas frases.
            Desculpe.
            Aconteceu sem aviso, por causa de um descuido bobo, mas de repente a cena parecia mudada. As luzes tinham se apagado e o palco fora deixado só para mim. Chamei o nome de meu amigo algumas vezes, possuído pela necessidade cega de negar a verdade. Mas eu sabia.
            Jeb não estava mais ali.


Capítulo 10 Entre a Luz e as Sombras

Capítulo 10 – Entorpecimento

Tell me would you kill to save a life?
Tell me would you kill to prove you're right?
Crash crash, burn, let it all burn,
This hurricane chasing us all underground
(…)
Do you really want?
Do you really want me?
Do you really want me dead or alive
To live a lie
(Hurricane – 30 Seconds To Mars)

“Você sabe muito bem que isso não é infalível!” É o único pensamento que consigo formular para responder aos ataques impiedosos de minha própria mente, enquanto sinto o padrão da calçada contra a pele da minha bochecha.
Ela está furiosa, vociferando algo que escuto apenas através de um zumbido horrível que se instala em minha cabeça à medida que a escuridão de dissipa um pouco.
Por que você não previu isso? Como não percebeu que havia perigo?
“Não é infalível”, repito.
Você fica surda quando está tomada por seus sentimentos humanos! Esta sua paixonite nos coloca em perigo!
“Paixonite?” Teo! Oh, meu Deus! Agora eu me lembro. Eu ia encontrá-lo um pouco depois do meu expediente, quando terminasse o show que ele estava fazendo em outro bar. Por isso fiquei aqui até tão tarde. Ele tinha acabado de me ligar dizendo que estava chegando, então vim até o estacionamento dos funcionários para encontrá-lo. Isso foi antes de tudo ficar escuro.
Tento me levantar para procurá-lo, mas uma dor aguda se propaga pela minha cabeça de forma tão possessiva que não me deixa pensar ou me mexer. Alguém se aproxima de mim e eu penso em pedir ajuda, mas qualquer coisa no jeito como aquela sombra começa a se curvar sobre meu corpo dispara um alarme em minha cabeça.
Ele não vai te ajudar!
O medo me inunda de adrenalina e consigo me virar um pouco e estender meus braços, tentando me defender, embora eu mal enxergue minhas mãos, tamanha é a dor que me escurece as vistas e faz com que eu pareça não ter controle sobre meus movimentos. Só consigo saber que aquelas são minhas mãos, porque elas são claras e contrastam com as luvas pretas que a sombra está vestindo.
Em algum canto de meu cérebro, aquele onde me sinto segura e não consigo acreditar que algo assim possa realmente acontecer, me pergunto como alguém pode suportar usar luvas no calor. Então a parte mais alerta de meu cérebro grita uma resposta apavorante: alguém que queira cometer um crime sem deixar vestígios.
Imagino os dedos negros se fechando em minha garganta antes mesmo que aconteça, mas então uma das mãos dribla as minhas e um dedo indicador faz o contorno de meu maxilar e é a coisa mais estranha que já vivi. Ele parece hesitante, com pena e, em meio a todo meu pânico, também sinto pena dele. Por que está lutando tão ferozmente contra seus instintos? Por que me matar quando parece não querer realmente fazer isso? Deve doer tanto se sentir dividido dessa maneira! Sentir-se compelido, sabe-se lá pelo que, a fazer algo verdadeiramente mal, quando algo em você diz para não fazer.
Minha mente malcriada está gritando comigo, dizendo que quer que ele, seja lá quem for, se exploda em mil pedacinhos com sua dor. Que a única dor que nos interessa é aquela que faz minha cabeça palpitar e minha garganta parecer se fechar, mesmo que aquela mão não a esteja realmente apertando.
Tudo isso acontece em poucos segundos e eu mal tenho tempo de entender o que está acontecendo quando nossa pequena e bizarra conexão se rompe. Apenas vejo as mãos se afastarem de mim, formando garras como se pudessem me puxar consigo por cordas invisíveis. Espalmo uma de minhas mãos no chão e consigo erguer o corpo o suficiente para apoiar minhas costas na lateral do carro, então eu vejo o braço forte que me tirou das mãos das sombras.
Teo está atrás do estranho encapuzado, segurando-o pelo pescoço. O estranho se debate, mas Teo é mais alto do que ele, parece ser mais forte também, e o estranho não está conseguindo escapar. De repente, ele se dobra para frente, fazendo com que o corpo de Teo, tão impiedosamente aferrado ao dele, se dobre para frente também. Em seguida, ele joga o corpo para trás e Teo se desequilibra um pouco, afrouxando o aperto por tempo suficiente para que o estranho lance o cotovelo com toda força em suas costelas.
Teo parece perder as forças e o larga, então emite um som abafado e se dobra sobre si por causa da dor. O estranho afaga o próprio pescoço e me olha por meio segundo. Então, ele faz a segunda coisa mais estranha desta noite: levanta uma das mãos enluvadas e acena para mim, dizendo adeus. Em seguida, desaparece na escuridão como se fizesse parte dela, rápido demais para parecer real. Rápido demais para parecer humano.
É tudo tão repentino que se não fosse pela minha cabeça que ainda gira e pela expressão de dor no rosto de Teo, eu acreditaria que nada aconteceu. Entretanto, a despeito dessa onda ridícula de negação que me invade, aqui estamos, ambos feridos e precisando de ajuda. E não há ninguém por perto... Exceto...
Paty!
Ah, meu Deus! Ela se ofereceu para me fazer companhia e ainda estava lá dentro, trancando as últimas portas quando eu saí. Olho em volta e percebo que o carro dela ainda está ao lado do meu. E se ele a atacou também? Teria dado tempo antes? Ou depois? Será que ele correria para dentro do bar e tentaria com ela o que não conseguiu comigo? Ah, meu Deus!
Na mesma hora em que o desespero ameaça me engolfar, ouço um grito estridente e passos apressados. Os All Star detonados que Paty adora vêm correndo em minha direção, amassando impiedosamente o cascalho da entrada de veículos até que ela chega na calçada. Vejo suas pernas, vestidas em shorts curtos que deixam a pele negra e reluzente quase toda exposta, pararem diante de mim e desabarem com os joelhos no chão. Em seguida, ela está segurando meu rosto e me examinando com as mãos.
— Pa...ty... Paty — digo de um jeito entrecortado quando acho minha voz — Você está bem?
— Se eu estou bem? Caramba, Clara! Não, não estou bem! O que você acha de encontrar sua melhor amiga caída no chão? É claro que eu não estou bem! — diz ela, histericamente. — Mas que merda aconteceu aqui? Ei! — ela grita, quando começo a fechar meus olhos. — Não desmaie! Foco! Olhe pra mim! O que foi que houve?
— Eu cheguei aqui e tinha um cara em cima dela — diz Teo, que já se aproximou.
Paty se assusta como se não tivesse se dado conta de que ele estava ali, embora fosse impossível que ela não o tivesse visto, mesmo no escuro, quando passou por ele segundos atrás.
— Eu dei uma gravata nele, mas o desgraçado acertou meu rim e eu não consegui segurar o cara.
— Você acha que ele queria... — ela pergunta, como se eu não estivesse ali. Seu rosto moreno parece, incrivelmente, empalidecer diante da luz do celular que Teo tira do bolso.
—O que eu acho é que devemos chamar a polícia. — Então ele olha para mim e se abaixa com dificuldade para ajudar Paty a me levantar do chão. — E uma ambulância — completa, soltando um gemido de dor.
— Aquele desgraçado mão-de-vaca do Samuel! — reclama Paty, furiosa com nosso chefe, enquanto andamos de volta para o bar. — Eu já pedi duzentas vezes pra ele colocar um segurança neste estacionamento. E uns postes para iluminar esta escuridão de merda.
Teo já está discando para a polícia enquanto me apoia do seu lado bom. Minhas pernas ainda parecem de gelatina e ajuda muito pouco que um lado inteiro de meu corpo esteja apoiado no dele.
Não é o momento, Mrs. Robinson, mas não é realmente um ataque. Estou cansada, dolorida e confusa demais para minha parte cínica me autocensurar. Cada parte de mim, incluindo essa, está tentando achar uma maneira de entender o que aconteceu e não consigo chegar a nenhuma conclusão.
Quem era ele? Por que me atacou? Eu sabia que aquilo não tinha sido simplesmente um assalto que não deu certo. E eu também não estava apostando na teoria de Paty e Teo de que ele queria me estuprar. Eu sei que ele queria me matar. E também sei que ele não queria, que hesitou e teve medo quando podia ter terminado tudo rapidamente. Por quê? E o que foi aquilo que senti quando ele me tocou? Como é possível que eu tenha compartilhado de suas emoções naquele instante?
Uma nova dor me corta quando Paty encosta um saco de gelo na minha cabeça machucada. A sensação é ao mesmo tempo um alívio e um desconforto. Ela se senta ao meu lado no sofá que fica nos bastidores do palco, na sala onde as bandas descansam, e me faz deitar em seu colo.
Teo se senta ao lado dela e toma o saco de gelo de suas mãos, segurando-o de leve contra meu couro cabeludo.
— A ambulância deve chegar logo — ele diz, enquanto afaga meu rosto com uma das mãos. — Beleza de primeiro encontro, hein? —brinca, sorrindo um pouco, depois suspira e fica sério, quase como se estivesse se sentindo culpado.
— Pense pelo lado positivo — digo, tentando fazê-lo sorrir novamente. — Não tem como o segundo não ser melhor.
Ele ri e Paty também, mas logo ficamos todos sérios novamente.
— Se você tivesse chegado só uns cinco minutos depois... Nem sei o que teria acontecido — diz ela.
— Foi tudo culpa minha! — Teo responde, e eu não posso entender como ele pode pensar uma coisa dessas. — Não devia ter marcado tão tarde. Devíamos ter deixado pra amanhã. Por causa da minha insistência em te ver, vocês duas ficaram em perigo.
— Bobagem, gato! — exclama Paty, e vejo que Teo não consegue reprimir um pequeno sorriso diante do jeito reluzente dela. Quanto a mim, fico aliviada que ela esteja disposta a desanuviar o ambiente e que não esteja mais tão nervosa. — Eu e minha branquinha sabemos nos virar, fechamos o bar quase sempre quando todos os “machos corajosos” que trabalham aqui já foram dormir. Eu é que não devia ter ficado aqui dentro, devíamos ter saído juntas. E tinha que ter uma merda de um segurança lá fora esperando pela gente. Só acho!
— Deixem de besteiras os dois! Não foi culpa de ninguém. Vamos apenas dar graças a Deus que estamos todos bem.
Quase bem, Branquinha. Quase bem – responde ela, acariciando minha cabeça.
— Ah, Paty. Podia ter sido tão pior!
— Eu sei, Santa Clara. Depois fazemos uma novena, mas agora estou puta da vida! O Samuel que me aguarde! Espero que a polícia dê uma pisa nele. Estas são condições insalubres de trabalho!
— Nosso horário de trabalho já tinha terminado, Paty. Não era mais responsabilidade dele, esqueceu?
— Ah, fica quietinha, porque você está delirando. Deve ser a pancada. Só fica deitadinha aí que eu luto por nossos direitos.
Teo ri, mas não emite opinião. Ele parece perceber que quando Paty está assim, não é conveniente tentar argumentar com ela.
Apesar de tudo, da dor, do desconforto, da confusão e do susto, percebo que estou cercada pelas duas pessoas com quem mais me importo neste momento de minha vida, e que eles quase preenchem o buraco que tenho em mim desde que me separei de Marina e Caio. Logo, estarei com eles também e meu coração estará novamente inteiro. No entanto, há um cantinho obscuro de meu cérebro que não consegue esquecer o toque repentino e surpreendente daquela estranha mão enluvada ou de como ele hesitou quando viu meu rosto. Há uma chama insistente que começa a queimar nesse canto obscuro e a luz me faz ver. Sou algo inacabado. E a peça que falta teima em se esconder nas sombras.


sábado, 15 de novembro de 2014

Capítulo 9 Entre a Luz e as Sombras

Capítulo 9 – Deslumbrada

And how high can you fly with broken wings?
Life's a journey not a destination
And I just can't tell just what tomorrow brings
You have to learn to crawl
Before you learn to walk
But I just couldn't listen to all that righteous talk
(…) It's amazing
With the blink of an eye you finally see the light
It's amazing
When the moment arrives that you know you'll be alright
It's amazing
And I'm sayin' a prayer for the desperate hearts tonight
(Amazing – Aerosmith)

Passo as duas horas seguintes num combate ferrenho comigo mesma. Sei que preciso trabalhar e arrasto meus pés, já doloridos, em direção às mesas que sirvo, anoto os pedidos sem realmente escutar o que me dizem, errando tudo e impacientando o pessoal da cozinha e do bar, sorrio para os clientes e aceito seus gracejos com a mesma cara ensaiada de sempre, enquanto me forço a tentar prestar atenção no que estou fazendo. No entanto, não estou realmente ouvindo. Ou vendo. Ou sequer me sinto de verdade naquele ambiente.
Tudo o que sinto, vejo e escuto é aquele garoto com sua voz que se desfaz em mim, que me desmonta para em seguida me reerguer como se eu fosse barro nas mãos do Senhor. Ele é divino. Não é um anjo. Parece mais um Deus.
Ótimo, agora você está blasfemando! É só um garoto bonito, Clara.
Sei que minha mente malcriada, e agora muito sensata, aliás, a única parte realmente sensata em mim neste momento, tem razão, mas não consigo fechar meu cérebro em torno da ideia de que ele seja só um garoto como outro qualquer, ou só um novo anjo cujo caminho devo ajudá-lo a encontrar. Não quando sinto meu coração se inchar na presença dele e doer com a perspectiva de que talvez eu não o veja novamente, de que talvez nem chegue a saber seu nome.
Nunca me apaixonei antes. Nunca amei um homem. Não dessa maneira, pelo menos. Então não sei o que é isso que estou sentindo, mas sei que não consigo evitar. Fico deslizando pelo bar, andando de um lado para o outro tentando fazer tudo certo, mas a música me chama, ela invade meus sentidos e eu tenho que me forçar a não olhar, a não ouvir, para conseguir trabalhar.
Tento pensar em uma música feia e grudenta e a cantarolo baixinho enquanto faço meu trabalho. Dentro de minha cabeça, eu a berro com a voz mais desafinada que consigo imaginar. Há uma parte de mim que fica me implorando para parar, para deixar a voz do garoto penetrar em minhas defesas e fazer seu trabalho de me desarmar, mas gosto um pouco de torturar esse lado que sempre me tortura, só para variar. Então fico ali concentrada na música feia e repetindo o que estou cansada de saber: que ficar assim tão vulnerável é perigoso.
O truque dá certo por um tempo e é o suficiente para me ajudar a durar até que o show acabe. A banda agradece e sai do palco, indo para os fundos do bar, onde podem descansar. A norma da casa é que, se eles quiserem, podem ficar lá enquanto comem e bebem, não precisam vir até aqui fazer seus pedidos, pois nós podemos atendê-los nos bastidores. Era o que quase toda banda preferia fazer, exceto essa.
Minutos depois de deixarem o palco, os músicos da banda Seattle estão todos vindo em minha direção. Longe por alguns instantes da presença do anjo, eu tinha finalmente conseguido pôr minha mente no lugar e estava planejando pedir que Paty fosse aos bastidores. De alguma forma, eu sei que não devia estar me sentindo assim por causa do garoto. Afinal, ele é mesmo apenas um garoto.
Apesar de sua luz ofuscante, para mim foi fácil perceber que ele ainda não sabia o que era, que ainda não entendia seu Chamado. Então era meu dever me acalmar e tentar “ouvir” qual era minha missão, o que fazer para orientá-lo. Só podia ser essa a razão desta atração implacável que me chamava para ele.
Mas neste momento ele está vindo em minha direção e qualquer plano que eu possa arquitetar não passa muito longe de apenas inspirar e expirar para não perder os sentidos diante dele.
Ah, pelo amor de Deus! Era só o que me faltava, rosna minha mente malcriada. E eu sei que ela tem razão. Estou sendo ridícula. Apenas não consigo evitar.
— Oi — ele diz, enquanto o resto da banda se instala em uma das mesas próximas do balcão atrás do qual tento inutilmente me esconder.
Seus lindos olhos me encaram em expectativa, mas eu apenas fico ali olhando para ele sem dizer nada.
Ótimo! Ignore-o. Quem sabe assim ele vai embora.
— Oi — respondo finalmente, porque, ao contrário de minha mente, não sou malcriada.
— Nossa, pensei que tinha se esquecido de mim aqui — brinca ele, sorrindo. E aquele sorriso...
— Desculpe, eu...
— Eu sei. Você deve estar cansada. Eu sei que eu estou. E eu nem estava andando para lá e para cá com uma bandeja cheia nas mãos.
— Sim, é isso. — Não só isso, mas... — Obrigada por reparar. É muito gentil de sua parte. Em que posso ajudar? — pergunto, tentando desviar a conversa para um campo mais seguro. Ele, no entanto, não parece dar-se conta da minha deixa.
— Eu percebi porque estive reparando em você a noite inteira.
Meus olhos caem, procurando qualquer coisa no chão e sei que estou mais vermelha que um tomate maduro. Sinto-me, mais uma vez, ridícula!
Meus Deus, mulher! Você tem idade para ser avó dele! — dispara minha mente, já de volta à sua plena capacidade de me torturar.
Nossa aparência é a mesma, qualquer um que nos visse diria que temos a mesma idade. Meu cérebro entra em colapso quando eu penso no quão jovem ele deve ser e tento imaginá-lo mais velho, com uma idade mais próxima da que realmente tenho, seus cabelos quase louros salpicados de prata, pequenas linhas aprofundando o contorno de seus olhos e os tornando ainda mais intensos, a indescritível e imaterial beleza de quem sabe das coisas, de quem aprendeu com o tempo...
Oh, céus! Ficaria ainda melhor!, constatamos juntas, e então decidimos que é melhor parar de imaginá-lo assim. Não está fazendo nenhum bem.
Continuo envergonhada na frente dele, como se nunca tivesse escutado nada do tipo. A estupidez disso me atinge em cheio quando me lembro dos incontáveis anos em que já trabalhei como garçonete e em quantas vezes já ouvi gracejos, no mínimo, indecentes. Era de se esperar que algo assim sequer me fizesse cócegas, era de se esperar que toda minha idade fizesse diferença agora. Não sou nenhuma mocinha jovem e inexperiente!
No entanto, ele não sabe disso e, aparentemente, nem meu corpo, que se comporta como o de uma adolescente, embora eu nunca tenha sabido realmente o que era isso. Respondi ao meu Chamado cedo demais e coisas como essa que estou sentindo agora ficaram para trás, varridas para o limbo necessário das histórias não vividas e sensações não experimentadas.
É confuso na maior parte do tempo e, em alguns momentos, como agora, pode ser terrivelmente opressor saber tão pouco sobre as sensações humanas. Meu corpo não reflete quem eu sou e isso faz com que minha mente e meu coração sejam, muitas vezes, como os de uma criança, sob certos aspectos. Embora eu tenha vivido muitos anos, muitos mais dos que já viveu esse anjo encoberto à minha frente, tão lindamente inconsciente de si mesmo, não sei de muita coisa. Não vivo como uma pessoa normal, então não sinto ou penso como uma.
Volto a olhar para ele e sei que o que quer que eu esteja sentindo agora é ofuscante e indelével, alguma espécie de amor, embora eu não saiba qual.
— Desculpe — ele diz. — Não costumo ser assim, tão... direto! Mas há algo em você. Eu não sei o quê. Só sinto que... sei lá! Como se fôssemos parecidos.
Ah, ele pressente! Meu anjo novato, esse que tem a luz incerta e cortante de quem ainda não compreendeu, já sabe identificar seus pares. Então foi isso que o fez reparar em mim.
Decepcionada, Mrs. Robinson[1]?
Coro de novo, dessa vez diante de meus próprios pensamentos. Algumas vezes tenho horror desta versão de mim mesma que pode ser tão má. E às vezes me assusto com o quanto essa loucura parece natural para mim. Muito me surpreende que eu não saia por aí conversando com minha própria mente em voz alta! Em todo caso, mando-a ir se catar e ficar de castigo no canto enquanto falo com o garoto.
— Sou Clara. Qual o seu nome? — tomo coragem de perguntar. Afinal, não posso mais ficar chamando-o de “garoto”. De qualquer forma, pensar nele assim me faz sentir como se minha mente venenosa tivesse razão.
— Teo. Teo Peres — ele responde, enquanto estende a mão para mim.
Teo. Teodoro, talvez? Presente de Deus? Pode apostar que sim! É um nome muito apropriado para meu pequeno anjo novato.
— É um nome bonito — digo, enquanto me embanano com os drinques que estou preparando e aperto sua mão mecanicamente, rápido demais para que signifique alguma coisa.
Ô, conversa produtiva!, diz ela, escapando do castigo.
— Obrigado — ele responde, depois hesita por um segundo. — Ouça, eu tenho que voltar para a mesa agora, mas... Eu queria saber... Er... Eu posso ver você de novo? Quem sabe você não me dá seu WhatsApp ou seu Facebook...
Facebook!? WhatsApp!? Ai, ai, essa vai ser engraçada!
— Eu não tenho nenhum dos dois.
Claro que não, como poderia? Aquilo é como um dispositivo rastreador pregado na sua testa! Subitamente percebo que para Teo se tornar um anjo da nossa espécie será muito mais difícil. Como ele se acostumará a voar por baixo do radar como eu tenho feito esses anos todos? Não é à toa que ele ainda não ouviu o Chamado. Talvez não esteja pronto para isso.
— Não tem!? — Ele me olha com descrença, mas não está rindo como todos costumam fazer quando digo isso. Pelo contrário, parece magoado.
Ele acha que você está mentindo para evitá-lo, tonta!
Uma pontada estúpida de dor espeta meu coração quando percebo que ela pode estar certa e sei que faria tudo, absolutamente qualquer coisa, para que ele não ficasse chateado.
Você é uma besta mesmo!
“Sei disso, mas não posso evitar. É da minha natureza. Sou um anjo e gosto de ver as pessoas felizes. Ponto.”
As pessoas ou essa pessoa?
Peço o celular que só agora percebo que ele segura na mão e ele o estende prontamente, com olhar curioso. Digito o número de meu próprio celular na tela e o devolvo para ele, que sorri para mim.
Sei que fiz algo imprudente, considerando como me sinto na presença dele, mas se ele está aqui é porque devo ajudá-lo a descobrir seu caminho, não é?
Não é?
Você não ouviu nada! Não sabe se tem alguma missão. Deve ser porque você virou uma menininha daquelas que grita tietagens alto o suficiente para que o juízo não ouça o que deve ouvir. Próximo passo: groupie de roqueiro amador!
Tudo bem, minha mente venenosa está sendo especialmente mal-humorada agora, mas ela não deixa de ter razão. Há um sentimento que não entendo gritando alguma coisa alto demais para que eu possa pensar com clareza. O problema é que quando ele sorri para mim eu simplesmente não me importo com o resto. Como agora.
— Obrigado, Clara. Vejo você por aí.
Ele estende a mão através do balcão e segura a minha por alguns segundos, depois a solta e volta para seus amigos. São apenas uns poucos momentos, mas desta vez eu sinto. A pele dele é macia e quente e o calor permanece em mim muito depois que ele se foi. É estranho. Assustador. Maravilhoso.
— Parece que o namorado traidor acabou de virar passado, não é, amiga? — diz Paty, que se aproxima de mim depois de ter anotado os pedidos da mesa dele.
Demoro um tempo para entender do que ela está falando e então me lembro da mentira que contei horas atrás, justamente para evitar que ela tentasse me aproximar de Teo.
Olho para ela e percebo que o sorriso em seu rosto não chega a seus olhos. Há uma pitada de qualquer coisa ácida em sua voz e penso que talvez ela esteja com ciúmes. Não sei o que fazer quanto a isso, porque não quero que ela sofra por nada, não quero que ela fique chateada, mas não posso realmente evitar o sorriso bobo que se estampa em meu rosto quando, lá de sua mesa, ele olha disfarçadamente para mim. Paty suspira e veste uma expressão quase resignada.
— Tudo bem, mas o próximo é meu, hein! — diz ela. E antes que eu possa reagir, ela sai serpenteando por entre as mesas, a saia rodada do uniforme preto balançando em torno de suas pernas e atraindo os olhares dos homens ao redor. Eu odeio esse uniforme, mas não posso negar que Paty sabe usá-lo como ninguém.
Quase como uma arma!
Tiro um segundo para pensar se ela vai ficar bem ou se está com raiva de mim. Não suporto quando ela se chateia! Mas vejo-a sorrindo para um cliente especialmente entusiasmado com a beleza dela e tenho a sensação de que ela já encontrou uma maneira de se distrair da “derrota”.
 Olho para Teo e sinto a mão que ele tocou formigar de leve. É incrível, mas ainda posso sentir seu calor. Então percebo que há dezoito anos tenho estado com frio, mas que talvez, só talvez, um novo dia ensolarado tenha amanhecido para mim.




[1] Mrs. Robinson é o nome de uma canção escrita por Paul Simon sobre a personagem homônima no filme A Primeira Noite de um Homem, de 1967. Na história, ela seduz um rapaz muito mais jovem.

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