Capítulo 9 – Minha mente, sua mente
How
long, how long will I slide
Separate
my side, I don't
I
don't believe it's bad
Slittin'
my throat
It's
all I ever
I
heard your voice through a photograph
I
thought it up it brought up the past
Once
you know you can never go back
I've
gotta take it on the other side
(Otherside – Red Hot Chili
Peppers)
Logan
O primeiro jorro de lembranças não é
como eu esperava. Não o último momento importante, não a sensação de ir embora.
Mas, sim, imagens embaralhadas, tiradas e postas muito rápido umas sobre as
outras, como cartas jogadas sobre a mesa no início de um jogo. Imagens
fragmentadas e sobrepostas.
Crianças correndo entre as árvores
de uma fazenda. A sensação gelada de um pulo no riacho. O gosto de laranja.
Uma enorme varanda de madeira onde
um homem canta enquanto dedilha seu violão distraidamente. A voz dele é bonita.
Lembra alguém. Eu sei. Mas a imagem já está distante demais para ser tocada.
Enquanto isso, uma mulher pendura
lençóis brancos em um varal que parece não ter fim. Eles balançam com o vento
como se fossem bandeiras. Aquele é um reino. A mão da mulher se fecha em concha
contra a minha bochecha. Posso sentir a aspereza macia da pele que cheira a
sabão e comida quentinha, mas não consigo ouvir o que ela me diz. Os olhos dela
são como um rio. Parecem continuar. Sempre.
É noite no deserto. Gosto de como o
céu estrelado sobre minha cabeça faz a solidão parecer bonita. Cabelos longos
se espalham pelo travesseiro. Espalham-se pela minha alma também. Alguma coisa
nasce nas rochas. Um hibisco.
Uma vez. Esta vai ser a única vez.
Meu peito dói. A sensação de solavanco
que se tornou desagradavelmente familiar me assalta com força. Como se eu
estivesse me afogando de dentro para fora.
Olho para mim mesmo e então entendo
como isso é possível. Não sou eu. É o garoto que costumava ser um Buscador.
Gosto dele. Nunca consegui evitar. Falo com ele, mas ele não responde, está
confuso. Apenas me olha de volta surpreso.
— Imagine-se cercado de paredes.
Dessa forma, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.
Outra lembrança, mas essa é
diferente. Não parece que foi assim que aconteceu. Acho que me lembro da frase,
mas em uma situação distinta. As palavras enigmáticas não combinam com a
menininha que as diz.
Observo-a com mais atenção. Não é
muito pequena, na verdade. Deve ter uns 11 anos, talvez, mas não tenho tanta
certeza. É morena, usa um uniforme de futebol e rabo de cavalo. Tem um olhar
perspicaz, mas ainda me parece infantil o bastante. A pele de seu nariz e
embaixo dos olhos, no alto das bochechas, está vermelha de sol, parece que ela
passou o dia todo brincando. Seu rosto me é muito familiar, mas não consigo... Lembro de pensar que aquela criança
conseguiria enxergar através de qualquer parede que a forçassem a erguer. Ela é
inteligente, forte...
“Melanie.”
Levo um susto. Faz muito tempo que
não me assusto. Eu acho. Mas é outra coisa sobre a qual não tenho certeza.
O
quê...
“Minha
sobrinha. É como gosto de me lembrar dela. Por que você está se lembrando das
coisas do meu jeito?”
Eu...
Ahn... Não sei.
“Acorde,
Logan! Eu é que sou novato nisso e você é que está perdido?”
Logan. É quem eu sou. O nome me diz
tantas coisas quanto as palavras contidas em uma biblioteca. Consigo me lembrar
agora. Minha história. E o intruso em minha cabeça... Não, eu é que sou o
intruso. Por isso as coisas parecem não funcionar tão bem e eu me sinto como se
me movesse em gelatina.
Sua
mente é estranha.
“Que
simpático. Agora tente se lembrar do porquê de estarmos juntos aqui.”
Jeb. É ele quem está comigo. Preciso
salvá-lo.
Sim,
eu me lembro.
“Ótimo.
Porque eu não esqueci. Agora vamos encontrar um jeito de fazer isso funcionar...”
Não
acho que eu esteja lembrando as coisas do seu jeito. Acho que era você o tempo
todo. Lembrei de coisas antes de você acordar.
“Que
coisas?”
Não
sei bem o que elas significam. Uma fazenda, um varal, riacho... Você se
sentindo mal.
“Bem,
pare de lembrar minhas lembranças. Foi esse o combinado. O quebra-cabeça é meu,
eu é que entendo das peças.”
Não
estou tentando invadir sua mente. Acontece que estamos fracos, eu e você. As
coisas escapam pelas frestas.
O despertar embaralha a percepção de
tempo. Tudo isso pode ter transcorrido durante uns poucos segundos apenas, ou
vários minutos, não sei. Aqui dentro não importa realmente. O que sei é que ele
fica em silêncio por um tempo que me parece, paradoxalmente, tão indefinido
quanto longo. É um alívio, mas também me angustia. Como ficar sozinho numa
grande casa habitada por uma família numerosa.
Jeb?
Começo
a temer que algo tenha dado errado. Há um propósito nisso tudo, mas esse
propósito não inclui o silêncio dele.
Então eu vejo. Paredes. Portas
batendo. O estrondo me assusta e abro os olhos.
— Tudo bem? Você está bem?
A voz era familiar, mas parecia
ligeiramente diferente. Era a voz de uma menina para estes ouvidos. Delicada
demais. A cadência quase estrangeira com que soava para este hospedeiro me
fazia associá-la com prata. A mesma que brilhava no fundo dos olhos escuros.
O rosto dela se destacava em meio
aos outros, também tão familiares. Procurei reconhecê-los também. Melanie,
Jared, Ian, Doc. Os nomes chegaram com relativa rapidez, mas suas feições me pareciam
diferentes. Através dos olhos deste hospedeiro, Doc me parecia menos
excêntrico, Jared menos duro, Ian mais juvenil e Melanie... mais familiar! Tão
bonita quanto poderia ser. Um misto da menina com uniforme de futebol e da
mulher com jeito de guerreira. Meu olhar se demorou um pouco em cada um, mas
logo voltou a buscar aquela que eu reconheceria em qualquer circunstância, a
única que meus olhos realmente
queriam ver.
— Estrela.
Era estranho, porque eu sabia que
aquela não era minha voz, mas ao dizer o nome dela era assim que me parecia,
como a voz humana que eu tinha ouvido sempre, dizendo a palavra que mais
importava.
Ela me observou preocupada, os olhos
escuros perscrutando minhas reações lentas. Tentei me fixar neles, porque
embora tudo o mais parecesse diferente, os olhos dela ainda eram os mesmos. Quando
eu a conheci, eles olhavam para mim de outro rosto, tinham outra cor, outro formato.
Mas a ternura que existia neles havia sempre permanecido. E mesmo que agora
fosse eu que estivesse em outro corpo, aqueles olhos continuavam sendo para
mim.
— Oi — cumprimentei, exercendo meu
direito de me sentir um pouco bobo.
— Olá — ela disse, sorrindo e
tocando de leve minha mão.
Meus novos dedos sentiram seu toque
e despertaram. Estendi a mão, sentindo como se meu braço pesasse uma tonelada.
Eu não estava acostumado a me sentir fraco e aquilo me incomodava. Em algum
lugar ali bem perto, estava o corpo que eu reconhecia como meu: forte,
disposto, resistente. A sensação fazia falta. Enfrentar o mundo num corpo mais
velho e, ao menos naquele momento, tão fragilizado, me parecia extremamente
desafiador. Acostumar-me com aquilo seria uma experiência no mínimo singular.
“Bem-vindo à velhice, garoto. Me
lembre de esfregar isso na sua cara da próxima vez que vier com aquela história
de sou-um-ser-milenar. Tem muita graça vindo de alguém com 30 anos.”
Eu
vou precisar mesmo te lembrar de esfregar alguma coisa na minha cara? Você vive
para fazer isso!
“Quanta
falta de humor!”
Continuei concentrado em me adaptar
ao novo corpo, movendo-me devagar. Era um tanto frustrante o esforço que cada
movimento demandava devido à doença.
— Não se esforce muito — alertou
Estrela. — Jeb precisa repousar o máximo possível. Ele está aí com você? Vocês
dois estão bem?
“Pode apostar que ainda estou aqui,
Estrelinha.”
— Sim, estamos bem — respondi por
ambos.
Devia ser difícil não poder ser
ouvido. Embora lidar com outra consciência além da minha não fosse exatamente
um passeio no parque, estarmos os dois aqui provavelmente era bem pior para ele
do que para mim.
“Fichinha”, ironizou Jeb.
Minha expressão deve ter parecido
algo desalentada, porque Estrela segurou minha mão e tocou meu rosto.
— Vamos resolver isso logo. Vai
ficar tudo bem — ela disse, tentando me acalmar. A sensação era tão boa que nem
me importei que os dedos dela estivessem, na realidade, tocando outra pessoa.
Era Estrela. Tudo o que havia de
imutável em nós se reconhecia.
Um assovio prolongado me chamou de
volta ao diálogo interno.
“Carambola Maria Viola!”
Quê?O
que diabos quer dizer isso?
“Nada.
Só que eu invento minhas próprias interjeições quando a ocasião é digna de tal.
E, rapaz, estou admirado!”
Com
o que, exatamente?
Uma sequência de imagens e sensações
envolvendo Estrela passou pela minha cabeça vinda de um ponto de vista ímpar,
como se alguém pudesse olhar o lado de dentro de meu cérebro e mostrá-las para
mim.
Estrela ainda no corpo de Peg,
deitada na cama da Instalação de Cura. A sensação de que sua fragilidade testava
os limites de minha sanidade. O medo de perdê-la reavivando e reinventando
lembranças até então esquecidas. O desespero disfarçado de fúria quando achei
que não a veria nunca mais. A hospedeira nova. Uma cujo coração podia
finalmente me pertencer por inteiro. Nós dois juntos. As lágrimas de felicidade
dela quando John nasceu. E Lindsay. Nossa filha. Irrevogavelmente fundidos.
O
que é isso? O que você está fazendo?
Finalmente
eu entendia a resistência dele em me deixar entrar. Aquelas eram minhas
lembranças e eu não o queria ali.
Pare
com isso!
“Eu
não estou fazendo nada, você não percebeu? É você mesmo quem está deixando
escapar. Eu só estava... Bom, estava tentando lidar com os sentimentos que você
trouxe para o meu corpo. Sabia que você a amava, mas eu não fazia ideia de que
era assim. Já faz muito tempo para mim. Não gosto dessas sensações.”
Sentimentos
que eu trouxe para o seu corpo? Você está querendo dizer que está apaixonado
pela minha mulher!?
“Estou
querendo dizer que você é apaixonado
por ela. O que eu estou é ficando
enjoado com o quanto! Trate de controlar suas emoções!”
Talvez
seja a minha identidade tentando se sobrepor à sua.
“Pois
guarde sua identidade para seu próprio corpo. Obrigado. Concentre-se nas
paredes, como Mel nos ensinou.”
— Logan — Estrela me chamou,
interrompendo a discussão. — Nós vamos mover você agora, tudo bem?
Meneei a cabeça, consentindo, mas
tudo naquilo me incomodava. Eu sabia que era preciso preservar a energia do
corpo de Jeb ao máximo, mas a sensação de impotência sempre foi opressiva
demais para mim.
“Também não gosto da ideia, mas a
menos que você consiga mover minhas pernas melhor do que eu estava conseguindo,
vamos ter que aceitar a situação.”
Não respondi. Apenas deixei Ian e
Jared levantarem o catre com meu corpo cansado e quase inerte em cima, e tentei
me concentrar em não odiá-los por, neste momento, depender completamente da
força deles. Jeb não disse nada, mas eu podia sentir a interrogação em sua
mente.
Não
estou acostumado a precisar de ninguém.
“Todo
mundo precisa de alguém de vez em quando, garoto.”
Pois
eu não tenho boas lembranças das vezes em que precisei de ajuda.
Fome.
A sensação de estar sempre no limite entre o desejo minimamente satisfeito e o
estômago vazio. Não era o suficiente para me matar ou mesmo para enfraquecer
meu corpo. Apenas para manter minha mente prisioneira da próxima vez. Haveria
uma próxima vez? Em que ponto o prato seria tirado de mim como se eu devesse
ter controle de quando estar saciado?
Trabalhar além de minhas forças.
Sofrer as consequências se não o fizesse. Deixar tudo limpo, mas ter a sensação
de estar sempre sujo. Nunca dizer nada a ninguém. Nem na escola, nem em lugar
algum. Mesmo quando as marcas no meu corpo revelavam a verdade que todos se
esforçavam por ignorar.
Lindsay morrendo sem ajuda.
“Essas lembranças são... suas?”
Sim,
minhas. Dele. Mas minhas também.
Jeb não sabia nada sobre meu
passado. Ninguém ali sabia, exceto Estrela. Mas não era nenhum segredo. Nada
que eu fizesse questão de guardar. Eram só coisas sobre as quais eu nunca tinha
achado necessário falar.
“Quem eram aquelas pessoas?”
Responsáveis.
Lares provisórios.
Silêncio.
Não havia nada a dizer.
******
Eu me sentia cansado, muito cansado.
Algum tempo havia se passado e eu
supunha que estivéssemos quase chegando, embora sem ver a estrada não desse
para ter certeza de qual distância já tínhamos percorrido. Estávamos no furgão,
meu corpo acomodado no chão forrado com lençóis e almofadas, enquanto Estrela
ia ao meu lado e Jared e Mel iam à frente, conduzindo o veículo numa velocidade
que alertaria qualquer Alma que calhasse de cruzar nosso caminho.
Não pensamos nisso direito, a bem da
verdade. Mesmo que estivéssemos acostumados a arranjos como aquele, seria mais
prudente que Estrela estivesse dirigindo e os humanos ficassem escondidos aqui
atrás comigo. Por outro lado, com a sensação em meu peito ficando mais
opressiva a cada instante, a velocidade de Jared era mais desejável àquela
altura.
Teríamos que contar com a proteção
da madrugada para que ninguém percebesse. E com o fato de que há anos as
estradas ao redor de Picacho Peek, onde humanos tinham sido flagrados uma vez,
já não eram mais vigiadas. Os Buscadores provavelmente acreditavam que os
membros daquela resistência estivessem mortos, ou que tivessem fugido para
longe. A natureza pacífica de nossa espécie tornava até mesmo os mais
vigilantes imprudentes.
“A ilusão de superioridade é a mãe
da passividade.”
A voz de Jeb estava fraca em minha
mente agora. Vez ou outra, como naquela hora, ele completava um pensamento meu
com algum de seus comentários sarcásticos, mas seus próprios raciocínios
estavam ficando inacabados e escassos, e isso me assustava. Em condições
normais, eu não acharia que a consciência dele pudesse sucumbir, mas mente e corpo
estavam ligados, afinal, e a fraqueza deste alimentava a fraqueza daquela.
Converse
comigo, Jeb! Não caia no sono. Nós temos que ficar acordados.
“Fácil
pra você falar.”
Não,
não é fácil. Mas ainda me resta mais energia do que a você. E não é minha mente
que está em risco aqui. Vamos, me ajude a te ajudar. Precisamos continuar
conversando.
Silêncio
de novo. Um lampejo da mulher que dormia sob a lua do deserto passou pela minha
cabeça. Eles faziam muito aquilo. Acampar sob as estrelas.
Dormir... Sob as estrelas ou em
qualquer lugar. Parecia tentador para mim também. Tanto que meus pensamentos
perderam o sentido por alguns instantes. Fiquei apenas atribuindo cores e
cheiros aos sons em minha cabeça, e insistindo em concluir um raciocínio
qualquer que já não conseguia mais saber por que era importante.
Norah. O nome me chamou de volta ao
mesmo tempo em que o carinho que Estrela fez em meu cabelo me despertou. Embora
eu não tivesse dito nada a ela sobre meu medo de que Jeb perdesse a consciência
se eu dormisse, acho que ela compartilhava de meu receio. Toda vez que meus
olhos se fechavam, ela me fazia acordar. Por causa disso, suspeitei que aquilo
não fosse exatamente uma lembrança, mas, talvez, um fragmento de sonho.
Jeb?
Nenhuma
resposta. Insisti.
Jeb?
“Ahn?”
Nós
estávamos mesmo dormindo, não é?
“Parece
que sim.”
Não
podemos deixar isso acontecer. Se dormirmos eu não vou saber se sua consciência
continua aqui ou foi suprimida.
“Não
pretendo ir a lugar algum.”
Eu
sei. Nem eu pretendo deixar. Mas a supressão da consciência do hospedeiro é um
processo natural e, no momento, precisamos estar alertas o bastante para
controlá-lo. Então converse comigo.
Eu podia falar com Estrela, ou mesmo
com Mel ou Jared, pedir a ajuda deles para que suas mentes mais alertas, e
certamente mais despertas, encontrassem algum assunto para nos manter distraídos,
mas não estava certo se qualquer conversa do tipo manteria Jeb acordado. Além
disso, era mais fácil assim, sem ter que de fato organizar minhas ideias em
palavras pronunciáveis e compreensíveis. Até esse esforço me parecia demais.
Me
conte sobre a mulher, pedi, num último esforço para engendrar um diálogo.
“Mulher?”
Norah.
Ela
agora tinha um nome. E um rosto. Ou... antes... apenas a impressão de sua
beleza. Eu podia ver seus olhos claros iluminados pela luz da fogueira, mas a
imagem me foi tirada antes que eu pudesse saber mais. Ele ainda estava forte o
suficiente para reprimir as lembranças que parecia acostumado a rejeitar.
Nós
sonhamos com ela, lembra?
“Certo.
Eu me lembro agora. Bem, não tem muito pra falar. Eu gostava dela. Ela me
chutou. Fim. Não é meu assunto preferido.”
Senti
a onda de raiva que o pensamento liberou, como magma pulsante sob a rocha
adormecida. Não queria forçá-lo a falar de coisas que lhe faziam mal, mas a
raiva o despertava um pouco e eu realmente precisava que ele ficasse acordado,
então continuei.
Por
quê?
“Por que não é meu assunto
preferido?”
Por
que não deu certo? Você a amava.
“Às
vezes isso não é suficiente.”
Deveria
ser.
“O que você quer que eu diga,
garoto? Eu já não pensava nisso há muito tempo. Você ainda não viveu aqui tempo
suficiente para saber que é besteira procurar sentido em assuntos encerrados,
mas eu sim. Esta conversa não me interessa.”
Estamos
falando disso porque o assunto desperta uma reação em você. Eu só estou tentando
fazer você pensar em coisas que te deixem acordado. A lembrança voltou à sua
mente duas vezes hoje. Deve haver uma razão.
“Sim, a de que você nem está
tentando trabalhar nas paredes entre nós. Em vez disso, está achando mais
interessante desenterrar fantasmas indesejados e remexer em coisas que não te
dizem respeito.”
Tenho
tanto controle das lembranças que me chegam quanto você. Mas, acredite, nada
disso é interessante para mim.
Eu
também não gostava nada daquilo. Sabia que ele tinha visto lapsos de mim. Ou do
humano cujas lembranças me moldaram. Quando mais cedo naquela noite, minha
própria raiva tinha escorrido como areia fina pelas imperfeições de minha
armadura traidora, eu sabia que ele vislumbrara o caminho das vielas escuras e
sem saída de que tive que aprender a desviar. E eu não o queria ali. Não queria
que ele me visse vulnerável ou que minha dor pudesse contaminá-lo. Não queria
que ele sentisse pena de mim como sentiu.
Então, sim, eu podia entender sua
relutância. Podia entender que ele protegesse as causas de suas mágoas e as
enterrasse no fundo da memória, onde ninguém mais pudesse adivinhá-las. Mais do
que ninguém, eu sabia que certas coisas só mereciam o silêncio em nossas almas.
Desculpe.
Foi apenas um minuto. Talvez dois.
Um punhado de segundos em que, aborrecidos com a conversa e irritados um com o
outro, permitimos que nossas mentes divagassem em direções independentes. Pode
ser que tenha sido o balanço suave e constante do carro em movimento na estrada
tranquila, ou que eu não tenha percebido os instantes se alongarem, como quando
os diálogos de um filme não fazem mais sentido porque você não notou que o sono
lhe roubou algumas frases.
Desculpe.
Aconteceu sem aviso, por causa de um
descuido bobo, mas de repente a cena parecia mudada. As luzes tinham se apagado
e o palco fora deixado só para mim. Chamei o nome de meu amigo algumas vezes,
possuído pela necessidade cega de negar a verdade. Mas eu sabia.
Jeb não estava mais ali.