Capítulo 9 – Deslumbrada
And how high
can you fly with broken wings?
Life's a
journey not a destination
And I just
can't tell just what tomorrow brings
You have to
learn to crawl
Before you
learn to walk
But I just
couldn't listen to all that righteous talk
(…) It's
amazing
With the
blink of an eye you finally see the light
It's amazing
When the
moment arrives that you know you'll be alright
It's amazing
And I'm
sayin' a prayer for the desperate hearts tonight
(Amazing – Aerosmith)
Passo as duas horas seguintes num combate ferrenho comigo mesma. Sei que
preciso trabalhar e arrasto meus pés, já doloridos, em direção às mesas que
sirvo, anoto os pedidos sem realmente escutar o que me dizem, errando tudo e
impacientando o pessoal da cozinha e do bar, sorrio para os clientes e aceito
seus gracejos com a mesma cara ensaiada de sempre, enquanto me forço a tentar
prestar atenção no que estou fazendo. No entanto, não estou realmente ouvindo.
Ou vendo. Ou sequer me sinto de verdade naquele ambiente.
Tudo o que sinto, vejo e escuto é aquele garoto com sua voz que se desfaz
em mim, que me desmonta para em seguida me reerguer como se eu fosse barro nas
mãos do Senhor. Ele é divino. Não é um anjo. Parece mais um Deus.
Ótimo, agora você está blasfemando!
É só um garoto bonito, Clara.
Sei que minha mente malcriada, e agora muito sensata, aliás, a única
parte realmente sensata em mim neste momento, tem razão, mas não consigo fechar
meu cérebro em torno da ideia de que ele seja só um garoto como outro qualquer,
ou só um novo anjo cujo caminho devo ajudá-lo a encontrar. Não quando sinto meu
coração se inchar na presença dele e doer com a perspectiva de que talvez eu
não o veja novamente, de que talvez nem chegue a saber seu nome.
Nunca me apaixonei antes. Nunca amei um homem. Não dessa maneira, pelo
menos. Então não sei o que é isso que estou sentindo, mas sei que não consigo
evitar. Fico deslizando pelo bar, andando de um lado para o outro tentando
fazer tudo certo, mas a música me chama, ela invade meus sentidos e eu tenho
que me forçar a não olhar, a não ouvir, para conseguir trabalhar.
Tento pensar em uma música feia e grudenta e a cantarolo baixinho
enquanto faço meu trabalho. Dentro de minha cabeça, eu a berro com a voz mais
desafinada que consigo imaginar. Há uma parte de mim que fica me implorando
para parar, para deixar a voz do garoto penetrar em minhas defesas e fazer seu
trabalho de me desarmar, mas gosto um pouco de torturar esse lado que sempre me
tortura, só para variar. Então fico ali concentrada na música feia e repetindo
o que estou cansada de saber: que ficar assim tão vulnerável é perigoso.
O truque dá certo por um tempo e é o suficiente para me ajudar a durar
até que o show acabe. A banda agradece e sai do palco, indo para os fundos do
bar, onde podem descansar. A norma da casa é que, se eles quiserem, podem ficar
lá enquanto comem e bebem, não precisam vir até aqui fazer seus pedidos, pois
nós podemos atendê-los nos bastidores. Era o que quase toda banda preferia
fazer, exceto essa.
Minutos depois de deixarem o palco, os músicos da banda Seattle estão
todos vindo em minha direção. Longe por alguns instantes da presença do anjo,
eu tinha finalmente conseguido pôr minha mente no lugar e estava planejando
pedir que Paty fosse aos bastidores. De alguma forma, eu sei que não devia
estar me sentindo assim por causa do garoto. Afinal, ele é mesmo apenas um garoto.
Apesar de sua luz ofuscante, para mim foi fácil perceber que ele ainda
não sabia o que era, que ainda não entendia seu Chamado. Então era meu dever me
acalmar e tentar “ouvir” qual era minha missão, o que fazer para orientá-lo. Só
podia ser essa a razão desta atração implacável que me chamava para ele.
Mas neste momento ele está vindo em minha direção e qualquer plano que eu
possa arquitetar não passa muito longe de apenas inspirar e expirar para não
perder os sentidos diante dele.
Ah, pelo amor de Deus! Era só o que
me faltava, rosna minha mente malcriada. E eu sei que ela tem razão. Estou
sendo ridícula. Apenas não consigo evitar.
— Oi — ele diz, enquanto o resto da banda se instala em uma das mesas
próximas do balcão atrás do qual tento inutilmente me esconder.
Seus lindos olhos me encaram em expectativa, mas eu apenas fico ali
olhando para ele sem dizer nada.
Ótimo! Ignore-o. Quem sabe assim
ele vai embora.
— Oi — respondo finalmente, porque, ao contrário de minha mente, não sou
malcriada.
— Nossa, pensei que tinha se esquecido de mim aqui — brinca ele,
sorrindo. E aquele sorriso...
— Desculpe, eu...
— Eu sei. Você deve estar cansada. Eu sei que eu estou. E eu nem estava andando para lá e para cá com uma bandeja
cheia nas mãos.
— Sim, é isso. — Não só isso,
mas... — Obrigada por reparar. É muito gentil de sua parte. Em que posso
ajudar? — pergunto, tentando desviar a conversa para um campo mais seguro. Ele,
no entanto, não parece dar-se conta da minha deixa.
— Eu percebi porque estive reparando em você a noite inteira.
Meus olhos caem, procurando qualquer coisa no chão e sei que estou mais
vermelha que um tomate maduro. Sinto-me, mais uma vez, ridícula!
Meus Deus, mulher! Você tem idade
para ser avó dele! — dispara minha mente, já de volta à sua plena
capacidade de me torturar.
Nossa aparência é a mesma, qualquer um que nos visse diria que temos a
mesma idade. Meu cérebro entra em colapso quando eu penso no quão jovem ele
deve ser e tento imaginá-lo mais velho, com uma idade mais próxima da que
realmente tenho, seus cabelos quase louros salpicados de prata, pequenas linhas
aprofundando o contorno de seus olhos e os tornando ainda mais intensos, a
indescritível e imaterial beleza de quem sabe das coisas, de quem aprendeu com o
tempo...
Oh, céus! Ficaria ainda melhor!,
constatamos juntas, e então decidimos que é melhor parar de imaginá-lo assim.
Não está fazendo nenhum bem.
Continuo envergonhada na frente dele, como se nunca tivesse escutado nada
do tipo. A estupidez disso me atinge em cheio quando me lembro dos incontáveis
anos em que já trabalhei como garçonete e em quantas vezes já ouvi gracejos, no
mínimo, indecentes. Era de se esperar que algo assim sequer me fizesse cócegas,
era de se esperar que toda minha idade fizesse diferença agora. Não sou nenhuma
mocinha jovem e inexperiente!
No entanto, ele não sabe disso e, aparentemente, nem meu corpo, que se
comporta como o de uma adolescente, embora eu nunca tenha sabido realmente o
que era isso. Respondi ao meu Chamado cedo demais e coisas como essa que estou
sentindo agora ficaram para trás, varridas para o limbo necessário das
histórias não vividas e sensações não experimentadas.
É confuso na maior parte do tempo e, em alguns momentos, como agora, pode
ser terrivelmente opressor saber tão pouco sobre as sensações humanas. Meu
corpo não reflete quem eu sou e isso faz com que minha mente e meu coração
sejam, muitas vezes, como os de uma criança, sob certos aspectos. Embora eu
tenha vivido muitos anos, muitos mais dos que já viveu esse anjo encoberto à
minha frente, tão lindamente inconsciente de si mesmo, não sei de muita coisa.
Não vivo como uma pessoa normal, então não sinto ou penso como uma.
Volto a olhar para ele e sei que o que quer que eu esteja sentindo agora é
ofuscante e indelével, alguma espécie de amor, embora eu não saiba qual.
— Desculpe — ele diz. — Não costumo ser assim, tão... direto! Mas há algo
em você. Eu não sei o quê. Só sinto que... sei lá! Como se fôssemos parecidos.
Ah, ele pressente! Meu anjo novato, esse que tem a luz incerta e cortante
de quem ainda não compreendeu, já sabe identificar seus pares. Então foi isso
que o fez reparar em mim.
Decepcionada, Mrs. Robinson[1]?
Coro de novo, dessa vez diante de meus próprios pensamentos. Algumas
vezes tenho horror desta versão de mim mesma que pode ser tão má. E às vezes me
assusto com o quanto essa loucura parece natural para mim. Muito me surpreende
que eu não saia por aí conversando com minha própria mente em voz alta! Em todo
caso, mando-a ir se catar e ficar de castigo no canto enquanto falo com o
garoto.
— Sou Clara. Qual o seu nome? — tomo coragem de perguntar. Afinal, não
posso mais ficar chamando-o de “garoto”. De qualquer forma, pensar nele assim
me faz sentir como se minha mente venenosa tivesse razão.
— Teo. Teo Peres — ele responde, enquanto estende a mão para mim.
Teo. Teodoro, talvez? Presente de Deus? Pode apostar que sim! É um nome
muito apropriado para meu pequeno anjo novato.
— É um nome bonito — digo, enquanto me embanano com os drinques que estou
preparando e aperto sua mão mecanicamente, rápido demais para que signifique
alguma coisa.
Ô, conversa produtiva!, diz ela,
escapando do castigo.
— Obrigado — ele responde, depois hesita por um segundo. — Ouça, eu tenho
que voltar para a mesa agora, mas... Eu queria saber... Er... Eu posso ver você
de novo? Quem sabe você não me dá seu WhatsApp ou seu Facebook...
Facebook!? WhatsApp!? Ai, ai, essa
vai ser engraçada!
— Eu não tenho nenhum dos dois.
Claro que não, como poderia? Aquilo é como um dispositivo rastreador
pregado na sua testa! Subitamente percebo que para Teo se tornar um anjo da
nossa espécie será muito mais difícil. Como ele se acostumará a voar por baixo
do radar como eu tenho feito esses anos todos? Não é à toa que ele ainda não
ouviu o Chamado. Talvez não esteja pronto para isso.
— Não tem!? — Ele me olha com descrença, mas não está rindo como todos
costumam fazer quando digo isso. Pelo contrário, parece magoado.
Ele acha que você está mentindo
para evitá-lo, tonta!
Uma pontada estúpida de dor espeta meu coração quando percebo que ela
pode estar certa e sei que faria tudo, absolutamente qualquer coisa, para que
ele não ficasse chateado.
Você é uma besta mesmo!
“Sei disso, mas não posso evitar. É da minha natureza. Sou um anjo e
gosto de ver as pessoas felizes. Ponto.”
As pessoas ou essa pessoa?
Peço o celular que só agora percebo que ele segura na mão e ele o estende
prontamente, com olhar curioso. Digito o número de meu próprio celular na tela
e o devolvo para ele, que sorri para mim.
Sei que fiz algo imprudente, considerando como me sinto na presença dele,
mas se ele está aqui é porque devo ajudá-lo a descobrir seu caminho, não é?
Não é?
Você não ouviu nada! Não sabe se
tem alguma missão. Deve ser porque você virou uma menininha daquelas que grita
tietagens alto o suficiente para que o juízo não ouça o que deve ouvir. Próximo
passo: groupie de roqueiro amador!
Tudo bem, minha mente venenosa está sendo especialmente mal-humorada
agora, mas ela não deixa de ter razão. Há um sentimento que não entendo
gritando alguma coisa alto demais para que eu possa pensar com clareza. O
problema é que quando ele sorri para mim eu simplesmente não me importo com o
resto. Como agora.
— Obrigado, Clara. Vejo você por aí.
Ele estende a mão através do balcão e segura a minha por alguns segundos,
depois a solta e volta para seus amigos. São apenas uns poucos momentos, mas
desta vez eu sinto. A pele dele é macia e quente e o calor permanece em mim
muito depois que ele se foi. É estranho. Assustador. Maravilhoso.
— Parece que o namorado traidor acabou de virar passado, não é, amiga? —
diz Paty, que se aproxima de mim depois de ter anotado os pedidos da mesa dele.
Demoro um tempo para entender do que ela está falando e então me lembro
da mentira que contei horas atrás, justamente para evitar que ela tentasse me
aproximar de Teo.
Olho para ela e percebo que o sorriso em seu rosto não chega a seus
olhos. Há uma pitada de qualquer coisa ácida em sua voz e penso que talvez ela
esteja com ciúmes. Não sei o que fazer quanto a isso, porque não quero que ela
sofra por nada, não quero que ela fique chateada, mas não posso realmente
evitar o sorriso bobo que se estampa em meu rosto quando, lá de sua mesa, ele
olha disfarçadamente para mim. Paty suspira e veste uma expressão quase resignada.
— Tudo bem, mas o próximo é meu, hein! — diz ela. E antes que eu possa
reagir, ela sai serpenteando por entre as mesas, a saia rodada do uniforme
preto balançando em torno de suas pernas e atraindo os olhares dos homens ao
redor. Eu odeio esse uniforme, mas não posso negar que Paty sabe usá-lo como
ninguém.
Quase como uma arma!
Tiro um segundo para pensar se ela vai ficar bem ou se está com raiva de
mim. Não suporto quando ela se chateia! Mas vejo-a sorrindo para um cliente especialmente
entusiasmado com a beleza dela e tenho a sensação de que ela já encontrou uma
maneira de se distrair da “derrota”.
Olho para Teo e sinto a mão que
ele tocou formigar de leve. É incrível, mas ainda posso sentir seu calor. Então
percebo que há dezoito anos tenho estado com frio, mas que talvez, só talvez,
um novo dia ensolarado tenha amanhecido para mim.
[1] Mrs.
Robinson é o nome de uma canção escrita por Paul Simon sobre a personagem
homônima no filme A Primeira Noite de um Homem, de 1967. Na história, ela seduz
um rapaz muito mais jovem.
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