Capítulo 5 – O Primeiro Dia
Still
we keep hoping,
to
fix all the defects
And
strengthen these seminal times.
We go
on together for better or worse,
Our
history is to real to hate.
Now
and forever we stay until morning,
And
promise to fight for our fate.
Til
we die
Til
we die
The
start of a journey is every bit worth it,
I
cant let you down anymore.
The
sky is still clearing, we're never afraid
And
the consequence opens the door.
I
never stopped trying,
I
never stopped feeling like
Family
is much more than blood.
Don't
go on without me, the piece that I represent
Compliments
each and everyone.
(Til We Die – Slipknot)
Estrela
Dizem
que alguns humanos não suportavam rotina, que quando suas vidas se resumiam ao
ir e vir das obrigações diárias, eles se sentiam incomodados, incompletos e
infelizes.
Para nós Almas, no entanto, essa é
uma ideia incompreensível. Sentimos conforto e segurança em termos coisas a
fazer e as mesmas pessoas para quem voltar, um senso de pertencimento e ajuda
mútua no cumprimento de atividades cotidianas. Por isso eu adorava a combinação
limitada de variáveis que compunham a maior parte de meus dias.
Eu os passava dividindo-me entre
cumprir tarefas gerais, como ajudar na cozinha, na plantação ou na limpeza;
aprender mais sobre a medicina humana com Doc e ensiná-lo sobre a química
desconhecida da nossa; dividir com Peg os cuidados com nossos filhos e, claro,
passar o maior tempo possível com minha família.
A primeira coisa para a qual eu
abria meus olhos de manhã era para Logan, deitado de lado, os cabelos desfeitos
pelas horas de sono e, boa parte das vezes, uma expressão serena no rosto
adormecido; em outras, o olhar desperto e promissor de quem já tinha planejado
bem meus próximos minutos. De um jeito ou de outro, era uma visão que fazia meu
dia.
Depois, quando Lindsay chegou, isso
mudou. No começo, eu acordava para atender as necessidades dela. Logan
levantava logo em seguida, mesmo que estivesse morrendo de sono, porque ele
gostava de nos olhar e ficar com nossa filha até que ela se acalmasse.
Na maioria das vezes, no entanto, eu
acabava com os dois dormindo ao mesmo tempo. Ela nos meus braços, e ele em
volta de nós duas na poltrona ampla que agora tínhamos. Eu gostava disso, e
costumava ficar um tempo lutando contra meu próprio sono para não perturbá-los,
até que não aguentava mais e, ao me mexer, fazia com que ele despertasse e me
ajudasse a colocar nossa filha silenciosamente na cama dela, assim como ele
fazia depois comigo.
Então chegou o tempo em que Lindsay
parou de acordar durante a noite. Eu acordava somente pela manhã ao som dos
sussurros dos dois, longas conversas infantis das quais eu não fazia parte,
forjando o laço entre minha filhinha e seu pai, meu menino grande, que podia
ser tão forte e tão frágil ao mesmo tempo.
Eu sabia o que aqueles momentos
significavam para Logan e sabia que o coração de Lindsay se lembraria deles
para sempre. Era como ver uma obra de arte atemporal sendo pintada, uma tão
bonita que eu não me importava de não estar presente em suas cores, apenas com
o quanto o desenho era perfeito.
No começo, quando meus dias na
Estação de Cura eram vazios e sem vida, eu costumava registrar as lembranças de
Peg em desenhos coloridos. Era minha maneira de organizar a explosão de beleza
que eu enxergava nelas, fazer com que ganhassem vida, ainda que meus dedos só
pudessem lhes fazer pálidas homenagens.
Quando, no entanto, eu via minhas
próprias lembranças se desenhando diante de mim daquela maneira, eu tinha
certeza de que a mais perfeita obra de arte jamais lhes poderia ser fiel,
porque aquilo não era um instante que se pudesse congelar no tempo, mas sim a
vida acontecendo, o jeito que ela deveria parecer sempre. E ninguém poderia
reproduzir o ciclo infindável do amor que renascia em mim com mais força todos
os dias.
Eventualmente, um dos dois me
flagrava observando-os e eu perguntava, apenas porque sabia o que diriam, sobre
o que eles estavam conversando.
— Sobre você — Logan me dizia,
dando-me sempre exatamente a mesma resposta.
E então ele sorria, presunçoso de
seu galanteio, seguro de que não importava se não fosse verdade naquele momento,
porque, de certa forma, sempre era em todos os outros. Lindsay sorria também,
cúmplice. Exatamente o mesmo sorriso. E eu não podia me importar menos com as
palavras anteriores àquelas, elas não me pertenciam, eram conversas de pai e
filha e estava tudo bem que eu não fizesse parte delas.
Na verdade, eu gostava disso, de
estar ausente daquele quadro, como se eu não fosse tocada por aquela cena. Fazia
com que eu a enxergasse de fora, como se eu pudesse um dia enxergá-la com
clareza suficiente para desenhá-la, como eu fazia com as lembranças de Peg.
Entretanto, essas eram as minhas lembranças, e nelas estava uma explosão de
beleza que me afetava tão diretamente que eu não poderia achar meios de
canalizá-la.
Era algo que eu podia observar de
fora, mas que acontecia, de certa forma, dentro de mim também. Como uma parte
minha que se desconectava do resto do mundo e me tornava parte dele ao mesmo
tempo. Um contraste tão perfeito e sublime que eu quase não podia lidar com o
quanto era bonito. Tudo o que eu entendia sobre o amor se tornava mais claro
para mim naqueles momentos.
Nossa espécie teve que aprender a
lidar com as emoções humanas, tão magníficas, violentas e paradoxais, que muitas
vezes a felicidade intensa chegava a doer. Eu sabia muito bem o quanto. Mas não
em momentos como aqueles. Nada do que eu sentia quando via a cumplicidade dos
dois ou entendia a grandeza do amor que existia entre nós se assemelhava a algo
que me machucaria ou me faria sentir indigna de tanta alegria.
Em meio a todas as coisas
maravilhosas que este corpo me trouxe, os traços que eu via refletidos no rosto
de minha filha sendo a mais preciosa delas, havia apenas um pequeno tormento.
Desde o começo, eu tive que aprender a lidar com o temperamento ciumento e
possessivo que eu tinha herdado desta hospedeira, tão perfeita em todos os
aspectos, exceto nesse.
Era vergonhoso e desagradável, e eu
me esforçava ao máximo para não deixar que os outros percebessem,
principalmente Logan, que nunca fazia por merecer tais sentimentos
descontrolados e egoístas.
Entretanto, algumas poucas vezes enquanto
grávida, eu me pegava imaginando como me sentiria com relação à minha filha, se
seria preciso domar meus sentimentos quando tivesse que dividi-la com os
outros. Quando meus amigos se apaixonassem por ela e ela por eles, e eu não
fosse mais o único mundo que ela conhecesse. Ou se seria difícil demais
esconder meus sentimentos por trás de uma olhar amoroso quando o homem que eu
amava, e por cuja atenção irrestrita ansiava, e a nossa filha, aquela que eu me
pegava querendo só para mim, estivessem entregues a momentos só deles?
Mas então ela chegou. E subitamente
eu não conseguia mais pensar em um amor que fosse dividido e que, no processo,
me fizesse sentir subtraída em vez de maior, melhor, mais plena. Meu amor por
ela era tão grande, tão oposto a tudo o que lembrasse o egoísmo do ciúme, que
nada do que eu temia jamais aconteceu.
Lindsay fez com que o amor entre mim
e Logan se tornasse ainda maior, ainda mais perfeito. Ele era meu e eu dele,
mas juntos nós éramos dela. E ela era
um pouco de cada pessoa que a amava, um pouco de cada pessoa que lhe oferecia
um colo, um sorriso, um afago, um lugar em seu quarto, um pedaço de seu
coração.
E eu não era nada além de
perfeitamente grata por todo carinho e proteção que havia para ela aqui. Todos
cuidavam dela, até mesmo pessoas de quem eu pouco esperava, como Sharon, por
exemplo. E tantos também cuidavam de nós. Nossos melhores amigos, como Ian e
Peg, Kyle e Sunny, Mel e Jared, Geoffrey e Trudy — que, junto com Jeb, se
autointitulavam “avós” de John e Lindsay — a levavam de tempos em tempos para
passar a noite no quarto deles, para que pudéssemos ter um tempo só nosso.
Nós íamos encontrando nossos
caminhos devagar, procurando a melhor forma de adaptar nosso pequeno grupo à
presença de crianças tão pequenas. Morávamos em um labirinto de galerias de
pedra que escondiam perigos em cada canto, e do lado de fora havia o deserto
escaldante, o sol impiedoso e as montanhas. Enquanto fossem tão pequenos, eles
nunca poderiam ficar sozinhos um único momento, então todos tentavam colaborar
e era preciso confiar nas pessoas. Acho que isso nos uniu como nunca e as
pessoas iam encontrando seus lugares nesta nova ordem, nesta nova rotina.
Sunny tinha assumido as incursões.
Ela e Kyle saíam com frequência cada vez maior e Logan às vezes ia também,
fazendo viagens mais rápidas para poder voltar logo para nós. Mesmo assim, cada
minuto que eu passava longe dele parecia cobrar um preço excessivo de meu
coração ansioso e cheio de saudade.
Não foi só por isso, no entanto, que
eu comecei a sentir cada vez mais falta de poder sair também. Também pouco
tinha a ver com o desejo por novos ares, eu estava feliz em nossa casa, mas,
eventualmente, Peg e eu começamos a sentir falta de poder ajudar, de exercer
nosso papel em nosso grupo.
Esse tipo de coisa era importante
para nós, talvez mais para ela do que para qualquer um, porque foi assim que
ela encontrou seu lugar, foi assim, mostrando que podia ajudar e tornando tudo
mais próspero e confortável para todos, que Peg primeiro se sentiu importante
para aqueles que ela amava.
Acho que eu tinha herdado essa
sensação dela, porque era importante para mim também. Com o tempo, eu sentia
quase como se fosse algo essencial que nos tivesse sido tirado. Claro que por
um bom motivo, tínhamos as crianças para tomar conta. E nem passava pelas
nossas cabeças nos separarmos de nossos filhos por um único dia que fosse. Mas
então nos ocorreu: por que não levá-los conosco?
Quer dizer, chamaria um pouco de
atenção. Crianças sempre chamam. E essa atenção poderia ser perigosa para os
humanos que nos acompanhavam, como Ian, por exemplo, que jamais admitiu se
separar de Peg, tampouco de John. Mas, por outro lado, nossas crianças poderiam
ter a chance de conhecer um pouco do mundo. E enquanto estivessem acompanhados
por Logan ou por uma de nós não correriam nenhum perigo. Quanto aos humanos, só
teríamos que ser mais cuidadosos e meticulosos nas histórias que criávamos para
mantê-los a salvo, protegidos da possível curiosidade que perguntas polidas
respondidas evasivamente podiam gerar. E então, talvez pudéssemos dar um jeito.
No momento em que estávamos tendo
essa discussão, John já estava começando a falar e Lindsay não tardaria a
acompanhá-lo. Isso colocava um novo problema em pauta, já que se tornou óbvio
que teríamos que instruí-los quanto ao que dizer para se adequar às histórias que
usávamos como cobertura, caso alguém resolvesse perguntar algo a eles. O que
não seria muito difícil, já que, como pudemos confirmar depois, muitas Almas
adoravam crianças humanas, tão doces e genuinamente inocentes em comparação com
aqueles de nós que tinham corpos infantis como hospedeiros.
Nenhum de nós gostava de considerar
a ideia de ensinar as crianças a mentir, mas não poderíamos correr o risco de
que eles revelassem algo sobre os humanos. Crianças eram uma novidade para a
minha espécie, e eu era capaz de garantir que Almas que não conviviam com uma,
não seriam capazes de avaliar o quanto a fantasia podia se mesclar com a
realidade na fala de um bebê.
Por fim, percebemos que nós sim
compreendíamos o peso da fantasia e que podíamos usar isso a nosso favor. Em
vez de ensiná-los a mentir, poderíamos, digamos, “colorir” a verdade e criar
histórias e jogos em que a regra principal sempre fosse “nunca mencionar os
olhos que não tivessem prata ou nossa casa”, que era um castelo ultrassecreto cheio
de príncipes e princesas que viviam escondidos e que os heróis precisavam
proteger.
Nós tínhamos muitas coisas a pesar e
todo o receio de errar que envolvia cada uma das decisões, mas, ao fim de tudo,
a balança pendeu para o mundo todo que nossas crianças poderiam desbravar. E
mesmo que fizéssemos isso poucas vezes e que, tristemente, Ian nunca pudesse
participar diretamente destes momentos, decidimos que valia a pena deixar que
eles conhecessem coisas novas. Então respiramos fundo e saímos.
A primeira incursão depois de muito
tempo trouxe uma sensação de euforia para Peg, que, além de tudo, sentia-se
especialmente animada com a possibilidade de que John tivesse um pouco de
liberdade e pudesse correr e brincar em lugares diferentes dos que sempre
conheceu. Sempre foi um ponto sensível para ela que seu filho precisasse passar
a vida toda escondido, restrito ao único cantinho de mundo que amávamos, que
era nosso lar, mas que era também só uma parte mínima de tudo o que ele poderia
ter.
Eu entendia como ela se sentia,
porque também pensava daquela maneira. Diferente de Ian, Logan e eu poderíamos
abandonar nosso lar nas cavernas e seguir Lindsay e até mesmo John, que era
como nosso filho também, para onde quisessem ir quando estivessem adultos, mas
nós não queríamos. Aquelas pessoas
eram nosso lar e nós não estávamos dispostos a ir a lugar algum sem elas, então
essa era uma questão que nos afligia também. Sem dúvidas.
No entanto, eu preferia deixar para
cruzar esta ponte quando chegássemos a ela, algo que aprendi com Sunny, que
sempre dizia que o tempo ajeita tudo e que certos problemas com que nos
preocupamos antes da hora, muitas vezes nem chegam a se tornar problemas. Logan,
no entanto, tinha uma natureza precavida e vinha aproveitando para observar o
comportamento das Almas em relação a nossos bebês humanos. Era sobre isso que
falávamos numa daquelas noites quentes e calmas em que dividíamos histórias
depois do jantar. A última noite antes de tudo começar a mudar.
— Andei perguntando por aí sobre outras
crianças. Lindsay é um grande chamariz, na verdade — dizia Logan com nossa
filha cochilando em seus braços. —Sempre quando estou com ela ou com John,
muitos se aproximam para conversar, para perguntar sobre eles e como é conviver
com um humano. Mas não conheci nenhuma família mista ainda, apenas curiosos.
— Mas o que exatamente você quer
descobrir? — perguntou Jared, brincando nervosamente com os dedos de Mel
entrelaçados com os seus sobre a mesa.
Tudo que dizia respeito à nossa
sobrevivência deixava Jared ansioso por ajudar e essa foi a maneira com que ele
se ligou a Logan, porque percebeu que encontrou alguém com as mesmas
preocupações. Além disso, mesmo que seu jeito fechado e rústico não lhe
permitisse arroubos de carinho, ele adorava as crianças, e a exposição delas a
um mundo que nunca deixou de lhe parecer ameaçador o deixava nervoso.
— Eu já sei como as Almas reagem às
crianças humanas, já vi em primeira mão como não conseguem evitar a ternura que
elas despertam. Mas há esta espécie de medo do desconhecido, e medo é um
sentimento perigoso. Eu preciso saber como a nossa sociedade está lidando com a
formação de famílias mistas e com a inevitabilidade de humanos adultos
convivendo com os de minha espécie no futuro. Preciso ver com meus próprios
olhos o quanto eles estão prontos ou não para acolher esses humanos. Nós
faríamos qualquer coisa para preservar a essência de quem nossos filhos são,
pra mantê-los humanos, nós faríamos qualquer coisa para assegurar nossa
convivência com eles, assim como sacrificamos tudo para estar com vocês. Mas
temo que, no que diz respeito à nossa espécie, perdemos o referencial. Nós nos
deixamos envolver pela maneira passional com que vocês veem o mundo e, hoje em
dia, somos muito mais parecidos com nossas versões humanas do que com as Almas
que costumávamos ser. Para nós, o amor suplanta qualquer medo, qualquer ordem,
qualquer desordem, mas nós temos uma vivência única desses sentimentos, uma
visão extraordinária das possibilidades. No entanto, eu me pergunto: e os
outros? Eu gostaria de saber como essas famílias estão prevendo seu próprio
futuro.
— Nós vimos uma família assim anos
atrás — retorquiu Jared, pensativo. — Quando Mel e Peg ainda dividiam o mesmo
corpo. Foi Peg quem os viu primeiro, ela percebeu que era uma criança de
verdade nos braços do casal de Almas e chamou a minha atenção e a de Ian para
eles. Nós não sabíamos o que pensar. Eles pareciam tão... Era natural para
eles, sabe? De um jeito que eu e Ian não conseguíamos perceber. Peg disse que
ele não seria transformado em hospedeiro se os pais não permitissem, e ela
parecia ter certeza de que isso não aconteceria.
— Ela disse que era uma esperança
para este mundo — interviu Ian, que tinha ficado um pouco mais, dada a natureza
da conversa que estávamos tendo, mesmo depois de Peg ter se retirado pra
colocar John para dormir.
Eu me lembrava disso. Peg não tinha
me contado e as lembranças de seu período com Mel eram tão vagas para mim como flashes distorcidos, quadros perdidos no
fundo de um riacho, vistos através do peso de suas águas. Mas eu me lembrava
desse dia com uma nitidez estranha. Era como um sonho que alguém me contou, uma
foto desbotada de pessoas desconhecidas em lugares familiares. Uma vez, quando
estava carregando John em meu ventre, sonhei com aquela imagem como se fosse um
filme. Talvez um reflexo de minhas preocupações daquela época, de toda minha
preocupação com o que seria de John.
— É sem dúvida uma esperança, mas
não para todos — Jeb interrompeu. — Agora entendo o quebra-cabeça que você está
tentando montar, Logan. Porque do jeito que você está tentando descrever, isso
é uma esperança, mas não para nós. John e Lindsay têm vocês para protegê-los e
isso talvez os torne intocáveis para as outras Almas. Mas e quanto a Isaiah e
Liberdade, por exemplo? — perguntou ele referindo-se aos filhos de Lucina. — Ou
às crianças de outras células? E se alguma das mulheres humanas acabar se
descuidando e engravidar? É possível que essas crianças nunca tenham as mesmas
chances de imersão no mundo das Almas. É quase certeza que teriam de viver
escondidas como nós vivemos, não é?
— Sim, teriam — respondeu Logan,
suspirando pesadamente. — Provavelmente. E eu fico me perguntando se
gradualmente as Almas se adaptariam até que uma nova geração de humanos pudesse
estar pronta para reassumir o mundo de vocês. Fico pensando se eles partiriam e
deixariam um planeta renovado para seus verdadeiros herdeiros, ou se iriam
tentar conviver como se fôssemos todos iguais. E, acima de tudo, me pergunto se
os novos humanos aceitariam essa convivência pacificamente.
— Assim como você, outros devem
estar se perguntando a mesma coisa, especialmente os Buscadores. Manter a ordem
e a segurança das Almas é função deles
— observou Mel.
O fato de ele usar um pronome em
terceira pessoa, distanciando Logan de seu passado, evidenciava duas coisas aos
meus olhos: a primeira era que ela nunca superaria sua aversão por Buscadores,
e a segunda era que gostava o suficiente de Logan para fingir que ele não era
um deles. Mas a verdade é que ele sempre pensaria como um. Jeb dizia que você
pode até tirar a Alma do Buscador, mas não pode tirar o Buscador da Alma. E no
fundo eu achava que ele tinha razão, embora talvez nem todos conseguissem ver que
isso era bom para nós.
— Certamente — disse Logan,
respondendo a pergunta. — E é por isso que preciso saber. Apenas Buscadores
veriam as coisas por esse viés, eles se encarregam de enxergar as
possibilidades que os outros estão ocupados demais para notar. E por mais que
haja passividade e cooperação em nossa sociedade, Buscadores seriam capazes de
identificar possíveis focos de conflitos futuros.
— E como eles agem quando identificam
esses, como você disse, “possíveis focos de conflito futuros”? — questionou
Jared, fazendo aspas com os dedos no ar e assumindo um ar ligeiramente
desafiador.
Ele parecia mais interessado do que
nunca, e eu já podia até ver o olhar dele de “eu sabia que vocês não eram
pacíficos coisíssima nenhuma” quando Logan desse a resposta que ele esperava.
— Nós não usaríamos de violência,
Jared — meu ex-Buscador respondeu como se lesse seus pensamentos. — Mas não
temos escrúpulos de impor regras que visem o bem comum. Você é um homem
razoável, sabe que nenhum grupo, por mais pacífico que seja, funciona sem isso,
sem o sacrifício de certas vontades individuais. A diferença é que, enquanto a
sua espécie briga quanto às regras estabelecidas e reluta em obedecê-las, a
minha as aceita e obedece de boa vontade.
— O que você está dizendo então —
disse Ian — é que regras poderiam ser impostas quanto ao direito dos pais
conservarem seus filhos humanos? Ou está se referindo a controle de natalidade?
— Não, controle de natalidade, não.
Nós valorizamos a maternidade, para nós é o que mais se aproxima do que vocês
chamavam de sagrado, então os casais seriam livres pra fazer essa escolha.
Porém, a decisão de manter essas crianças humanas é algo que afeta o bem comum.
Nada será feito contra as famílias que já existem, os humanos filhos de Almas
estão sob a proteção dos pais e não há ninguém melhor para atestar que eles não
são uma ameaça. Os outros confiarão no que disserem, simplesmente porque não
têm razão para duvidar. Mas o que eles sabem sobre humanos adultos, ou mesmo
sobre crianças maiores como os filhos de Lucina ou adolescentes como Jamie e
Kate? Um pouco de manipulação para fazê-los acreditar que a melhor decisão é
fazer a inserção o mais rápido possível nas crianças não estaria fora de
cogitação.
— Que tipo de manipulação? —
perguntou Jeb.
Concentrei minha atenção nele por um
momento. Eu tinha reparado antes em como ele parecia sempre mais cansado nos
últimos tempos, mas ele sempre dizia que era porque “estava ficando velho”.
Supus que tivesse razão, já que era apenas um abatimento discreto, nada
alarmante e nem muito diferente do estado geral das pessoas nessa época do ano
em que o calor era maior. No entanto, hoje suas olheiras pareciam mais escuras,
seus olhos azuis um pouco mais afundados nas órbitas inquietas. Entretanto,
ninguém mais parecia reparar e a conversa seguiu seu curso, absorvendo-me de
volta para si.
— Os Buscadores trabalhariam em
conjunto com os Confortadores consultados pelos pais, isso teria um apelo
individual forte, porque nós confiamos nos nossos... acho que vocês os
chamariam de terapeutas ou psicólogos. Mas para um resultado mais eficiente
recrutaríamos os Comunicadores, que são o equivalente aos profissionais de
mídia e propaganda, para difundir a ideia de que precisávamos de novos
hospedeiros, o que não seria mentira, e que crescer junto a Almas que ocupariam
corpos tão jovens quanto os deles seria crucial para as crianças humanas que já
habitavam nossa sociedade, para que eles estivessem sempre cercados por nossa
influência e nos enxergassem como iguais. Assim não se revoltariam contra nós.
O resultado indiretamente pretendido, entretanto, seria diminuir exponencialmente
o número de humanos com que teríamos que lidar.
— E isso funcionaria? Quer dizer,
seria tão simples assim? Apenas uma questão de propaganda? — Mel perguntou.
— Por que não? Era simples assim na
sua sociedade, você não se lembra? A publicidade certa, a manipulação de uma
ideologia, sempre foi capaz de convencer os humanos das ideias mais
inimagináveis, como as atrocidades da escravidão ou do holocausto nazista. Não
seria diferente conosco em se tratando de uma ideia tão coerente com nossas
crenças anteriores.
— É como se fosse o fim de novo. Uma
segunda extinção da raça humana — ela disse num tom tão desolado, que não
consegui impedir minha mão de voar e pousar sobre a dela.
— Tem razão — confirmou Ian. — E
talvez não nos afetasse tanto se não tivéssemos esperança, mas agora...
— O futuro parece muito mais urgente
quando ele não é só nosso — emendou Jared.
Num movimento sincrônico, todos nós olhamos
para Lindsay. Não importava que no nosso pequeno grupo nem todos fôssemos
humanos, essas eram fronteiras que tinham deixado de existir. No fim da contas,
éramos uma coisa só. E o que éramos confluía em um só ponto: o desejo de
proteger a quem amávamos.
Como se sentisse o peso das
preocupações que preenchiam o lugar e dos olhares zelosos que tinha sobre si,
Lindsay começou a se remexer e a choramingar no colo de Logan. Nós dois nos
levantamos ao mesmo tempo, voltando ao presente por um momento, um presente
onde tínhamos que nos despedir de nossos amigos e cuidar de nosso bebê. Mesmo
sem querer, Lindsay sempre nos fazia voltar à nossas prioridades.
— Está tarde — falei. — Talvez o problema
pareça menor depois de uma boa noite de sono. Que tal irmos descansar?
— Parece uma boa ideia — Mel disse
se espreguiçando.
Seguimos juntos pela praça central
em direção ao corredor sul onde ficavam os quartos, caminhando lentamente para
que o movimento não fizesse Lindsay despertar, e com nossos amigos seguindo o
mesmo ritmo preguiçoso, Jared e Mel um pouco mais à frente e Jeb e Ian logo
atrás de nós. Sabíamos que se Lindsay acordasse naquela hora ela demoraria a
pegar no sono novamente, e estávamos ambos exaustos, então quando ela soltou um
resmungo, esticando-se nos braços do pai, Logan começou a cantar para ela.
“A tua face clara como flor,
Perene me esconde teu calor.
Só finge que é flor e que é paz
O branco que se tinge de lilás.
É flor, é rocha, é terra, sol e cor
Às vezes também finge que é amor.
O vento não me move mais sem ti
Aonde é que vou se estás aqui?
Quando vier o inverno sobre mim
Guardarei teu sono e então assim
Talvez também eu possa descansar.
Dormir ao som do vento em ti, meu lar.”
Era a mesma canção de palavras tristes
e melodia doce que ele cantava para mim nas noites que passávamos juntos na
Estação de Cura, aquelas noites terríveis em que as lembranças marcadas no
coração do corpo de Peg atormentavam meus sonhos e não me deixavam dormir,
quando a companhia de Logan e meu amor por John eram as únicas coisas que me
mantinham sã. Mais tarde, eu descobri que aquela música era também uma lembrança,
uma reminiscência da criança sofrida que tinha sido o hospedeiro de Logan e de
seus momentos com sua “irmãzinha”, a garota em cuja homenagem tínhamos nomeado
nossa filha.
Não era bem uma canção de ninar, era
uma música desolada que falava de um amor intranquilo, de alguém devotadamente
apaixonado por uma pessoa de temperamento tão instável quanto o vento, e eu
achava especialmente dolorosa a parte em que esse alguém revela sutilmente o
medo de dormir e não encontrar seu amor ao acordar.
Uma pontada de culpa feria meu
coração ao me lembrar que foi exatamente isso o que fiz com Logan quando fugi
para cá, determinada a deixá-lo para trás a despeito de seu amor. Por um tempo,
a tristeza dessa música fez todo o sentido e se encaixou perfeitamente em nossa
história e, embora eu soubesse que tinha sido a decisão certa, não conseguia
encontrar em mim a vontade de me perdoar por tê-lo magoado.
No entanto, tudo isso agora
pertencia ao passado. Tínhamos batizado a música, cujo nome ele não se
lembrava, de Canção de Ninar da Lindsay, porque para ele ela nunca tinha
perdido o significado inicial, sempre tinha sido um hino ao amor protetor que
ele sentia por nós. Em sua bela voz, a música não era triste, mas suave e
aconchegante como uma canção de ninar deveria ser, um reflexo dos sentimentos
densos e docemente melancólicos que faziam de Logan quem ele era.
Por um momento, me permiti embalar
também por aquela voz, e meus pensamentos foram se acalmando e se tornando mais
distantes. Quando eu me deitasse ao lado dele em algum momento dos próximos
minutos, levaria aquela paz comigo e dormiria sentindo-me segura de que tudo ia
ficar bem. Ele sempre fazia tudo ficar bem.
— Como você conhece essa música?
A voz tensa e áspera de Jeb me puxou
de volta. Quando me virei para trás, vi que ele estava ofegante, uma mão no
peito meio curvado e a outra apoiada no ombro de Ian. A expressão em seu rosto
era de muita dor e imediatamente meus sentidos ficaram alerta para abarcar
aquela imagem, o sono e a calmaria do momento anterior escorrendo para algum
canto de meu cérebro onde ficariam esquecidos.
— O que está havendo, Jeb? —
perguntei, aproximando-me dele e tentando alcançar seu rosto para observá-lo
mais de perto.
— Estou bem, Estrela — respondeu ele,
afastando minhas mãos e tentando se endireitar, o que só provocou outra pontada
de dor. — Logan, de onde... de onde você... Ok, meninos, tirem as mãos de mim,
está bem? — Jeb se interrompeu reclamando de como Ian e Mel tentavam ampará-lo.
— Eu já disse que estou...
Ele nem chegou a concluir a frase
antes que seus joelhos tocassem o chão e seu tronco desabasse para o lado,
direto nos braços de Jared que tinha corrido para ajudar, no exato momento em
que fomos todos lançados no epicentro do primeiro dia de nossos futuros
incertos.