Capítulo 27 – Jogos de Paixão
Oh I've got nowhere to hide
I'd say my goodbye to the girl
I'm leaning on the edge
I'm jumping off the ledge
Watching the night do what the light
never could
So tell me I'm crazy
It's not gonna save me
From holding my breath
'Til the lines blur
(Goodbye
to the Girl – David Cook)
Passo
as duas horas seguintes sem ter certeza se sou eu que estou evitando Eric ou o
contrário. Felizmente, mesmo que terça-feira esteja longe de ser o dia mais
movimentado da semana, as promoções de happy
hour atraem um fluxo razoável de clientes tentando relaxar um pouco depois
do trabalho, e isso nos mantêm ocupados. Entretanto, não acho que seja esse o
motivo de estarmos nos repelindo como pólos iguais de dois imãs.
Estou me mantendo longe dele o quanto possível
e, mesmo quando vou até o balcão passar ou recolher os pedidos, ele também não
tenta trocar comigo nada além das palavras necessárias. Seus olhos não me abandonam nenhum instante, porém, enviando-me
perguntas dardejantes que não quero responder mais do que ele deve querer
responder às minhas. No entanto, ainda que eu não queira que a noite de hoje
marque o fim de nosso delicado equilíbrio entre fascinação e mistério, acho que
não consigo e nem quero conversar com Eric por enquanto.
A verdade é que não o quero chegando
perto de mim e embotando meus sentidos com sua dualidade abrasadora. É difícil
demais pensar com clareza quando ele parece precisar me tocar tanto quanto
precisa respirar, mas no minuto seguinte age como se toda essa eletricidade
fosse coisa da minha cabeça.
— E aí? Vocês vão ficar nesse
climinha o tempo todo? — Paty me questiona em certo momento, quando se cansa de
observar minha “dança” com Eric. — Porque, assim, eu também acho que ele pisou
na bola e merece um gelo, mas eu acharia mais útil uma explicação.
— Ele não me deve explicação
nenhuma, Paty. Já falei que ele não é meu namorado. Além disso, você mesma
disse que ele não estava beijando aquela... — Surpreendo-me com o quanto é
difícil pronunciar o nome dela, e a constatação faz a raiva anterior voltar a
borbulhar dentro de mim outra vez. — Só não estou a fim de falar com ele agora.
É só — concluo, percebendo meio amargamente que esse é bem o tipo de coisa que
Eric diria para encerrar uma conversa. Com a diferença de que ele consegue, de
fato, encerrar alguma coisa. Talvez porque essas conversas tenham sido comigo e
não com minha tão adorável quanto insistente amiga.
— Só acho que você não está fazendo
favor algum a si mesma demonstrando o quanto está enciumada! Você devia dar uma
de superior igual fez lá dentro e mostrar a ele o que está perdendo. Não é por
eu ser sua amiga nem nada, mas do jeito que ele te olha, se você quiser a
competição acaba hoje.
— Tudo bem, vou pensar no que você
disse. — Não, eu não vou, mas essa conversa está tão boa quanto encerrada para
mim.
— É bom mesmo — retruca Paty,
afastando-se para atender um cliente que a chama.
Apesar de dizer a mim mesma que não
vou pensar no assunto de verdade, é o que acabo fazendo, porque o ciúme e a
irritação estão começando a ceder e apesar de eu estar com o orgulho ferido,
outro sentimento inédito para mim, não quero voltar para casa com esta sensação
de estômago embrulhado que coisas mal resolvidas me dão. Mesmo assim, não
consigo me decidir sobre como iniciar a conversa e decido esperar até o fim do
expediente, quando não der mais para adiar, para tomar alguma atitude.
Também não é como se Eric estivesse
fazendo algum movimento no sentido de resolver isso, e eu realmente me
questiono sobre quem deveria tomar a iniciativa aqui. Eu não tenho nenhuma experiência neste jogo,
mas a mim me parece que a bola está no campo dele, não no meu. Enfim, por um
motivo ou por outro, mantenho minha postura distante, mas lá pelo meio da
noite, porém, quando o movimento do happy
hour se reduziu aos que estão muito alegres ou depressivos demais para
voltarem para casa, Eric finalmente parece perder a paciência com meus
melindres:
— O que foi que você ouviu? — ele
pergunta à queima-roupa, segurando meu pulso livre quando estou prestes a me
afastar do balcão com uma porção de batatas fritas na outra mão.
Franzo o cenho para a pergunta e
puxo o braço, que, na realidade, ele segura apenas um pouco mais firme do que
um toque casual, um cuidado que não passa despercebido, já que contrasta com a
ansiedade meio enlouquecida em seus olhos. Vou até a mesa, onde deixo as
batatas para um grupo de rapazes que estão “alegres” demais para o meu gosto, e
volto para perto de Eric. Parece que chegou a hora de esclarecer as coisas e, a
esta altura, meu coração já se acalmou o suficiente. Mesmo assim, não consigo
evitar a ironia amarga que me escapa.
— Por que você quer saber? Para que
possa calcular o quanto vai ter que mentir para mim?
Minha
nossa! Quem é você e o que fez com a Clara?
Eu e minha porção menos sã não somos
as únicas surpresas com essa reação inesperada de minha parte. Eric está me
olhando com um misto de surpresa e diversão nos olhos, como se estivesse se
controlando para não rir de meu recém-descoberto lado briguento. Não sei se
acho graça ou se me sinto insultada por ele estar me olhando como se eu fosse
uma criança respondona.
— Não, baby. É para saber o quanto
você tem noção do perigo de ficar escutando atrás das portas.
— Eu não estava atrás da porta, você
a deixou aberta — Como se quisesse se
exibir com ela. — Mas você tem razão, eu não devia ter ficado escutando sua
conversa com sua namorada. Desculpe pelo inconveniente.
— Namorada!? Incon... — Ele engole o
ar com raiva e sua mão voa para seus cabelos, crispando-se, denotando sua
impaciência. — Clara, eu sei que você viu e ouviu coisas que não queria, e que
eu não ter falado com você depois disso só piorou as coisas, mas não é nada do
que você está pensando...
— Ah, não acredito que você vai vir
com esse discurso pra cima de mim! — interrompo. Aparentemente, o retorno de
minha natureza afável e tolerante está mais para figuração do que para
participação especial no show desta noite. — Você não me deve satisfação
nenhuma, Eric. Não sei por que está preocupado em inventar mentiras para me
aplacar. Eu já entendi tudo, sou um passatempo que você quer manter. Só que não
vou me prestar a isso. Com licença.
Saio rápido, reconhecendo na hora
que deixei os sentimentos ruins tirarem o melhor de mim e que fui injusta
quanto ao que disse. Sei que não é assim que ele se sente, como se eu fosse um
passatempo. Eric pode me esconder muitas coisas, mas não mentiu quanto às
poucas que me disse. Seus gestos não mentem e sei que seus lábios também
não. Com meu coração e com aquele outro
tipo de certeza com que posso contar, sei que ele está em minha vida
irremediavelmente.
Mesmo assim, as coisas fogem ao meu
controle. Não consigo lidar com a novidade do ciúme e pareço não ser dona de
minhas ações nem de minha própria lógica no momento. Não chego muito longe,
porém, porque, um: não formulei um plano que fosse além de fugir para o
banheiro; e dois: Eric agarra meu braço — com bem mais força desta vez — antes
de eu conseguir dar meia dúzia de passos, e me arrasta pelo salão em direção ao
backstage.
No caminho, reparo que Samuel está
nos olhando surpreso e que Paty tem um misto de apreensão e expectativa no
rosto. Eric, por sua vez, não olha para lugar nenhum, comportando-se como se
tivesse atingido algum limite desconhecido de irritação com o mundo todo. As
pessoas parecem antever naturalmente que não devem ficar em seu caminho e ele
contorna habilmente as mesas me levando a reboque. Estou tão pasma que sequer
tento me soltar, e acabo seguindo-o sem impor nenhuma resistência até ele nos
trancar na sala de descanso das bandas.
Ele praticamente me arremessa para
dentro da sala antes de se virar para fechar a porta, um pouco mais de força e
eu perderia o equilíbrio. É assim que noto que a coisa ficou realmente séria,
antes mesmo de ele começar a andar em minha direção com um olhar
assustadoramente determinado. Ando de costas em direção à parede oposta,
tentando imaginar o que é exatamente que arde nos olhos dele.
Não é agressividade e já não é mais
irritação. É atraente e ao mesmo tempo me dá medo.
Quando minhas costas tocam a parede,
já não tenho para onde fugir e nem ele pretende se desviar. Nossos corpos
simplesmente se chocam como se pudessem se mesclar. Ele agarra minha cintura
com as mãos e descansa o tronco sobre o meu, enquanto a boca ao lado do meu
ouvido sussurra:
— O que você quer de mim, Clara?
Porque eu não gosto quando as pessoas agem como se fossem minhas donas.
— Eu... Ah... — O hálito dele contra
minha pele me nubla os sentidos. Não há muito mais que eu possa fazer a não ser
respirar, e até isso está exigindo mais do que eu posso dar. De repente, a
intensidade do que sinto me sobrecarrega e minhas pernas ficam bambas. Só quero
me ver livre dessa proximidade para poder pensar com alguma clareza. — Me
solte, Eric. Eu quero que você me deixe sair daqui.
— Não, baby, você não quer. — As
mãos em minha cintura me puxam para mais perto ainda, unindo nossos corpos no
único ponto em que estávamos separados. Quase posso ouvir as batidas do meu
coração, apesar de me sentir fraca como se ele estivesse parando, porque Eric
tem razão. Eu não quero sair daqui. Nunca mais. — Mas eu ainda preciso de uma
resposta para minha pergunta — ele continua, ainda com o rosto ao lado do meu.
— Você se lembra quem foi que me pediu para ir devagar? Quem foi que me disse
que não sabia o que queria? Pois eu acho que não consigo ir devagar se não
souber aonde estou indo, linda. Então me diga... — Sinto sua língua roçar de
leve a pele atrás de minha orelha a cada intervalo entre suas palavras. — O
quê. Você. Quer. De mim?
A resposta é óbvia e eu a estou
dando com cada parte do meu corpo. Com cada sentido meu que não ficará nunca
saciado da presença dele. Tê-lo tão perto de mim, com as mãos subindo pelas
minhas costas, faz com que eu sinta que estou desaparecendo, simplesmente para
voltar a existir como algo diferente nos braços dele, como se fôssemos parte da
mesma coisa. Indissoluvelmente.
Alheios a mim, meus braços se fecham
em torno dele também, e eu afundo meu rosto em seu peito, respirando o cheiro
que me embriaga, deixando minhas mãos percorrerem seu corpo enquanto seus
lábios descem com uma suavidade torturante e lenta pelo meu pescoço, em direção
ao meu ombro. A sensação etérea de sua voz acaricia meus ouvidos com a
lembrança da pergunta de instantes atrás.
— Não quero ser sua dona, Eric —
finalmente encontro minha voz para dizer.
— Resposta certa, baby — ele
sussurra tão baixo contra minha pele que mal posso escutar. Seu hálito me faz
cócegas e eu me encolho em reflexo.
Eric ri e seus dentes se fecham de
leve na pele sensível da curva de meu pescoço. Um arrepio percorre meu corpo
inteiro, partindo da base de minha coluna e irradiando em todas as direções.
Minhas pernas pouco me obedecem e fico contente por não ter que confiar somente
nelas para me manter em pé, mas minhas mãos ainda encontram forças para se
agarrarem em seus cabelos e eu os puxo debilmente, fazendo com que ele olhe
para mim.
A expressão em seu rosto é a mesma
de antes: determinada, feroz, incrivelmente atraente. Um dos lados de sua boca
se curva em um sorriso. Aquele sorriso. É quase... mal-intencionado!
Ele sabe o que está fazendo, sabe o
efeito que provoca e está brincando comigo, me provocando. Há algo de febril em
seus olhos, o azul oceânico é apenas um pequeno círculo fino em torno das
pupilas negras. E essa não é a única maneira de eu saber que o corpo dele reage
ao meu também.
Ele me beija. E é diferente desta
vez. O toque delicado do outro dia é substituído pela voracidade faminta da
língua que invade minha boca. É estranho no começo, sentir o gosto dele se
misturando ao meu, então abro os olhos e o observo. Estou olhando para o único
homem por quem já senti desejo, o único homem que amei do jeito apaixonado que
provoca este tipo de combustão. E ele está em meus braços, com os olhos
fechados, entregue a mim, me respirando.
Isso faz com que algo queime com
mais força em meu interior e meu corpo se aperta ao dele em resposta, meus
olhos se fechando enquanto meus dedos se enroscam em seus cabelos mais uma vez.
Agora é a minha boca que procura a dele.
Quase chego a sentir medo de minhas
próprias reações, de como o desejo de Eric me faz sentir poderosa. Quero mandar
todo o resto para o espaço e me afundar nessa sensação. Quero mais de seu
corpo, de seus lábios, de sua fome. Quero que o desejo inflamado que sentimos
nos consuma sem que eu tenha que pensar no que estou fazendo.
É só que não seria eu se não
pensasse e, sem que eu possa controlar, um lampejo de um sentimento diferente
começa a invadir a névoa espessa de volúpia que ameaça nublar tudo o mais.
Estou apaixonada por ele. Completamente. O bastante para enlouquecer e agir
como se não fosse quem sempre fui. Mas eu também o amo e isso não é um jogo. O único “poder” que me interessa é o que
ele escolher me dar.
— Eu quero você, Eric — consigo
dizer contra a pele de seu rosto, antes de ele me puxar de volta para o beijo.
— Também quero você — ele responde
entre meus lábios, suas mãos entrando sob minha camiseta. Ele já está a meio
caminho de tirá-la quando eu o impeço. Não vou conseguir pensar ou dizer nada
coerente quando houver mais da minha pele tocando a dele.
— Você não está entendendo. Não
quero ser sua dona, porque quero que você escolha
ficar comigo. Quero seu coração, mas só se você me der.
Ele para. Seu corpo se afastando do
meu apenas o suficiente para que possa olhar meu rosto por inteiro, como quem
analisa um dilema. Ele inclina a cabeça ligeiramente para o lado, do jeito que
faz quando parece sentir que não me conhece. É como se, de certa forma, ele
estivesse esperando pela armadilha que pode pegá-lo desprevenido.
No entanto, quando observa a verdade
em meus olhos, sei que ele acredita. E quando o sentido de minhas palavras o
atinge, é como se o quebrasse. Como se partisse suas defesas e desnudasse um
outro lado seu, confuso e indefeso demais para reagir.
— Eu quero você, Eric — repito. —
Quero você do jeito que é, quero o que quiser me dar. É essa a resposta para a
sua pergunta. Quero seu coração.
— Você não sabe o que está dizendo —
ele responde desolado. Suas mãos ainda estão sobre mim, em torno de minha
cintura sob a camiseta, mas o jeito que me seguram agora mostra um desespero
diferente. É como se ele não quisesse, não pudesse,
me deixar partir. — Quando você souber, vai mudar de ideia.
— Então me diga onde estou me
metendo. Deixe que eu decida por mim mesma. — Ele me abraça e eu prometo que
não vou embora, não importa o que aconteça. — Eu juro — sussurro segurando seu
rosto, puxando-o de volta para mim.
Nós nos beijamos outra vez. Um beijo
hesitante a princípio, depois delicado e, finalmente, desesperado em sua ânsia
de fundir nossas almas. Não sei o que estou fazendo, mas quero aquele calor de
volta, quero chegar a seu âmago através do caminho de seus lábios, de seu
corpo. Então minhas mãos o percorrem e minha boca se aperta contra a dele. Um
gemido baixo e sufocado me escapa e encontra repouso dentro dele, o som suave
fazendo seu tronco estremecer sob meus dedos sôfregos que traçam o contorno dos
músculos esguios e tesos de seus braços. E é nesse momento que ele se afasta de
novo.
— Não posso fazer isso — decreta. As
palavras saindo trôpegas por entre a respiração acelerada.
Ele apoia a testa na minha, tentando
se acalmar enquanto me mantém a uma distância segura. Pelo menos, parece
distante para mim. Uma dor aguda me atinge em cheio, mas não tenho tempo de
reconhecê-la como rejeição. Não quando estive sentindo tudo o que senti nos
últimos minutos. Isso, no entanto, não me impede se senti-la. Ou de ficar confusa.
Ele me beija de novo, apenas um
toque suave de seus lábios. Depois segura meu rosto e o acaricia com as pontas
dos dedos, parecendo hipnotizado, imerso em suas próprias razões, até que
finalmente continua:
— Não posso fazer isso enquanto você
não me conhecer de verdade. Preciso te dar o mesmo direito de escolha que você
está me dando, mas não posso fazer isso agora. —
Você não acredita em mim quando digo que vou ficar ao seu lado, não importa
qual seja a verdade que se recusa a me contar? Eu conheço a natureza das
pessoas, Eric. Sei que você vale mais do que esta ideia terrível que tem de si
mesmo. Sei que você é melhor do que imagina.
Ele segura minha mão e me leva até o
sofá no canto da sala. Delicadamente, ele me acomoda em seu colo, mais ou menos
como ficamos dias atrás, no chão do estacionamento, quando eu entendi pela
primeira vez a urgência com que eu o queria ao meu lado. Faz só alguns dias,
mas muita coisa mudou desde então. Porém, o entendimento do quanto eu o quero,
não. Sei desde o primeiro instante que isso nunca vai mudar ou fenecer.
— Você é tão doce, Luz! É tentador
fingir que posso fugir de todas as coisas erradas que me perseguem, mas eu não
quero mentir para você. Ainda tenho... pendências
a resolver.
— É por causa dela? — pergunto,
referindo-me a Esther. Lembrar disso agora, porém, não parece tão doloroso
quanto antes.
— Não do jeito que você está
pensando, mas, sim, ela faz parte do problema.
— Me conte qual é o problema.
— Eu vou. Quando não precisar mais
te envolver nas sujeiras de minha vida. — Ele beija minha testa, num carinho
estranhamente protetor, e então me fecha um pouco mais em seu abraço. — Eu não
sou o cara ideal pra você, Luz. Não posso impedir as trevas de nos espreitarem,
mas posso cuidar para que elas não maculem você.
— Não sou um cristal, Eric. Não vou
me quebrar. Posso ajudar você a lidar com seus problemas, sejam eles quais
forem.
— Eu sei que você pode. Mas esta
noite eu percebi que não quero. Você me deu uma escolha. Não acho que faça
ideia do que isso significa para mim, mas eu escolho você. Escolho que isso que
está acontecendo entre nós seja mais importante do que o resto. E escolho,
acima de tudo, manter você a salvo.
Enquanto um de seus braços me
aninha, sua outra mão traça o contorno da lateral de meu corpo, desde o rosto
até o joelho. Não é um toque puramente sensual, entretanto. É exploratório e
sedutor, mas é também um reconhecimento de que sou dele. É assim que me sinto.
Como se apesar dos nossos segredos, estivéssemos nos prometendo um ao outro.
— Vou encontrar uma saída para mim.
Só preciso de um tempo.
— Você está me assustando, Eric.
Tenho medo de que alguma coisa aconteça com você.
— Medo?
— É que eu... desculpe, mas ouvi
parte da sua conversa...
Minha parte irônica ensaia um “dã” e
eu mesma tenho que me controlar para não revirar os olhos, porque sei que não
estou contando nenhuma novidade. Mesmo assim, eu realmente não sou do tipo que
acha natural espionar os outros, então sinto que preciso me desculpar e falar
disso de forma cuidadosa.
Antes de dizer o que realmente está
me incomodando.
— Não era minha intenção, mas eu
estava vindo falar com você e vi a porta aberta... — Respiro fundo e decido
deixar as desculpas de lado. Acho que é preciso ir direto ao ponto aqui. — O
que me pareceu é que você deve alguma coisa a alguém muito perigoso.
— É mais ou menos isso. Mas você não
tem que ter medo. Nada vai acontecer comigo.
Como, por Deus, ele pode ter tanta
certeza? Às vezes é tão difícil andar tateando no escuro!
— Não me pareceu que Esther
estivesse brincando — digo, preocupada. — Parecia que ela estava te dando uma
espécie de ultimato.
— E estava, mas ela não tem
interesse em me fazer mal.
— Porque ela gosta de você.
Eu
nunca faria mal a ele, e sei que isso não é somente por causa do que sou, mas
por causa do que sinto. Então, para mim, parece apenas razoável que os
sentimentos dela sejam o motivo da segurança na voz dele.
— Isso não faz diferença — ele
decreta, secamente.
Não gosto de Esther. Não gosto que
haja sentimentos, quaisquer que sejam, entre eles. Mas às vezes Eric me assusta
com sua frieza. Não é natural para mim achar que os sentimentos alheios não são
relevantes.
— O que as pessoas sentem por você
não faz diferença?
— O que Esther sente não faz diferença para mim. Já o que você sente me importa muito.
Uma parte de mim se sente pacificada
e orgulhosa com essa resposta, mas a outra, aquela mais complicada e cheia de
ressalvas morais, se pergunta como pode ser assim. Quer dizer, nós acabamos de
nos conhecer, eu ainda nem sei por que ele se importa comigo. No entanto,
Esther e ele têm uma história. Como ele pode ser tão indiferente a ela?
— Mas ela foi sua namorada. Deve
significar alguma coisa.
— “Namorada” é um palavra que
implica em um relacionamento que não tivemos. Você vai ter que se acostumar com
a ideia de que outras mulheres passaram pela minha vida e que não me importei
com elas da forma como me importo com você. Para mim, elas foram embora do
mesmo jeito que chegaram.
Claro. Outras mulheres. Ele tem 34
anos. É claro que eu não pensei que era única para ele como ele é para mim. O
plural dito tão descuidadamente não me choca, embora o ciúme desagradável
mostre sua cara feia e maldosa de novo. Mas a forma como ele fala delas, como
se mal se lembrasse de seus nomes, me deixa triste. É um mundo muito solitário
esse em que as pessoas vivem relações tão vazias.
Por outro lado, é a segunda vez em
poucos minutos que ele diz claramente e sem nenhuma hesitação que se importa
comigo. Um homem acostumado com relações praticamente anônimas, mas que se
importa o suficiente comigo a ponto de parar a combustão de nossos corpos para
me mostrar o quanto não quer apenas um encontro banal. Não posso evitar sorrir
com a ideia.
— Acho que, de uma forma meio torta,
esse foi um imenso elogio.
Quero que ele saiba que reconheço
isso, que percebo o esforço que está fazendo para se comportar de maneira
diferente comigo, mas ele não responde imediatamente. Em vez disso, pensa um
pouco, analisando as coisas sob sua própria perspectiva, por vezes tão
diferente da minha.
— As pessoas não são como você, Luz.
Sentimentos são coisas desnecessárias em boa parte das relações. Esther não se
importa comigo, ela não gosta de mim.
Não de verdade. Ela apenas me quer, o que é muito diferente.
— Não sei se isso me deixa mais
tranquila. Na verdade, eu preferia que você me dissesse que ela é completamente
apaixonada por você. — É estranho, mas é verdade. Posso lidar com o ciúme mais
facilmente do que com o receio que ela me desperta. —Porque querer... é algo
meio complicado. Ela me parece o tipo de pessoa que pega o que quer, não
importa o que aconteça. Ela me dá medo.
— Posso sair dessa, só preciso de um
tempo, ok? Você me pediu para esperar por você, estou te pedindo a mesma coisa
agora. Só me prometa que vai ficar longe de Esther. Você promete?
Balanço a cabeça afirmativamente.
Não está nos meus planos ficar perto de gente que me dá calafrios. Minha
“intuição especial” não estava em seu melhor quando a conheci, mas meu lado
humano é suficiente para saber que devo ficar longe dela.
— Se ela vier aqui — ele continua —,
se te procurar, use seus instintos e se afaste. Eu não vou deixar mais ela se
aproximar de você, mas você também precisa ficar atenta.
Por um momento, a preocupação dele
me assusta e volto a duvidar que ela não seja a ameaça que parece.
— Você disse que ela não faria mal a
você...
— Eu disse que ela não tem interesse
em me prejudicar. Por isso, você está segura, mas não estou disposto a
arriscar.
— Não gosto disso. Não gosto que ela
saiba coisas sobre você que eu não sei. E não gosto que ela esteja por perto
quando você me diz para ficar longe. Me parece injusto que eu não saiba com o
que estou lidando.
Seria muito mais fácil se eu
soubesse o mesmo que ele. Quem sabe assim eu não tivesse tanto receio de
apostar que estamos seguros. Sei que tenho meus próprios segredos e não estou
em posição de apressar que ele me conte coisas que não está preparado para
dizer. Ninguém compreende essa necessidade de tempo melhor do que eu e, apesar
de parecer imprudente, o fato de termos isso em comum me faz confiar nele. Mas
isso não torna a situação menos incômoda.
— É por pouco tempo, Luz. Prometo.
Você vai saber da verdade. E não vai precisar se preocupar com ela nem com
ninguém.
— Ainda acho que ela está em
vantagem...
— Não tenha tanta certeza disso. A
verdade sobre o passado pode ser superestimada às vezes. E você vai saber, de
qualquer jeito. Mas ela não tem o que você tem.
Okay.
Uma coisa que eu tenho e ela não tem... Acho que gosto das probabilidades.
— Você? — pergunto inocentemente,
como se não soubesse o que ele quis dizer, testando minha capacidade de fazer
charme.
— Por quanto tempo quiser.
— Eu sempre vou querer você.
— Vamos pensar apenas no agora.
Gosto da ideia, mas gosto ainda mais
de saber que vai haver um amanhã e, ao que tudo indica, um depois, e outro, e
mais outro. Tempo suficiente para termos todos os momentos que adiamos esta
noite, porque, bem, além de tudo, estamos trabalhando. Ou pelo menos deveríamos
estar.
— Pensando apenas no agora... — digo
sem vontade, mas consciente do que devemos fazer, apesar de não parecer uma boa
ideia quando mergulho na felicidade de estar aqui sentindo o carinho dele. —
Acho que devíamos voltar para o bar. Já faz tempo que paramos de trabalhar e já
é a segunda vez que fazemos isso em pouco tempo. O pessoal vai ficar chateado.
— Esqueceu que você está namorando o
patrão, baby?
Namorando.
Nem tive tempo de pensar nessa
palavra enquanto tínhamos tantas cartas para pôr na mesa (ou esconder na manga,
ao que parece), mas ela ressoa dentro de mim de uma forma prazerosa quando ele
diz. Pode parecer banal, mas é outra primeira vez para mim, e ainda que a
situação seja tão inusitada e eu seja qualquer coisa menos uma menina, é assim
que me sinto. Com o coração acelerado e o calor gostoso de um rubor que
certamente tinge minhas bochechas.
— Mesmo assim, ainda tem gente no
bar e falta... — Olho no relógio para disfarçar minha reação meio exagerada, e
percebo com um susto que estamos aqui há tempo demais. — Falta só meia hora
para o bar fechar.
Precisamos ir. Ou eu preciso ir. Eric pode fazer o que
quiser, porque, como disse, é o patrão. Mas eu sou apenas uma funcionária
deixando todo mundo na mão para ficar se agarrando com o namorado.
Se
sua mãe te visse agora... Aquela parte de mim provoca, mas tudo o que faço
é rir internamente.
“Ficamos engraçadinhas quando
estamos felizes.”
Começo a me levantar, mas sou puxada
de volta e não me importo nem um pouco com isso. Ao contrário, gosto de saber
que ele não quer que eu vá, e procuro os lábios dele mais uma vez nesta noite
que eu não quero que termine.
No fim, depois de nossa conversa,
não sei muita coisa a mais do que quando ela começou. Ainda estou tateando no
escuro, sem saber aonde vou ou sequer onde estão os limites da estrada. No
entanto, não sou mais a Clara de antes, agora sou “nós”. Isso eu sei.
Digo adeus à pessoa que eu era e
seguro o fôlego, confiante. Hora de mergulhar no espantoso oceano desses olhos
em que aprendo a confiar. Talvez mergulhar no abismo que espelha o céu seja uma
coisa para a qual eu esteja pronta, afinal.
“Deus
ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas
nele é que espelhou o céu.”
Fernando
Pessoa