sábado, 25 de julho de 2015

ELS Cap 27

Capítulo 27 – Jogos de Paixão


Oh I've got nowhere to hide
I'd say my goodbye to the girl
I'm leaning on the edge
I'm jumping off the ledge
Watching the night do what the light never could

So tell me I'm crazy
It's not gonna save me
From holding my breath
'Til the lines blur

(Goodbye to the Girl – David Cook)

            Passo as duas horas seguintes sem ter certeza se sou eu que estou evitando Eric ou o contrário. Felizmente, mesmo que terça-feira esteja longe de ser o dia mais movimentado da semana, as promoções de happy hour atraem um fluxo razoável de clientes tentando relaxar um pouco depois do trabalho, e isso nos mantêm ocupados. Entretanto, não acho que seja esse o motivo de estarmos nos repelindo como pólos iguais de dois imãs.
             Estou me mantendo longe dele o quanto possível e, mesmo quando vou até o balcão passar ou recolher os pedidos, ele também não tenta trocar comigo nada além das palavras necessárias.            Seus olhos não me abandonam nenhum instante, porém, enviando-me perguntas dardejantes que não quero responder mais do que ele deve querer responder às minhas. No entanto, ainda que eu não queira que a noite de hoje marque o fim de nosso delicado equilíbrio entre fascinação e mistério, acho que não consigo e nem quero conversar com Eric por enquanto.
            A verdade é que não o quero chegando perto de mim e embotando meus sentidos com sua dualidade abrasadora. É difícil demais pensar com clareza quando ele parece precisar me tocar tanto quanto precisa respirar, mas no minuto seguinte age como se toda essa eletricidade fosse coisa da minha cabeça.
            — E aí? Vocês vão ficar nesse climinha o tempo todo? — Paty me questiona em certo momento, quando se cansa de observar minha “dança” com Eric. — Porque, assim, eu também acho que ele pisou na bola e merece um gelo, mas eu acharia mais útil uma explicação.
            — Ele não me deve explicação nenhuma, Paty. Já falei que ele não é meu namorado. Além disso, você mesma disse que ele não estava beijando aquela... — Surpreendo-me com o quanto é difícil pronunciar o nome dela, e a constatação faz a raiva anterior voltar a borbulhar dentro de mim outra vez. — Só não estou a fim de falar com ele agora. É só — concluo, percebendo meio amargamente que esse é bem o tipo de coisa que Eric diria para encerrar uma conversa. Com a diferença de que ele consegue, de fato, encerrar alguma coisa. Talvez porque essas conversas tenham sido comigo e não com minha tão adorável quanto insistente amiga.
            — Só acho que você não está fazendo favor algum a si mesma demonstrando o quanto está enciumada! Você devia dar uma de superior igual fez lá dentro e mostrar a ele o que está perdendo. Não é por eu ser sua amiga nem nada, mas do jeito que ele te olha, se você quiser a competição acaba hoje.
            — Tudo bem, vou pensar no que você disse. — Não, eu não vou, mas essa conversa está tão boa quanto encerrada para mim.
            — É bom mesmo — retruca Paty, afastando-se para atender um cliente que a chama.
            Apesar de dizer a mim mesma que não vou pensar no assunto de verdade, é o que acabo fazendo, porque o ciúme e a irritação estão começando a ceder e apesar de eu estar com o orgulho ferido, outro sentimento inédito para mim, não quero voltar para casa com esta sensação de estômago embrulhado que coisas mal resolvidas me dão. Mesmo assim, não consigo me decidir sobre como iniciar a conversa e decido esperar até o fim do expediente, quando não der mais para adiar, para tomar alguma atitude.
            Também não é como se Eric estivesse fazendo algum movimento no sentido de resolver isso, e eu realmente me questiono sobre quem deveria tomar a iniciativa aqui.  Eu não tenho nenhuma experiência neste jogo, mas a mim me parece que a bola está no campo dele, não no meu. Enfim, por um motivo ou por outro, mantenho minha postura distante, mas lá pelo meio da noite, porém, quando o movimento do happy hour se reduziu aos que estão muito alegres ou depressivos demais para voltarem para casa, Eric finalmente parece perder a paciência com meus melindres:
            — O que foi que você ouviu? — ele pergunta à queima-roupa, segurando meu pulso livre quando estou prestes a me afastar do balcão com uma porção de batatas fritas na outra mão.
            Franzo o cenho para a pergunta e puxo o braço, que, na realidade, ele segura apenas um pouco mais firme do que um toque casual, um cuidado que não passa despercebido, já que contrasta com a ansiedade meio enlouquecida em seus olhos. Vou até a mesa, onde deixo as batatas para um grupo de rapazes que estão “alegres” demais para o meu gosto, e volto para perto de Eric. Parece que chegou a hora de esclarecer as coisas e, a esta altura, meu coração já se acalmou o suficiente. Mesmo assim, não consigo evitar a ironia amarga que me escapa.
            — Por que você quer saber? Para que possa calcular o quanto vai ter que mentir para mim?
            Minha nossa! Quem é você e o que fez com a Clara?
            Eu e minha porção menos sã não somos as únicas surpresas com essa reação inesperada de minha parte. Eric está me olhando com um misto de surpresa e diversão nos olhos, como se estivesse se controlando para não rir de meu recém-descoberto lado briguento. Não sei se acho graça ou se me sinto insultada por ele estar me olhando como se eu fosse uma criança respondona.
            — Não, baby. É para saber o quanto você tem noção do perigo de ficar escutando atrás das portas.
            — Eu não estava atrás da porta, você a deixou aberta — Como se quisesse se exibir com ela. — Mas você tem razão, eu não devia ter ficado escutando sua conversa com sua namorada. Desculpe pelo inconveniente.
            — Namorada!? Incon... — Ele engole o ar com raiva e sua mão voa para seus cabelos, crispando-se, denotando sua impaciência. — Clara, eu sei que você viu e ouviu coisas que não queria, e que eu não ter falado com você depois disso só piorou as coisas, mas não é nada do que você está pensando...
            — Ah, não acredito que você vai vir com esse discurso pra cima de mim! — interrompo. Aparentemente, o retorno de minha natureza afável e tolerante está mais para figuração do que para participação especial no show desta noite. — Você não me deve satisfação nenhuma, Eric. Não sei por que está preocupado em inventar mentiras para me aplacar. Eu já entendi tudo, sou um passatempo que você quer manter. Só que não vou me prestar a isso. Com licença.
            Saio rápido, reconhecendo na hora que deixei os sentimentos ruins tirarem o melhor de mim e que fui injusta quanto ao que disse. Sei que não é assim que ele se sente, como se eu fosse um passatempo. Eric pode me esconder muitas coisas, mas não mentiu quanto às poucas que me disse. Seus gestos não mentem e sei que seus lábios também não.  Com meu coração e com aquele outro tipo de certeza com que posso contar, sei que ele está em minha vida irremediavelmente.
            Mesmo assim, as coisas fogem ao meu controle. Não consigo lidar com a novidade do ciúme e pareço não ser dona de minhas ações nem de minha própria lógica no momento. Não chego muito longe, porém, porque, um: não formulei um plano que fosse além de fugir para o banheiro; e dois: Eric agarra meu braço — com bem mais força desta vez — antes de eu conseguir dar meia dúzia de passos, e me arrasta pelo salão em direção ao backstage.
            No caminho, reparo que Samuel está nos olhando surpreso e que Paty tem um misto de apreensão e expectativa no rosto. Eric, por sua vez, não olha para lugar nenhum, comportando-se como se tivesse atingido algum limite desconhecido de irritação com o mundo todo. As pessoas parecem antever naturalmente que não devem ficar em seu caminho e ele contorna habilmente as mesas me levando a reboque. Estou tão pasma que sequer tento me soltar, e acabo seguindo-o sem impor nenhuma resistência até ele nos trancar na sala de descanso das bandas.
            Ele praticamente me arremessa para dentro da sala antes de se virar para fechar a porta, um pouco mais de força e eu perderia o equilíbrio. É assim que noto que a coisa ficou realmente séria, antes mesmo de ele começar a andar em minha direção com um olhar assustadoramente determinado. Ando de costas em direção à parede oposta, tentando imaginar o que é exatamente que arde nos olhos dele.
            Não é agressividade e já não é mais irritação. É atraente e ao mesmo tempo me dá medo.
            Quando minhas costas tocam a parede, já não tenho para onde fugir e nem ele pretende se desviar. Nossos corpos simplesmente se chocam como se pudessem se mesclar. Ele agarra minha cintura com as mãos e descansa o tronco sobre o meu, enquanto a boca ao lado do meu ouvido sussurra:
            — O que você quer de mim, Clara? Porque eu não gosto quando as pessoas agem como se fossem minhas donas.
            — Eu... Ah... — O hálito dele contra minha pele me nubla os sentidos. Não há muito mais que eu possa fazer a não ser respirar, e até isso está exigindo mais do que eu posso dar. De repente, a intensidade do que sinto me sobrecarrega e minhas pernas ficam bambas. Só quero me ver livre dessa proximidade para poder pensar com alguma clareza. — Me solte, Eric. Eu quero que você me deixe sair daqui.
            — Não, baby, você não quer. — As mãos em minha cintura me puxam para mais perto ainda, unindo nossos corpos no único ponto em que estávamos separados. Quase posso ouvir as batidas do meu coração, apesar de me sentir fraca como se ele estivesse parando, porque Eric tem razão. Eu não quero sair daqui. Nunca mais. — Mas eu ainda preciso de uma resposta para minha pergunta — ele continua, ainda com o rosto ao lado do meu. — Você se lembra quem foi que me pediu para ir devagar? Quem foi que me disse que não sabia o que queria? Pois eu acho que não consigo ir devagar se não souber aonde estou indo, linda. Então me diga... — Sinto sua língua roçar de leve a pele atrás de minha orelha a cada intervalo entre suas palavras. — O quê. Você. Quer. De mim?
            A resposta é óbvia e eu a estou dando com cada parte do meu corpo. Com cada sentido meu que não ficará nunca saciado da presença dele. Tê-lo tão perto de mim, com as mãos subindo pelas minhas costas, faz com que eu sinta que estou desaparecendo, simplesmente para voltar a existir como algo diferente nos braços dele, como se fôssemos parte da mesma coisa. Indissoluvelmente.
            Alheios a mim, meus braços se fecham em torno dele também, e eu afundo meu rosto em seu peito, respirando o cheiro que me embriaga, deixando minhas mãos percorrerem seu corpo enquanto seus lábios descem com uma suavidade torturante e lenta pelo meu pescoço, em direção ao meu ombro. A sensação etérea de sua voz acaricia meus ouvidos com a lembrança da pergunta de instantes atrás.
            — Não quero ser sua dona, Eric — finalmente encontro minha voz para dizer.
            — Resposta certa, baby — ele sussurra tão baixo contra minha pele que mal posso escutar. Seu hálito me faz cócegas e eu me encolho em reflexo.
            Eric ri e seus dentes se fecham de leve na pele sensível da curva de meu pescoço. Um arrepio percorre meu corpo inteiro, partindo da base de minha coluna e irradiando em todas as direções. Minhas pernas pouco me obedecem e fico contente por não ter que confiar somente nelas para me manter em pé, mas minhas mãos ainda encontram forças para se agarrarem em seus cabelos e eu os puxo debilmente, fazendo com que ele olhe para mim.
            A expressão em seu rosto é a mesma de antes: determinada, feroz, incrivelmente atraente. Um dos lados de sua boca se curva em um sorriso. Aquele sorriso. É quase... mal-intencionado!
            Ele sabe o que está fazendo, sabe o efeito que provoca e está brincando comigo, me provocando. Há algo de febril em seus olhos, o azul oceânico é apenas um pequeno círculo fino em torno das pupilas negras. E essa não é a única maneira de eu saber que o corpo dele reage ao meu também.
            Ele me beija. E é diferente desta vez. O toque delicado do outro dia é substituído pela voracidade faminta da língua que invade minha boca. É estranho no começo, sentir o gosto dele se misturando ao meu, então abro os olhos e o observo. Estou olhando para o único homem por quem já senti desejo, o único homem que amei do jeito apaixonado que provoca este tipo de combustão. E ele está em meus braços, com os olhos fechados, entregue a mim, me respirando.
            Isso faz com que algo queime com mais força em meu interior e meu corpo se aperta ao dele em resposta, meus olhos se fechando enquanto meus dedos se enroscam em seus cabelos mais uma vez. Agora é a minha boca que procura a dele.
            Quase chego a sentir medo de minhas próprias reações, de como o desejo de Eric me faz sentir poderosa. Quero mandar todo o resto para o espaço e me afundar nessa sensação. Quero mais de seu corpo, de seus lábios, de sua fome. Quero que o desejo inflamado que sentimos nos consuma sem que eu tenha que pensar no que estou fazendo.
            É só que não seria eu se não pensasse e, sem que eu possa controlar, um lampejo de um sentimento diferente começa a invadir a névoa espessa de volúpia que ameaça nublar tudo o mais. Estou apaixonada por ele. Completamente. O bastante para enlouquecer e agir como se não fosse quem sempre fui. Mas eu também o amo e isso não é um jogo. O único “poder” que me interessa é o que ele escolher me dar.
            — Eu quero você, Eric — consigo dizer contra a pele de seu rosto, antes de ele me puxar de volta para o beijo.
            — Também quero você — ele responde entre meus lábios, suas mãos entrando sob minha camiseta. Ele já está a meio caminho de tirá-la quando eu o impeço. Não vou conseguir pensar ou dizer nada coerente quando houver mais da minha pele tocando a dele.
            — Você não está entendendo. Não quero ser sua dona, porque quero que você escolha ficar comigo. Quero seu coração, mas só se você me der.
            Ele para. Seu corpo se afastando do meu apenas o suficiente para que possa olhar meu rosto por inteiro, como quem analisa um dilema. Ele inclina a cabeça ligeiramente para o lado, do jeito que faz quando parece sentir que não me conhece. É como se, de certa forma, ele estivesse esperando pela armadilha que pode pegá-lo desprevenido.
            No entanto, quando observa a verdade em meus olhos, sei que ele acredita. E quando o sentido de minhas palavras o atinge, é como se o quebrasse. Como se partisse suas defesas e desnudasse um outro lado seu, confuso e indefeso demais para reagir.
            — Eu quero você, Eric — repito. — Quero você do jeito que é, quero o que quiser me dar. É essa a resposta para a sua pergunta. Quero seu coração.
            — Você não sabe o que está dizendo — ele responde desolado. Suas mãos ainda estão sobre mim, em torno de minha cintura sob a camiseta, mas o jeito que me seguram agora mostra um desespero diferente. É como se ele não quisesse, não pudesse, me deixar partir. — Quando você souber, vai mudar de ideia.
            — Então me diga onde estou me metendo. Deixe que eu decida por mim mesma. — Ele me abraça e eu prometo que não vou embora, não importa o que aconteça. — Eu juro — sussurro segurando seu rosto, puxando-o de volta para mim.
            Nós nos beijamos outra vez. Um beijo hesitante a princípio, depois delicado e, finalmente, desesperado em sua ânsia de fundir nossas almas. Não sei o que estou fazendo, mas quero aquele calor de volta, quero chegar a seu âmago através do caminho de seus lábios, de seu corpo. Então minhas mãos o percorrem e minha boca se aperta contra a dele. Um gemido baixo e sufocado me escapa e encontra repouso dentro dele, o som suave fazendo seu tronco estremecer sob meus dedos sôfregos que traçam o contorno dos músculos esguios e tesos de seus braços. E é nesse momento que ele se afasta de novo.
            — Não posso fazer isso — decreta. As palavras saindo trôpegas por entre a respiração acelerada.
            Ele apoia a testa na minha, tentando se acalmar enquanto me mantém a uma distância segura. Pelo menos, parece distante para mim. Uma dor aguda me atinge em cheio, mas não tenho tempo de reconhecê-la como rejeição. Não quando estive sentindo tudo o que senti nos últimos minutos. Isso, no entanto, não me impede se senti-la. Ou de ficar confusa.
            Ele me beija de novo, apenas um toque suave de seus lábios. Depois segura meu rosto e o acaricia com as pontas dos dedos, parecendo hipnotizado, imerso em suas próprias razões, até que finalmente continua:
            — Não posso fazer isso enquanto você não me conhecer de verdade. Preciso te dar o mesmo direito de escolha que você está me dando, mas não posso fazer isso agora.   — Você não acredita em mim quando digo que vou ficar ao seu lado, não importa qual seja a verdade que se recusa a me contar? Eu conheço a natureza das pessoas, Eric. Sei que você vale mais do que esta ideia terrível que tem de si mesmo. Sei que você é melhor do que imagina.
            Ele segura minha mão e me leva até o sofá no canto da sala. Delicadamente, ele me acomoda em seu colo, mais ou menos como ficamos dias atrás, no chão do estacionamento, quando eu entendi pela primeira vez a urgência com que eu o queria ao meu lado. Faz só alguns dias, mas muita coisa mudou desde então. Porém, o entendimento do quanto eu o quero, não. Sei desde o primeiro instante que isso nunca vai mudar ou fenecer.
            — Você é tão doce, Luz! É tentador fingir que posso fugir de todas as coisas erradas que me perseguem, mas eu não quero mentir para você. Ainda tenho... pendências a resolver.
            — É por causa dela? — pergunto, referindo-me a Esther. Lembrar disso agora, porém, não parece tão doloroso quanto antes.
            — Não do jeito que você está pensando, mas, sim, ela faz parte do problema.
            — Me conte qual é o problema.
            — Eu vou. Quando não precisar mais te envolver nas sujeiras de minha vida. — Ele beija minha testa, num carinho estranhamente protetor, e então me fecha um pouco mais em seu abraço. — Eu não sou o cara ideal pra você, Luz. Não posso impedir as trevas de nos espreitarem, mas posso cuidar para que elas não maculem você.
            — Não sou um cristal, Eric. Não vou me quebrar. Posso ajudar você a lidar com seus problemas, sejam eles quais forem.
            — Eu sei que você pode. Mas esta noite eu percebi que não quero. Você me deu uma escolha. Não acho que faça ideia do que isso significa para mim, mas eu escolho você. Escolho que isso que está acontecendo entre nós seja mais importante do que o resto. E escolho, acima de tudo, manter você a salvo.
            Enquanto um de seus braços me aninha, sua outra mão traça o contorno da lateral de meu corpo, desde o rosto até o joelho. Não é um toque puramente sensual, entretanto. É exploratório e sedutor, mas é também um reconhecimento de que sou dele. É assim que me sinto. Como se apesar dos nossos segredos, estivéssemos nos prometendo um ao outro.
            — Vou encontrar uma saída para mim. Só preciso de um tempo.
            — Você está me assustando, Eric. Tenho medo de que alguma coisa aconteça com você.
            — Medo?
            — É que eu... desculpe, mas ouvi parte da sua conversa...
            Minha parte irônica ensaia um “dã” e eu mesma tenho que me controlar para não revirar os olhos, porque sei que não estou contando nenhuma novidade. Mesmo assim, eu realmente não sou do tipo que acha natural espionar os outros, então sinto que preciso me desculpar e falar disso de forma cuidadosa.
            Antes de dizer o que realmente está me incomodando.
            — Não era minha intenção, mas eu estava vindo falar com você e vi a porta aberta... — Respiro fundo e decido deixar as desculpas de lado. Acho que é preciso ir direto ao ponto aqui. — O que me pareceu é que você deve alguma coisa a alguém muito perigoso.
            — É mais ou menos isso. Mas você não tem que ter medo. Nada vai acontecer comigo.
            Como, por Deus, ele pode ter tanta certeza? Às vezes é tão difícil andar tateando no escuro!
            — Não me pareceu que Esther estivesse brincando — digo, preocupada. — Parecia que ela estava te dando uma espécie de ultimato.
            — E estava, mas ela não tem interesse em me fazer mal.
            — Porque ela gosta de você.
            Eu nunca faria mal a ele, e sei que isso não é somente por causa do que sou, mas por causa do que sinto. Então, para mim, parece apenas razoável que os sentimentos dela sejam o motivo da segurança na voz dele.
            — Isso não faz diferença — ele decreta, secamente.
            Não gosto de Esther. Não gosto que haja sentimentos, quaisquer que sejam, entre eles. Mas às vezes Eric me assusta com sua frieza. Não é natural para mim achar que os sentimentos alheios não são relevantes.
            — O que as pessoas sentem por você não faz diferença?
            — O que Esther sente não faz diferença para mim. Já o que você sente me importa muito.
            Uma parte de mim se sente pacificada e orgulhosa com essa resposta, mas a outra, aquela mais complicada e cheia de ressalvas morais, se pergunta como pode ser assim. Quer dizer, nós acabamos de nos conhecer, eu ainda nem sei por que ele se importa comigo. No entanto, Esther e ele têm uma história. Como ele pode ser tão indiferente a ela?
            — Mas ela foi sua namorada. Deve significar alguma coisa.
            — “Namorada” é um palavra que implica em um relacionamento que não tivemos. Você vai ter que se acostumar com a ideia de que outras mulheres passaram pela minha vida e que não me importei com elas da forma como me importo com você. Para mim, elas foram embora do mesmo jeito que chegaram.
            Claro. Outras mulheres. Ele tem 34 anos. É claro que eu não pensei que era única para ele como ele é para mim. O plural dito tão descuidadamente não me choca, embora o ciúme desagradável mostre sua cara feia e maldosa de novo. Mas a forma como ele fala delas, como se mal se lembrasse de seus nomes, me deixa triste. É um mundo muito solitário esse em que as pessoas vivem relações tão vazias.
            Por outro lado, é a segunda vez em poucos minutos que ele diz claramente e sem nenhuma hesitação que se importa comigo. Um homem acostumado com relações praticamente anônimas, mas que se importa o suficiente comigo a ponto de parar a combustão de nossos corpos para me mostrar o quanto não quer apenas um encontro banal. Não posso evitar sorrir com a ideia.
            — Acho que, de uma forma meio torta, esse foi um imenso elogio.
            Quero que ele saiba que reconheço isso, que percebo o esforço que está fazendo para se comportar de maneira diferente comigo, mas ele não responde imediatamente. Em vez disso, pensa um pouco, analisando as coisas sob sua própria perspectiva, por vezes tão diferente da minha.
            — As pessoas não são como você, Luz. Sentimentos são coisas desnecessárias em boa parte das relações. Esther não se importa comigo, ela não gosta de mim. Não de verdade. Ela apenas me quer, o que é muito diferente.
            — Não sei se isso me deixa mais tranquila. Na verdade, eu preferia que você me dissesse que ela é completamente apaixonada por você. — É estranho, mas é verdade. Posso lidar com o ciúme mais facilmente do que com o receio que ela me desperta. —Porque querer... é algo meio complicado. Ela me parece o tipo de pessoa que pega o que quer, não importa o que aconteça. Ela me dá medo.
            — Posso sair dessa, só preciso de um tempo, ok? Você me pediu para esperar por você, estou te pedindo a mesma coisa agora. Só me prometa que vai ficar longe de Esther. Você promete?
            Balanço a cabeça afirmativamente. Não está nos meus planos ficar perto de gente que me dá calafrios. Minha “intuição especial” não estava em seu melhor quando a conheci, mas meu lado humano é suficiente para saber que devo ficar longe dela.
            — Se ela vier aqui — ele continua —, se te procurar, use seus instintos e se afaste. Eu não vou deixar mais ela se aproximar de você, mas você também precisa ficar atenta.
            Por um momento, a preocupação dele me assusta e volto a duvidar que ela não seja a ameaça que parece.
            — Você disse que ela não faria mal a você...
            — Eu disse que ela não tem interesse em me prejudicar. Por isso, você está segura, mas não estou disposto a arriscar.
            — Não gosto disso. Não gosto que ela saiba coisas sobre você que eu não sei. E não gosto que ela esteja por perto quando você me diz para ficar longe. Me parece injusto que eu não saiba com o que estou lidando.
            Seria muito mais fácil se eu soubesse o mesmo que ele. Quem sabe assim eu não tivesse tanto receio de apostar que estamos seguros. Sei que tenho meus próprios segredos e não estou em posição de apressar que ele me conte coisas que não está preparado para dizer. Ninguém compreende essa necessidade de tempo melhor do que eu e, apesar de parecer imprudente, o fato de termos isso em comum me faz confiar nele. Mas isso não torna a situação menos incômoda.
            — É por pouco tempo, Luz. Prometo. Você vai saber da verdade. E não vai precisar se preocupar com ela nem com ninguém.
            — Ainda acho que ela está em vantagem...
            — Não tenha tanta certeza disso. A verdade sobre o passado pode ser superestimada às vezes. E você vai saber, de qualquer jeito. Mas ela não tem o que você tem.
            Okay. Uma coisa que eu tenho e ela não tem... Acho que gosto das probabilidades.
            — Você? — pergunto inocentemente, como se não soubesse o que ele quis dizer, testando minha capacidade de fazer charme.
            — Por quanto tempo quiser.
            — Eu sempre vou querer você.
            — Vamos pensar apenas no agora.
            Gosto da ideia, mas gosto ainda mais de saber que vai haver um amanhã e, ao que tudo indica, um depois, e outro, e mais outro. Tempo suficiente para termos todos os momentos que adiamos esta noite, porque, bem, além de tudo, estamos trabalhando. Ou pelo menos deveríamos estar.
            — Pensando apenas no agora... — digo sem vontade, mas consciente do que devemos fazer, apesar de não parecer uma boa ideia quando mergulho na felicidade de estar aqui sentindo o carinho dele. — Acho que devíamos voltar para o bar. Já faz tempo que paramos de trabalhar e já é a segunda vez que fazemos isso em pouco tempo. O pessoal vai ficar chateado.
            — Esqueceu que você está namorando o patrão, baby?
            Namorando.
            Nem tive tempo de pensar nessa palavra enquanto tínhamos tantas cartas para pôr na mesa (ou esconder na manga, ao que parece), mas ela ressoa dentro de mim de uma forma prazerosa quando ele diz. Pode parecer banal, mas é outra primeira vez para mim, e ainda que a situação seja tão inusitada e eu seja qualquer coisa menos uma menina, é assim que me sinto. Com o coração acelerado e o calor gostoso de um rubor que certamente tinge minhas bochechas.
            — Mesmo assim, ainda tem gente no bar e falta... — Olho no relógio para disfarçar minha reação meio exagerada, e percebo com um susto que estamos aqui há tempo demais. — Falta só meia hora para o bar fechar.
            Precisamos ir. Ou eu preciso ir. Eric pode fazer o que quiser, porque, como disse, é o patrão. Mas eu sou apenas uma funcionária deixando todo mundo na mão para ficar se agarrando com o namorado.
            Se sua mãe te visse agora... Aquela parte de mim provoca, mas tudo o que faço é rir internamente.
            “Ficamos engraçadinhas quando estamos felizes.”
            Começo a me levantar, mas sou puxada de volta e não me importo nem um pouco com isso. Ao contrário, gosto de saber que ele não quer que eu vá, e procuro os lábios dele mais uma vez nesta noite que eu não quero que termine.
            No fim, depois de nossa conversa, não sei muita coisa a mais do que quando ela começou. Ainda estou tateando no escuro, sem saber aonde vou ou sequer onde estão os limites da estrada. No entanto, não sou mais a Clara de antes, agora sou “nós”. Isso eu sei.
            Digo adeus à pessoa que eu era e seguro o fôlego, confiante. Hora de mergulhar no espantoso oceano desses olhos em que aprendo a confiar. Talvez mergulhar no abismo que espelha o céu seja uma coisa para a qual eu esteja pronta, afinal.

                                                                                                              “Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
                                                                                                              Mas nele é que espelhou o céu.”

                                                                                                                                                                                                                                           Fernando Pessoa

quarta-feira, 22 de julho de 2015

CD2 - Cap. 16

Capítulo 16 – Entrelinhas

Hey kids! (hey kids)
Do I have your attention?
I know the way you've been living
Life's so reckless, tragedy endless
Welcome to the family

Hey!
There's something missing
Only time will alter your vision
(…)
Not long ago you find the answers were so crystal clear

(Welcome to the Family – Avenged Sevenfold)

Kyle

                A coisa toda era muito estranha.
E eu nem estou falando sobre Logan ser passageiro na cuca do Jeb e “sequestrar” a aeronave no processo. Quer dizer, isso foi esquisito, claro, mas com essa parte eu já estava até meio acostumado. Digamos que um cara que se apaixonou por duas mulheres diferentes no mesmo corpo adquire uma certa tolerância para essa maluquice toda, principalmente quando não me diz respeito diretamente. Agora, o que eu estou falando mesmo é do que aconteceu depois.
Não sei se os outros perceberam, porque, convenhamos, Logan e Jeb não são exatamente normais e o pessoal daqui já se habituou a não questionar muito o que chamam de “excentricidades”. Acho que eles pensam que devem a Jeb um pouco de privacidade e acabam estendendo a Logan o benefício, porque... Bom, porque sim. Estar tão inevitavelmente próximas todos os dias faz as pessoas perderem a vontade de se meter na vida alheia.
E não é que eu seja diferente. No geral, quero que os outros se explodam. Mas acontece que me importo com Jeb e, por estranho que pareça, passei também a ter certa consideração pelo Buscador metido a Clint Eastwood. E até que eu não precisei prestar muita atenção para perceber que alguma coisa mudou nos dois, que eles estavam mais esquisitos do que de costume.
Primeiro Logan ficou obcecado pela saúde de Jeb, o que ainda não é a coisa estranha, já que eu sempre achei que ele enxergava o velho como pai e eu faria o mesmo pelo meu. Mas aí, ao mesmo tempo, ele começou a ficar esquisito de verdade. Não do jeito de sempre, com toda aquela pilha de achar que é responsável por todo mundo ou aquele comportamento tenso e contido de militar que ele podia ter às vezes. Mas de um jeito que não parecia normal para ele.
Foi Sunny quem reparou primeiro, na verdade. Ela disse que ele parecia “descomposto e disperso”, o que traduzindo na minha língua queria dizer que ele estava com aquela aparência amarrotada de quem não está nem aí para porcaria nenhuma. Para a maioria dos caras isso não queria dizer nada, mas era fácil perceber por que Sunny ficou preocupada. Logan era o tipo de pessoa que prestava atenção em tudo e nunca andava por aí com um fio de cabelo fora de lugar. Droga, era até ridículo! E de repente o sujeito estava lembrando o boneco de pano que meu cachorro Buddy arrastava pela casa quando Ian e eu éramos crianças. Tinha que ter alguma coisa estranha nisso. E mais ainda no fato de que não estava dando para confiar nele para fazer nenhum serviço mais elaborado do que carregar uma caixa de mantimentos, por exemplo. Justo o cara que sempre tinha uma preocupação doentia em acertar os mínimos detalhes de tudo.
Por essa razão achei que Jeb tinha percebido algo quando me mandou ir com eles para ajudar na revisão dos carros para a incursão que se aproximava. Logan sempre tinha dado conta do recado sozinho e — eu tinha que admitir — nunca fora preciso um segundo par de olhos, ou mesmo de mãos, para que os veículos estivessem sempre prontos para o uso, mas lá estava eu, checando tudo para garantir que nada fosse esquecido ou negligenciado, como se já tivesse sido necessário. Provavelmente porque Jeb sabia que se havia uma coisa em que eu era bom era em supervisionar as merdas dos outros.
Mas a verdade era que não tinha acontecido nada de mais. Nenhum esquecimento ou distração, nenhuma falha. Nada mesmo. Logan estava fazendo o serviço normalmente, só mais silencioso do que de costume e mais rápido por causa da minha ajuda, e Jeb estava só por perto mesmo, estudando a gente com aquela cara de pôquer de sempre. A coisa toda estava tão chata que eu já estava começando a achar que minha função, no final das contas, era animar o ambiente.
— Ei, pode me passar o martelo? — perguntei.
Todo mundo me olhou como se eu estivesse louco.
— Está querendo pendurar um quadro? — brincou Jeb.
— É uma opção. Ou isso ou quebrar esse gelo.  Por mais interessantes que sejam meus pensamentos, seria legal ter um barulho de fundo. Esse silêncio todo está me dando sono.
Tudo bem, a coisa do martelo tinha sido uma péssima piada, mas foi a primeira coisa que me ocorreu e achei que servia. Pelo menos agora eles estavam pensando numa resposta espertinha para me dar em vez de ficar cada um na sua, remoendo aquela droga de silêncio desconfortável.
— Achei que você nunca se cansasse do som da sua própria voz, Kyle. Mesmo que só dentro da sua cabeça — Logan retrucou e isso fez Jeb dar uma risadinha.
— Não me canso mesmo. Mas achei que podia oferecer um pouco da minha espirituosidade a vocês.
— Que generoso! — Jeb emendou. E todos nós rimos, embora não tivesse mesmo graça nenhuma. Pelo menos o clima estava mais leve, o que já estava bom para mim.
— De qualquer forma — disse Logan —, se você tiver juízo não vai andar com um martelo perto dos meus carros.
— Seus carros! No plural. — Aquilo era um desaforo. Balancei a cabeça de um lado para o outro, estalando a língua. — Ainda estou tentando entender por que eu tive que abrir mão do meu carro e você pôde ficar com os seus.
— Bem, você tinha um Porsche ou um Mustang? — Logan se exibiu, como se tivesse algum mérito em ter coisas caras em um mundo onde não se pagava por elas.
— Não, mas eu trabalhei muito para pagar o meu. Você, por outro lado, pagou com moeda de ET, ou seja, sorrisinhos e confiança.
— Não tenho culpa disso. Minha espécie criou uma sociedade com inúmeras vantagens, em que seria errado usufruir delas enquanto eu trabalhava por eles? Além do mais, o Mustang era do meu hospedeiro, e ele também trabalhou muito para pagar, se dinheiro e esforço te servem de consolo.
— Ah, sim. Isso certamente justifica por que você foi o último a chegar, mas mesmo assim sempre teve privilégios.
Agora que eu começava a pensar nisso, era bem verdade. O otário sempre tinha mijado de porta aberta por aqui.
— Se você não brigou pelo seu carro é problema seu. Quanto a mim, quando me mudei para cá sabia que me responsabilizaria por quase todas as incursões, então achei que não atrapalharia ninguém se tivesse o “privilégio”, como diz você, de fazer isso com os veículos a que estou acostumado.
E pensar que eu estava preocupado com esse imbecil arrogante!
— Seu carro era muito grande e chamativo, Kyle — Jeb justificou, mas eu sabia muito bem que ele adorava a droga do Mustang, e por isso nunca cogitaria se livrar dele enquanto pudéssemos mantê-lo. E embora não fosse necessário antes, eu tinha que admitir que agora que nos dividíamos nas incursões até que o carro realmente estava sendo útil, mas o outro...
— Porque o Porsche quase não chama a atenção lá fora, né? E é pequeno demais para carregar as “compras” de qualquer forma.
— Você está sugerindo que eu me livre de um Porsche porque ele é muito... Pequeno!?
— Por que não? Não serve para nós.
— Você não se queixa quando o está dirigindo!
— Garotos...
Jeb parecia cansado, mas não por estar doente nem nada. Ele estava perfeitamente bem agora, ou pelo menos era o que todo mundo achava. A medicina das Almas era infalível até onde a gente tinha visto, ninguém mais duvidava disso. Ele só parecia estranho, ligeiramente estressado, como se nossas habituais disputas já não fossem tão divertidas para ele quanto antes, quando ele costumava rir de discussões assim.
 Aquilo não escapou a Logan também. Sem dizer uma palavra, ele tirou uma garrafa de água da mochila e estendeu-a para Jeb, que a dispensou com um gesto de mão. Isso, porém, não fez a menor diferença, porque a garrafa continuou estendida para ele, agora acompanhada daquele olhar irritante que Logan sabia dar quando não pretendia desistir das coisas. Por fim, o velho pegou a garrafa e tomou metade sem protestar.
Sem. Protestar.
É, as coisas estavam mesmo diferentes.
— Você quase não tomou líquidos hoje — disse Logan. Jeb respondeu com um “ok, ok”, que provavelmente queria dizer algo como “quando foi que contratei uma droga de enfermeiro?” ou “tudo bem, você está certo, padawan[1]”, não sei ao certo. Sempre achei que eu era bom em ler nas entrelinhas, mas desde que começou o lance Obi Wan e Luke entre eles acho que perdi a mão.
— Confesse, Kyle. Você não quer mesmo se livrar do Porsche — Luke, digo, Logan me provocou.
É claro que ele sabia que eu só tinha falado aquilo na hora da raiva. Quer dizer, meu carro era lindo e eu nunca perdoaria Jeb por ter me forçado a abandoná-lo, mas ele era praticamente um carro alegórico para os padrões sem graça dos parasitas lá fora. Só que não dava para jogar a culpa no pobre “Porscha”. Os tempos para nós eram outros agora e certos luxos podiam ser mantidos, por assim dizer. Eu certamente sabia apreciar nossos pequenos tours pelo deserto sentindo aquela máquina ronronar sob nossos pés, só pela diversão da coisa.
— Tá, tudo bem, eu exagerei um pouquinho. Ninguém precisa ficar nervoso aqui, certo, Jeb?
Bati com força no ombro dele, esperando uma confirmação bem-humorada, mas tudo o que consegui foi um sorriso amarelo. Não importava o que eu fizesse para quebrar o gelo e animar as coisas, o ambiente continuava sério como uma droga de ataque cardíaco.
— Vocês dois estão muito esquisitos ultimamente — acabei desabafando.
— O que você quer dizer? — perguntou Logan, mas acho que ele estava só disfarçando.
— Essa história de você não dormir direito e passar o dia com cara de zumbi. E o Jeb... — Olhei para ele quando falei. Eu não sabia realmente apontar o que estava diferente naquele velho cuja versão mais normal era maluca, mas de repente me ocorreu uma coisa: — Você não está doente de novo, está? Porque até onde a gente sabe, os Curandeiros resolvem tudo, mas...
— Relaxe, Kyle. Está tudo bem comigo.
Ah, não, não estava. Eu conhecia o cara há anos e tinha certeza de que ele estava escondendo alguma coisa. De todo mundo, se bobeasse.
— Quase morrer muda as pessoas. É só isso — ele completou se justificando, como se tivesse lido meus pensamentos ou algo assim.
Até que fazia sentido. A verdade é que eu não tinha parado para pensar nisso, por mais óbvio que fosse. Percebi que os dois trocaram um olhar quando Jeb falou, e Logan pareceu se dar conta de alguma coisa que tinha ignorado até aquele momento.
— Jeb está preocupado comigo — constatou, com aquele olhar de censura velada. — Mas é sem motivo.
E aí estava! O motivo para eu estar aqui. Sunny e eu não podíamos mesmo ser os únicos a ter notado! Jeb devia estar preparando algum tipo de intervenção, como aquelas que a gente via nas séries de TV quando algum personagem estava fazendo merda e os amigos se reuniam para pegá-lo de surpresa e falar umas verdades na lata dele. Naquelas alturas Jeb já havia percebido que, por razões além da minha compreensão, eu e o Buscador nos dávamos estranhamente bem, e então resolveu me recrutar. Parece que finalmente alguém aqui reconhecia a sabedoria intrínseca do bom e velho O’Shea.
Abri as portas traseiras do furgão e me estatelei ali, improvisando um banco na carroceria.
— Tudo bem, amiguinhos. Contem tudo para o Kyle.



[1] Referência ao universo de Star Wars, porque eu só amo e resolvi que Kyle é um movie buff como eu. Padawan é um aprendiz de Jedi, que são os guardiões da paz  e do lado bom da Força. Luke é o protagonista da trilogia original e, por um tempo, ele aprendeu algumas coisas com Obi Wan, que era um velho enigmático e astuto como Jeb.

sábado, 11 de julho de 2015

ELS Cap 26

Capítulo 26 – Jogos de Amor e Ódio

The world was on fire and
No one could save me but you
It's strange what desire make foolish people do
I never dreamed that I'd meet somebody like you
I never dreamed that I'd lose somebody like you
(…)
What a wicked game to play
To make me feel this way
What a wicked thing to do
To let me dream of you
What a wicked thing to say
You never felt this way
What a wicked thing to do
To make me dream of you

(Wicked Game - Chris Isaak)


            A terça-feira parece não passar rápido o suficiente.
            No dia anterior, depois que Marina foi embora, eu dei a mim mesma a noite amena e agradável que tinha me prometido, e permiti que minha mente vagasse pelo mesmo caminho de meu coração. Parece estranho, mas há muito tempo eu não sentia que uma coisa podia acompanhar a outra. Tenho vivido com a sensação fraca, porém insistente e incomodamente familiar, de estar sempre longe de casa, sempre de passagem por algum lugar amistoso e confortável, mas que não é o meu.
            Então, quando deitei a cabeça em meu travesseiro, pensando que, fosse como fosse, havia um lugar para mim na vida de Marina, que havia uma possibilidade mais do que palpável de que ela me aceitasse racional e emocionalmente, senti como se estivesse me aconchegando de novo no conforto de minha própria cama depois de uma longa viagem. Desde o momento em que a vi, não só na noite de nosso reencontro algo fatídico, mas no dia longínquo em que a acolhi em minha vida, é assim que a presença dela me faz sentir: como se eu estivesse em casa. Finalmente.
            A paz que essa constatação me trouxe embalou meus sonhos, mas acho que eles pouco tiveram a ver com Marina, afinal. É com o coração cheio da presença de Eric que acordo, abrindo os olhos para a rosa vermelha que flutua num vaso de vidro ao meu lado como um sinal luminoso, frágil e belo de que há coisas a serem vividas no dia que se desdobra diante de mim. Um dia que vai culminar em uma noite de trabalho ao lado dele. Uma noite inteira. Pensar nisso faz um sorriso bobo surgir em meu rosto e uma ansiedade gostosa começa a acompanhar meus passos.
            Pareço uma criança enquanto espero a hora chegar, cumprindo pequenas tarefas do cotidiano pela casa, indo passear com Blue e tentando distrair minha cabeça com coisas que nem precisariam ser feitas, para começo de conversa. Felizmente, um cachorro novo num apartamento faz sua cota de sujeira, mas não é como se eu morasse em uma enorme mansão desorganizada que precisa de arrumação e faxinas constantes, então chega uma hora em que as tarefas domésticas se esgotam e eu sou obrigada a me sentar e tentar ler um pouco.
            Por um tempo funciona, mas logo os personagens principais começam a se descobrir apaixonados e algo em mim flutua pelos ares enquanto eles se beijam. Em um instante, meus lábios se transmutam nos dela e sou eu que estou dizendo a um Eric literário que quero mais, sempre mais de seus beijos, de seu corpo, de sua companhia, porque tudo o que sou parece subitamente pertencer a ele. Fecho o livro quando começo a sentir a maciez dos cabelos dele sob meus dedos e o calor etéreo de seu corpo imaginário prensando-se contra o meu.
            Céus! Então é assim que é estar apaixonada?
            Acho que você vai precisar de um hobby!, provoca aquela parte de mim. Mas eu sinceramente espero que seja só a ansiedade do começo, a saudade misturada com expectativa que cerca meu reencontro com ele depois do nosso — do meu — primeiro beijo. E é por isso, por causa dessa ansiedade toda, que, apesar de minha preocupação em deixar Blue sozinho por um período longo pela primeira vez, estou pronta para ir bem antes do meu horário.
            Fico com o coração apertado quando o cãozinho acompanha, com olhos ligeiramente decepcionados, meus movimentos ao meu arrumar. Queria não precisar deixá-lo sozinho por tanto tempo, mas a verdade é que ele vai ter que se acostumar, porque é assim que será a maioria das nossas noites. Então tento não fazer drama ao ir embora, comportando-me como se fosse uma saída rápida para ir à padaria, por exemplo, e torço para que seja verdade que os cães têm uma percepção de tempo diferente da nossa.
            Dou um “ossinho” a ele e tento lhe fazer um cafuné, mas Blue já não parece mais preocupado com minha ausência quando tem a comida para se distrair. Sendo assim, posso sair discretamente, deixando a luz acesa e o rádio ligado baixinho para lhe fazer companhia durante minha noite de trabalho.
            Chego ao bar cerca de meia hora antes do previsto, reparando que, como sempre, a moto de Eric já está em seu lugar de costume. Ele sempre é o primeiro a chegar e o último a sair, nunca tira folgas e nem atribui a Samuel algumas coisas que poderiam ficar sob a responsabilidade de um gerente.
            O bar está diferente agora, tem um cardápio mais sofisticado e uma rotatividade maior de bandas, o que torna o lugar mais atraente a uma clientela mais adulta, que tende a ser mais assídua e também a gastar mais do que os adolescentes de sempre. Essas mudanças todas são por causa de Eric, e isso certamente justifica ele trabalhar bem mais do que Samuel quando era dono do On The Rocks mais despretensioso de antes.
            Ainda assim, embora eu saiba que Eric tem suas obrigações administrativas a cumprir, coisas como receber fornecedores, contratar as bandas e cuidar para que tudo esteja em ordem, às vezes tenho a impressão de que ele passa o máximo de horas que pode trabalhando neste bar porque se sente melhor aqui do que em outros lugares. Talvez eu possa perguntar isso a ele qualquer dia, porque, sabe como é, eu gosto do mistério todo e de fazer minhas suposições, mas seria ótimo não ter que ficar adivinhando tudo, só para variar.
            Depois da entrada de serviço, no corredor que leva à cozinha e ao nosso pequeno depósito, há um conjunto de armários simples de metal, como os de academias de ginástica, para podermos guardar nossos pertences. Entro distraída, vasculhando minha bolsa desajeitadamente em busca do pequeno cadeado com chave que Paty me importunou para comprar depois que algum dinheiro desapareceu de minha bolsa.
            Ela nutre suas desconfianças em relação a Lara, mas eu prefiro pensar que perdi esse dinheiro por aí, porque não quero outro motivo que alimente a inimizade que a namorada de Samuel tem por mim. Ainda tenho alguma ilusão de poder ajudar Lara a se encontrar e, mesmo que no fim ela não precise da minha ajuda, seria bom se pudéssemos ficar em paz.
            Você e sua mania de querer consertar as pessoas!
            “Sim, sim, eu tenho complexo de salvadora, blá, blá, blá... Me processe!”
            Claro! Porque isso seria perfeitamente lógico e possível.
            Alcanço o cadeado, mas como estou preocupada — como uma boa pessoa sã — em brigar comigo mesma, acabo derrubando a bolsa e seu conteúdo se espalha parcialmente pelo chão. Ainda não está totalmente escuro, há um resquício de luz vindo de fora, mas a penumbra já se espalha pelo corredor e, a fim de encontrar meus pertences, pressiono o interruptor. Quando faço isso, minha atenção se volta involuntariamente para a parede de armários, e reparo que o meu está entreaberto. Dou uma olhada lá dentro e reparo que há uma forma delicada presa à parte interna da porta.
            Uma rosa vermelha.
            Recolho minhas coisas atabalhoadamente e jogo dentro da bolsa de qualquer jeito, porque meu coração acelerado me impulsiona em direção ao meu novo presente. Um pequeno post-it amarelo está colado ao lado da flor. Na letra que já me é familiar, as seguintes palavras pulam direto de meus olhos para dentro de meu peito:
Pela noite que ficou melhor depois de escutar sua voz.
            Não estou pensando, apenas sentindo a presença dele naquele clichê romântico tão doce quanto qualquer coisa que estreita a distância entre dois corações. É tão simples e ao mesmo tempo tão perfeito que dispensa palavras. De repente, não me importo mais com todos os mistérios que ele guarda dentro de si. De um jeito ou de outro, ele parece arranjar um jeito de falar comigo e me deixar saber que não estou sozinha em meus sonhos.
            Retiro a fita que prende a flor à porta de metal e acaricio as pétalas perfumadas, sentindo-me como se aquela beleza fugaz fosse o que há de mais eterno no mundo, porque, para mim, a delicadeza daquele carinho e a felicidade com que ele preenche meu coração não vão desaparecer. Talvez a vida seja isto mesmo: a fixação do efêmero por meio do amor.
            Fico com pena de deixar a flor trancada, mas, mesmo que eu a leve para o carro, de qualquer forma teria que esconder sua beleza da luz, o que acaba por me lembrar o jeito de Eric de se esconder do mundo. É uma comparação poética, embora melancólica, mas sei que nenhum dos dois vai permanecer no escuro por muito tempo.
            Como eu disse, tenho complexo de salvadora, penso, com um sorrisinho de canto pretensioso.
            Pego um copo plástico ao lado do bebedouro e encho de água, tentando acomodar a bolsa, os tênis pelos quais pretendo trocar as botas no fim do expediente e o vaso improvisado, apoiado no canto do armário para não cair. Fecho tudo e prendo a pequena chave na correntinha que coloco em torno do pescoço, por dentro da camiseta com o logotipo do On The Rocks. Então, finalmente, parto com o coração aos pulos ao encalço da outra beleza guardada por trás do jeito sombrio dos olhos que povoam meus sonhos.
            Abro a porta que dá acesso ao salão, esperançosa de que dar de cara com ele, sem ter tempo de pensar, possa me fazer esquecer a timidez, mas uma rápida olhada me avisa de que não vai ser tão fácil assim. Ele não está em nenhum lugar visível, o que significa que deve estar fechado em seu pequeno escritório numa sala contígua ao backstage. Isso quer dizer que vou precisar bater na porta com uma desculpa para conversar que vá além de um: “Olá, também chegou mais cedo hoje? Eu tive que passar em um lugar antes de vir, mas levou menos tempo do que eu supus, então... Bem, aqui estou. E, ah, obrigada pela flor”. Agora talvez eu precise incluir um: “Não pude esperar para te ver, então decidi vir aqui interromper seja lá o que você esteja fazendo na privacidade de sua sala particular para agradecer e... quem sabe... sei lá, talvez, se couber na conversa, te declarar amor eterno”.
            É, isso definitivamente mandaria toda a minha desculpa esfarrapada e minha calma calculada para o espaço!
            Também não sei por que estou preocupada em criar pretextos. Talvez eu possa apenas dizer mesmo a verdade ou, quem sabe, não precise dizer nada. Não sei, e também não importa muito, acho que posso pensar nisso quando estiver com ele.
            Porém, quando estou na porta da sala maior onde as bandas descansam, nos fundos da qual fica o escritório, percebo que a porta não está fechada, mas que Eric está acompanhado. Posso ver a silhueta dele encostado ao batente, meio corpo para fora. Toda sua postura corporal indica alguém que não quer estar ali e seu tom de voz, embora baixo, é agressivo e irritado.
            De lá de dentro, uma voz sussurrante de mulher rebate o que ele diz. Posso ver as pernas dela, cruzadas confortavelmente enquanto ela faz a cadeira de rodinhas girar com o movimento de seu corpo. Não consigo ver seu rosto, mas sei que ela é bonita. E sei que a odeio antes mesmo de ser capaz de entender por quê. O ineditismo do sentimento me atinge em cheio e não é bom. Sinto meu corpo se encher de uma energia estranha que faz com que eu me desconheça.
            Agressividade.
            Não gosto disso. Não gosto mesmo.
            Uma curiosidade mórbida, e algo mais que isso, faz com que, em lugar de ir embora e ficar longe da conversa que não me diz respeito, eu decida permanecer onde estou, com o corpo meio escondido pela parede, atiçando meus ouvidos para decifrar o que eles estão dizendo.
            — Eu já disse a você que sei o que estou fazendo, que vou fazer isso do meu jeito.
            — Se você sabe o que está fazendo, por que está demorando tanto? Você me prometeu o outro e eu sei que isso requer mais paciência, eles precisam de tempo. Mas você sabe muito bem que paciência não está entre minhas virtudes. Talvez se você acabasse logo com isso, eu me contentasse em ficar sem prêmio de consolação dessa vez. Nós podíamos ir embora daqui, estou cansada de ver você sofrer desse jeito.
            Ao dizer isso, a forma dela desaparece da cadeira e se materializa ao lado de Eric, levantando uma das mãos para tocar no rosto dele. Ela é como pensei: linda. É alta, mesmo que não estivesse usando saltos agulha, tem longos cabelos lisos e escuros que lhe caem languidamente pelas costas, olhos grandes e profundos como buracos negros e traços exóticos e marcantes. Únicos. Não como a beleza convencional que alguns me atribuem, mas um encanto só dela. O corpo de formas curvilíneas é um insulto dentro da calça justa e da blusa de seda preta que lhe marca os contornos dos seios pequenos e empinados.
            E ela está lhe falando, com aquela maldita voz sussurrante, sobre um sofrimento que eu não conheço, mas ela sim. Sobre irem embora juntos. Embora. E está tocando no rosto dele.
            Por uma fração de segundo, Eric inclina o rosto na direção do carinho, repousando na mão dela de olhos fechados. É só um momento, tão rápido que me pergunto se não o imaginei, mas odeio o descanso que ele encontra naquela cumplicidade que não tem comigo. É tempo suficiente para algo se quebrar dentro de mim e eu me sentir transbordar de uma ira contida, como se as unhas dela tivessem feito um fissura irreparável na represa de meus sentimentos.
            Quando ele cai em si e tira a mão dela, afastando-a com um gesto brusco, já é tarde demais. Meus olhos já ardem com as lágrimas e minha garganta se engolfa no gosto ácido de um sentimento que eu nunca tinha sentido — e espero jamais sentir novamente — por ninguém.
            Eu a odeio.
            — Não vou a lugar nenhum com você, Esther — ele diz. — E não me venha com esse teatro, você está aqui porque quer sua parte.
            — Não, querido. Eu estou aqui porque ele quer sua parte. Não se esqueça de quem nós somos, você já fugiu tempo demais dessa verdade. Quanto a mim, posso conseguir a minha parte a hora que quiser, você sabe muito bem.
            — Fique fora do meu caminho. Desta vez não vou deixar esta merda toda me manipular. Só fique longe...
            — Ou?
            Os dois estão furiosos, quase posso tocar a tensão entre eles de onde estou, mas Eric está mais do que irritado. Há uma desolação na postura dele. Na maneira como ele parece admitir algum tipo de razão na fala dela.
            Talvez seja por isso que ele não responde ao tom desafiador da pergunta. Apenas sai de perto dela, dando-lhe as costas enquanto apoia as mãos crispadas na mesa do escritório. A tal Esther apenas revira os olhos e se apoia no batente onde Eric estava antes, só que a postura dela é relaxada e confiante, com um dos saltos tocando a madeira e os braços cruzando-se triunfalmente enquanto os ombros dele afundam mais um pouco.
            — Foi o que pensei — ela diz. E vejo o corpo de Eric se endireitar, tensionando-se de raiva, mas ele não volta a olhar para ela ainda assim.
            Ouço a porta do salão se abrir bruscamente. Paty está chegando, e seus modos extrovertidos estão prestes a denunciar minha posição. Coloco meu indicador em riste diante dos lábios para sinalizar para ela de longe, pedindo para que fique quieta. Vejo-a começar a atravessar o salão pé ante pé em minha direção, sorrateira e silenciosa como um gato. Graças a Deus!
            No instante seguinte, quando volto minha atenção novamente para os dois, Esther está se movendo em direção a Eric, segurando seus ombros delicadamente e virando-o para si.
            — Isso podia ser tão fácil, querido. Você ganharia o controle que tanto quer e poderia me dar o que quero, o que vem me prometendo há tempos.
            — Não prometi nada a você, Esther. Nunca concordei com seus delírios. E o que você acha que é a solução ideal está longe disso para mim.
            — Eu posso fazer você concordar, amor. Do jeito mais difícil ou do jeito mais prazeroso. Mas você sabe o que eu prefiro.
            De repente, ela é toda braços e boca, acariciando-o e fazendo com os lábios o caminho do seu pescoço, que ele inclina para trás para evitá-la, e depois do maxilar tenso que ela contorna até chegar à boca dele.
            — Mas que porra é essa!? — pergunta Paty à minhas costas, num sussurro mais alto do que deveria. — Essa lambisgoia está atacando seu namorado e você vai ficar aí, sem fazer nada?
            — Ele não é meu namorado, Paty. Nunca disse que era. E também não está exatamente se defendendo.
            Eric mantém-se parado, os braços ao lado do corpo, parecendo resistir ao toque dela, mas sem fazer nada além de tombar a cabeça ligeiramente para trás, fugindo do alcance dos lábios de Esther, que alcançam seu queixo e seu pescoço em vez da boca pretendida.
            — Besteira, ele não está jogando a vagabunda para trás nem nada, mas está tentando resistir. Se ele beijou você outro dia e não está beijando ela agora significa alguma coisa, ele está escolhendo e você devia fazer algo a respeito.
            As lágrimas despencam pesadamente de meus olhos, mas estou determinada a não interferir. Está claro que o que está acontecendo ali deve ser interrompido por ele, não por mim, a sua não-namorada que pediu um tempo antes mesmo de começar qualquer coisa. Que direito eu tenho, afinal?
            — Aah! — bufa Paty. — Se você não vai fazer nada, eu faço.
            E então ela faz uma entrada barulhenta na sala de descanso, batendo os pés com força no chão para se fazer notar, enquanto Eric finalmente segura Esther pelos ombros e a afasta de si.
            — Ah, oi, Eric... Opa, desculpe, achei que seria bom dar uma geral aqui no backstage, mas não sabia que você estava aqui, e ainda por cima com visita. Foi mal mesmo — diz Paty, fingindo-se de desentendida.
            A desculpa é esfarrapada. “Dar uma geral no backstage” não está entre as tarefas que nos preocuparíamos em executar numa noite em que aquela sala não seria usada, mas Eric parece achar a interrupção bem-vinda.
            — Não tem problema, Patrícia. Minha amiga já estava indo embora e eu tenho muito que fazer antes de o bar abrir também — ele diz, olhando incisivamente para a “amiga”.
            — Não sem antes conhecer seu staff, querido — ela rebate, devolvendo-lhe um olhar provocativo. — Mas que moça adorável! — diz, como se Paty fosse algum tipo de bibelô de vitrine. — Patrícia, não é? Meu nome é Esther.
            — Como vai? — responde Paty, segurando firmemente a mão que ela oferece.
            — Bem. E como é mesmo o nome da outra? Clarice, Clara...?

            — Clara — Paty responde. — Ei, Clara! — ela grita, fingindo que estou longe. — Vem aqui um minuto!
— Isso é desnecessário, Esther — Eric interfere. — Eu já disse que tenho muito que fazer e que é melhor você ir embora. Clara deve estar ocupada em algum lugar, não é, Patrícia?
            — De jeito nenhum! Ela estava por aqui, limpando as mesas, mas tenho certeza de que ela tem um minuto para conhecer a sua...
            — Namorada — Esther responde, após a hesitação proposital de Paty.
            — Ex — Eric corrige.
            Meu estômago afunda. E não sei que força faz com que eu enxugue os olhos, cole um sorriso fingido no rosto e entre na sala como se nada tivesse acontecido.
            — Oi, Clara — diz Paty. — Eu te chamei porque a ex-namorada do Eric quer te conhecer.
       — Ah, é mesmo? — pergunto com uma cara de pau tirada do fundo da minha cólera borbulhante. — Como está, querido? — digo para Eric, usando a palavra pela qual ela o chamou tantas vezes nos últimos minutos, e abraçando-o enquanto beijo seu rosto do jeito mais terno que consigo, dada a raiva que sinto.
            Queria ter tido forças para dar um beijo na boca dele, mas não é desta vez que consigo ser tão atrevida. De qualquer jeito, três pares de olhos arregalados me encaram quando termino minha ceninha e fico satisfeita com o resultado. Se é que consigo ficar satisfeita com alguma coisa nestas alturas.
            — Então você é minha parcela de competição saudável? — diz Esther, estendendo a mão para mim. Ela me puxa e me dá um beijo fingido no rosto, como se estivesse conhecendo uma nova amiga. Quero arranhar a cara dela e limpar a minha com desinfetante. Céus! Como eu quero! Nunca me senti assim. É terrível! — Esse é o seu jeito de se fazer de difícil, querido? — ela pergunta para um Eric mortificado. — Podia fazer melhor.
            Diante do desdém dela por mim, Eric se irrita e a arrasta pelo braço para fora dali.
            — Já chega disso, Esther. Está na hora de você cair fora — ainda consigo ouvi-lo dizer.
            Paty olha para mim com orgulho e raiva emanando dela em todas as direções.
            — Na hora que você quiser, Branquinha. A gente parte a cara dela na hora que você quiser. 

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