Capítulo 16 –
Entrelinhas
Hey kids! (hey kids)
Do I have your attention?
I know the way you've been living
Life's so reckless, tragedy endless
Welcome to the family
Hey!
There's something missing
Only time will alter your vision
(…)
Not long ago you find the answers were so crystal clear
(Welcome to
the Family – Avenged Sevenfold)
Kyle
A
coisa toda era muito estranha.
E eu nem estou
falando sobre Logan ser passageiro na cuca do Jeb e “sequestrar” a aeronave no
processo. Quer dizer, isso foi esquisito, claro, mas com essa parte eu já
estava até meio acostumado. Digamos que um cara que se apaixonou por duas
mulheres diferentes no mesmo corpo adquire uma certa tolerância para essa
maluquice toda, principalmente quando não me diz respeito diretamente. Agora, o
que eu estou falando mesmo é do que aconteceu depois.
Não sei se os
outros perceberam, porque, convenhamos, Logan e Jeb não são exatamente normais
e o pessoal daqui já se habituou a não questionar muito o que chamam de
“excentricidades”. Acho que eles pensam que devem a Jeb um pouco de privacidade
e acabam estendendo a Logan o benefício, porque... Bom, porque sim. Estar tão
inevitavelmente próximas todos os dias faz as pessoas perderem a vontade de se
meter na vida alheia.
E não é que eu
seja diferente. No geral, quero que os outros se explodam. Mas acontece que me
importo com Jeb e, por estranho que pareça, passei também a ter certa
consideração pelo Buscador metido a Clint Eastwood. E até que eu não precisei
prestar muita atenção para perceber que alguma coisa mudou nos dois, que eles
estavam mais esquisitos do que de costume.
Primeiro Logan
ficou obcecado pela saúde de Jeb, o que ainda não é a coisa estranha, já que eu
sempre achei que ele enxergava o velho como pai e eu faria o mesmo pelo meu.
Mas aí, ao mesmo tempo, ele começou a ficar esquisito de verdade. Não do jeito
de sempre, com toda aquela pilha de achar que é responsável por todo mundo ou
aquele comportamento tenso e contido de militar que ele podia ter às vezes. Mas
de um jeito que não parecia normal para ele.
Foi Sunny quem
reparou primeiro, na verdade. Ela disse que ele parecia “descomposto e
disperso”, o que traduzindo na minha língua queria dizer que ele estava com
aquela aparência amarrotada de quem não está nem aí para porcaria nenhuma. Para
a maioria dos caras isso não queria dizer nada, mas era fácil perceber por que
Sunny ficou preocupada. Logan era o tipo de pessoa que prestava atenção em tudo
e nunca andava por aí com um fio de cabelo fora de lugar. Droga, era até
ridículo! E de repente o sujeito estava lembrando o boneco de pano que meu
cachorro Buddy arrastava pela casa quando Ian e eu éramos crianças. Tinha que
ter alguma coisa estranha nisso. E mais ainda no fato de que não estava dando
para confiar nele para fazer nenhum serviço mais elaborado do que carregar uma
caixa de mantimentos, por exemplo. Justo o cara que sempre tinha uma
preocupação doentia em acertar os mínimos detalhes de tudo.
Por essa razão
achei que Jeb tinha percebido algo quando me mandou ir com eles para ajudar na
revisão dos carros para a incursão que se aproximava. Logan sempre tinha dado
conta do recado sozinho e — eu tinha que admitir — nunca fora preciso um
segundo par de olhos, ou mesmo de mãos, para que os veículos estivessem sempre
prontos para o uso, mas lá estava eu, checando tudo para garantir que nada
fosse esquecido ou negligenciado, como se já tivesse sido necessário.
Provavelmente porque Jeb sabia que se havia uma coisa em que eu era bom era em
supervisionar as merdas dos outros.
Mas a verdade
era que não tinha acontecido nada de mais. Nenhum esquecimento ou distração,
nenhuma falha. Nada mesmo. Logan estava fazendo o serviço normalmente, só mais
silencioso do que de costume e mais rápido por causa da minha ajuda, e Jeb estava
só por perto mesmo, estudando a gente com aquela cara de pôquer de sempre. A
coisa toda estava tão chata que eu já estava começando a achar que minha
função, no final das contas, era animar o ambiente.
— Ei, pode me
passar o martelo? — perguntei.
Todo mundo me
olhou como se eu estivesse louco.
— Está
querendo pendurar um quadro? — brincou Jeb.
— É uma opção.
Ou isso ou quebrar esse gelo. Por mais
interessantes que sejam meus pensamentos, seria legal ter um barulho de fundo.
Esse silêncio todo está me dando sono.
Tudo bem, a
coisa do martelo tinha sido uma péssima piada, mas foi a primeira coisa que me
ocorreu e achei que servia. Pelo menos agora eles estavam pensando numa
resposta espertinha para me dar em vez de ficar cada um na sua, remoendo aquela
droga de silêncio desconfortável.
— Achei que
você nunca se cansasse do som da sua própria voz, Kyle. Mesmo que só dentro da
sua cabeça — Logan retrucou e isso fez Jeb dar uma risadinha.
— Não me canso
mesmo. Mas achei que podia oferecer um pouco da minha espirituosidade a vocês.
— Que
generoso! — Jeb emendou. E todos nós rimos, embora não tivesse mesmo graça
nenhuma. Pelo menos o clima estava mais leve, o que já estava bom para mim.
— De qualquer
forma — disse Logan —, se você tiver juízo não vai andar com um martelo perto
dos meus carros.
— Seus carros!
No plural. — Aquilo era um desaforo. Balancei a cabeça de um lado para o outro,
estalando a língua. — Ainda estou tentando entender por que eu tive que abrir
mão do meu carro e você pôde ficar com os seus.
— Bem, você
tinha um Porsche ou um Mustang? — Logan se exibiu, como se tivesse algum mérito
em ter coisas caras em um mundo onde não se pagava por elas.
— Não, mas eu
trabalhei muito para pagar o meu. Você, por outro lado, pagou com moeda de ET,
ou seja, sorrisinhos e confiança.
— Não tenho
culpa disso. Minha espécie criou uma sociedade com inúmeras vantagens, em que
seria errado usufruir delas enquanto eu trabalhava por eles? Além do mais, o
Mustang era do meu hospedeiro, e ele também trabalhou muito para pagar, se dinheiro
e esforço te servem de consolo.
— Ah, sim.
Isso certamente justifica por que você foi o último a chegar, mas mesmo assim sempre
teve privilégios.
Agora que eu
começava a pensar nisso, era bem verdade. O otário sempre tinha mijado de porta
aberta por aqui.
— Se você não
brigou pelo seu carro é problema seu. Quanto a mim, quando me mudei para cá
sabia que me responsabilizaria por quase todas as incursões, então achei que
não atrapalharia ninguém se tivesse o “privilégio”, como diz você, de fazer
isso com os veículos a que estou acostumado.
E pensar que eu estava preocupado com esse
imbecil arrogante!
— Seu carro
era muito grande e chamativo, Kyle — Jeb justificou, mas eu sabia muito bem que
ele adorava a droga do Mustang, e por isso nunca cogitaria se livrar dele
enquanto pudéssemos mantê-lo. E embora não fosse necessário antes, eu tinha que
admitir que agora que nos dividíamos nas incursões até que o carro realmente
estava sendo útil, mas o outro...
— Porque o
Porsche quase não chama a atenção lá fora, né? E é pequeno demais para carregar
as “compras” de qualquer forma.
— Você está
sugerindo que eu me livre de um Porsche porque ele é muito... Pequeno!?
— Por que não?
Não serve para nós.
— Você não se
queixa quando o está dirigindo!
— Garotos...
Jeb parecia
cansado, mas não por estar doente nem nada. Ele estava perfeitamente bem agora,
ou pelo menos era o que todo mundo achava. A medicina das Almas era infalível
até onde a gente tinha visto, ninguém mais duvidava disso. Ele só parecia
estranho, ligeiramente estressado, como se nossas habituais disputas já não
fossem tão divertidas para ele quanto antes, quando ele costumava rir de
discussões assim.
Aquilo não escapou a Logan também. Sem dizer
uma palavra, ele tirou uma garrafa de água da mochila e estendeu-a para Jeb,
que a dispensou com um gesto de mão. Isso, porém, não fez a menor diferença,
porque a garrafa continuou estendida para ele, agora acompanhada daquele olhar
irritante que Logan sabia dar quando não pretendia desistir das coisas. Por
fim, o velho pegou a garrafa e tomou metade sem protestar.
Sem.
Protestar.
É, as coisas
estavam mesmo diferentes.
— Você quase
não tomou líquidos hoje — disse Logan. Jeb respondeu com um “ok, ok”, que
provavelmente queria dizer algo como “quando foi que contratei uma droga de
enfermeiro?” ou “tudo bem, você está certo, padawan[1]”,
não sei ao certo. Sempre achei que eu era bom em ler nas entrelinhas, mas desde
que começou o lance Obi Wan e Luke entre eles acho que perdi a mão.
— Confesse,
Kyle. Você não quer mesmo se livrar do Porsche — Luke, digo, Logan me provocou.
É claro que
ele sabia que eu só tinha falado aquilo na hora da raiva. Quer dizer, meu carro
era lindo e eu nunca perdoaria Jeb por ter me forçado a abandoná-lo, mas ele
era praticamente um carro alegórico para os padrões sem graça dos parasitas lá
fora. Só que não dava para jogar a culpa no pobre “Porscha”. Os tempos para nós
eram outros agora e certos luxos podiam ser mantidos, por assim dizer. Eu
certamente sabia apreciar nossos pequenos tours
pelo deserto sentindo aquela máquina ronronar sob nossos pés, só pela diversão
da coisa.
— Tá, tudo
bem, eu exagerei um pouquinho. Ninguém precisa ficar nervoso aqui, certo, Jeb?
Bati com força
no ombro dele, esperando uma confirmação bem-humorada, mas tudo o que consegui
foi um sorriso amarelo. Não importava o que eu fizesse para quebrar o gelo e
animar as coisas, o ambiente continuava sério como uma droga de ataque
cardíaco.
— Vocês dois
estão muito esquisitos ultimamente — acabei desabafando.
— O que você
quer dizer? — perguntou Logan, mas acho que ele estava só disfarçando.
— Essa
história de você não dormir direito e passar o dia com cara de zumbi. E o
Jeb... — Olhei para ele quando falei. Eu não sabia realmente apontar o que
estava diferente naquele velho cuja versão mais normal era maluca, mas de
repente me ocorreu uma coisa: — Você não está doente de novo, está? Porque até
onde a gente sabe, os Curandeiros resolvem tudo, mas...
— Relaxe,
Kyle. Está tudo bem comigo.
Ah, não, não estava.
Eu conhecia o cara há anos e tinha certeza de que ele estava escondendo alguma
coisa. De todo mundo, se bobeasse.
— Quase morrer
muda as pessoas. É só isso — ele completou se justificando, como se tivesse
lido meus pensamentos ou algo assim.
Até que fazia
sentido. A verdade é que eu não tinha parado para pensar nisso, por mais óbvio
que fosse. Percebi que os dois trocaram um olhar quando Jeb falou, e Logan
pareceu se dar conta de alguma coisa que tinha ignorado até aquele momento.
— Jeb está preocupado
comigo — constatou, com aquele olhar de censura velada. — Mas é sem motivo.
E aí estava! O
motivo para eu estar aqui. Sunny e eu não podíamos mesmo ser os únicos a ter
notado! Jeb devia estar preparando algum tipo de intervenção, como aquelas que
a gente via nas séries de TV quando algum personagem estava fazendo merda e os
amigos se reuniam para pegá-lo de surpresa e falar umas verdades na lata dele.
Naquelas alturas Jeb já havia percebido que, por razões além da minha
compreensão, eu e o Buscador nos dávamos estranhamente bem, e então resolveu me
recrutar. Parece que finalmente alguém aqui reconhecia a sabedoria intrínseca
do bom e velho O’Shea.
Abri as portas
traseiras do furgão e me estatelei ali, improvisando um banco na carroceria.
— Tudo bem,
amiguinhos. Contem tudo para o Kyle.
[1]
Referência ao universo de Star Wars, porque eu só amo e resolvi que Kyle é um
movie buff como eu. Padawan é um aprendiz de Jedi, que são os guardiões da paz e do lado bom da Força. Luke é o protagonista
da trilogia original e, por um tempo, ele aprendeu algumas coisas com Obi Wan,
que era um velho enigmático e astuto como Jeb.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentem e façam uma Autora Feliz!!!