quarta-feira, 22 de julho de 2015

CD2 - Cap. 16

Capítulo 16 – Entrelinhas

Hey kids! (hey kids)
Do I have your attention?
I know the way you've been living
Life's so reckless, tragedy endless
Welcome to the family

Hey!
There's something missing
Only time will alter your vision
(…)
Not long ago you find the answers were so crystal clear

(Welcome to the Family – Avenged Sevenfold)

Kyle

                A coisa toda era muito estranha.
E eu nem estou falando sobre Logan ser passageiro na cuca do Jeb e “sequestrar” a aeronave no processo. Quer dizer, isso foi esquisito, claro, mas com essa parte eu já estava até meio acostumado. Digamos que um cara que se apaixonou por duas mulheres diferentes no mesmo corpo adquire uma certa tolerância para essa maluquice toda, principalmente quando não me diz respeito diretamente. Agora, o que eu estou falando mesmo é do que aconteceu depois.
Não sei se os outros perceberam, porque, convenhamos, Logan e Jeb não são exatamente normais e o pessoal daqui já se habituou a não questionar muito o que chamam de “excentricidades”. Acho que eles pensam que devem a Jeb um pouco de privacidade e acabam estendendo a Logan o benefício, porque... Bom, porque sim. Estar tão inevitavelmente próximas todos os dias faz as pessoas perderem a vontade de se meter na vida alheia.
E não é que eu seja diferente. No geral, quero que os outros se explodam. Mas acontece que me importo com Jeb e, por estranho que pareça, passei também a ter certa consideração pelo Buscador metido a Clint Eastwood. E até que eu não precisei prestar muita atenção para perceber que alguma coisa mudou nos dois, que eles estavam mais esquisitos do que de costume.
Primeiro Logan ficou obcecado pela saúde de Jeb, o que ainda não é a coisa estranha, já que eu sempre achei que ele enxergava o velho como pai e eu faria o mesmo pelo meu. Mas aí, ao mesmo tempo, ele começou a ficar esquisito de verdade. Não do jeito de sempre, com toda aquela pilha de achar que é responsável por todo mundo ou aquele comportamento tenso e contido de militar que ele podia ter às vezes. Mas de um jeito que não parecia normal para ele.
Foi Sunny quem reparou primeiro, na verdade. Ela disse que ele parecia “descomposto e disperso”, o que traduzindo na minha língua queria dizer que ele estava com aquela aparência amarrotada de quem não está nem aí para porcaria nenhuma. Para a maioria dos caras isso não queria dizer nada, mas era fácil perceber por que Sunny ficou preocupada. Logan era o tipo de pessoa que prestava atenção em tudo e nunca andava por aí com um fio de cabelo fora de lugar. Droga, era até ridículo! E de repente o sujeito estava lembrando o boneco de pano que meu cachorro Buddy arrastava pela casa quando Ian e eu éramos crianças. Tinha que ter alguma coisa estranha nisso. E mais ainda no fato de que não estava dando para confiar nele para fazer nenhum serviço mais elaborado do que carregar uma caixa de mantimentos, por exemplo. Justo o cara que sempre tinha uma preocupação doentia em acertar os mínimos detalhes de tudo.
Por essa razão achei que Jeb tinha percebido algo quando me mandou ir com eles para ajudar na revisão dos carros para a incursão que se aproximava. Logan sempre tinha dado conta do recado sozinho e — eu tinha que admitir — nunca fora preciso um segundo par de olhos, ou mesmo de mãos, para que os veículos estivessem sempre prontos para o uso, mas lá estava eu, checando tudo para garantir que nada fosse esquecido ou negligenciado, como se já tivesse sido necessário. Provavelmente porque Jeb sabia que se havia uma coisa em que eu era bom era em supervisionar as merdas dos outros.
Mas a verdade era que não tinha acontecido nada de mais. Nenhum esquecimento ou distração, nenhuma falha. Nada mesmo. Logan estava fazendo o serviço normalmente, só mais silencioso do que de costume e mais rápido por causa da minha ajuda, e Jeb estava só por perto mesmo, estudando a gente com aquela cara de pôquer de sempre. A coisa toda estava tão chata que eu já estava começando a achar que minha função, no final das contas, era animar o ambiente.
— Ei, pode me passar o martelo? — perguntei.
Todo mundo me olhou como se eu estivesse louco.
— Está querendo pendurar um quadro? — brincou Jeb.
— É uma opção. Ou isso ou quebrar esse gelo.  Por mais interessantes que sejam meus pensamentos, seria legal ter um barulho de fundo. Esse silêncio todo está me dando sono.
Tudo bem, a coisa do martelo tinha sido uma péssima piada, mas foi a primeira coisa que me ocorreu e achei que servia. Pelo menos agora eles estavam pensando numa resposta espertinha para me dar em vez de ficar cada um na sua, remoendo aquela droga de silêncio desconfortável.
— Achei que você nunca se cansasse do som da sua própria voz, Kyle. Mesmo que só dentro da sua cabeça — Logan retrucou e isso fez Jeb dar uma risadinha.
— Não me canso mesmo. Mas achei que podia oferecer um pouco da minha espirituosidade a vocês.
— Que generoso! — Jeb emendou. E todos nós rimos, embora não tivesse mesmo graça nenhuma. Pelo menos o clima estava mais leve, o que já estava bom para mim.
— De qualquer forma — disse Logan —, se você tiver juízo não vai andar com um martelo perto dos meus carros.
— Seus carros! No plural. — Aquilo era um desaforo. Balancei a cabeça de um lado para o outro, estalando a língua. — Ainda estou tentando entender por que eu tive que abrir mão do meu carro e você pôde ficar com os seus.
— Bem, você tinha um Porsche ou um Mustang? — Logan se exibiu, como se tivesse algum mérito em ter coisas caras em um mundo onde não se pagava por elas.
— Não, mas eu trabalhei muito para pagar o meu. Você, por outro lado, pagou com moeda de ET, ou seja, sorrisinhos e confiança.
— Não tenho culpa disso. Minha espécie criou uma sociedade com inúmeras vantagens, em que seria errado usufruir delas enquanto eu trabalhava por eles? Além do mais, o Mustang era do meu hospedeiro, e ele também trabalhou muito para pagar, se dinheiro e esforço te servem de consolo.
— Ah, sim. Isso certamente justifica por que você foi o último a chegar, mas mesmo assim sempre teve privilégios.
Agora que eu começava a pensar nisso, era bem verdade. O otário sempre tinha mijado de porta aberta por aqui.
— Se você não brigou pelo seu carro é problema seu. Quanto a mim, quando me mudei para cá sabia que me responsabilizaria por quase todas as incursões, então achei que não atrapalharia ninguém se tivesse o “privilégio”, como diz você, de fazer isso com os veículos a que estou acostumado.
E pensar que eu estava preocupado com esse imbecil arrogante!
— Seu carro era muito grande e chamativo, Kyle — Jeb justificou, mas eu sabia muito bem que ele adorava a droga do Mustang, e por isso nunca cogitaria se livrar dele enquanto pudéssemos mantê-lo. E embora não fosse necessário antes, eu tinha que admitir que agora que nos dividíamos nas incursões até que o carro realmente estava sendo útil, mas o outro...
— Porque o Porsche quase não chama a atenção lá fora, né? E é pequeno demais para carregar as “compras” de qualquer forma.
— Você está sugerindo que eu me livre de um Porsche porque ele é muito... Pequeno!?
— Por que não? Não serve para nós.
— Você não se queixa quando o está dirigindo!
— Garotos...
Jeb parecia cansado, mas não por estar doente nem nada. Ele estava perfeitamente bem agora, ou pelo menos era o que todo mundo achava. A medicina das Almas era infalível até onde a gente tinha visto, ninguém mais duvidava disso. Ele só parecia estranho, ligeiramente estressado, como se nossas habituais disputas já não fossem tão divertidas para ele quanto antes, quando ele costumava rir de discussões assim.
 Aquilo não escapou a Logan também. Sem dizer uma palavra, ele tirou uma garrafa de água da mochila e estendeu-a para Jeb, que a dispensou com um gesto de mão. Isso, porém, não fez a menor diferença, porque a garrafa continuou estendida para ele, agora acompanhada daquele olhar irritante que Logan sabia dar quando não pretendia desistir das coisas. Por fim, o velho pegou a garrafa e tomou metade sem protestar.
Sem. Protestar.
É, as coisas estavam mesmo diferentes.
— Você quase não tomou líquidos hoje — disse Logan. Jeb respondeu com um “ok, ok”, que provavelmente queria dizer algo como “quando foi que contratei uma droga de enfermeiro?” ou “tudo bem, você está certo, padawan[1]”, não sei ao certo. Sempre achei que eu era bom em ler nas entrelinhas, mas desde que começou o lance Obi Wan e Luke entre eles acho que perdi a mão.
— Confesse, Kyle. Você não quer mesmo se livrar do Porsche — Luke, digo, Logan me provocou.
É claro que ele sabia que eu só tinha falado aquilo na hora da raiva. Quer dizer, meu carro era lindo e eu nunca perdoaria Jeb por ter me forçado a abandoná-lo, mas ele era praticamente um carro alegórico para os padrões sem graça dos parasitas lá fora. Só que não dava para jogar a culpa no pobre “Porscha”. Os tempos para nós eram outros agora e certos luxos podiam ser mantidos, por assim dizer. Eu certamente sabia apreciar nossos pequenos tours pelo deserto sentindo aquela máquina ronronar sob nossos pés, só pela diversão da coisa.
— Tá, tudo bem, eu exagerei um pouquinho. Ninguém precisa ficar nervoso aqui, certo, Jeb?
Bati com força no ombro dele, esperando uma confirmação bem-humorada, mas tudo o que consegui foi um sorriso amarelo. Não importava o que eu fizesse para quebrar o gelo e animar as coisas, o ambiente continuava sério como uma droga de ataque cardíaco.
— Vocês dois estão muito esquisitos ultimamente — acabei desabafando.
— O que você quer dizer? — perguntou Logan, mas acho que ele estava só disfarçando.
— Essa história de você não dormir direito e passar o dia com cara de zumbi. E o Jeb... — Olhei para ele quando falei. Eu não sabia realmente apontar o que estava diferente naquele velho cuja versão mais normal era maluca, mas de repente me ocorreu uma coisa: — Você não está doente de novo, está? Porque até onde a gente sabe, os Curandeiros resolvem tudo, mas...
— Relaxe, Kyle. Está tudo bem comigo.
Ah, não, não estava. Eu conhecia o cara há anos e tinha certeza de que ele estava escondendo alguma coisa. De todo mundo, se bobeasse.
— Quase morrer muda as pessoas. É só isso — ele completou se justificando, como se tivesse lido meus pensamentos ou algo assim.
Até que fazia sentido. A verdade é que eu não tinha parado para pensar nisso, por mais óbvio que fosse. Percebi que os dois trocaram um olhar quando Jeb falou, e Logan pareceu se dar conta de alguma coisa que tinha ignorado até aquele momento.
— Jeb está preocupado comigo — constatou, com aquele olhar de censura velada. — Mas é sem motivo.
E aí estava! O motivo para eu estar aqui. Sunny e eu não podíamos mesmo ser os únicos a ter notado! Jeb devia estar preparando algum tipo de intervenção, como aquelas que a gente via nas séries de TV quando algum personagem estava fazendo merda e os amigos se reuniam para pegá-lo de surpresa e falar umas verdades na lata dele. Naquelas alturas Jeb já havia percebido que, por razões além da minha compreensão, eu e o Buscador nos dávamos estranhamente bem, e então resolveu me recrutar. Parece que finalmente alguém aqui reconhecia a sabedoria intrínseca do bom e velho O’Shea.
Abri as portas traseiras do furgão e me estatelei ali, improvisando um banco na carroceria.
— Tudo bem, amiguinhos. Contem tudo para o Kyle.



[1] Referência ao universo de Star Wars, porque eu só amo e resolvi que Kyle é um movie buff como eu. Padawan é um aprendiz de Jedi, que são os guardiões da paz  e do lado bom da Força. Luke é o protagonista da trilogia original e, por um tempo, ele aprendeu algumas coisas com Obi Wan, que era um velho enigmático e astuto como Jeb.

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