sábado, 19 de setembro de 2015

Cd2 - Cap 18

Capítulo 18 – Voto Vencido

What has happened to it all?
Crazy, some say
Where is the life that I recognize?
Gone away

But I won't cry for yesterday
There's an ordinary world
Somehow I have to find
And as I try to make my way
To the ordinary world
I will learn to survive
(Ordinary World – Duran Duran)

Logan

                Era para ser uma incursão como todas as outras. Sunny e Kyle percorreriam com o furgão as cidades programadas para eles e eu cobriria as distâncias maiores com o Mustang, buscando coisas mais fáceis de acomodar, como roupas, ou mais difíceis de conseguir, como medicamentos. Então eu me encontraria com eles no meio do caminho para passar tudo para o furgão antes de carregar meu porta-malas novamente em outra cidade.  Por fim, todos nós nos encontraríamos com Jared e Mel que, com o caminhão, levariam parte da carga para podermos lotar nossos veículos de mantimentos mais uma vez antes de voltarmos todos para casa, separadamente para não levantar suspeitas.
Nossa equipe estaria desfalcada desta vez. Estrela, Peregrina e Ian só nos acompanhavam quando levávamos as crianças e decidimos que, nessas ocasiões, a prioridade deveria ser nossos filhos, não o quão rápido conseguiríamos encher um caminhão de comida. Porém já fazia um tempo que não viajámos e nossas reservas estavam se esgotando, de modo que seria preciso nos focar nas “compras”, fazendo uma incursão mais rápida e eficiente. Por isso eles ficariam em casa enquanto eu me concentrava em fazer o que devia — encher nossas despensas de comida — para poder voltar logo para minha família.
Estrela não estava contente com essa resolução, no entanto. Ela estava preocupada comigo e só se convenceu a me deixar ir quando aceitei tomar doses reduzidas de “Dormir” durante as noites em que estivesse fora, para evitar que a insônia atrapalhasse a viagem. Estive me negando a fazer isso porque não queria gastar nosso único frasco restante, mas agora que eu estava indo conseguir outros não havia problema.
— E leve o “Acordar” também. Se você se sentir sonolento durante o dia, uma dose do aplicador menor vai te manter alerta. É melhor garantir — ela me disse quando estávamos arrumando minhas coisas. Para qualquer Alma normal, o conhecimento sobre as potencialidades dos medicamentos era bastante básico, mas, como Curandeira, Estrela conhecia as nuances dos efeitos como ninguém.
— Pensei que usando apenas a dose mínima de “Dorm’ir” eu não teria problemas em acordar por mim mesmo.
— É melhor garantir — ela repetiu, e percebi por seu tom de voz o quanto ela estava realmente apreensiva. Imediatamente, fiquei irritado comigo mesmo. Tudo o que eu não queria ela ter dado motivos para que ela se sentisse assim. Era preciso tranquilizá-la.
Enlacei sua cintura por trás e puxei-a contra mim, sentindo seu corpo tenso relaxar apenas um pouco em meus braços. Ela sempre ficava um pouco inquieta quando tínhamos que nos separar, mas desta vez estava pior.
— Eu não estou doente, amor — garanti em seu ouvido, beijando seu pescoço nos pontos certos que a faziam se arrepiar. — E sei me cuidar muito bem sozinho, sempre soube. Não precisa ficar assim tão preocupada comigo.
Estrela sempre teve o instinto de cuidar das pessoas ao seu redor. No corpo da Curandeira, essa característica apenas se intensificou. Eu realmente gostaria que ela não se preocupasse tanto, apenas pelo fato de que sempre quis poupá-la de qualquer tipo de angústia. Mas quem era eu para censurar seus instintos quando os meus comandavam tanto minhas ações? Então, apesar de tudo, eu entendia. Só precisava encontrar uma maneira de fazê-la se lembrar de que podia confiar no meu discernimento.
— Prometo a você que vou ficar bem — me limitei a dizer, sabendo que, embora para alguns tal promessa parecesse vazia, não era pouco para ela.
Apertei meus braços em torno de seu corpo mais um pouco, infiltrando minhas mãos sob a blusa e deixando que nossa pele se comunicasse através do calor que transmitíamos um ao outro. Eu nunca deixaria de me surpreender com o quanto aquela pele era macia. Meus dedos quase não a mereciam. Inspirei seu cheiro, me perdendo nele por um instante, e a senti relaxar um pouco mais. Ela tombou a cabeça para o lado para me dar maior acesso, uma de suas mãos deslizou sobre as minhas enquanto a outra se infiltrou em meus cabelos, puxando-me sutilmente de volta para si. Entendi a sugestão e voltei a beijá-la. Nuca, pescoço, ombros... Eu podia continuar a noite toda se ela quisesse.
— Eu sei que você vai ficar bem. Confio em você. Desculpe se pareci meio neurótica — ela falou, virando-se para mim.
— Tudo bem, você só estava preocupada.
— É que eu entendo o que Jeb e Kyle quiseram te dizer. Entendo por que eles acharam que deviam nos falar sobre isso. Fiquei imaginando você sozinho no carro, o sono te vencendo e... — Seus olhos, que até então encaravam os meus, baixaram. Estrela balançou a cabeça de um lado para o outro como se quisesse se livrar de um pensamento e a intensidade da tristeza que esse gesto continha me assustou. — Eu não pensava em possibilidades como essa antes, mas agora, depois da decisão que tomamos em permanecer com os humanos, em envelhecer com eles e com nossa filha, é preciso passar a considerar nossa fragilidade e acho que minha mente está começando a fazer isso... Depois do que passamos, ficou real demais e só de pensar na possibilidade de perder você...
Suas palavras eram velozes e pareciam ao mesmo tempo surpreendê-la e feri-la enquanto eram expulsas de seu peito. De repente, aquilo foi demais para mim e calei-a com um beijo. Não queria ter que pensar nas coisas naqueles termos. Na verdade, não estava preparado. Talvez os outros tivessem mesmo razão quando diziam que eu tinha cicatrizes sensíveis demais para serem tocadas. Esmaguei os lábios dela com os meus, desejando que pudéssemos nos agarrar um ao outro sempre, que o ar que eu roubava de sua boca quente fosse a solução para qualquer perplexidade que minha mente não pudesse decifrar, o impulso de coragem que dominaria qualquer hesitação. E de certa forma, acho que era mesmo.
— Você não vai me perder — prometi, sem me importar com o quanto aquilo podia ser imprudente.
Para mim era verdade.
Eu não sabia o que acontecia depois, quando o corpo se extinguia e não havia mais um lugar físico para ir. Mas estava convencido de que, o que quer que acontecesse, se houvesse um lugar, um Paraíso ou algo parecido com o que os humanos acreditavam, Estrela estaria nele. E eu faria tudo para estar com ela.
— Escute, amor, vivemos neste mundo que ainda não entendemos completamente. Aqui não há garantias, estabilidade, nada a que nos agarrarmos. E você sabe o quanto isso me deixa louco às vezes — brinquei, e ela riu, mesmo que no fundo não fosse bem uma piada. —Mas sempre se pode acreditar em alguma coisa, e eu escolho acreditar no que sinto por você. Seja como for, onde for, de qualquer maneira, estarei segurando sua mão até o fim. Ou depois dele se puder. Eu não ligo, nada nem ninguém vai me fazer soltar.
— Promete? — Ela sorriu.
— Prometo.
Então ela me beijou. Não para cessar minhas palavras, como eu tinha feito antes. Ou para capturar um pouco de vida, como eu tinha feito sempre. Mas para me prometer também, para me assegurar. Como ela fazia todas as vezes em que eu precisava tocar o abstrato que, para mim, se concretizava apenas nela.
— Olhe só para nós — ela disse, aninhando a cabeça em meu peito, meu queixo apoiado em seus cabelos. — Fazendo promessas sobre o incontrolável futuro quando mal sabemos lidar com o presente. Como dois bons humanos.
— Quem disse que somos casos perdidos? — brinquei, e o ar de seu riso aqueceu o tecido de minha blusa. Quando ela ficava tão perto assim, quando se permitia descansar em meu abraço dessa maneira, era sinal de que estava deixando seus medos irem embora.
— Mesmo assim, você ainda nem foi e já não vejo a hora de você voltar.
— Eu também, mas é só por alguns dias. A não ser que...
O começo de uma ideia me escapou, mas eu não soube como continuá-la. Nunca fui o tipo de pessoa que diz coisas sem pensar. Em geral, toda vez que verbalizo algo é porque a ideia já deu a volta completa em meu cérebro e visitou todos os lugares em que poderia ressoar. No entanto, eu não andava no meu normal e aquela ideia semiformulada estava deslizando por entre as brechas do meu senso crítico.
— A não ser que o quê? — Estrela perguntou. E quando não respondi de imediato, ela se afastou um pouco para me olhar nos olhos. — Sua expressão está estranha.
— É que... Todas aquelas vezes em que conversamos com Peg e Ian sobre as crianças, nossas idas lá fora com eles... Eu não quero mais ir devagar nas nossas tentativas de entender como seria a vida de nossos filhos fora daqui. Talvez um dia seja a única vida que lhes reste. Se houver uma chance de integração para eles, se houver esperanças, quero que estejam preparados.
— Aonde você está querendo chegar?
— Nós podíamos voltar. Seria seguro para Lindsay ao nosso lado.
— Voltar? — Os olhos dela se arregalaram. — Do que você está falando? Nós não podemos voltar. Ian não pode ir e eu não vou ficar longe de Peg e John...
— Calma! Eu também não quero ficar longe deles. Nem pretendo. Que sentido teria depois de tudo o que passamos? É só por um tempo, para conhecermos outras Almas, quem sabe outros pais com filhos humanos, sondarmos o que estão pensando.
Eu sabia que parecia loucura, mas não era. Talvez sacrificássemos um tempo ao lado daqueles que amávamos, mas se fôssemos aos lugares certos e fizéssemos as perguntas certas poderíamos sonhar com um futuro com algumas garantias. Nunca tivemos dúvidas de que deveríamos conservar nossos filhos humanos, não era possível que outros não sentissem o mesmo.
— Quanto tempo? — ela perguntou. Aquele era um ponto sensível para nós, eu sabia que Estrela seria razoável ao considerá-lo. Assim como tinha certeza de que Peg e Ian nos apoiariam, mesmo que algo assim trouxesse uma dose imensa de insegurança depois de tudo que já vivemos.
— Só o suficiente, com certeza. Nem um minuto a mais. Algumas semanas apenas.
— Tudo bem. Se você vai fazer isso, estou indo com você.

********

— Você não está indo a lugar nenhum. — Foi o que Jeb decretou secamente quando, mais tarde, durante o jantar, falei com ele sobre meu plano.
Eu não esperava aprovação imediata, sabia que ele reagiria com desconfiança num primeiro momento, mas tanta veemência me surpreendeu.
— E posso saber por quê? — “Não é como se fôssemos prisioneiros aqui”, tive vontade de dizer, mas não quis soar desrespeitoso ou ingrato. Eu não tinha me esquecido do quanto significou para nós sermos acolhidos neste lugar. Jamais seria tolo o bastante para isso, não importava o quão irritantes suas reações autoritárias pudessem ser às vezes. Como agora.
— Porque eu não quero — ele disse severamente, mas nestas alturas todos tinham voltado suas atenções para nós e isso o obrigou a um tom de voz mais recomposto. — É perigoso.
— Não, não é. E você sabe disso. Que história é essa, afinal?
— Para Lindsay. Seria perigoso para Lindsay. Ela pode falar com eles.
— Falá o que, vovô? — Lindsay perguntou do colo da mãe.
— Nada, docinho — Estrela respondeu. — O vovô tem medo que você conte a alguém na cidade onde fica nosso castelo, mas você sabe que não podemos falar, não é? Senão a mágica acaba.
— Uhum — ela confirmou, assentindo com a cabecinha. — Não fica com medo, vovô. A gente vai passeá, mamãe?
— Estamos pensando. Que tal irmos brincar lá na sala principal, Lindy? John vai com a gente, né, tia Peg?
— Claro — Peg concordou, deixando que Estrela levasse as crianças para longe da conversa tensa. Por fim, quando os gritinhos dos dois podiam ser ouvidos ecoando a certa distância, ela me questionou: — O que você tem em mente, Logan?
— É, do que estamos falando aqui? — emendou Ian.
— Estou falando de passar um tempo lá fora para descobrir aquilo sobre o que temos nos perguntado tanto nos últimos tempos. Como as Almas estão lidando com as crianças humanas que certamente existem por aí. Se há um plano para elas em que nossos filhos possam se encaixar no futuro.
Notei que Lucina estava mais atenta agora. E até mesmo quem não tinha interesse nisso estava prestando atenção. De certa forma, era algo que podia mudar tudo para alguns humanos, e todos eram capazes de apreciar essa possibilidade.
— Eu sabia que era questão de tempo até você tentar algo assim — disse Jared. — Tem certeza de que não é mesmo perigoso para nós?
— Tenho. Eu sei que vocês têm dificuldade em acreditar nisso, e compreendo bem por que, mas buscadores são diferentes de policiais. Ninguém de nossa antiga vida suspeitaria do álibi que criamos, então não há ninguém procurando pelo Buscador Logan ou pela Curandeira Águas Claras. E mesmo que estivessem, no momento em que nos registrarmos em outra cidade com novas identidades ninguém vai pesquisar sobre nós, cavar nosso passado ou tentar descobrir onde estivemos. Não é como se houvesse uma checagem de antecedentes, entende? Ninguém tem motivos para duvidar de que somos apenas uma família nova se mudando para uma cidade nova.
— Que seria?
— Longe o bastante de vocês. Vou tentar me infiltrar num dos Conselhos.
— Eu me lembro — disse Mel. — Você já tinha nos explicado que existe um em cada grande capital, não é? Como se fossem legisladores.
— Sim, mais ou menos isso, mas não é nada impositivo ou arbitrário. Eles apenas dedicam seu tempo a estudar a comunidade para ter uma ideia melhor de suas necessidades e poder nos ajudar a organizar seu funcionamento.
— Mas como é que você vai se infiltrar em algo assim? — questionou Lily, pronunciando-se pela primeira vez. — Não parece que seja para qualquer um.
— Na verdade, é. O Conselho é composto por voluntários. E do nosso ponto de vista, não é um trabalho mais especial do que os outros. Tudo o que fazemos é em benefício do bem comum, então é mais uma responsabilidade do que uma honra que mereça destaque.
— Se nossos políticos tivessem tal mentalidade, nossa história teria sido completamente diferente — refletiu Doc. — Seria mesmo ilusão imaginar que uma sociedade que funciona tão perfeitamente quanto a de vocês não tivesse castas.
— “Castas” é uma palavra forte, Doc. Não acho que a conotação ruim seja apropriada — rebati.
— Uma colmeia então — retificou. — Se assim for, realmente não há problema. No entanto, me pergunto sobre um risco mais simples que você teima em ignorar. Jeb tem razão quanto a Lindsay. Ela é uma criança, não há como controlar o que ela pode falar.
— Mas o que ela sabe? — Ian veio em minha defesa. — Ela não saberia apontar nossa localização nem mesmo se... — Eu sabia o que ele queria dizer e fui grato pela hesitação. Devia ser algo difícil para ele tanto quanto para mim, mas precisávamos colocar todas as cartas na mesa naquele momento.
— Nem mesmo se ela sofresse uma inserção — completei, apesar do mal estar que a simples menção da palavra trazia. Para mim, era como um torno apertando minhas têmporas. — Ela é jovem demais para que qualquer informação possa ser retirada de sua cabecinha. Quanto ao que ela pode dizer, que tem uma família grande que mora no deserto... Podemos contornar tudo para que não passem de tios e primos de alguma cidadezinha aqui do Arizona, ou até mesmo no Novo México, quem sabe até Nevada.
— Qual é a pegadinha? Se era tão simples assim, porque você não tentou isso antes?
Essa era Maggie. Mesmo que não me tratasse mais como inimigo, ainda agia como se todas as minhas ações tivessem motivações duvidosas por trás. Olhei para Jeb em busca do auxílio costumeiro, já que ela tendia a ser menos agressiva quando quem argumentava era ele, mas tudo o que encontrei foi silêncio absoluto e uma expressão que, embora eu não soubesse identificar com certeza, se parecia muito com aborrecimento.
— Eu não chamaria de simples, Magnólia. Envolve um fingimento muito elaborado da minha parte e de Estrela. Sem contar no quanto será sofrido para Lindsay ficar longe de vocês. Para nós também não será agradável. Nem um pouco. Mas acho que pelo bem das crianças, precisa ser feito.
— Você acha mesmo que as crianças têm uma chance? Todas elas? — Lucina perguntou, e Lacey, em silêncio até então, soltou uma risada de desdém que optamos por ignorar, mas que deve ter machucado as esperanças da mulher que me olhava numa expectativa cada vez mais insegura.  — Talvez meus filhos... Talvez vocês pudessem fingir... Isto é, se o que você imagina se confirmar mesmo. Há uma chance?
Levei a sério a pergunta. Lucina não nutria mais ressentimentos pelas Almas com quem convivia, mas de todos nós era de mim que ela mais comumente se esquivava. Talvez por medo, não sei, mas o fato é que ela nunca falava comigo se pudesse evitar, então eu sabia que aquelas palavras significavam muito para ela. Eu não podia responder suas perguntas com menos do que sinceridade absoluta.
— Quando a colonização aconteceu, eles já eram nascidos. Ninguém acreditaria, portanto, que eles são meus filhos ou de alguma das garotas. — A decepção nos olhos dela foi terrível. Como pai, minha empatia por ela era ainda maior. Mesmo assim, não consegui mentir. — Sinto muito, Lucina. Talvez daqui a alguns anos seja mais fácil fingir que eles são mais jovens...
— Não daria certo — ela me interrompeu com pesar. — A menos que um de vocês também fosse negro.
— Pensaremos em alguma coisa quando chegar a hora. — De repente, passei a sentir uma necessidade urgente de acabar com a dor dela, de dar a aquelas crianças que me olhavam com expectativa algum fio de esperança. — Já fizemos coisas mais difíceis.
Lucina me olhou nos olhos, acho que pela primeira vez, e sua expressão trazia um misto de compaixão e resiliência quando ela colocou a mão sobre a minha.
— Você deve ir, Logan. Pelos filhos de vocês. Eu faria qualquer coisa pelos meus se tivesse a chance. Ninguém me impediria. Então você precisa ir e fazer tudo o que puder.
— Você não está bem — Jeb interferiu finalmente. — Não se faz uma jogada desse porte se não estiver no seu melhor.
Não achei que ele fosse falar algo assim na frente de todos, já que meus problemas — como ele e Estrela teimavam em classificar — não eram de conhecimento geral. Provavelmente por isso ele tinha se segurado até então, mas eu devia saber que era o que ele queria dizer desde o início. Mesmo assim, ouvi-lo me desarmou. Era quase egoísta de minha parte, mas a preocupação excessiva dele não era bem o incômodo que em outros tempos eu consideraria. Ao contrário, era reconfortante saber que alguém se preocupava comigo. E então, ao mesmo tempo, percebi que não queria que ele se sentisse aflito por nada.
— A insônia? — falei, tentando esclarecer os outros sem entrar em detalhes. — Eu estou bem. Estou me sentindo melhor de verdade e Estrela estará comigo, administrando a cota certa de Dormir caso seja necessário.
— O Logan sabe se cuidar, tio Jeb — Jamie se pronunciou. — Eu sei que estamos seguros e sou muito grato por isso. Muito mesmo. Mas já é ruim o suficiente que tenhamos que ficar aqui para sempre. Quero pensar que meus sobrinhos poderiam ter uma chance melhor.
Jamie não falava sério com frequência. Talvez fosse típico da idade, ou mais provavelmente um atributo de sua personalidade alegre, mas ele conservava aquele ar meio inconsequente de quem sabe que não precisa se preocupar com coisas difíceis até que elas batam em sua porta. Entretanto havia este lado nele, uma maturidade forjada na simplicidade realista de seu caráter, algo imposto pelas durezas da vida e que ninguém conseguia ignorar quando ele extravasava.
— Acho que é muito simples — ele retomou. — Se não ameaça nossa segurança, não devemos interferir na sua decisão com Estrela. Ao contrário de nós, vocês podem ir e vir quando quiserem, então... Também não é como se a Lindsay nunca tivesse saído antes e fosse ficar tagarelando por aí. Ela nem conhece tantas palavras assim. Aposto que as Almas não vão nem entender a língua enrolada de bebê dela.
Então, tão inesperadamente quanto tudo que dizia respeito às ações de Jamie, seu jeito de sempre estava de volta, e a atmosfera tinha perdido o clima de expectativa tensa. Era como se tudo já estivesse resolvido, dava para ver nos rostos das pessoas. Eu me considerava bom com as palavras, mas aquele garoto tinha uma habilidade inata que eu quase invejava.
Olhei para Jeb em expectativa. Minha decisão não dependia dele, por mais insolente que pudesse parecer, ela já estava tomada antes desta conversa. Mesmo assim eu me importava com sua resposta.
— Parece que sou voto vencido então — disse, mantendo aquela expressão neutra tão característica dele. — Acho que vou ter que confiar mais uma vez em você. Vamos lá, vamos acertar os detalhes com calma.
Eu não sabia que ficaria tão aliviado. Nem que pareceria tão difícil acreditar na confiança que ele me depositava. Jeb nunca mentiu para mim e nem tinha razões para fazê-lo agora, mas muitas coisas andavam estranhas ultimamente. Estava claro que ele ainda tinha objeções, eu só não sabia explicar quais. Se ele realmente achasse que eu estava sendo imprudente, já teria encontrado uma maneira de me dissuadir, no entanto não o fez. Não dava para saber o que isso significava sem perguntar a ele e era o que eu pretendia fazer mais tarde.


ELS Cap 30

Capítulo 30 – Oceano e Âmbar

They say it's what you make
I say it's up to fate
It's woven in my soul
I need to let you go
Your eyes, they shine so bright
I want to save their light
I can't escape this now
Unless you show me how

When you feel my heat
Look into my eyes
It's where my demons hide
It's where my demons hide
Don't get too close
It's dark inside
It's where my demons hide
It's where my demons hide

(Demons – Imagine Dragons)

            Marina não ficou por muito mais tempo depois daquilo, mas eu permaneço presa àquele momento, vendo e revendo suas nuances até me certificar de que a memória dele esteja tatuada em mim.
            Eventualmente, porém, preciso voltar a pisar no chão. E é só quando sou obrigada a voltar ao mundo real e começar a me arrumar para o trabalho, que me dou conta de que ir dirigindo para lá não é uma opção. Tinha me esquecido completamente do atentado ao meu pobre carrinho e de minhas pretensões de conseguir consertá-lo antes que Eric tivesse que se incomodar com isso.
            Meu plano original era levantar bem cedo e tomar as providências necessárias, depois ligar para ele com alguma desculpa do tipo “tenho um amigo borracheiro” ou algo assim, e convencê-lo de que eu podia poupá-lo do trabalho. É provável que fosse uma tarefa difícil, no entanto, porque ele não tinha se mostrado muito flexível quanto a isso ontem à noite.
            Eric colocou na cabeça que é responsável pelo ocorrido e, no fundo, acho que ele pensa que eu concordo com essa bobagem, o que é justamente a impressão que eu gostaria de desmanchar tentando resolver as coisas por mim mesma. Pelo menos era minha pretensão antes de pensar direito no assunto, mas, sendo sincera comigo mesma, agora isso está começando a parecer uma péssima ideia.
            Não quero que ele me tome por orgulhosa. Embora esteja acostumada a resolver meus próprios problemas, gosto de saber que alguém está disposto a cuidar de mim e fazer coisas para me agradar, por mais antiquado que pareça. E mesmo que me presentear com flores e consertar meu carro sejam coisas bem diferentes no resultado final, partem do mesmo tipo de intenção, do mesmo tipo de gentileza sobre a qual conversamos ontem e que eu disse a ele que valorizava tanto.
            É só que ainda estou testando os limites da situação toda de ter alguém tão presente em minha vida, e não quero que ele pense que precisa agir assim, como um cavalheiro salvador, o tempo todo. Quer dizer, cavalheiro, sim. Parece bom. Mas salvador, não. Afinal, não sou tão antiquada assim. Não o tempo todo, pelo menos.
            O fato é que, de repente, já não tenho mais tanta clareza sobre o que fazer e é quase um alívio perceber que, ao menos por hoje, não preciso mais pensar na questão, já que minha cabeça relapsa e o sono dessa manhã acabaram decidindo por mim. O máximo que posso fazer é esperar que Eric também tenha adiado o assunto e que possamos conversar melhor sobre ele mais tarde. O que me resta agora, portanto, é pensar em outro meio de transporte.
            Considerando a opção mais óbvia, encontro anotado em um caderno o número de telefone onde se pode consultar as linhas de ônibus de cada bairro, e é só quando vou fazer a ligação que me dou conta de que me esqueci de recolocar o cabo do telefone depois da “Madrugada das Ligações Perturbadoras”.  O celular também passou o dia desligado e, na tela, sem contar as que aparecem no identificador de chamadas do fixo, deve haver mais ou menos uma dúzia de ligações de Eric.
            Droga!
            Era mesmo de se esperar que ele ligasse oferecendo carona. Outra obviedade que meu cérebro sobrecarregado não considerou, como se meus modos tivessem sido rasgados junto com os pneus de meu carro. Censurar-me mentalmente não é suficiente, então decido ligar para ele e me desculpar, mas antes resolvo verificar as mensagens de texto que ele deixou. São três. Uma quantidade surpreendentemente pequena para todas as minhas horas de “sumiço”. Ou talvez três seja o suficiente e eu só esteja estranhando porque se fosse Paty eu teria que escolher entre ler todas ou ir trabalhar.

“O que aconteceu com seus telefones?”

            É o que diz a primeira, mandada cerca de uma hora atrás. A segunda, recebida vinte minutos depois, é um pouco mais longa.

“Não consigo falar c vc. O q houve? Vc está bem? Vou buscá-la às 5:30”

            Tento adivinhar seu estado de espírito por trás das palavras, mas não consigo. Estou em busca de algum sinal do aborrecimento que a quantidade de ligações perdidas parece revelar, mas não estou certa se consigo perceber algo além de preocupação. Lembro-me de sua expressão na noite em que ele me encontrou chorando no estacionamento, de como ele ficou tão perdido em meu sofrimento que parecia que estava sentindo minha dor. E depois, da promessa de ódio que vi em seus olhos quando ele achou que alguém tinha me magoado. Ainda me é impossível medir suas reações, mas sei que não quero vê-lo tão agoniado novamente. Menos ainda por minha culpa, ainda pior que seja sem motivo.
            Antes, porém, de me permitir afundar em lamentações pelo descuido, verifico a última mensagem, deixada pouco antes de eu ligar o celular.

“Esqueça. Estou indo agora.”

            Agora!? A hora inteira que eu tinha para me arrumar de repente virou o quê? Cinco minutos? Olho no relógio meio desesperada, mas compreendo a inutilidade do ato. Não sei de onde ele está vindo, ou mesmo se já estava a caminho quando me escreveu. Não dá para ter certeza de quanto tempo eu realmente tenho. O que significa que terei sorte se conseguir tomar o banho mais rápido do mundo e vestir meu uniforme antes dele chegar.
            Parto para a ação e deixo meus pensamentos se transformarem numa sequência de verbos cujos complementos a pressa tolhe: molhar, ensaboar, enxaguar, secar, vestir... Tudo tão rápido que minha mente provocadora brinca que meu piloto automático deve ser campeão de Fórmula 1.
            Dou uma olhada desejosa para meu secador de cabelos e lamento não ter tempo para ele. Não sou vaidosa, mas isso, especificamente, é uma coisa que me faz falta quando não consigo fazer. Meu cabelo sempre demora muito a secar naturalmente e fica cheio de ondas nos lugares errados. Infelizmente, não tive como deixar a lavada para amanhã, e agora vou acabar a noite com os cabelos presos num daqueles coques desleixados que me deixam com cara de doida. É terrível e engraçado que ter um namorado me faça pensar em coisas tolas como essa, mas aqui estou, levando realmente a sério algo fútil como a aparência do meu cabelo.
            Céus! A coisa de me sentir mais humana soa bem estranha nessas horas!
            Ainda estou debatendo comigo mesma a possibilidade de usar os minutos que restam para secar o que der, quando o som do interfone anuncia que o tempo acabou. De repente, só o que me importa é que vou ver Eric nos próximos instantes. Embora outras coisas tenham absorvido minha mente durante o dia, uma parte minha ansiou por este momento como se eu estivesse faminta.
            Quando abro a porta e ele está aqui, diante de mim, é uma sensação tão boa que não sei o que fazer com ela. Quero tanto estar nos braços dele que nem sei se estar de fato seria o suficiente. Provavelmente, só me faria querer mais. Ainda assim, quase dói tê-lo tão perto e não beber sofregamente cada segundo de sua presença.
            Eric, por outro lado, não parece ter dúvidas quanto ao que quer. Devolve meu olhar por apenas um segundo e suas mãos se estendem, me empurrando para dentro. Nem sei como ele fecha a porta ou como estou subitamente fora do chão, tão apertada em seu abraço que minha pele respira a dele, tão consumida por seu beijo que nem percebo que estamos no sofá.
            É um beijo furioso. Seus dentes apertam meus lábios e sua barba por fazer raspa meu rosto impiedosamente, como se ele quisesse mesmo me marcar, me fazer arder, em todos os sentidos possíveis. Não me importo, porém. Não me importo com nada. Só quero mais. Quero essa dor sutil para mim porque a ideia de não senti-la parece uma tortura e ele sabe.
            Ele sabe quando meu corpo começa a precisar do dele como se não pudesse mais se mover se não queimarmos juntos. Ele sabe quando a ideia de parar parece ao mesmo tempo a única coisa segura a se fazer e a única impossibilidade que meu instinto aceita. Cravo as pontas de meus dedos em suas costas sentindo a fúria em mim. Sou eu quem o quer agora, quando seu beijo se acalma e seus lábios se tornam uma carícia doce e torturante, como se ele soubesse exatamente o que está fazendo comigo.
            — Senti uma saudade insana de você — ele balbucia, mordiscando meu queixo. A voz dele faz coisas estranhas comigo. Faz meus joelhos enfraquecerem como se eu estivesse carregando toda a paixão do mundo em minhas costas, em meus ombros, em meu peito. Por isso não consigo responder. Minhas pernas estão enroladas na cintura dele e meu impulso imediato, um ao qual não tenho forças nem vontade para resistir, é apertá-lo contra mim.            Um som áspero escapa de sua garganta quando o faço e toda minha pele se arrepia no mesmo instante.
            Uma de suas mãos sobe pela minha coxa e se infiltra sob minha saia, apertando minha bunda com vontade. Estranhamente, a intimidade desse toque não me assusta em nada. Ele já esteve próximo demais de minha alma para que meu corpo não seja seu território.
            — Deliciosa — ele diz, com aquela voz. — O que você está tentando...
            Um latido ligeiramente agoniado nos interrompe. Olhamos ao mesmo tempo para um Blue contrariado por não receber nenhuma atenção do visitante, e curioso com a atitude daquele desconhecido atrevido.
            — Seu cachorro está olhando feio para mim — ele brinca.
            — Também, você está em cima da mãe dele. O que esperava?
            Blue solta outro latidinho desaforado e Eric ri, apertando-me uma última vez e deixando seus dedos deslizarem provocadoramente para a parte da frente da minha coxa, antes de me ajudar a levantar e me dar um beijo na testa.
            Não estou brava com Blue, nem poderia, é quase impossível para mim quando vejo seus olhos inocentes, mas também não posso evitar que meu corpo proteste em frustração. Ainda sinto o calor da pele de Eric e a iminência deliciosa do que quase aconteceu. Estava me sentindo tão bem que não pensei em nada, nem na nossa conversa de ontem, nem nas consequências de nos precipitarmos. E até que esses pensamentos ajuizados e coerentes consigam se sobressair à onda de desejo, acho que vou ficar com uma cara de criança que perdeu o doce.
            — Bem, isso certamente acaba com o clima — Eric diz, fazendo uma cara engraçada de quem não sabe se ri ou fica irritado.
            Ele também não parece muito feliz, obviamente, mas está lidando com isso com mais elegância do que eu, pelo menos tentando fazer uma cara simpática para o cachorro que coloca as patas da frente sobre os joelhos dele e reivindica seu reconhecimento, farejando para todo lado. Não me escapa o quanto ele parece desconfortável a princípio, mas acaba cedendo quando o cãozinho continua de olhos fixos nele e rabo abanando. É engraçado vê-lo estendendo a mão cuidadosamente, deixando que Blue a fareje, e depois lhe fazendo um carinho tímido entre as orelhas. De início, o gesto parece estranho, pouco familiar, depois ambos ficam mais confortáveis um com o outro e Eric parece gostar do contato.
            — É a primeira vez que você brinca com um cachorro?
            — Com um que gosta de mim, sim.
            — Ele realmente gostou de você. Mas não fique se achando. Ele gosta de qualquer um. É um oferecido — brinco. E como para confirmar o que acabei de dizer, Blue inclina a cabeça para trás e tenta lamber a palma da mão de Eric, que a retira meio enojado. Não aguento olhar para aquilo e começo a rir.
            — Não sei, não. Acho que, apesar das previsões contrárias, ele pode gostar especialmente de mim. Você sabe, dizem que os cachorros se parecem com os donos — ele graceja, mas depois se finge de sério e volta a ostentar a expressão de nojo. — Apenas diga a ele que não estou pronto para um relacionamento que envolva saliva.
            — Eu tentarei. Mas ele não é muito sensível aos meus argumentos quando se trata de babar ou morder.
            — Na verdade, ele me parece um carinha bem razoável. Agora há pouco, por exemplo, ele interrompeu nosso lance, mas acho que ele tinha suas razões. Estava tentando me proteger de você.
            — Não seria o contrário?
            — Hum, acho que não — Eric diz, apertando os lábios numa expressão dissimuladamente grave. Aprecio a tentativa dele de lidar com as coisas com bom humor e resolvo entrar na brincadeira.
            — Ah, é mesmo? Quer me explicar isso melhor? Porque eu acho que não faz o menor sentido.
            — Veja só, preste atenção. Está claro para todo mundo nesta sala que você está tentando me deixar louco. — Com ar brincalhão, ele estende um dedo como se fosse iniciar uma contagem. — Primeiro, você fica fora de contato e eu quase endoido de tanta preocupação...
            Ops!
            — Desculpe por isso, de verdade. Eu desliguei tudo porque queria dormir até tarde e depois me esqueci de religar. Foi muita falta de consideração minha.
            — Não faça mais um negócio desses. Minha sorte foi que eu só comecei a te ligar há umas duas horas. A coisa mais leve que pensei até tomar a decisão de vir até aqui foi que você tivesse se arrependido de ontem e não quisesse mais me ver.
            Ouvir isso me surpreende e fico sem fala. Apesar de todas as coisas que ele já me disse sobre não ser bom para mim, a insegurança quase juvenil da frase não combina com o que ele me deixa ver quando estamos juntos, com o homem que entrou aqui parecendo saber exatamente o que queria.
            — Eric, eu não...
            — Sim, eu sei. Não leve isso a sério demais. Só fiquei preocupado com você e comecei a fazer conjecturas.
            — Não faça essa conjectura. Nunca.
            Ele pega minha mão e beija meus dedos. Seus olhos se fecham por um instante e depois ele volta a me lançar seu olhar zombeteiro.
            — Segundo, você me recebe molhada do banho. Parece que lê meus pensamentos indecentes. — Ele afunda o nariz em meu cabelo úmido e inspira com prazer. Fico toda arrepiada e é difícil pensar por um instante, mas o que ele disse antes também mexeu comigo, e não estou disposta a negligenciar o sentimento.
            — Prometa, Eric!
            — O quê? — ele me olha, confuso.
            — Prometa que nunca vai pensar que eu me arrependi de ficar com você. Eu escolhi isso. E você disse que ia parar de tentar me convencer do contrário.
            Ele segura minha nuca e me beija, prendendo minha cabeça de tal modo que mal posso corresponder ao beijo, apenas sentir seus lábios se movendo sobre os meus num ritmo inteiramente determinado por ele.
            — Prometa — insisto quando conseguimos nos separar.
            — O que você quiser, amor — ele responde, brincando com meu cabelo de novo. — Eu prometo o que você quiser.
            Amor...
            Não é justo fazer isso comigo agora, me chamar assim... Porque eu não sou tão boba quanto pareço e isso não foi um “sim”.
            — Você nem está me olhando nos olhos...
            — Não, não estou. Porque você sabe que eu não vou ficar mentindo pra você.     Certo. Por essa eu não esperava. Não sei por que, também. O senhor lacônico sempre sabe como me deixar sem palavras. Mas o fato é que ele tem razão. De certa forma, é como se estivéssemos tendo a mesma conversa de ontem, enquanto eu espero por um resultado diferente.
            — Desculpe, estou te pressionando.
            — Baby, entenda uma coisa: eu não... — Ele suspira, passando a mão pelos cabelos de forma tensa, e eu me arrependo imediatamente de ter começado isso. Não quero que nosso relacionamento gire sempre em torno de conversas assim. — Eu não posso desejar que você nunca se arrependa. Não é certo. Seria mais seguro que você se arrependesse em algum momento e se afastasse. Estou sendo egoísta por acreditar em você.
            — Então você acredita em mim?
            Isso é bom. E eu gostaria muito que fosse o suficiente.
            — Não é da sua palavra que eu duvido.
            — É de você mesmo, então, não é?
            Eric se recosta no sofá e me dá apenas um sorriso de lado, mas não responde. Coisas demais cabem nesse sorriso, entretanto. E não há nada que eu possa dizer antes que ele entenda por si só o que também cabe no meu.
            — Tenho uma coisa pra você — ele diz, remexendo nos bolsos e me estendendo a chave do meu carro. — Novinho em folha. Quer dizer... quase isso. Me ajude a entender: por que um Fusca?
            — Gosto de coisas antigas — respondo sem dar muita atenção à pergunta, porque minha cabeça está ocupada tentando formular um agradecimento digno. No final, não sobra muita coisa a dizer além de “obrigada”, mas realmente sinto que não é suficiente. — Não sei como agradecer.
            Ele assente, estreitando levemente os olhos como se pensasse a respeito.
            — Tenho algumas ideias se você estiver sem.
            Sorrio e desvio o olhar, porque acho que estou ficando vermelha. Quando volto a encará-lo de novo ele está rindo. Eric gosta de me provocar.
            — Você não devia começar coisas que não está disposto a terminar — devolvo, repetindo o que ele me disse outro dia, aqui, neste mesmo lugar.
            — Touché! — ele brinca, segurando o peito na altura do coração como se tivesse levado um golpe fatal.
            Nós rimos e depois ficamos nos olhando em silêncio por um tempo. Assim como a mim, a quietude parece não incomodá-lo. É simplesmente agradável estarmos juntos sem nos preocuparmos com nada. Embora não seja exatamente este o caso agora. Não para mim, pelo menos.
            — Eric, eu... Ahn... Bom, para ser franca, estou um pouco constrangida por você ter tido esse gasto comigo.
            — Você fica constrangida quando alguém te dá um presente?
            — Não, mas...
            — Você disse que gosta quando eu te dou flores — ele afirma, com um ar de jogador que prevê exatamente os movimentos do oponente, como se já conhecesse as fraquezas dos argumentos que eu poderia dar. Sei disso porque eu mesma tinha me colocado essas cogitações mais cedo. Entretanto, ainda não consigo me convencer de que ambas as gentilezas tenham o mesmo peso.
            — Sim, gosto muito. Você sabe. Mas é diferente.
            — Por quê? Porque foi mais caro?
            — Bom, sim — respondo. — Consideravelmente.
            — Não me parece uma boa razão para você estar constrangida. Não foi incômodo algum para mim e fiquei feliz em poder fazer algo que mostrasse o quanto estou empenhado em cuidar de você. É só isso. Eu gostei de fazer isso pra você. Não entendo o drama.
            — Não é drama. É só que você não precisa ficar fazendo esse tipo de coisa. Você não é responsável pelo que aconteceu, mesmo supondo que tenha sido obra de Esther.
            — Com Esther eu me preocupo mais tarde. — Ele me puxa para seu colo e me abraça, enterrando o rosto na curva de meu ombro e cheirando minha pele. — E não quero que você se preocupe também. Nem com ela, nem comigo. Eu só... gostei da sensação de fazer uma coisa boa.
            Não vejo seus olhos quando ele diz isso, mas sinto a verdade por trás das palavras. Elas pesam sobre mim com um misto de alegria, beleza e dor, como quem recebe de volta uma criança que fugiu de casa por livre e espontânea vontade. Eric parece ser assim sob muitos aspectos: alguém que está aprendendo que a vida merece uma chance, e que ter para onde voltar quando nos perdemos deveria ser a regra, não a exceção.
            — Obrigada. E me desculpe — peço.
            — Por quê? — Ele me retorna um olhar confuso.
            — Por não entender. A princípio. Por transformar seu gesto em uma questão de dinheiro.
            — Não é importante — ele desdenha.
            — É importante, sim. — Não preciso que Eric me prove nada, sei que ele é uma pessoa melhor do que acredita ser. Mas cada pequeno gesto que torna isso evidente para ele mesmo é bem maior do que parece. — Fico feliz que você tenha se sentido bem.
            Corro os dedos pelo contorno de seu rosto, sentindo a barba curta e a pele macia. Não tinha me dado conta ainda de que agora posso tocá-lo sem receios. Obviamente, a leveza dessa liberdade é algo inédito para mim. E eu adoro a sensação. Gostaria de nunca ter de parar.
            — Isso é novo para mim — seu tom de voz me segreda, como se soubesse o que estou pensando. — Gostar de estar com alguém. Simplesmente gostar sem ter nenhum interesse, nenhuma amarra, a não ser as que eu escolher ter. Não sou bom, mas gosto de ser bom com você.
            — Supondo que você esteja certo, é preciso começar de algum lugar. Então eu aceito ser o seu começo.
            — Aconteça o que acontecer, qualquer que seja o nosso futuro... — Ele pega minha mão e pousa sobre a dele, observando nossas palmas espelhadas em frente aos seus olhos. Depois, entrelaça nossos dedos e beija suavemente os meus. — Preciso que você saiba o que o dia de ontem significou para mim. Você me deu uma escolha e eu te escolhi. Porque quero você, entendeu? Por nenhuma outra razão. Você me faz querer merecê-la e, mesmo que eu não consiga, sempre terei aquele momento em que você acreditou que era possível. Em que eu acreditei. Posso passar a vida tentando, mas nada que eu possa te dar, nada que eu possa fazer para você, vai compensar o que você me faz sentir.
            Acho que meu coração para por um instante. Há ocasiões na vida que alteram nossas estruturas, fazendo seus alicerces em pedaços para, no mesmo instante, reconstruí-los sob outra forma. E então seu mundo se altera, torna-se maior. Melhor, talvez. Diferente. Na maior parte do tempo, só ficamos cientes da mudança quando ela já está consumada. Mas às vezes conseguimos flagrar a transformação e sua beleza brutal, tão poderosa quanto perturbadora.
            — Por que... por que você está me dizendo isso?
            — Porque preciso que você nunca duvide.
            “Preciso”.
            Há uma urgência na maneira como ele usa essa palavra, um desespero que todos os meus instintos desejam aplacar.
            — Eu acredito. Prometo que não vou duvidar. — Embora não saiba exatamente por que é tão importante para ele, eu realmente acredito. Porque sei o quanto é importante para mim.
            Eric não responde, apenas sustenta meu olhar como se estivesse me sondando, prevendo que eu pudesse mudar de ideia, mas minhas palavras não são mais minhas. Agora são dele. E não me diz mais respeito o que fará delas. Só posso esperar. Finalmente, ele morde o lábio e assente, sua própria expressão, antes insondável, suavizando-se em seguida.
            — Você ainda precisa fazer alguma coisa em casa? Porque temos que ir daqui a pouco.
            Olho para o relógio e percebo que, apesar disso me parecer apenas uma desculpa para mudar de assunto, ele tem razão. O tempo passa rápido quando estamos juntos.
            — Na realidade, eu até poderia usar alguns minutos para me arrumar melhor, já que fiz tudo correndo. Mas prefiro passá-los aqui com você — digo, beijando-o.
            — Isso me parece infinitamente mais interessante. Até porque você está linda assim como está. Só falta uma coisa...
            — O quê? — questiono, confusa.
            Ele remexe nos bolsos de novo e tira um saquinho de veludo de dentro de um deles.
            — Eu já tinha percebido que você gosta de coisas antigas — diz, tocando meu relógio de pulso que, embora não seja o de minha mãe, tem um ar vintage[1] e um design muito parecido com o da minha herança de família. —Vi isso aqui hoje e me fez pensar sobre ontem, sobre você. Se um instante de luz pudesse ser guardado no tempo, acho que se pareceria com isso.
            Eric me entrega a bolsinha e me indica com o olhar que eu desfaça o laço que a mantém fechada. Meus dedos vasculham cuidadosamente seu interior até encontrar um cordão cor de ouro velho. Uma linda gema de âmbar em formato oval pende do colar, enrodilhada por um arabesco de folhas do mesmo material do cordão. Parece algo saído diretamente das páginas de uma novela de cavalaria ou de alguma história de magos e fadas.
            — É lindo! — exclamo, sem conseguir conter minha empolgação com a beleza do presente. — Mas... Por quê? Você não precisa...
            — Fazer essas coisas? Sim, eu sei. Você já me disse. Posso colocar em você?
            Ele sorri para mim, um sorriso aceso e expectante que entra imediatamente para a minha galeria de preferidos, e nós dois nos levantamos, ficando diante do espelho pendurado na parede. Eric afasta meu cabelo com cuidado, acariciando minha nuca e deixando seus dedos circundarem minha garganta e descerem por minha clavícula como se estivessem estudando a textura de minha pele. Por fim, deposita um beijo na curva de meu pescoço e coloca o colar em volta dele, atando o fecho habilmente.
            — É lindo — repito, quando observo o jeito como ele harmoniza com minha pele, com os cachos que começam a se formar nas pontas de meu cabelo e com meus sonhos infantis de leitora voraz.
            — Você é que é linda. Ele é apenas... apropriado. Guarda uma história, como você.
            — Todo mundo guarda uma história — digo, me virando para abraçá-lo.
            — Sim. Mas a sua é a única que eu também quero guardar.
            Olho para o espelho de novo, mas agora meu foco não está mais no colar, e sim, no homem atrás de mim. Em seus olhos de oceano profundo que guardam uma história ainda desconhecida, mas cujas linhas estão irremediavelmente entrelaçadas às minhas. Não me importo de esperar até que ele esteja pronto. Até que ambos estejamos prontos. Mas não há mais como negar que, desde o dia em que nos conhecemos, é possível ler meu mundo em seus olhos. Minha alma se lembra e sabe que, para o resto de minha existência, minha história é a dele.



[1] Termo usado na moda para se referir a peças de outras épocas, em geral, das décadas de 20 a 60.

sábado, 5 de setembro de 2015

ELS - Cap 29

Capítulo 29 - Bagagem

And love is not the easy thing....
The only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind
(…)
You're packing a suitcase
for a place none of us has been
A place that has to be believed to be seen
You could have flown away
A singing bird in an open cage
Who will only fly, only fly for freedom
(...)
Home... hard to know what it is if you've never had one
Home... I can't say where it is
but I know I'm going home

(Walk on – U2)

           
            Já está amanhecendo e o telefone toca mais uma vez. É a sexta desde que me deitei, e não tenho mais esperanças de conseguir conciliar o sono por tempo suficiente para me sentir descansada. Então me levanto para preparar um café, ignorando o som que me faz sentir engulhos e também a pessoa do outro lado da linha.
            Quando Eric me deixou em casa ontem — ou hoje mais cedo, para ser mais exata, porque já era madrugada —, eu sabia que não conseguiria pregar os olhos. Meus pés pareciam recusar a firmeza do chão, acostumados que estavam com a textura metafórica das nuvens, e eu não esperava mesmo conseguir acalmar meus pensamentos tão cedo. Tampouco acreditei que pudesse calar a euforia que não sossegava meu coração com a lembrança das últimas horas, porque, em uma única noite, eu tinha vivido uma história inteira.
            Coisas assim não podiam ser ignoradas, e eu estava certa de que devia haver um preço que pessoas de mente alada como a minha tinham que pagar por arrastar-se de volta à realidade depois de descobrir para que os sonhos existam. Porém, no final das contas, não foi essa a razão que me manteve acordada.
            Eu tinha voltado para casa para um Blue todo animado, saltando para lá e para cá em meio ao enchimento disperso de uma almofada que ele tinha se ocupado em destruir na minha ausência.
            — Parece que sua energia voltou com tudo, hein! Esteve ocupado, rapazinho?
            “Olha só o que eu fiz pra você, mãe!”, ele parecia me dizer enquanto andava em torno de mim, tentando me presentear com a fronha eviscerada. “Acho que ficou muito mais bonito assim.”
            Por um momento considerei a possibilidade de dar-lhe uma bronca, mas eu sabia que não adiantaria de nada. Se eu o tivesse pegado em flagrante, deixar claro que o comportamento não me agradava podia ter alguma efetividade, mas horas depois do feito de que ele parecia se orgulhar tanto, tudo o que Blue enxergaria seria uma louca gritando com ele e traindo sua confiança canina.
            Além disso, era preciso reconhecer minha parcela de responsabilidade. Eu sabia muito bem que trazer um cachorro, especialmente um quase filhote, para dentro de um apartamento onde ele ficaria sozinho por horas teria consequências. Não era como se eu pudesse culpá-lo por agir como cachorro, afinal. E pensando bem, graças à minha lembrança de fechar as outras portas e limitar os movimentos dele à sala e à cozinha, até que o prejuízo da primeira noite tinha sido pequeno.
            — Tudo bem, menino. Nada aqui dentro é insubstituível, você é. Mas, no futuro, tente se lembrar que a mamãe prefere os enchimentos dentro das coisas, ok?
            “Sim, sim. Vou tentar me lembrar... Do que mesmo?” adivinhei sua resposta pela cara aloprada com que me fitava, o olhar curioso e amigável e a língua de fora lhe dando o ar inocente que era o que eu precisava para me esquecer de ficar brava enquanto varria a bagunça. Foi então que o telefone tocou pela primeira vez. 
            Atendi rápido e sem olhar o número, porque o meu primeiro pensamento foi para Eric e... Céus, como eu já estava sentindo falta dele! Como isso era possível? Talvez ele tivesse voltado e estivesse ligando para perguntar se podia subir? Ou quem sabe ele quisesse apenas dar um último “boa noite”... As pessoas fazem isso, não fazem? Ligam para se despedir antes de dormir?
            — Alô — atendi, animada por uma esperança meio desvairada de ouvir a voz dele um pouco mais. Entretanto, não houve resposta. E o silêncio era mais do que familiar. Era ele. O encapuzado. — É você, não é? Vai querer conversar hoje? Porque eu sempre disse que podia. Eu sempre disse a você que estava tudo bem.
            Dizer isso só me rendeu um telefone “batido na cara” e as próximas vezes foram ainda piores. Não porque ele fizesse qualquer outra coisa que não fosse ficar em silêncio e depois desligar abruptamente quando eu tentava deixá-lo confortável, mas porque a insistência daquela ausência que tentava a todo custo se fazer presente finalmente começou a me assustar.
            Era como se ele estivesse me vigiando, adivinhando exatamente quando meu corpo começava a relaxar e eu começava a navegar pelas águas calmas da dormência, e então o toque do telefone me trazia de volta às pressas, violentamente demais para que eu conseguisse me acalmar depois. E então, quando parecia que estava tudo bem e ele tinha se esquecido de mim, acontecia de novo.
            Pensei que pudesse ajudá-lo, que ele precisasse de mim, mas à medida que a noite avançava, comecei a enxergar a arrogância desse pensamento. Quem eu achava que era? Como eu podia ajudá-lo se ele sequer me deixava saber seu nome? Se ele continuava a ter medo de me dizer o que quer que fosse, nunca me deixaria chegar perto o suficiente para ajudar. Era possível que nem quisesse, porque, no fim, tudo o que ele estava conseguindo era me lembrar daquela noite.
            A noite em que tentou me matar.
            Não sei se foi o peso das horas insones ou o desejo de uma felicidade mais egoísta que eu vinha me permitindo, mas a realidade finalmente se abateu sobre mim. Mesmo que eu tivesse sentido o conflito e a dor sob suas ações, e ainda que ele tivesse desistido de seu intento antes que Caio lutasse para impedi-lo, mesmo assim aquele homem tinha vindo ao meu encontro com uma intenção maligna. 
            Todas as coisas boas... As pessoas. Caio. Marina. Eric. Eu nunca teria visto os olhos de Eric, sentido seus lábios nos meus. Nunca.
            Nunca. 
            É uma palavra cortante. Rasga pedaços de você, de seus sonhos, da realidade... Deixa tudo emaranhado como se não fizesse diferença, porque pó se perde no vento e é isso que você se torna diante do “nunca”. A morte é um imenso não.
            Quem dera que para os vivos ela fosse o nada, o cessar, o desaparecimento puro e simples. Mas ela é apenas o “Não”. Para os olhos dos que ficam, ela é o oposto do que é vivo, do que é bonito, do que é esperança e continuidade. E eu queria continuar. Pela primeira vez na vida, senti a urgência disso. E senti raiva daquele que tentou tirar isso de mim.
            Eu nunca tinha precisado pensar nessas coisas antes. Não dessa maneira. Nunca tinha dedicado ao fim de minha própria vida mais pensamentos do que ao começo, porque a iminência da morte nunca fora algo que eu precisasse cogitar. Exceto por aquela noite. Exceto pelas mãos daquele homem, cujas ações eu me permitia analisar verdadeiramente pela primeira vez.
            Talvez nada seja tão aterrorizante do que finalmente perceber que se tem muito a perder, porque daquele instante em diante senti medo. Muito medo. E uma imensa saudade de coisas ainda não vividas. Não consegui mais atender ao telefone depois disso e agora, novamente, seu berro fere meus ouvidos até parar de tocar.
            Com a manhã chegando, espero que seja a última vez. Por algum motivo, penso que a luz do dia talvez leve consigo a escuridão daquele homem, mas não posso ter certeza. E assim como do lado de fora, é provável que dentro dele sempre anoiteça de novo.
            Sento-me no sofá com Blue ao meu lado e uma xícara grande de café aquecendo minhas mãos. O gosto amargo parece me trazer um pouco de lucidez e, num rompante, puxo o fio do telefone, desligando-o e amaldiçoando meu cérebro cansado por não ter pensado nisso antes. Cedo ou tarde terei que encontrar uma maneira de enfrentar isso, mas, por ora, posso me esconder aqui e descansar um pouco.
            Agarro meu cachorrinho, que se aninha ao meu lado, parecendo pressentir a necessidade que tenho dele, e, ali mesmo no sofá, mergulho num sono exausto, apesar do sol que começa a penetrar as frestas da janela. Ou talvez por causa dele.

******
           
            São quase dez da manhã quando acordo. Não é exatamente o equivalente a uma noite de sono, mas bastou para que eu descansasse. Está um dia bonito lá fora e sinto que devo a Blue algum tempo que seja só para ele. Não vamos muito longe, porque o sol está a pino e ele ainda não está apto e grandes aventuras, mas deixo-o correr um pouco sob as árvores de uma praça aqui perto e jogo uma bolinha para ele se distrair.
            Quando voltamos para casa, ele e eu estamos famintos e relaxados e não consigo evitar que a sensação ruim deslize sorrateiramente para um canto esquecido de minha mente, voltando às vezes só para ser deixada de lado novamente, embora eu prometa a mim mesma que vou finalmente ceder à razão e ir à polícia. Mas não hoje. Porque, hoje, uma coisa fantástica acontece.
            Passa um pouco do meio-dia quando Marina aparece sem avisar. Não pergunto por que ela não está trabalhando ou o que veio fazer aqui, e ela também não menciona nenhuma dessas coisas. Age como se fizesse isto todo dia: aparecer com uma sacola de compras nos braços, me dar um abraço breve, brincar um pouco com o cachorro e, por fim, se instalar na cozinha, fazendo o almoço.
            Não ouso agir como se não estivesse entendendo, porque preciso disto tanto quanto ela. A sensação de normalidade. O alívio das coisas cotidianas. Apenas por estes minutos, é como se nunca tivéssemos perdido nossa vida de antes. Estou no paraíso.
            Ficamos lado a lado, ouvindo música e cantarolando enquanto cozinhamos juntas, trocando sorrisos e lembrando os gostos uma da outra como se o tempo não tivesse passado. Sei que as amenidades não resistirão por muito tempo, não se pode fingir para sempre que não há um par de elefantes cor-de-rosa passeando pela sala. Mas se eles entrarem na cozinha agora, sou capaz de latir para eles! Rio sozinha quando imagino a cena, e Marina me lança um olhar divertido.
            — Você continua igual nisso também. — Ela sorri e aponta para minha testa, encostando a pontinha do dedo em minha têmpora. — Tem uma história inteira acontecendo só aqui dentro.
            Um alarme dispara dentro de mim. Se ela me perguntar do que estou rindo, vou ter que explicar. E como vou dizer que estava imaginando os assuntos pendentes que estamos evitando como dois elefantes para os quais eu pretendia latir? Felizmente, ela não pergunta nada, e nosso singelo e frágil equilíbrio pode se manter. Parece um esforço estranho de nossa parte, mas eu entendo o que ela está fazendo.
            “É tarde para perdão, porque eu nem sequer posso culpá-la, não posso odiá-la pelo sofrimento que me causou. Mas saber a verdade muda tudo. Permite começar de novo. Eu só preciso de tempo.”
            Foi com essas palavras que ela se despediu de mim outro dia. E, pensando sobre elas, percebo que ela está tentando nos dar esse tempo. Não precisamos de outra conversa difícil, precisamos de outra chance. Começar de novo, mas não como se o passado não existisse. Estamos simplesmente voltando ao ponto onde paramos para saber como continuar dali.
            Entendo isso com a mesma naturalidade com que sinto os laços que nos unem sendo lentamente reatados, forjados de volta a algo muito parecido com sua forma original, porque o amor nunca desaparece. O tempo anestesia sua força quando é preciso sobreviver à sua ausência, mas ele continua ali, esperando. E quando nosso coração se abre novamente para ele, percebemos que seu abraço sempre esteve ao nosso redor.
            — Você deve estar achando estranho eu vir aqui assim — ela diz, como se estivesse tendo sua própria versão da mesma reflexão que eu.
            — Não, não acho — tranquilizo-a. — Estou feliz o suficiente para não precisar achar nada.
            Ela sorri para mim do mesmo jeito que fazia antes, com os lábios apertados e os olhos fugidios, desviando-os de volta para o que está fazendo. Não dizemos mais nada depois disso, mas não é um silêncio constrangido. É apenas calmaria. Já estamos sentadas à mesa quando voltamos a conversar.
            — O que você tem feito esses anos todos? — Marina pergunta com uma curiosidade inocente e genuína.
            — Nada de mais. Minha vida não mudou nada desde aquela época. Apenas os detalhes. Passei por duas cidades diferentes, numa delas trabalhei em um consultório médico, na outra em um supermercado. Mas na maior parte do tempo, eu acabava voltando a ser garçonete.
            — Por quê? Eu me lembro que na nossa época você trabalhava em um restaurante chique. No começo, pensei que era só por necessidade, já que você não tinha família para te ajudar com as contas, mas depois percebi que você adorava aquele trabalho.
            — Eu gosto de trabalhar com comida. Já pensei em ser chef e, quem sabe até, ter meu próprio restaurante. Mas é uma vida muito atarefada, com horários loucos, não daria para administrar... Bom, a minha outra vida. Trabalhando em bares, eu fico perto das pessoas e posso cuidar delas quando estão próximas demais das tentações.
            — Não é ruim? Abrir mão do seu sonho?
            Penso um pouco naquela pergunta. Não tenho certeza se as coisas podem ser postas nesses termos. Nunca pensei nas escolhas que não fiz como sonhos perdidos.
            — Sou feliz assim, Marina. Escolhi cada passo do meu caminho.
            Não percebo a real dimensão do que disse até que já tenha dito. Compreendo tarde demais a verdade dolorosa por trás das palavras, mas agora também é tarde para fugir delas. Marina precisa saber que, embora tenha lhe pedido perdão, não me arrependo da decisão que tomei no passado. Fiz uma escolha e nós duas sofremos por ela. Mas não sinto mais culpa. Olhando para essa mulher à minha frente, tão equilibrada e pronta a me entender, não consigo mais me sentir culpada por tê-la deixado tomar suas próprias decisões.
            — Fiz escolhas difíceis, como todo mundo. Mas não me arrependo delas, nem mesmo das que partiram meu coração.
            Pronto. Está feito. O casal de elefantes cor-de-rosa adentrou a cozinha e resolveu se sentar sobre a mesa de jantar. E fui eu mesma quem os convidou.
            — Você não se arrepende de ter ido embora? — ela pergunta baixinho. Mas não há acusação em sua voz, somente uma tristeza que me penetra feito minúsculos cacos de vidro contra a minha pele.
            — Não — respondo. Dizer isso e não sentir dor é tão estranho que quase parece errado. Por um segundo, desejo não ter dito nada e seguido a deixa de não tocar em assuntos difíceis, mas não posso voltar atrás agora. — Não há nada neste mundo que faça com que eu me perdoe por ter feito você sofrer. Nem mesmo a consciência de ter feito a coisa certa. Mas a verdade é que, por mais que eu não quisesse fazer essa escolha, a decisão foi minha e eu sabia o que estava fazendo. Sabia que ia querer de volta cada minuto que não tive com vocês e também que havia o risco de você chegar a me odiar, mas...
            — Eu nunca odiei você — ela me interrompe. — Senti muitas coisas, mas nunca odiei você.
            Sinto meu coração se acelerar. Ouvir isso, sentir a verdade por trás das palavras, é mais do que eu poderia desejar.
            — E eu nunca deixei de te amar — digo, porque preciso que ela saiba.
            — Eu até tentei te odiar, mas acho que também nunca deixei de te amar.
            Seguro a mão dela e nossos dedos se entrelaçam como se aquilo fosse hábito. É tão reconfortante que chega a parecer impossível. Contemplo seu rosto enquanto ela observa nossas mãos unidas e sorri sem me olhar.
            — Parece que não conseguimos fugir do assunto, não é?
            — Acho que não — decido. — Talvez seja muito cedo para fingir que não temos tantas coisas a dizer.
            — É — ela confirma, soltando minha mão e endireitando-se na cadeira. — Mas eu quero que você saiba que... aquilo que aconteceu... o jeito como eu reagi no sábado... — Ela para um segundo, suspira e me olha nos olhos. — Sinto muito.
            — Não... — tento interromper, mas ela não permite.
            — Me deixe dizer, Clara. Eu realmente sinto muito. Não devia ter feito aquilo. Não sei o que aconteceu comigo para agir daquele jeito.
            — Eu não me importo. Sei que você estava assustada, confusa, magoada... E sei que fui eu que fiz isso com você. Quem sente muito sou eu, embora eu saiba que pedir perdão nunca vai ser suficiente.
            — Perdão não é mais necessário. Eu só... estou me esforçando para entender nossa nova situação. Começar de novo. Só não sei de que ponto.
            — Vamos descobrir juntas, então. Aos poucos.
            — Sim, aos poucos — ela confirma.
            Voltamos a comer em silêncio, mas dá para sentir que há algo diferente desta vez. Uma leveza que o ar não tinha minutos atrás. Nosso equilíbrio não é mais tão frágil e nossos olhares estão impregnados de futuros possíveis.
E de pedaços de um passado perdido e encontrado pairando sobre nós.
            — Este apartamento me lembra muito da nossa casa. O jeito como você arruma as coisas... — diz Marina, quando volta a falar.
            — Acho que velhos hábitos são difíceis de perder.
            — Sim. Acho que sim. Também faço muita coisa exatamente como fazíamos naquele tempo. Sinto muita saudade daquele lugar. Eu morei lá até me casar, sabia? E nunca consegui vender a casa. Ela está alugada agora.
            Eu também sentia muita saudade daquele lugar, mas acho que não tinha nada a ver com a casa em si, e sim com o que ela representou. Tanto que nunca consegui voltar lá, nem mesmo para olhá-la de longe. No começo, porque eu não queria me arriscar a reencontrar Marina ou Caio sem estar preparada para isso. Depois, porque percebi que ou doeria demais saber que aquele era o lar de outra pessoa ou eu não sentiria nada, o que seria muito pior. A morte de uma lembrança é uma força destrutiva que sempre me pareceu assustadora demais.
            — E como vocês passaram depois que eu... hã... me mudei?
            Essa pergunta sempre tinha me corroído, apesar de ter me certificado de que ela não passaria necessidades. Naquela época, Marina tinha um emprego que arranjei para ela na loja de uma amiga enquanto Caio ficava na creche e, sem ter que pagar aluguel, ela teria o suficiente para as necessidades domésticas, ainda que não pudesse desperdiçar.
            Além disso, por incrível que pareça, a casa onde ela tinha morado com a mãe era própria e pudemos vendê-la para iniciar uma poupança. Não era lá grande coisa, aliás era quase nada, porque o imóvel estava em péssimo estado e a localização era ruim, mas era mais do que uma mãe adolescente e órfã podia esperar das circunstâncias. A esse dinheiro, acresci boa parte de minhas próprias economias, de maneira que ela teria com que contar numa emergência.
            — Bem, não era exatamente um mar de rosas, mas não posso reclamar. Acho que tenho que agradecer muito pela maneira como você deixou as coisas.
            — Não agradeça. Eu não conseguiria fazer o que precisava se não me certificasse que vocês ficariam minimamente bem. A única coisa que eu queria ter feito e não pude foi garantir que você estudasse.
            — Mas, de certa forma, você conseguiu, porque eu nem consideraria faculdade se não fosse você. Com a cabeça que eu tinha naquela época, não me parecia importante e eu só passei a desejar isso de tanto você insistir.
            — Acho que meus “discursos”, como você dizia, valeram a pena, afinal — provoco, com a satisfação que as mães devem sentir ao perceber que seus conselhos foram reconhecidos.
            — Valeram — ela confirma, rindo. — Eu pensei em você no dia em que passei no vestibular e Fernando me deu a notícia de que tinha conseguido um emprego para mim no mesmo projeto em que ele trabalhava, lá mesmo na faculdade. Naquelas alturas, ele já tinha uma certa influência e conhecia gente importante... Eu fiquei constrangida, mas não podia me dar ao luxo de escrúpulos bobos. Eu precisava do dinheiro e do tempo livre, então eu simplesmente engoli a vergonha e dei o melhor de mim. Claro que eu ganhava pouco e eles me pediam um monte de coisas, mesmo que fossem serviços simples, para justificar o fato de eu estar lá mesmo sendo uma caloura. Mas acho que nunca aprendi tanto e, de quebra, não precisei trabalhar de dia e estudar à noite. Tinha tempo para ficar com Caio, mesmo que não tanto quanto eu gostaria.
            — Então você pôde largar logo o emprego na loja?
            — Não, eu fiquei lá por uns anos. Isso que estou te contando aconteceu quando eu já estava noiva do Fernando. Mas na época em que você foi embora eu não tinha condições de passar em vestibular nenhum. Você tinha me obrigado a terminar o ensino médio, mas, sendo sincera, eu fiz isso aos trancos e barrancos. Não tinha cabeça, com o bebê e tudo mais. Mas fiquei estudando em casa, sozinha. Fiquei nessa por um tempo, até que conheci umas meninas, Isabela e Ana, que tinham acabado de se mudar para a cidade para fazer faculdade. Elas eram clientes da loja e ficamos amigas. Aí, quando precisaram de um lugar mais em conta para morar, aluguei seu quarto para elas. Era um bom negócio, porque elas me ajudavam a estudar e eu ainda tinha uma grana a mais.
            — Que ideia ótima! — Quer dizer, nossa casa era pequena, mas era suficientemente grande para que Marina tivesse amigas com quem dividir o espaço e as despesas. Respiro aliviada quando percebo que ela não ficou muito tempo sozinha. — E Fernando, quando foi que ele apareceu?
            À menção do nome dele, seu rosto se ilumina, exatamente como da outra vez. Sinto o ar em volta dela mudar, vibrando numa energia intensa e incontida quando ela começa a falar do marido que parece amar demais.
            — Ele é primo da Isabela, foi ela quem nos apresentou — ela diz sorrindo. — Eles não eram muito próximos, mas depois que começaram a se encontrar com frequência na faculdade se tornaram amigos. E tinha um cara da turma dele que estava muito a fim da Ana, aí ele começou a frequentar nossa casa por causa desse amigo, para ter uma desculpa para levá-lo junto. Eu fiquei deslumbrada desde o primeiro momento em que o vi, mas não consegui admitir. Só sabia que ele mexia comigo e isso me dava medo. Você sabe, minhas experiências com homens tinham sido péssimas até ali, e ele era mais velho, parecia experiente e daquele tipo que é seguro demais de si... Sei lá, me assustou. Fiquei fazendo força para me convencer que um cara daquele não poderia nunca querer algo sério comigo e eu tinha um filho com que me preocupar, então comecei a evitá-lo. Quanto mais gentil ele se mostrava, quanto mais ele demonstrava interesse, mais eu corria para longe. Mas aí teve um dia... Eu precisei trabalhar até um pouco mais tarde e pedi para Isabela pegar o Caio na creche. Quando cheguei, ele estava com Fernando, os dois riam e brincavam como... Ah, Clara, foi demais para mim ver os dois daquele jeito. Como pai e filho. Eu não estava preparada para aquilo.
            Estou fascinada pela história. Cada vez mais tenho certeza de que se tivesse ficado por perto, eu a teria resguardado de muitas experiências, talvez até mesmo de conhecer Isabela e, através dela, Fernando. Pelo menos me consola pensar dessa maneira. Tudo o que sacrifiquei foi por acreditar que Deus tinha Seus planos, e que eu estava agindo exatamente como o necessário para que eles se realizassem.
            — Fui para o quarto com uma desculpa qualquer e chorei até meus olhos não aguentarem mais — ela continua. — Naquela noite, quando finalmente apareci, ele tinha feito Caio dormir e tinha ido embora. Fiquei com medo de que ele não voltasse, que achasse que eu não valia o esforço, já que nem conseguia ficar no mesmo cômodo que ele por mais que alguns minutos antes de fugir feito boba. Mas ele voltou. E eu não consegui mais evitá-lo. Principalmente porque Caio estava encantado e ficava todo dia perguntando quando o “Teodolo” ia voltar, quando a gente ia sair com ele e aceitar o convite para ver um desenho bobo no cinema... Eu nunca tinha levado meu filho ao cinema — Ela ri. — Tive que aceitar. Não consegui mais dizer não para tudo. Quando dei por mim, ele já tinha tomado conta dos meus sentimentos e eu não conseguia mais imaginá-lo longe da minha vida.
            Eu já gostava imensamente de Fernando, mesmo antes de conhecê-lo, por conta do amor que Caio sempre demonstrou por ele em nossas conversas. Mas é maravilhoso perceber o quanto ele escolheu ser importante para Marina, como ele merece a luz nos olhos dela.
            — É uma história linda. Alguém como ele foi o que eu sempre quis para você.
            — Alguém como ele foi o que eu nunca achei possível existir. E demorou para eu perceber que estava errada. Eu não confiava nas pessoas. Não conseguia acreditar que não me abandonariam.
            Uma espécie de soluço tolhe sua respiração quando ela percebe o que disse. Em algum ponto da conversa, talvez imersa na beleza de suas lembranças sobre Fernando, ela se esqueceu de que eu não sou uma amiga, mas alguém que ela está tentando perdoar.
            — Me desculpe — ela diz, os olhos arregalados e tristes. — Eu não quis dizer isso.
            — Sim, eu sei. Não se incomode comigo. Não tenho direito de me magoar com a verdade.
            Não é minha intenção me fazer de vítima, mas é o que acaba parecendo quando digo isso com um amargor mal-disfarçado em minha voz. Sinto-me ridícula. Como se estivesse tentando convencer a mim mesma de que tudo o que a fiz sentir de ruim desapareceu magicamente.
            — Não vim aqui fazer acusações, Clara. Eu entendo agora o que você fez. Ainda estou lidando com isso, mas entendo e não te culpo.
            — Eu sei, eu sei. Desculpe se pareci sensível demais. É só que eu estava tão feliz pensando em como as coisas aconteceram para você, imaginando sua vida e pensando em como sua família é linda, que me esqueci por um momento que fiz um estrago quando fui embora.
            — Não, eu não acho que você tenha feito um estrago. Eu já estava estragada. A situação com a minha mãe foi o que me impediu de confiar às pessoas, mas eu precisava de alguém. Precisava ter alguém em quem confiar. Quando você apareceu, disposta a ser essa pessoa, eu me apeguei como uma âncora, e quando achei que você tinha me abandonado a ferida mal cicatrizada reabriu. Mas não foi você que me feriu, e eu sempre soube disso. Só me esqueci por um tempo que não cabia a você me curar.
            — Nem tampouco te causar sofrimento.
            — Qualquer pessoa para quem eu me abrisse tinha o potencial de me ferir enquanto eu não resolvesse minhas próprias questões, enquanto eu não entendesse que eu valia a pena, por mais que minha mãe tivesse me feito crer que não.
            Ouvir isso me deixa, em certa medida, em choque. Por mais que suas palavras façam sentido racionalmente, meu coração continua lutando com a ideia que lhe parece inconcebível: que ela não tenha visto o que eu, suas amigas e Fernando pudemos sempre enxergar com absoluta clareza.
            — Você sempre valeu a pena, Marina. Você era uma menina que só tinha gentilezas para com um mundo que não tinha sido nem um pouco generoso com você. Ainda que tudo estivesse contra, você se manteve determinada a ser boa. E mesmo agora, você está me oferecendo o melhor que pode. Para mim, que te magoei tanto.
            Seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela não as deixa cair. Acho que, tal como o meu, seu coração tem comportas que não podem ser abertas de uma só vez, sob pena de que as emoções nos façam submergir. Mesmo assim, sei que há muitas coisas acontecendo dentro dela. Sei que, em algum lugar, há uma chuva fina desencantando a estiagem sobre as lembranças que ela se cansou de enfrentar.
            De repente, ela se levanta e fico com medo de que fuja de mim outra vez, que este doce e doloroso interlúdio termine tão desastradamente quanto começou, mas ela apenas faz sinal com a mão para que eu espere e vai até a sala. Ouço-a mexer em sua bolsa e voltar a passos lentos que vão, gradualmente, parecendo menos incertos.
            — A bondade pode ser maior que a dor, Clara — ela diz, sentando-se de novo à minha frente. — Para mim, foi. O que você fez de bom foi sempre mais importante do que o fato de você ter ido embora. Porque mesmo quando eu sentia raiva, sempre soube que você tinha me dado seu melhor. Está na hora de te devolver um pouco.
            Fico confusa quando ela deposita uma caixa sobre a mesa. É pequena e desengonçada, feita de um papelão meio amassado coberto por dedinhos de tinta guache. Na parte de cima, escritas numa letra infantil, estão as palavras “Mamãe” e “Caio”. Seguro a tampa de leve quando percebo do que se trata, deixando a doce lembrança que não me pertence entrar em meu coração, mas quando a levanto e ela se solta da base, posso ver o interior da caixa.
            Uma lembrança que me pertence.
            Agora são os meus olhos que se enchem de lágrimas ao ver as joias de minha mãe. Aquelas eram as coisas mais preciosas que eu tinha, as mais sagradas, porque eram as preferidas dela.     
            Giro o relógio dourado nos dedos, sentindo de novo sua textura, observando seu brilho. É exatamente como me lembro, exceto que parece mais pesado agora que carrega as horas de outras separações. A gravação está um pouco apagada, mas na parte de trás do mostrador ainda se lê em letras diminutas: “Para Dirce. Com amor, Luís.” Foi um presente de noivado. O anel, uma pérola solitária ladeada por dois pequenos brilhantes, meu pai deu a ela no dia em que nasci. As duas únicas joias que ele pôde comprar na vida eram celebrações do amor dos dois, da nossa família.
            E eu as tinha deixado para minha outra família, para Marina, como uma promessa, como um sinal de amor.
            — Você...
            Quero encontrar um jeito de dizer tudo o que está acontecendo em meu coração. Quero ao menos encontrar palavras para dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas não acho que consiga fazer nada com o nó em minha garganta — já é muito simplesmente respirar. Sinto tantas emoções ao mesmo tempo, que é quase como se não sentisse nada.
            — Essas coisas nunca me deixaram esquecer que você deu o seu melhor por mim — ela fala com a voz vacilante, embargada, os cabelos longos dançando sobre os ombros quando meneia a cabeça. — Não foi por você ter me tirado da rua naquela noite e cuidado de mim e do meu filho pelo tempo que cuidou. Não foi sequer pela casa ou por seu esforço em me deixar segura, embora tudo isso tenha significado muito. Mas quando eu olhava para as joias que você usou em todos os dias que te conheci e que eram a lembrança de sua família, eu sabia. Por baixo da dúvida, eu sempre acreditei nas palavras daquela carta... que você ia voltar. E acreditei por causa disso. Porque eu sabia o quanto essas joias significavam para você e que deixá-las para mim foi seu jeito de dizer que nos amava.
            — Elas foram... Foram meu presente para você.
            — Eu sei — ela diz, lançando-me um sorriso complacente. É a sua vez de segurar minha mão, e o contato traz uma paz momentânea ao dilúvio de emoções que ameaça romper as comportas convenientemente posicionadas. — Mas não preciso mais do consolo que elas me davam, porque agora tenho você de volta em minha vida. Deixe que, de hoje em diante, elas sejam o meu jeito de dizer que vou voltar para você, que estou lidando com a situação e me esforçando para entender.
            Não sei o que pensar. Nunca esperei ter essas coisas de volta. Eu as dei a Marina como minha mãe as deu a mim, porque queria um laço entre essas duas pontas tão importantes da minha vida. Porque aquela garota e seu filho eram minha nova versão de felicidade familiar. Ao mesmo tempo... A maneira como Marina as coloca de volta em minhas mãos deixa claro o que eu sempre soube: os objetos não têm importância alguma por si só, é o que eles representam que forma a bagagem que levamos através de nossas histórias.
            Eu fiz parte da história de Marina de forma tão indelével quanto ela da minha. E agora ela me estende a mão para encontrarmos juntas o caminho de volta para o lar que podemos ser uma para a outra. Sábia como sempre foi, minha menina está me dizendo que posso perdoar a mim mesma e seguir em frente. Em direção a ela.
            Não penso mais. Apenas sorrio de volta.
            — Eu aceito. Obrigada.
            E isso diz mais do que qualquer um que nos visse agora poderia supor.

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