sábado, 19 de setembro de 2015

ELS Cap 30

Capítulo 30 – Oceano e Âmbar

They say it's what you make
I say it's up to fate
It's woven in my soul
I need to let you go
Your eyes, they shine so bright
I want to save their light
I can't escape this now
Unless you show me how

When you feel my heat
Look into my eyes
It's where my demons hide
It's where my demons hide
Don't get too close
It's dark inside
It's where my demons hide
It's where my demons hide

(Demons – Imagine Dragons)

            Marina não ficou por muito mais tempo depois daquilo, mas eu permaneço presa àquele momento, vendo e revendo suas nuances até me certificar de que a memória dele esteja tatuada em mim.
            Eventualmente, porém, preciso voltar a pisar no chão. E é só quando sou obrigada a voltar ao mundo real e começar a me arrumar para o trabalho, que me dou conta de que ir dirigindo para lá não é uma opção. Tinha me esquecido completamente do atentado ao meu pobre carrinho e de minhas pretensões de conseguir consertá-lo antes que Eric tivesse que se incomodar com isso.
            Meu plano original era levantar bem cedo e tomar as providências necessárias, depois ligar para ele com alguma desculpa do tipo “tenho um amigo borracheiro” ou algo assim, e convencê-lo de que eu podia poupá-lo do trabalho. É provável que fosse uma tarefa difícil, no entanto, porque ele não tinha se mostrado muito flexível quanto a isso ontem à noite.
            Eric colocou na cabeça que é responsável pelo ocorrido e, no fundo, acho que ele pensa que eu concordo com essa bobagem, o que é justamente a impressão que eu gostaria de desmanchar tentando resolver as coisas por mim mesma. Pelo menos era minha pretensão antes de pensar direito no assunto, mas, sendo sincera comigo mesma, agora isso está começando a parecer uma péssima ideia.
            Não quero que ele me tome por orgulhosa. Embora esteja acostumada a resolver meus próprios problemas, gosto de saber que alguém está disposto a cuidar de mim e fazer coisas para me agradar, por mais antiquado que pareça. E mesmo que me presentear com flores e consertar meu carro sejam coisas bem diferentes no resultado final, partem do mesmo tipo de intenção, do mesmo tipo de gentileza sobre a qual conversamos ontem e que eu disse a ele que valorizava tanto.
            É só que ainda estou testando os limites da situação toda de ter alguém tão presente em minha vida, e não quero que ele pense que precisa agir assim, como um cavalheiro salvador, o tempo todo. Quer dizer, cavalheiro, sim. Parece bom. Mas salvador, não. Afinal, não sou tão antiquada assim. Não o tempo todo, pelo menos.
            O fato é que, de repente, já não tenho mais tanta clareza sobre o que fazer e é quase um alívio perceber que, ao menos por hoje, não preciso mais pensar na questão, já que minha cabeça relapsa e o sono dessa manhã acabaram decidindo por mim. O máximo que posso fazer é esperar que Eric também tenha adiado o assunto e que possamos conversar melhor sobre ele mais tarde. O que me resta agora, portanto, é pensar em outro meio de transporte.
            Considerando a opção mais óbvia, encontro anotado em um caderno o número de telefone onde se pode consultar as linhas de ônibus de cada bairro, e é só quando vou fazer a ligação que me dou conta de que me esqueci de recolocar o cabo do telefone depois da “Madrugada das Ligações Perturbadoras”.  O celular também passou o dia desligado e, na tela, sem contar as que aparecem no identificador de chamadas do fixo, deve haver mais ou menos uma dúzia de ligações de Eric.
            Droga!
            Era mesmo de se esperar que ele ligasse oferecendo carona. Outra obviedade que meu cérebro sobrecarregado não considerou, como se meus modos tivessem sido rasgados junto com os pneus de meu carro. Censurar-me mentalmente não é suficiente, então decido ligar para ele e me desculpar, mas antes resolvo verificar as mensagens de texto que ele deixou. São três. Uma quantidade surpreendentemente pequena para todas as minhas horas de “sumiço”. Ou talvez três seja o suficiente e eu só esteja estranhando porque se fosse Paty eu teria que escolher entre ler todas ou ir trabalhar.

“O que aconteceu com seus telefones?”

            É o que diz a primeira, mandada cerca de uma hora atrás. A segunda, recebida vinte minutos depois, é um pouco mais longa.

“Não consigo falar c vc. O q houve? Vc está bem? Vou buscá-la às 5:30”

            Tento adivinhar seu estado de espírito por trás das palavras, mas não consigo. Estou em busca de algum sinal do aborrecimento que a quantidade de ligações perdidas parece revelar, mas não estou certa se consigo perceber algo além de preocupação. Lembro-me de sua expressão na noite em que ele me encontrou chorando no estacionamento, de como ele ficou tão perdido em meu sofrimento que parecia que estava sentindo minha dor. E depois, da promessa de ódio que vi em seus olhos quando ele achou que alguém tinha me magoado. Ainda me é impossível medir suas reações, mas sei que não quero vê-lo tão agoniado novamente. Menos ainda por minha culpa, ainda pior que seja sem motivo.
            Antes, porém, de me permitir afundar em lamentações pelo descuido, verifico a última mensagem, deixada pouco antes de eu ligar o celular.

“Esqueça. Estou indo agora.”

            Agora!? A hora inteira que eu tinha para me arrumar de repente virou o quê? Cinco minutos? Olho no relógio meio desesperada, mas compreendo a inutilidade do ato. Não sei de onde ele está vindo, ou mesmo se já estava a caminho quando me escreveu. Não dá para ter certeza de quanto tempo eu realmente tenho. O que significa que terei sorte se conseguir tomar o banho mais rápido do mundo e vestir meu uniforme antes dele chegar.
            Parto para a ação e deixo meus pensamentos se transformarem numa sequência de verbos cujos complementos a pressa tolhe: molhar, ensaboar, enxaguar, secar, vestir... Tudo tão rápido que minha mente provocadora brinca que meu piloto automático deve ser campeão de Fórmula 1.
            Dou uma olhada desejosa para meu secador de cabelos e lamento não ter tempo para ele. Não sou vaidosa, mas isso, especificamente, é uma coisa que me faz falta quando não consigo fazer. Meu cabelo sempre demora muito a secar naturalmente e fica cheio de ondas nos lugares errados. Infelizmente, não tive como deixar a lavada para amanhã, e agora vou acabar a noite com os cabelos presos num daqueles coques desleixados que me deixam com cara de doida. É terrível e engraçado que ter um namorado me faça pensar em coisas tolas como essa, mas aqui estou, levando realmente a sério algo fútil como a aparência do meu cabelo.
            Céus! A coisa de me sentir mais humana soa bem estranha nessas horas!
            Ainda estou debatendo comigo mesma a possibilidade de usar os minutos que restam para secar o que der, quando o som do interfone anuncia que o tempo acabou. De repente, só o que me importa é que vou ver Eric nos próximos instantes. Embora outras coisas tenham absorvido minha mente durante o dia, uma parte minha ansiou por este momento como se eu estivesse faminta.
            Quando abro a porta e ele está aqui, diante de mim, é uma sensação tão boa que não sei o que fazer com ela. Quero tanto estar nos braços dele que nem sei se estar de fato seria o suficiente. Provavelmente, só me faria querer mais. Ainda assim, quase dói tê-lo tão perto e não beber sofregamente cada segundo de sua presença.
            Eric, por outro lado, não parece ter dúvidas quanto ao que quer. Devolve meu olhar por apenas um segundo e suas mãos se estendem, me empurrando para dentro. Nem sei como ele fecha a porta ou como estou subitamente fora do chão, tão apertada em seu abraço que minha pele respira a dele, tão consumida por seu beijo que nem percebo que estamos no sofá.
            É um beijo furioso. Seus dentes apertam meus lábios e sua barba por fazer raspa meu rosto impiedosamente, como se ele quisesse mesmo me marcar, me fazer arder, em todos os sentidos possíveis. Não me importo, porém. Não me importo com nada. Só quero mais. Quero essa dor sutil para mim porque a ideia de não senti-la parece uma tortura e ele sabe.
            Ele sabe quando meu corpo começa a precisar do dele como se não pudesse mais se mover se não queimarmos juntos. Ele sabe quando a ideia de parar parece ao mesmo tempo a única coisa segura a se fazer e a única impossibilidade que meu instinto aceita. Cravo as pontas de meus dedos em suas costas sentindo a fúria em mim. Sou eu quem o quer agora, quando seu beijo se acalma e seus lábios se tornam uma carícia doce e torturante, como se ele soubesse exatamente o que está fazendo comigo.
            — Senti uma saudade insana de você — ele balbucia, mordiscando meu queixo. A voz dele faz coisas estranhas comigo. Faz meus joelhos enfraquecerem como se eu estivesse carregando toda a paixão do mundo em minhas costas, em meus ombros, em meu peito. Por isso não consigo responder. Minhas pernas estão enroladas na cintura dele e meu impulso imediato, um ao qual não tenho forças nem vontade para resistir, é apertá-lo contra mim.            Um som áspero escapa de sua garganta quando o faço e toda minha pele se arrepia no mesmo instante.
            Uma de suas mãos sobe pela minha coxa e se infiltra sob minha saia, apertando minha bunda com vontade. Estranhamente, a intimidade desse toque não me assusta em nada. Ele já esteve próximo demais de minha alma para que meu corpo não seja seu território.
            — Deliciosa — ele diz, com aquela voz. — O que você está tentando...
            Um latido ligeiramente agoniado nos interrompe. Olhamos ao mesmo tempo para um Blue contrariado por não receber nenhuma atenção do visitante, e curioso com a atitude daquele desconhecido atrevido.
            — Seu cachorro está olhando feio para mim — ele brinca.
            — Também, você está em cima da mãe dele. O que esperava?
            Blue solta outro latidinho desaforado e Eric ri, apertando-me uma última vez e deixando seus dedos deslizarem provocadoramente para a parte da frente da minha coxa, antes de me ajudar a levantar e me dar um beijo na testa.
            Não estou brava com Blue, nem poderia, é quase impossível para mim quando vejo seus olhos inocentes, mas também não posso evitar que meu corpo proteste em frustração. Ainda sinto o calor da pele de Eric e a iminência deliciosa do que quase aconteceu. Estava me sentindo tão bem que não pensei em nada, nem na nossa conversa de ontem, nem nas consequências de nos precipitarmos. E até que esses pensamentos ajuizados e coerentes consigam se sobressair à onda de desejo, acho que vou ficar com uma cara de criança que perdeu o doce.
            — Bem, isso certamente acaba com o clima — Eric diz, fazendo uma cara engraçada de quem não sabe se ri ou fica irritado.
            Ele também não parece muito feliz, obviamente, mas está lidando com isso com mais elegância do que eu, pelo menos tentando fazer uma cara simpática para o cachorro que coloca as patas da frente sobre os joelhos dele e reivindica seu reconhecimento, farejando para todo lado. Não me escapa o quanto ele parece desconfortável a princípio, mas acaba cedendo quando o cãozinho continua de olhos fixos nele e rabo abanando. É engraçado vê-lo estendendo a mão cuidadosamente, deixando que Blue a fareje, e depois lhe fazendo um carinho tímido entre as orelhas. De início, o gesto parece estranho, pouco familiar, depois ambos ficam mais confortáveis um com o outro e Eric parece gostar do contato.
            — É a primeira vez que você brinca com um cachorro?
            — Com um que gosta de mim, sim.
            — Ele realmente gostou de você. Mas não fique se achando. Ele gosta de qualquer um. É um oferecido — brinco. E como para confirmar o que acabei de dizer, Blue inclina a cabeça para trás e tenta lamber a palma da mão de Eric, que a retira meio enojado. Não aguento olhar para aquilo e começo a rir.
            — Não sei, não. Acho que, apesar das previsões contrárias, ele pode gostar especialmente de mim. Você sabe, dizem que os cachorros se parecem com os donos — ele graceja, mas depois se finge de sério e volta a ostentar a expressão de nojo. — Apenas diga a ele que não estou pronto para um relacionamento que envolva saliva.
            — Eu tentarei. Mas ele não é muito sensível aos meus argumentos quando se trata de babar ou morder.
            — Na verdade, ele me parece um carinha bem razoável. Agora há pouco, por exemplo, ele interrompeu nosso lance, mas acho que ele tinha suas razões. Estava tentando me proteger de você.
            — Não seria o contrário?
            — Hum, acho que não — Eric diz, apertando os lábios numa expressão dissimuladamente grave. Aprecio a tentativa dele de lidar com as coisas com bom humor e resolvo entrar na brincadeira.
            — Ah, é mesmo? Quer me explicar isso melhor? Porque eu acho que não faz o menor sentido.
            — Veja só, preste atenção. Está claro para todo mundo nesta sala que você está tentando me deixar louco. — Com ar brincalhão, ele estende um dedo como se fosse iniciar uma contagem. — Primeiro, você fica fora de contato e eu quase endoido de tanta preocupação...
            Ops!
            — Desculpe por isso, de verdade. Eu desliguei tudo porque queria dormir até tarde e depois me esqueci de religar. Foi muita falta de consideração minha.
            — Não faça mais um negócio desses. Minha sorte foi que eu só comecei a te ligar há umas duas horas. A coisa mais leve que pensei até tomar a decisão de vir até aqui foi que você tivesse se arrependido de ontem e não quisesse mais me ver.
            Ouvir isso me surpreende e fico sem fala. Apesar de todas as coisas que ele já me disse sobre não ser bom para mim, a insegurança quase juvenil da frase não combina com o que ele me deixa ver quando estamos juntos, com o homem que entrou aqui parecendo saber exatamente o que queria.
            — Eric, eu não...
            — Sim, eu sei. Não leve isso a sério demais. Só fiquei preocupado com você e comecei a fazer conjecturas.
            — Não faça essa conjectura. Nunca.
            Ele pega minha mão e beija meus dedos. Seus olhos se fecham por um instante e depois ele volta a me lançar seu olhar zombeteiro.
            — Segundo, você me recebe molhada do banho. Parece que lê meus pensamentos indecentes. — Ele afunda o nariz em meu cabelo úmido e inspira com prazer. Fico toda arrepiada e é difícil pensar por um instante, mas o que ele disse antes também mexeu comigo, e não estou disposta a negligenciar o sentimento.
            — Prometa, Eric!
            — O quê? — ele me olha, confuso.
            — Prometa que nunca vai pensar que eu me arrependi de ficar com você. Eu escolhi isso. E você disse que ia parar de tentar me convencer do contrário.
            Ele segura minha nuca e me beija, prendendo minha cabeça de tal modo que mal posso corresponder ao beijo, apenas sentir seus lábios se movendo sobre os meus num ritmo inteiramente determinado por ele.
            — Prometa — insisto quando conseguimos nos separar.
            — O que você quiser, amor — ele responde, brincando com meu cabelo de novo. — Eu prometo o que você quiser.
            Amor...
            Não é justo fazer isso comigo agora, me chamar assim... Porque eu não sou tão boba quanto pareço e isso não foi um “sim”.
            — Você nem está me olhando nos olhos...
            — Não, não estou. Porque você sabe que eu não vou ficar mentindo pra você.     Certo. Por essa eu não esperava. Não sei por que, também. O senhor lacônico sempre sabe como me deixar sem palavras. Mas o fato é que ele tem razão. De certa forma, é como se estivéssemos tendo a mesma conversa de ontem, enquanto eu espero por um resultado diferente.
            — Desculpe, estou te pressionando.
            — Baby, entenda uma coisa: eu não... — Ele suspira, passando a mão pelos cabelos de forma tensa, e eu me arrependo imediatamente de ter começado isso. Não quero que nosso relacionamento gire sempre em torno de conversas assim. — Eu não posso desejar que você nunca se arrependa. Não é certo. Seria mais seguro que você se arrependesse em algum momento e se afastasse. Estou sendo egoísta por acreditar em você.
            — Então você acredita em mim?
            Isso é bom. E eu gostaria muito que fosse o suficiente.
            — Não é da sua palavra que eu duvido.
            — É de você mesmo, então, não é?
            Eric se recosta no sofá e me dá apenas um sorriso de lado, mas não responde. Coisas demais cabem nesse sorriso, entretanto. E não há nada que eu possa dizer antes que ele entenda por si só o que também cabe no meu.
            — Tenho uma coisa pra você — ele diz, remexendo nos bolsos e me estendendo a chave do meu carro. — Novinho em folha. Quer dizer... quase isso. Me ajude a entender: por que um Fusca?
            — Gosto de coisas antigas — respondo sem dar muita atenção à pergunta, porque minha cabeça está ocupada tentando formular um agradecimento digno. No final, não sobra muita coisa a dizer além de “obrigada”, mas realmente sinto que não é suficiente. — Não sei como agradecer.
            Ele assente, estreitando levemente os olhos como se pensasse a respeito.
            — Tenho algumas ideias se você estiver sem.
            Sorrio e desvio o olhar, porque acho que estou ficando vermelha. Quando volto a encará-lo de novo ele está rindo. Eric gosta de me provocar.
            — Você não devia começar coisas que não está disposto a terminar — devolvo, repetindo o que ele me disse outro dia, aqui, neste mesmo lugar.
            — Touché! — ele brinca, segurando o peito na altura do coração como se tivesse levado um golpe fatal.
            Nós rimos e depois ficamos nos olhando em silêncio por um tempo. Assim como a mim, a quietude parece não incomodá-lo. É simplesmente agradável estarmos juntos sem nos preocuparmos com nada. Embora não seja exatamente este o caso agora. Não para mim, pelo menos.
            — Eric, eu... Ahn... Bom, para ser franca, estou um pouco constrangida por você ter tido esse gasto comigo.
            — Você fica constrangida quando alguém te dá um presente?
            — Não, mas...
            — Você disse que gosta quando eu te dou flores — ele afirma, com um ar de jogador que prevê exatamente os movimentos do oponente, como se já conhecesse as fraquezas dos argumentos que eu poderia dar. Sei disso porque eu mesma tinha me colocado essas cogitações mais cedo. Entretanto, ainda não consigo me convencer de que ambas as gentilezas tenham o mesmo peso.
            — Sim, gosto muito. Você sabe. Mas é diferente.
            — Por quê? Porque foi mais caro?
            — Bom, sim — respondo. — Consideravelmente.
            — Não me parece uma boa razão para você estar constrangida. Não foi incômodo algum para mim e fiquei feliz em poder fazer algo que mostrasse o quanto estou empenhado em cuidar de você. É só isso. Eu gostei de fazer isso pra você. Não entendo o drama.
            — Não é drama. É só que você não precisa ficar fazendo esse tipo de coisa. Você não é responsável pelo que aconteceu, mesmo supondo que tenha sido obra de Esther.
            — Com Esther eu me preocupo mais tarde. — Ele me puxa para seu colo e me abraça, enterrando o rosto na curva de meu ombro e cheirando minha pele. — E não quero que você se preocupe também. Nem com ela, nem comigo. Eu só... gostei da sensação de fazer uma coisa boa.
            Não vejo seus olhos quando ele diz isso, mas sinto a verdade por trás das palavras. Elas pesam sobre mim com um misto de alegria, beleza e dor, como quem recebe de volta uma criança que fugiu de casa por livre e espontânea vontade. Eric parece ser assim sob muitos aspectos: alguém que está aprendendo que a vida merece uma chance, e que ter para onde voltar quando nos perdemos deveria ser a regra, não a exceção.
            — Obrigada. E me desculpe — peço.
            — Por quê? — Ele me retorna um olhar confuso.
            — Por não entender. A princípio. Por transformar seu gesto em uma questão de dinheiro.
            — Não é importante — ele desdenha.
            — É importante, sim. — Não preciso que Eric me prove nada, sei que ele é uma pessoa melhor do que acredita ser. Mas cada pequeno gesto que torna isso evidente para ele mesmo é bem maior do que parece. — Fico feliz que você tenha se sentido bem.
            Corro os dedos pelo contorno de seu rosto, sentindo a barba curta e a pele macia. Não tinha me dado conta ainda de que agora posso tocá-lo sem receios. Obviamente, a leveza dessa liberdade é algo inédito para mim. E eu adoro a sensação. Gostaria de nunca ter de parar.
            — Isso é novo para mim — seu tom de voz me segreda, como se soubesse o que estou pensando. — Gostar de estar com alguém. Simplesmente gostar sem ter nenhum interesse, nenhuma amarra, a não ser as que eu escolher ter. Não sou bom, mas gosto de ser bom com você.
            — Supondo que você esteja certo, é preciso começar de algum lugar. Então eu aceito ser o seu começo.
            — Aconteça o que acontecer, qualquer que seja o nosso futuro... — Ele pega minha mão e pousa sobre a dele, observando nossas palmas espelhadas em frente aos seus olhos. Depois, entrelaça nossos dedos e beija suavemente os meus. — Preciso que você saiba o que o dia de ontem significou para mim. Você me deu uma escolha e eu te escolhi. Porque quero você, entendeu? Por nenhuma outra razão. Você me faz querer merecê-la e, mesmo que eu não consiga, sempre terei aquele momento em que você acreditou que era possível. Em que eu acreditei. Posso passar a vida tentando, mas nada que eu possa te dar, nada que eu possa fazer para você, vai compensar o que você me faz sentir.
            Acho que meu coração para por um instante. Há ocasiões na vida que alteram nossas estruturas, fazendo seus alicerces em pedaços para, no mesmo instante, reconstruí-los sob outra forma. E então seu mundo se altera, torna-se maior. Melhor, talvez. Diferente. Na maior parte do tempo, só ficamos cientes da mudança quando ela já está consumada. Mas às vezes conseguimos flagrar a transformação e sua beleza brutal, tão poderosa quanto perturbadora.
            — Por que... por que você está me dizendo isso?
            — Porque preciso que você nunca duvide.
            “Preciso”.
            Há uma urgência na maneira como ele usa essa palavra, um desespero que todos os meus instintos desejam aplacar.
            — Eu acredito. Prometo que não vou duvidar. — Embora não saiba exatamente por que é tão importante para ele, eu realmente acredito. Porque sei o quanto é importante para mim.
            Eric não responde, apenas sustenta meu olhar como se estivesse me sondando, prevendo que eu pudesse mudar de ideia, mas minhas palavras não são mais minhas. Agora são dele. E não me diz mais respeito o que fará delas. Só posso esperar. Finalmente, ele morde o lábio e assente, sua própria expressão, antes insondável, suavizando-se em seguida.
            — Você ainda precisa fazer alguma coisa em casa? Porque temos que ir daqui a pouco.
            Olho para o relógio e percebo que, apesar disso me parecer apenas uma desculpa para mudar de assunto, ele tem razão. O tempo passa rápido quando estamos juntos.
            — Na realidade, eu até poderia usar alguns minutos para me arrumar melhor, já que fiz tudo correndo. Mas prefiro passá-los aqui com você — digo, beijando-o.
            — Isso me parece infinitamente mais interessante. Até porque você está linda assim como está. Só falta uma coisa...
            — O quê? — questiono, confusa.
            Ele remexe nos bolsos de novo e tira um saquinho de veludo de dentro de um deles.
            — Eu já tinha percebido que você gosta de coisas antigas — diz, tocando meu relógio de pulso que, embora não seja o de minha mãe, tem um ar vintage[1] e um design muito parecido com o da minha herança de família. —Vi isso aqui hoje e me fez pensar sobre ontem, sobre você. Se um instante de luz pudesse ser guardado no tempo, acho que se pareceria com isso.
            Eric me entrega a bolsinha e me indica com o olhar que eu desfaça o laço que a mantém fechada. Meus dedos vasculham cuidadosamente seu interior até encontrar um cordão cor de ouro velho. Uma linda gema de âmbar em formato oval pende do colar, enrodilhada por um arabesco de folhas do mesmo material do cordão. Parece algo saído diretamente das páginas de uma novela de cavalaria ou de alguma história de magos e fadas.
            — É lindo! — exclamo, sem conseguir conter minha empolgação com a beleza do presente. — Mas... Por quê? Você não precisa...
            — Fazer essas coisas? Sim, eu sei. Você já me disse. Posso colocar em você?
            Ele sorri para mim, um sorriso aceso e expectante que entra imediatamente para a minha galeria de preferidos, e nós dois nos levantamos, ficando diante do espelho pendurado na parede. Eric afasta meu cabelo com cuidado, acariciando minha nuca e deixando seus dedos circundarem minha garganta e descerem por minha clavícula como se estivessem estudando a textura de minha pele. Por fim, deposita um beijo na curva de meu pescoço e coloca o colar em volta dele, atando o fecho habilmente.
            — É lindo — repito, quando observo o jeito como ele harmoniza com minha pele, com os cachos que começam a se formar nas pontas de meu cabelo e com meus sonhos infantis de leitora voraz.
            — Você é que é linda. Ele é apenas... apropriado. Guarda uma história, como você.
            — Todo mundo guarda uma história — digo, me virando para abraçá-lo.
            — Sim. Mas a sua é a única que eu também quero guardar.
            Olho para o espelho de novo, mas agora meu foco não está mais no colar, e sim, no homem atrás de mim. Em seus olhos de oceano profundo que guardam uma história ainda desconhecida, mas cujas linhas estão irremediavelmente entrelaçadas às minhas. Não me importo de esperar até que ele esteja pronto. Até que ambos estejamos prontos. Mas não há mais como negar que, desde o dia em que nos conhecemos, é possível ler meu mundo em seus olhos. Minha alma se lembra e sabe que, para o resto de minha existência, minha história é a dele.



[1] Termo usado na moda para se referir a peças de outras épocas, em geral, das décadas de 20 a 60.

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