sábado, 28 de novembro de 2015

ELS - Cap 34

Capítulo 34 — Acompanhada

Hold on to me as we go
As we roll down this unfamiliar road
And although this wave is stringing us along
Just know you're not alone
Cause I'm gonna make this place your home

Settle down, it'll all be clear
Don't pay no mind to the demons
They fill you with fear
The trouble it might drag you down
If you get lost, you can always be found

Just know you're not alone

(Home - Phillip Phillips)

         Marina se diverte com a saída tempestuosa de Paty, dá para perceber, porque Caio não é muito bom em disfarçar seu constrangimento e acaba soltando trechos da verdade quando ela pergunta o que aconteceu. No entanto, ela não insiste nos detalhes, com certeza pretende me perguntar depois.
         Ficamos jogando conversa fora por um tempinho, com a ajuda dos assuntos que a televisão do quarto nos fornece, mas logo o horário de visitas termina e sinto que chegou a hora de ir. Minha presença ali já não soa tão natural agora que nosso garoto está alerta o suficiente para fazer perguntas e posso perceber que Marina precisa tirar um cochilo. A enfermeira acabou de vir aplicar um medicamento e Caio já está ficando com as pálpebras pesadas de novo. Quando não houver mais a necessidade de manter tópicos banais de conversa, eles dois vão, provavelmente, cair no sono tão rápido quanto as luzes de um cômodo se apagando ao desligar o interruptor. Espero que eles descansem, apesar do entra e sai necessário de enfermeiros, e a melhor forma de ajudar nisso é deixá-los em paz.
Depois de me certificar de que eles não precisam de nada, faço Marina prometer que não dirigirá se estiver cansada demais e me despeço, pensando que a mim também cairia bem um descanso. Então me lembro do quanto estive ansiosa por ver Alberto e a saudade fala mais alto. Posso descansar depois de vê-lo. Não sou muito de café, mas hoje, graças à necessidade de ficar acordada apesar das poucas horas de sono, tomei o bastante para me manter desperta por um bom tempo ainda.
Ligo para ele antes de dar a partida no carro e minha ansiedade quando ele me explica o caminho do hotel é tanta que quase me perco quando dirijo até lá. Apesar disso, chego em poucos minutos, e sou só uma animação irritante embalada a saudade e cafeína quando pulo em seu pescoço assim que ele abre a porta do quarto em que está.
— Beto!
— Olá, Estrela Clara.
Ele me abraça apertado e estou tão feliz por vê-lo que demoro uns segundos para notar:
— O que... O que está diferente?
Alberto suspira. Somos suficientemente parecidos para eu saber que ele ensaiou o que dizer, mas neste momento está descartando todos os preâmbulos e escolhendo a melhor forma de ir direto ao ponto, porque não consegue fazer diferente comigo. Não quando nos conhecemos tão bem.
— O nome dela é Júlia — diz finalmente. E embora eu já comece a adivinhar o que ele tem a dizer, preciso de um tempo para digerir a ideia, então decido protelar o impacto só por uns segundos.
— Oi? — pergunto como se ele tivesse falado grego. Só para poder decidir se estou feliz ou em pânico.
— Entre. Vou te explicar tudo.
Ele me cede passagem e eu entro, sentando-me na cama sem pedir licença, sabendo que ele vai se sentar ao meu lado, apoiar-se na cabeceira e me acomodar em seu peito exatamente como sempre fazemos para matar a saudade. Observo-o chutar os chinelos para longe e sorrir quando me lembro de fazer o mesmo com os tênis que estou usando. Estudo-o enquanto ele também me observa com o mesmo cuidado de sempre e me estende a mão, fazendo todos os gestos de sempre, na mesma ordem de sempre. Se eu não o conhecesse não notaria nada. Em essência, ele parece exatamente a mesma pessoa. Exceto por aquilo que só eu poderia reconhecer.
— Você renunciou.
— Sim — ele diz simplesmente. E então eu vejo, não preciso de palavras ou respostas, não preciso de perguntas. Ele está feliz.
— Faz alguns meses, mas eu não consegui dizer por telefone. Tive que ver você.
— Mas por quê? Eu nunca te censuraria, nunca...
— Eu sei. Eu só queria que você visse por si mesma, porque as palavras não pareciam boas o suficiente para explicar.
— Foi muito difícil?
A maioria das pessoas passa a vida procurando por Deus, incapazes às vezes de perceber que ele está dentro delas mesmas, em cada célula de seu corpo, em cada coisa nova que aprendem, em cada vez que tocam o mundo e ele as toca de volta. Mas nós sabemos. Nós escutamos. Temos a possibilidade de “trapacear” com essa espécie de conhecimento prévio de Suas vontades que nos é concedido. E é inebriante. Para nós, vale todos os sacrifícios que demanda. Renunciar a isso deve ser um pouco como abrir mão de si mesmo.
— Foi a decisão mais difícil que já tomei — ele responde. — E também a que me pareceu mais certa. Eu quero ter um filho, quero poder envelhecer e descansar ao lado da Júlia.
Penso em Eric. E em todas as vezes em que achei que devia ter renunciado ao Chamado para cuidar de Marina e Caio. Em todas as vezes que me arrependi por não ter conseguido abdicar da missão que eu amava. Não passo muito tempo pensando nisso geralmente, porque sei que tomei a decisão certa daquela vez. E porque também sei que, mesmo agora, ainda não estou pronta. Mas não posso evitar uma pontada de tristeza pelas coisas de que tenho aberto mão.
Um filho. Mais de um até.
Eu também gostaria disso.
— Como ela é? — pergunto em vez de continuar pensando em mim mesma. — Me conte sobre a Júlia.
Ainda o estou estudando freneticamente, procurando algum sinal de engano ou de que, talvez, haja algum arrependimento. Mas quando digo o nome dela, o sorriso que ele abre ilumina o mundo e de repente todos os meus receios desaparecem. Estou tão feliz por ele que olhar o brilho em seus olhos mal me deixa pensar, então aceito o colo que ele me ofereceu e me estendo ao seu lado na cama, apoiando a cabeça em seu peito para ouvir sobre a namorada do meu irmão.
— Ela é... perfeita.
Rio. É claro que ela é perfeita. Ele a ama.
— É cabeça dura e inteligente — ele continua. — Debochada às vezes, o que me faz sentir engraçado, porque eu gosto, mas ainda sou um cara de cem anos.
— Cento e dois — corrijo, provocando-o.
— Certo, certo. Cento e dois. — Ele estreita os olhos para mim, abrindo um sorriso logo em seguida. — Ela não tem vergonha de nada e sempre diz o que pensa. Quando nos conhecemos ela não gostou de mim, acredita?
— Impossível!
— Bom, na verdade, ela diz que me tratou mal porque gostou — ele se corrige, rindo da cena em sua memória.
Perco a noção do tempo ouvindo-o falar sobre ela e sobre a maneira como quase precisou expulsá-la do local de um acidente na primeira vez que a viu. Era um desmoronamento de um prédio e Júlia — que é repórter — estava obcecada por colher todas as informações que pudessem ajudar as vítimas em um processo contra a empreiteira. O problema é que as ruínas ainda ofereciam perigo de mais desmoronamentos e Beto temia que ela pudesse se enfiar em local proibido e acabasse se machucando. Eles tiveram uma tremenda troca de farpas até ela finalmente ceder e se afastar.
Já gosto dela.
— Ela sabe? — pergunto. E não preciso ser mais específica sobre o que estou falando.
— Eu tive que contar.
— Como assim, “teve que contar”? Você não pretendia desde o início?
— Você pretende contar a Eric?
Touché!
Não faço nada além de me afastar para poder lhe lançar meu melhor olhar de isso-foi-golpe-baixo. Tento pensar em algo irritante para dizer, mas a verdade é que ele tem razão em me devolver a pergunta. O complicado de se estar com alguém que te conhece bem é que as palavras de um para o outro atingem todos os botões certos, sem necessidade de doses de ironia extra.
— Eu vou contar. Mas é tudo muito recente, não sei como dizer algo assim a ele.
— O mesmo aconteceu comigo. Não que eu pretendesse omitir isso para sempre. É só que... Era tão tentador deixar tudo como estava e agir como se minha vida tivesse começado quando a conheci.
— Não é? — Suspiro. — O que fez você mudar de ideia?
— Eu precisei, não estava brincando quando disse que tive que contar. Senti necessidade de que ela me conhecesse, que soubesse quem eu sou. Não me pareceria verdadeiro se não fosse assim. Até contar a ela, parecia que eu estava me dando pela metade quando, na realidade, era o contrário. Eu estava dando tudo o que podia a ela, exceto por essa parte. Então não pude mais mantê-la de fora.
Mais uma vez, não consigo evitar pensar em Eric. Mas não apenas em como eu gostaria que, dentre todas as pessoas, fosse ele a me conhecer por completo. O anseio por integridade é mesmo pungente. E por isso mesmo, o que me perturba de verdade são os receios dele. Em vez de querer que eu o conheça, ele tem vergonha e medo de que isso aconteça.
— Como a Júlia reagiu? — Tento voltar o foco para Beto, mas sei que ele percebeu que algo me incomoda.
— Ela ficou confusa. Achou que eu estava brincando. Mas, na verdade, acreditou desde o começo. Ela sabia que eu não ia mentir para ela. Depois quis saber de tudo, de cada detalhe. E me disse que me amava inexplicavelmente mais do que achava que seria capaz um momento antes. — Ele sorri com a lembrança das palavras de Júlia e eu tento imaginar outra voz dizendo isso. Sorrio também, mas deve parecer o gesto ambíguo que de fato é, porque Beto segura meu rosto e me olha nos olhos. — Com ele vai ser a mesma coisa, Clara. Se você o ama é porque ele é especial. O amor também é um desígnio de Deus e nós temos o privilégio de não nos confundir quanto a isso.
— Você não teve medo? Eu sei que nosso amor... esse tipo de amor é reservado apenas para as pessoas certas, mas... Podemos nos enganar. Somos humanos, afinal.
Beto balança a cabeça. Para qualquer pessoa seria perfeitamente admissível se enganar, experimentar, confundir as coisas, mas conosco nunca é assim. Temos muitos fardos, mas também alguns privilégios.
— Você sabe com seu corpo e com sua alma, não sabe? Soube desde que o viu.
Sim.
Eric é como uma espécie de déjà vu para mim, é como ler o fim do livro antes mesmo que ele seja escrito. E meu corpo... Quando ele me toca é como se soubéssemos, como se eu sempre tivesse existido à espera da pele dele.
Perfeito demais para ser verdade. Perfeito demais para não temer. Embora eu queira mandar o medo às favas e confiar no que sinto. Confiar nele, mesmo que não saiba nada a seu respeito.
— Eu cheguei a achar que estava apaixonada pelo Caio... — lembro, porque quero acreditar que não nos enganamos quanto a esse desígnio também, mas sentimentos humanos são confusos às vezes.
— Isso é porque seu coração o reconheceu. E pelo mesmo motivo ele acha que está apaixonado, porque sabe que encontrou algo, mas não entende ainda o quê. Vocês dois têm um laço como o que temos você e eu, mas há ainda mais coisas envolvidas. Tem o passado que pesa para você.
— Às vezes eu penso que enfiei os pés pelas mãos construindo esse passado. Acho que interferi no destino deles quando resolvi ficar com ela. Mas eu simplesmente não consegui ir embora, não senti que minha missão estava completa até ser tarde demais para ignorar o laço entre nós.
— Talvez você tenha se permitido confundir as coisas e sua missão fosse apenas acudir Marina naquela noite, reconciliá-la com a mãe no dia seguinte e ir embora até que ela e Caio precisassem de você de novo. Mas eu não acho que era isso, não consigo. Acho que você fez o que sentiu que era certo porque não podia ter sido diferente e, ao menos daquela vez, sua missão era mesmo ficar. E quem sabe não se trate do quanto você interferiu no destino deles, mas sim do quanto eles interferiram no seu. Talvez eles estivessem destinados a fazer parte de sua vida por mais tempo. Talvez isso seja sobre você.
Eu costumava achar impossível que alguém sempre soubesse o que dizer, mas Beto acabou com essa crença. Ele simplesmente sabe como acalmar meu coração, mas mais do que isso, ele me faz olhar para mim mesma com a humildade necessária para sonhar.
— Você acha mesmo? Acha que não é egoísmo meu querer que eles sejam minha família de novo, independente do destino que Caio escolher?
— Acho que se ele escolher permanecer humano, ainda assim vai precisar de você na vida dele. Acredito nisso, porque, francamente, eu não teria deixado você e sua mãe saírem da minha vida depois que as conheci. Sempre daria um jeito de voltar para vocês. No final, nós temos um ao outro acima de tudo e vocês sempre foram minha casa. Laços assim não se rompem. Dizem por aí que o nome disso é família — diz com seu jeito suave e brincalhão de sempre, então segura meu nariz entre os nós dos dedos até me obrigar a fazer força para me livrar e poder rir junto com ele.
Família. Meus pais. Alberto. Marina e Caio... Aqueles que a vida me deu e que Deus escolheu para mim. Não há como não lhe dar razão.
— Eu amo você, Beto. Já disse isso?
— Hoje ainda não. — Ele solta outra risada. — Mas eu sei.
Sim, ele sabe. E o conforto que há nisso é indescritível.
— Vou contar a verdade a ele. Ao Caio — disparo. — Não consigo mais esperar a melhor hora, nem sei se algo assim existe. Só sei que preciso que ele saiba o que significa para mim. Essa madrugada, quando Marina me ligou... Eu pensei que ia perdê-lo, Beto.
Com seu jeito protetor tão característico, meu mentor, meu irmão querido, segura meu rosto com uma das mãos e me puxa para si, como se me protegesse do mundo. Encostada em seu peito, sentindo seu amor, eu quase acredito que ele pode.
— Se você não estivesse ali naquela rua vazia, se não tivesse ouvido o Chamado a tempo de socorrê-lo, talvez o pior tivesse acontecido.
— Quanto a isso — ele fala cuidadosamente —, tem algo de que precisamos falar.
— O quê?
— Eu não... Bem, eu pensei que você ia deduzir sozinha agora que sabe que eu não sou mais como você...
Olho para ele espantada e observo suas sobrancelhas erguidas, esperando que eu perceba alguma coisa que parece muito óbvia, mas com a qual eu ainda não atinei. Até que finalmente eu ouço o “clique”.
— Você não deveria ter ouvido o Chamado — constato.
Alberto apenas balança a cabeça e ficamos mudos, pensando juntos numa explicação minimamente plausível.
— Talvez seja uma questão de linhagem — arrisco. — Nós já conversamos sobre isso outras vezes e acho que é mais do que uma teoria. Você sabe que eu sempre senti uma conexão grande com Sebastião, mesmo depois que ele voltou a ser humano, e a de vocês nunca se esgotou. Talvez Caio esteja ligado a você através de mim.
Sebastião era o mentor de Alberto. Há trinta anos, ele tinha renunciado ao Chamado e passado a viver como médico, marido e pai devotado, mas ainda parecia sentir quando Beto e eu estávamos tendo dificuldades de alguma ordem. Ele sempre nos telefonava ou escrevia, e essas comunicações pareciam coincidir com os momentos em que mais sentíamos a falta dele. De certa forma, me adaptei à ideia de que ele era uma espécie de avô torto para mim, embora sua aparência atual fosse de alguém com idade no máximo para ser meu pai.
— Falei com Sebastião hoje e ele pensa como você — diz Alberto. — Ele acha que o fato de minha renúncia ser recente também pode ter mantido nossa conexão forte. E coincidentemente ou não, eu estava muito perto do Caio, enquanto você estava do outro lado da cidade. Isso também é uma explicação. Mas, além disso, tem outras coisas... A rua não era tão deserta assim, outras pessoas podiam ter passado e chamado socorro a tempo, então talvez eu não estivesse ali necessariamente para ligar para a emergência, mas quem sabe...
A frase para pela metade e as palavras ficam dançando no ar à espera de que alguém as pegue, e é isso que quero fazer, porém não sei por onde puxá-las. Beto sabe que eu detesto quando ele faz isso, e eu sei que ele só faz quando não consegue evitar, então espero que ele encontre seu tempo para retomar o que quer que tenha a me dizer.
— Não quero me precipitar — ele diz finalmente —, mas acho que eu precisava estar ali e ver o que aconteceu. Ou pelo menos um de nós precisava.
Não gosto da expressão no rosto dele quando diz isso. Combinada com seus preâmbulos, faz parecer que ele está escolhendo muito as palavras e isso não é bom. Há uma certa inquietude em suas maneiras, no jeito como ele está cercando o assunto de declarações ambíguas desde que nos falamos hoje de manhã. Isso significa que sua mente está trabalhando em alguma coisa que ele acha importante dizer, mas contra a qual não quer me alarmar antes da hora. Já estou alarmada, porém. A calma quase imperturbável de Beto é desafiada por poucas coisas nesta vida, por isso seja lá o que for que o incomoda, certamente vai ser difícil de ouvir.
— Eu não entendo. Se você não pôde impedir o acidente e nem ver quem dirigia a moto, por que seria tão importante ver o que aconteceu?
— Porque eu não acho que tenha sido acidente — ele diz, depois de respirar fundo. — A pessoa que atropelou o Caio parecia querer fazer isso.
O ar me foge por um momento. Na verdade, acho que tudo em mim fica momentaneamente suspenso enquanto tento processar as palavras que ouvi. Beto não diria uma coisa dessas se não estivesse praticamente certo do que viu, mas mesmo assim não faz sentido. Caio não tem inimigos, mal consigo conceber a ideia disso. Para além do potencial que existe nele, ele é um anjo de fato, no sentido cotidiano da palavra. O tipo de pessoa com conduta irrepreensível. Quem poderia querer machucar um...
De repente uma noção bizarra se forma em minha mente. Algo tão inédito para mim que quase cheguei a achar que não era real.
— Foi um deles! — arquejo, pondo a mão sobre a boca como se fosse pecado formular a ideia.
— Eu acho que sim. E não pretendo sair de perto de vocês enquanto não esclarecermos isso.
Inimigos naturais. Nós poderíamos chamá-los assim se os considerássemos dessa maneira, mas para nós são apenas almas perdidas. Infelizmente, para eles isto é uma guerra. E nós somos os adversários. Como nos recusamos a esse papel, simplesmente ficamos longe sempre que possível, quando já é tarde demais para salvá-los. E pelo resto do tempo, a Providência Divina nos protege deles. Normalmente.
— Estamos juntos nessa, Estrela Clara. Seja o que for, vamos enfrentar juntos. Estou aqui agora — Beto me consola.
— E quanto ao seu trabalho? E a Júlia?
— Estou de férias e a Júlia quer mesmo te conhecer quando tiver uma folga. Daremos um jeito nisso. Só preciso saber que você está em segurança. E Caio também. Acho que tenho um neto agora, ao que parece. Preciso cuidar da minha família.
Rimos juntos, apesar da tensão que paira no ar. Sei que não há motivo para pânico. Apesar do que aconteceu com Caio, nossos instintos costumam ser suficientes para nos manter em segurança, e talvez quem fez isso já esteja longe. Eles não costumam ficar muito tempo por perto, nossa presença os perturba de formas particulares que mal consigo entender, mas que são a defesa extra que o Criador nos proporcionou. Beto só precisa ficar tempo suficiente para se certificar disso.
Mesmo assim, estou muito feliz que ele esteja aqui.
— Que bom que você está em casa, Beto — digo, abraçando-o forte.
— Sempre que você precisar, irmãzinha — ele responde quando retribui meu aperto.

sábado, 14 de novembro de 2015

Capítulo Bônus (paralelo 33) ELS

Capítulo Bônus (Paralelo ao 33) - Dona Onça

Por Patrícia Moraes

It's the eye of the tiger
It's the thrill of the fight
Rising up to the challenge of our rival
And the last known survivor
Stalks his prey in the night
And he's watching us all
With the eye of the tiger

(Eye of the Tiger – Survivor)

            Patrícia Moraes não se apaixona, eu já disse isso mil vezes. Assim como eu já disse que esta coisa de amor é para os fracos, porque, convenhamos, se você se dá mal uma vez e não aprende, você só pode ser fraca da cabeça! E eu aprendi. Isso eu garanto.
            Não é que eu não acredite no amor e coisa e tal, porque algumas pessoas nasceram com sorte nesta vida, mas eu só vou acreditar na minha própria sorte quando ela for tão real e palpável que possa lhe dar um belo beijo de língua. Enquanto isso, serve beijar os peguetes bonitinhos que andam desprotegidos por aí. E às vezes dar uns amassos mais sérios também. Por uma noite ou duas. Mais do que isso é pedir para me dar mal de novo, e eu já disse que aprendi minha lição.
            Acho que isso implica dizer que já tive meu momento de fraqueza, então deixa eu me justificar, pelo menos um pouquinho: eu só tinha 15 anos. E nem todo mundo é esperto com 15 anos. Eu, pelo menos, não era.
            A vantagem e a desvantagem de se nascer numa família grande é que você nunca está sozinha, mas para uma adolescente isso é o paraíso, porque equivale a dizer que você tem uma turma de amigos que sempre estiveram e sempre estarão ao seu lado, mesmo se você não for exatamente popular. E eu era meio esquisita, pelo menos era o que eu achava. Sei agora que era só a insegurança típica da idade, mas o aparelho dentário, os óculos e as espinhas não me deixavam pensar diferente quando todas as minhas amigas pareciam não passar por nada disso.
            Toda vez que eu saía com elas, era sempre a que ficava sozinha, deixada de lado depois que cada uma encontrava o garoto de quem estava a fim e se arranjava com ele. Aí eu corria para os meus primos. Invariavelmente. Até que em uma noite qualquer eu não fiquei sozinha.
            Tinha este cara, amigo do meu primo mais velho, e que eu já tinha visto uma ou outra vez. Ele até já tinha ficado com uma das minhas amigas, a mais bonita, que eu secretamente invejava, porque, sim, eu já fui tonta o suficiente a esse ponto. Alguns dias antes, nós tínhamos nos encontrado com o resto do pessoal no clube de campo da cidade para aproveitar o calor na piscina, e acho que ele gostou do que viu, porque quando me encontrou em uma festa veio direto até mim, em meio a todas as meninas que eu achava mais bonitas do que eu, e me chamou para dançar. É claro que eu aceitei, porque o maldito era gato e eu já estava cansada de terminar a noite sentada num cantinho, enquanto esperava uma das minhas primas beijar todos os caras da cidade antes de me dar carona para casa. E aí, o resto você já pode imaginar.
            Minha família não gostou nada quando ficou sabendo — e é claro que quando cheguei em casa até o cachorro do vizinho já estava informado —, porque o meu “Romeu” era mais velho, tinha largado a escola e não tinha nenhum plano para o futuro que fosse mais promissor do que vadiar pelo bairro. Desnecessário dizer que eu me senti a própria Julieta e fui em frente, achando que eles estavam sendo injustos e que eu tinha que lutar pelo meu amor.
            Eu nunca li Romeu e Julieta, para falar a verdade, mas sei que acaba mal, todo mundo sabe, embora eu ache que a minha história tenha tido um final infeliz por motivos bem diferentes. Que eu saiba, o Romeu de Shakespeare era completamente apaixonado pela Julieta, enquanto o meu só estava de sacanagem mesmo.
            É. Exatamente isso. Ele só estava de sacanagem. E depois que eu permiti que ele fizesse todas as que teve vontade, mesmo sem estar preparada para nada daquilo, ele simplesmente enjoou de mim e me deu o fora, espalhando um monte de besteiras cretinas para os amiguinhos imaturos e cruéis. Besteiras que chegaram aos ouvidos do meu primo e que ele, mesmo depois de ter a consideração de dar uma surra no maldito, fez a “gentileza” de compartilhar com minha família. Depois disso, minha avó me passou um sermão mais longo que o da montanha, controlou os danos com meus pais e me levou ao médico para garantir que, mesmo eu tendo usado camisinha, estava tudo bem.
            E foi assim que terminou minha tragédia nada shakespeariana.
            Olhando para mim agora ninguém diria, mas custou muito para eu me recuperar dessa merda toda. Para poder sair por aí com o nariz empinado, achando que eu valia a pena. Foi minha avó, acima de todas as outras pessoas, que não me deixou cair nunca. Ela me daria uma surra se eu não acreditasse no que ela me dizia todas as manhãs: que eu valia o mundo e era tão boa quanto qualquer outra pessoa. Que eu era tão forte quanto ela.
            “Baixa autoestima é uma fraqueza que as mulheres não podem se permitir, Patrícia. Quando você não valoriza a si mesma, atrai gente que concorda com isso. ”
            Sim, vovó. Acho que é bem por aí mesmo. E é por causa de sua mão sempre estendida diante de mim que eu não vou ser fraca nunca mais.
            É nisso que estou pensando enquanto espero pela Clara na recepção do hospital: que eu tenho que ser forte. Fico repetindo a frase sem parar na cabeça até ela parecer estranha, como se tivesse se esvaziado de sentido. Melhor do que pensar no porquê de eu estar assim.
            Não que tenha alguma coisa de estranho em sentir aflição por um amigo. Quer dizer, eu fiquei em pânico quando a Clara foi atacada lá no bar. É só que... Eu não sei se devia pensar em Teo tanto assim. Afinal de contas, ele é só um cara com quem eu queria ficar e que deixei de lado quando percebi que estava a fim da minha amiga. Só isso. Porque ele era lindo demais — e gentil e inteligente e bondoso, tudo isso em demasia —, mas não era o único cara do mundo.
            Eu só queria que ele não se magoasse quando ficou óbvio que não ia rolar com a Clara, porque ele era gente boa e eu não suportava a ideia de vê-lo triste. Nada de mais. Eu gosto de cuidar das pessoas, mas não fico pensando nelas o dia todo depois. E o Teo... Eu nunca deixei de querer que acontecesse alguma coisa entre nós. Não totalmente. Mas só uns pegas. Não era para ele ter virado meu amigo também. Nem para eu continuar por perto quando os amassos pretendidos pareciam fora de questão.
            Eu me sinto tão idiota! E fraca. Me sinto fraca.
            É nessa hora que a Clara aparece e eu me agarro a ela num abraço apertado, querendo me sentir menos boba, menos frágil. O que acontece em questão de segundos.
Tem alguma coisa com essa menina. Ela tem esse efeito sobre as pessoas. Calmante. Fortalecedor. E ela nem faz nada para ser assim. Pelo contrário, parece nem perceber. Tem este jeitinho de tonta que faz a gente querer protegê-la, como se ela não fosse capaz de cuidar de si mesma. Aí, quando você vê, é ela quem está cuidando de você.
            — Você chegou antes de mim.
            Reparo no crachá pendurado na blusa dela, igual ao que eu acabei de receber, mas mal tive tempo de enfiar de qualquer jeito no bolso do jeans quando a vi chegar. E também no fato de que ela veio lá de dentro, de onde ficam os quartos. Por que será?
            — Não aguentei esperar, por causa de uma coisa que eu ainda não te contei. É que... Bom, na verdade, eu vim ver a mãe do Ca... do Teo.
            Ca-Teo. Ela não repara, mas o chama assim com frequência. Eu sei por que, mas não comento nada, já que parece óbvio que essa é outra das tantas coisas que ela tenta esconder de mim e eu percebo de qualquer maneira. Sei que quando ninguém está por perto ela o chama pelo nome de batismo, aquele pelo qual quase ninguém o conhece. Só não sei por que motivo misterioso ela insiste nisso. Teo gosta de ser chamado pelo apelido porque o faz se sentir mais próximo do pai, como se ele sempre tivesse tido o sobrenome do homem de quem tanto se orgulha e os anos sem ele não existissem. Está aí uma coisa que eu sei e a Clara não. Rá!
            Alguém me diz por que eu gosto tanto dessa sensação, por favor?
            Mas é aí que eu paro e penso no que ela acabou de dizer. Tipo, como é que é?
            — A mãe? — pergunto, porque por um instante acho que minha Branquinha está alucinando.
            — Sim. Quando ela me ligou eu percebi que nos conhecíamos. Ela é psicóloga, como o Teo deve ter te contado, e eu já me tratei com ela. Eu gostava muito dela na época. Fiquei lá em casa pensando e acabei decidindo vir antes do horário de visitas, para ver se ela precisava de alguma coisa.
             De repente, estou me sentindo como se estivesse num capítulo de novela. Sério isso, produção? Ela tinha que conhecer a mãe do cara e ainda ter um laço com ela? Eu não estou com ciúmes nem nada, mas...
            — Que coincidência estranha.
            — É.
            Ela para por aí, como se fosse a Ms. Pac-Man[1] e já tivesse comido todas as palavras do labirinto. Às vezes a Clara conta umas histórias esquisitas que me deixam na dúvida. Não é como se eu pudesse dizer que é mentira. É até bem plausível, para ser sincera. Mas tem alguma coisa aí. Alguma coisa que eu não sei explicar. Em todo caso, prefiro sempre apostar que ela não mentiria para mim ou que nunca faria nada por mal. Não consigo evitar confiar nela. E também não foi para ficar tentando entendê-la que vim até aqui. Se ela chegou mais cedo, pelo menos pode me preparar o ânimo para o que vou encontrar.
            — E como ele está? Você já viu o Teo, não viu?
            — Vi. Ele está bem. Está acordado e só se queixou de um pouquinho de dor. Está esperando por você, com medo de levar uma bronca.
            Parece mesmo algo que o Teo diria. Ele acha que sou brava. Vive me chamando de Dona Onça e dizendo que eu dou bronca em todo mundo. Até parece! Eu não sou assim. Quem é esse moleque idiota para achar que me conhece? Só porque passamos umas boas horas conversando direto nos últimos dias? Tipo, até amanhecer o dia e tal? Se isso fizesse a gente conhecer bem alguém eu não teria me espantado tanto quando soube que ele sofreu o acidente porque encheu a cara! Idiota. Talvez eu devesse mesmo ficar brava com ele. Exceto que o que eu quero de verdade, lá no fundo, é exatamente o contrário disso.
            Merda!
            — Vamos lá, então — eu digo, mas aí me imagino lá dentro com ele e estaco no lugar.
            — Paty? O que foi? — Clara pergunta depois de dar alguns passos e perceber que não estou acompanhando.
            Ah, nada. É só que eu quero me jogar nos braços de um imbecil e chorar por causa do susto que ele me deu. Mas eu não posso fazer isso, porque não sou a namorada fragilzinha dele e nem quero ser. Porque ele é só mais uma droga de um moleque inconsequente de carinha bonita que vai me decepcionar. E porque, apesar das evidências, eu não acredito nisso de verdade e a grande idiota aqui sou eu.
            — Eu não sei como agir. Estou muito puta com ele.
            Ou comigo mesma. Sei lá.
            — Eu entendo, mas não acho que este seja o melhor momento para...
            — Eu fiquei com medo — confesso, porque, exceto pelo próprio Teo e por minha avó, Clara é a única pessoa com quem tenho vontade de me abrir. — Droga, fiquei com muito medo! E quero dar na cara dele por isso.
            Ela olha para mim com pena, mas no rosto dela não fica tão ultrajante quanto possa parecer. Esse tipo de expressão fica muito natural no seu rostinho de anjo.
            — Respira, Paty. Vai ficar tudo bem.
            Olho no fundo de seus olhos enquanto ela segura meu rosto entre as mãos e me lembro: quando você percebe, é ela quem está cuidando de você.
            — Vai dar tudo certo — ela insiste e depois me dá um abraço. Acho que eu estava mesmo precisando disso, porque me acalma e em pouco tempo me sinto pronta para enfrentar o idiota de cara bonita.
            Faço um sinal para ela e me deixo conduzir até o quarto dele, onde somos recebidas pela linda e espantosamente jovem mãe do imbecil.
            — Então você é a famosa e temível Paty — ela brinca. — Entre aqui, querida. Obrigada por ter vindo.
            Droga, eu tinha me esquecido dela. E certamente não esperava me importar com o fato de ela ter gostado de mim.
            — Vou deixá-los à vontade para conversar — diz a mulher. — Preciso ligar para meu marido.
            Depois disso, ela sai e eu fico ali, sem saber o que fazer, com medo de chegar perto dele e lhe sentar a mão na cara ou — o que seria mil vezes pior — cair no choro quando ele me olhar nos olhos e perceber o que estou sentindo. Mas Clara me arrasta até lá de qualquer jeito, apesar de meus medos tontos que ela certamente já sacou.
            — Oi. Como você está? — Opto pela abordagem mais neutra. Alguma coisa segura entre o choro e a agressividade, mas me sinto estranha na mesma hora.
            Como assim, como ele está, gênio? Atropelado, oras! É assim que ele está.
            — Bem — ele responde, apesar disso. — Paty...    
            — Oi?
            Ele tenta respirar fundo, meio que procurando as palavras, mas parece que fazer isso lhe causa dor e eu quase fraquejo em minha resolução de parecer durona. Porque, sim, eu decidi isso nos últimos segundos, mas acho que não está funcionando tão bem quanto eu gostaria.
            — Você está brava? Porque eu sei que mereço, mas não gosto quando você fica chateada, menos ainda se eu for o culpado
            Ah, não! Não me venha ficar todo fofo para cima de mim. Você não tem esse direito.
            — Não estou brava. Por que estaria? — Neutra. Comporte-se de maneira neutra. — Só vim mesmo fazer uma visita, ver como você está.
            — Certo. É que eu achei que... Bom, você sempre me dá bronca quando eu faço alguma besteira. E desta vez foi uma das grandes.
            De novo com essa história de que eu sempre dou bronca. Parece até que está querendo que eu diga alguma coisa. Que carência! Quem vê pensa que eu me comporto como se fosse mãe dele! Só não gosto de ver meus amigos se prejudicarem sem motivo, então quando vejo que estão agindo feito burros empacados eu digo alguma coisa. Não tem nada de mau nisso. Tem?
            — Ninguém está chateado com você, Teo — Clara intervém com aquele jeito de sempre pôr panos quentes em tudo. — É só que todos nós ficamos muito preocupados.
            — Desculpe — ele responde constrangido. — Eu sei que é até estranho para um cara da minha idade e que, ainda por cima, trabalha em bares, mas eu não estou acostumado a beber. Aí acabei perdendo a medida. Eu estava chateado e achei que não tinha problema descontrair um pouco.
            Chateado. Sei muito bem por quê. Já faz uns dias que ele está remoendo a ideia de que a Clara e o Eric são oficialmente um casal agora. Mas, sério, gente, existe coisa mais imatura do que afogar as mágoas em álcool?
            — É, mas descontrair um pouco não significa bancar o ridículo. — Não consigo segurar essa, mesmo com a Clara me dando aquele olhar de censura e Teo se encolhendo como se eu tivesse lhe dado o tapa que eu queria.
            — Aí está a Paty que eu conheço — ele diz, com um sorrisinho meio constrangido brotando no canto da boca.
            Só falta ele dizer: “Não falei?”
            — Foi mal.
            — Não, não foi mal. Vem aqui, por favor — ele me chama e eu fico meio sem entender.
            Como assim, vem aqui? Eu já estou do lado dele! Mas então ele puxa meu braço de leve, como se quisesse que eu me abaixasse e ficasse mais perto ainda. Como se quisesse... me abraçar!
            Ai, caramba.
            Quando consigo chegar a essa conclusão já estou nos braços dele. É o abraço mais desajeitado do mundo, com ele deitado e eu de pé, inclinada sobre ele e tentando tomar cuidado com o braço onde está o soro, além de desviar de toda aquela parafernália que está perto do leito. É basicamente meu rosto tocando o dele enquanto ele enlaça meu pescoço de um jeito meio torcido, mas é... bom!
            Bom demais, meu Deus! Preciso sair daqui, mas cadê a força para isso?
            — Desculpa, Paty. De verdade. Você tem sido tão legal comigo e eu não dei à sua amizade o valor que merecia.
            O fato de os lábios dele estarem perto demais do meu ouvido ajuda bastante, mas a verdade é que só as palavras, mesmo que tivessem sido ditas a um quilômetro de distância, já teriam bastado para me amolecer. Ele faz um carinho em meu cabelo e me solta, tentando se endireitar. Acho que a posição estava meio incômoda para ele, embora para mim estivesse boa o suficiente. Clara se apressa para ajudá-lo a se ajeitar e me dá um pouco de tempo para me recompor.
            Graças a Deus!
            — E para seu governo — ele completa —, eu gosto quando você me chama a atenção. Me sinto importante. Não me oponho que meus amigos cuidem de mim.
            — É verdade — Clara confirma. — Paty faz a gente se sentir cuidado, não é?
            Teo assente e os dois ficam trocando olhares como se eu não estivesse ali. Reparo agora que eles têm o mesmo jeito de me desarmar com essas palavrinhas doces e a atitude humilde. E a mesma expressão terna e tranquilizadora no rosto também. Parece até que foram feitos um para o outro. Sinto um pouquinho de vergonha de ficar feliz pelo Eric-chefinho ser tesudo demais, mas ainda bem que ele existe, porque... Opa!
            Seja forte, Patrícia! Ele mesmo disse que te considera uma amiga.
            — Mas, bom... — Limpo a garganta num gesto super elegante e sutil. Ninguém nem diria que estou tentando mudar de assunto e disfarçar meu constrangimento.  — Você não me disse como está se sentindo.
            — Eu estou legal. Melhor agora que vocês estão aqui. É muito bom ter um pouco de companhia para a minha mãe poder relaxar um pouco, porque eu fico chateado de vê-la tão preocupada. Nunca mais vou beber nada, só pra não ter que ver ela e meu pai sofrerem desse jeito de novo. E vou ficar bem esperto com algumas pessoas também... — Depois de ter disparado a falar, ele faz uma pausa, pensativo. —Pelo menos eu não usei as outras coisas que Esther me ofereceu... Não que eu estivesse considerando, claro, mas ela bem que insistiu. Desculpe por não ter ouvido você, Clara. Eu não me lembro muito bem do que houve ontem, mas sei que não fui nada legal.
            — Tudo bem — ela diz, mas seus olhos estão arregalados de pânico e seu rosto está vermelho. Parece que existem alguns detalhes que ela deixou de fora da história que me contou.
            — Ahn, quem? Você estava com...? E ela te ofereceu...? — Quando finalmente registro devidamente as palavras, parece que engoli meio quilo de pregos. — Você. Fez. O quê?
            Tudo bem, esse olhar de mosca morta pra cima da Clara eu posso aguentar. Ela é minha amiga e a melhor pessoa que conheço fora a minha avó. Eu aceitaria perdê-lo para ela a qualquer hora se achasse que estava mesmo sobrando na situação. Mas Esther? A vadia-morena-de-voz-sussurrante-Esther? Ah, mas não mesmo!
            — Escuta aqui, onde você estava com a cabeça, hein?
            Percebo que Clara está me segurando sutilmente, como se eu fosse algum tipo de onça brava que fosse pular no pescoço de um coitado que está de cama com as costelas quebradas. Isso me deixa mais irritada ainda. Porque eu acho que até seria capaz do jeito que estou me sentindo agora.
            — Eu... Só queria me divertir um pouco... Ela estava sendo legal e é tão gata. Meus amigos...
            — Ah, deixa eu adivinhar: seus amigos ficaram te incentivando? Acharam bonito te jogar numa cilada, né? Só pode. Ou isso ou são um bando de manés. Se algum de vocês fosse tentar comer o peixão ia sair vomitando piranha, especialmente um cara metido a bonzinho feito você. Porque deixa eu te falar uma coisa, Teo, a vadia não é para o bico de vocês, moleques tontos, não! E você vai ver o quanto ela vai ficar gata depois que eu estourar a cara dela!
            — Calma, Paty.
            — Que calma o quê, Clara! A vagabunda fica querendo pegar nossos homens agora e você fica aí pedindo calma! Já estava devendo uma peruca nova para o travesti que é meu amigo desde o dia me que aquela piranha te maltratou no On the Rocks. E vai ser hoje mesmo que eu vou providenciar uma. A Valeska vai adorar o cabelão escuro.
            Quando olho para o sorrisinho mal disfarçado dela percebo a besteira que fiz. Ela não está rindo da história da peruca, mas sim do meu ato falho. “Nossos homens”. O que é que eu estou pensando com esse discurso inflamado     fora de controle? Ai, caramba! Teo está com os olhos arregalados.
            — Menos mal — digo para ele, porque já é tarde para voltar atrás. — Pelo menos agora você já sabe que eu estou no páreo.
            Saio pisando firme, porque se ficar mais um segundo ali sou capaz de devolver meu almoço. Clara vem atrás de mim e me alcança depois de um tempo, já fora do hospital.
            — Paty, você está bem?
            — Ah... Não?
            — Claro — ela diz, toda calminha, carinhosa e ainda rosinha demais para o meu gosto. — Pergunta idiota a minha. Mas, bem, se ajuda em alguma coisa, acho que ele gostou de saber.
            Levanto os olhos para ela, morrendo para perguntar por que ela acha isso, mas com vergonha de fazê-lo.
            — Fiz um show lá dentro, não foi?
            — É, foi interessante. Mas ele estava sorrindo no final.
            — Deve ser por causa da história da peruca.
            — Sorrindo, Paty. De alegria. Não dando risada. Acho que ele não tinha percebido que você estava a fim. Se ele for um pouquinho igual a mim é meio lento para perceber essas coisas, mas agora ele vai começar a olhar tudo de outra perspectiva.
            Talvez ele seja mesmo parecido com ela nesse aspecto, não duvido. Na realidade, consigo perceber muitas coisas em que eles são parecidos. Talvez seja por isso que me sinto tão atraída — ainda que de maneiras diferentes — pelos dois. Mas a verdade é que Teo também percebe isso. Do mesmo jeito que deve perceber que eu sou muito diferente dele com toda essa “delicadeza” que me é peculiar, como já me disseram por aí.
            — Não sei, Clara. Ele ainda gosta de você.
            — Confie em mim. Essa ilusão não vai durar muito. Ele vai entender logo que somos só amigos.
            Ela parece certa demais disso e não tem razão nenhuma para estar assim. Mas por causa do mesmo instinto que me faz confiar inexplicavelmente nela toda vez, as palavras me enchem de esperança.
            — Como?
            — A mãe dele gostou de você — Engraçado que a Clara acha que eu não percebo quando ela desvia dos assuntos descaradamente. Eu percebo toda vez, é claro. Não sou boba. Mas respeito o silêncio dessa minha amiga estranha mais do que ela imagina. — Eu conheço Marina. Você tem uma aliada nela. Duas se contar comigo.
            De qualquer forma, o que ela diz mexe em alguma coisa dentro de mim. Pelo visto, minha sorte talvez se apresente num futuro próximo para o nosso beijo francês. Com direito a muita língua, se Deus quiser, porque agora eu resolvi encarar essa história de frente, e quando faço isso eu resolvo as coisas. O amor só é para os fracos quando a pessoa envolvida não é forte como eu. Além do mais, eu nunca disse que não podia mudar de ideia pelo cara certo. E até onde meu coração anda dizendo, Teo é esse cara.
            Respiro fundo e me sinto aliviada por finalmente assumir isso.
            Pois é. Patrícia Moraes não se apaixona. Sempre.





[1] Ms. Pac-Man é a versão feminina de um jogo muito popular desde a década de 80. Nele, a personagem percorre um labirinto e tem que ir comendo as frutinhas que aparecem no caminho.

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