Capítulo Bônus (Paralelo ao 33) - Dona Onça
Por Patrícia Moraes
It's
the eye of the tiger
It's
the thrill of the fight
Rising
up to the challenge of our rival
And
the last known survivor
Stalks
his prey in the night
And
he's watching us all
With
the eye of the tiger
(Eye of the Tiger – Survivor)
Patrícia
Moraes não se apaixona, eu já disse isso mil vezes. Assim como eu já disse que
esta coisa de amor é para os fracos, porque, convenhamos, se você se dá mal uma
vez e não aprende, você só pode ser fraca da cabeça! E eu aprendi. Isso eu
garanto.
Não é que eu não acredite no amor e
coisa e tal, porque algumas pessoas nasceram com sorte nesta vida, mas eu só
vou acreditar na minha própria sorte quando ela for tão real e palpável que
possa lhe dar um belo beijo de língua. Enquanto isso, serve beijar os peguetes bonitinhos que andam
desprotegidos por aí. E às vezes dar uns amassos mais sérios também. Por uma
noite ou duas. Mais do que isso é pedir para me dar mal de novo, e eu já disse
que aprendi minha lição.
Acho que isso implica dizer que já
tive meu momento de fraqueza, então deixa eu me justificar, pelo menos um
pouquinho: eu só tinha 15 anos. E nem todo mundo é esperto com 15 anos. Eu,
pelo menos, não era.
A vantagem e a desvantagem de se
nascer numa família grande é que você nunca está sozinha, mas para uma
adolescente isso é o paraíso, porque equivale a dizer que você tem uma turma de
amigos que sempre estiveram e sempre estarão ao seu lado, mesmo se você não for
exatamente popular. E eu era meio esquisita, pelo menos era o que eu achava.
Sei agora que era só a insegurança típica da idade, mas o aparelho dentário, os
óculos e as espinhas não me deixavam pensar diferente quando todas as minhas
amigas pareciam não passar por nada disso.
Toda vez que eu saía com elas, era
sempre a que ficava sozinha, deixada de lado depois que cada uma encontrava o
garoto de quem estava a fim e se arranjava com ele. Aí eu corria para os meus
primos. Invariavelmente. Até que em uma noite qualquer eu não fiquei sozinha.
Tinha este cara, amigo do meu primo
mais velho, e que eu já tinha visto uma ou outra vez. Ele até já tinha ficado
com uma das minhas amigas, a mais bonita, que eu secretamente invejava, porque,
sim, eu já fui tonta o suficiente a esse ponto. Alguns dias antes, nós tínhamos
nos encontrado com o resto do pessoal no clube de campo da cidade para
aproveitar o calor na piscina, e acho que ele gostou do que viu, porque quando
me encontrou em uma festa veio direto até mim, em meio a todas as meninas que
eu achava mais bonitas do que eu, e me chamou para dançar. É claro que eu
aceitei, porque o maldito era gato e eu já estava cansada de terminar a noite
sentada num cantinho, enquanto esperava uma das minhas primas beijar todos os
caras da cidade antes de me dar carona para casa. E aí, o resto você já pode
imaginar.
Minha família não gostou nada quando
ficou sabendo — e é claro que quando cheguei em casa até o cachorro do vizinho
já estava informado —, porque o meu “Romeu” era mais velho, tinha largado a
escola e não tinha nenhum plano para o futuro que fosse mais promissor do que
vadiar pelo bairro. Desnecessário dizer que eu me senti a própria Julieta e fui
em frente, achando que eles estavam sendo injustos e que eu tinha que lutar
pelo meu amor.
Eu nunca li Romeu e Julieta, para
falar a verdade, mas sei que acaba mal, todo mundo sabe, embora eu ache que a minha
história tenha tido um final infeliz por motivos bem diferentes. Que eu saiba,
o Romeu de Shakespeare era completamente apaixonado pela Julieta, enquanto o
meu só estava de sacanagem mesmo.
É. Exatamente isso. Ele só estava de
sacanagem. E depois que eu permiti que ele fizesse todas as que teve vontade,
mesmo sem estar preparada para nada daquilo, ele simplesmente enjoou de mim e
me deu o fora, espalhando um monte de besteiras cretinas para os amiguinhos
imaturos e cruéis. Besteiras que chegaram aos ouvidos do meu primo e que ele, mesmo
depois de ter a consideração de dar uma surra no maldito, fez a “gentileza” de
compartilhar com minha família. Depois disso, minha avó me passou um sermão
mais longo que o da montanha, controlou os danos com meus pais e me levou ao
médico para garantir que, mesmo eu tendo usado camisinha, estava tudo bem.
E foi assim que terminou minha
tragédia nada shakespeariana.
Olhando para mim agora ninguém
diria, mas custou muito para eu me recuperar dessa merda toda. Para poder sair
por aí com o nariz empinado, achando que eu valia a pena. Foi minha avó, acima
de todas as outras pessoas, que não me deixou cair nunca. Ela me daria uma surra
se eu não acreditasse no que ela me dizia todas as manhãs: que eu valia o mundo
e era tão boa quanto qualquer outra pessoa. Que eu era tão forte quanto ela.
“Baixa autoestima é uma fraqueza que
as mulheres não podem se permitir, Patrícia. Quando você não valoriza a si
mesma, atrai gente que concorda com isso. ”
Sim,
vovó. Acho que é bem por aí mesmo. E é por causa de sua mão sempre estendida
diante de mim que eu não vou ser fraca nunca mais.
É nisso que estou pensando enquanto
espero pela Clara na recepção do hospital: que eu tenho que ser forte. Fico
repetindo a frase sem parar na cabeça até ela parecer estranha, como se tivesse
se esvaziado de sentido. Melhor do que pensar no porquê de eu estar assim.
Não que tenha alguma coisa de
estranho em sentir aflição por um amigo. Quer dizer, eu fiquei em pânico quando
a Clara foi atacada lá no bar. É só que... Eu não sei se devia pensar em Teo
tanto assim. Afinal de contas, ele é só um cara com quem eu queria ficar e que
deixei de lado quando percebi que estava a fim da minha amiga. Só isso. Porque
ele era lindo demais — e gentil e inteligente e bondoso, tudo isso em demasia —,
mas não era o único cara do mundo.
Eu só queria que ele não se magoasse
quando ficou óbvio que não ia rolar com a Clara, porque ele era gente boa e eu
não suportava a ideia de vê-lo triste. Nada de mais. Eu gosto de cuidar das
pessoas, mas não fico pensando nelas o dia todo depois. E o Teo... Eu nunca
deixei de querer que acontecesse alguma coisa entre nós. Não totalmente. Mas só
uns pegas. Não era para ele ter
virado meu amigo também. Nem para eu continuar por perto quando os amassos
pretendidos pareciam fora de questão.
Eu
me sinto tão idiota! E fraca. Me sinto fraca.
É
nessa hora que a Clara aparece e eu me agarro a ela num abraço apertado,
querendo me sentir menos boba, menos frágil. O que acontece em questão de
segundos.
Tem alguma coisa com essa menina. Ela tem esse efeito sobre as pessoas.
Calmante. Fortalecedor. E ela nem faz nada para ser assim. Pelo contrário,
parece nem perceber. Tem este jeitinho de tonta que faz a gente querer
protegê-la, como se ela não fosse capaz de cuidar de si mesma. Aí, quando você
vê, é ela quem está cuidando de você.
— Você chegou antes de mim.
Reparo no crachá pendurado na blusa
dela, igual ao que eu acabei de receber, mas mal tive tempo de enfiar de
qualquer jeito no bolso do jeans quando a vi chegar. E também no fato de que
ela veio lá de dentro, de onde ficam os quartos. Por que será?
— Não aguentei esperar, por causa de
uma coisa que eu ainda não te contei. É que... Bom, na verdade, eu vim ver a
mãe do Ca... do Teo.
Ca-Teo. Ela não repara, mas o chama
assim com frequência. Eu sei por que, mas não comento nada, já que parece óbvio
que essa é outra das tantas coisas que ela tenta esconder de mim e eu percebo
de qualquer maneira. Sei que quando ninguém está por perto ela o chama pelo
nome de batismo, aquele pelo qual quase ninguém o conhece. Só não sei por que
motivo misterioso ela insiste nisso. Teo gosta de ser chamado pelo apelido
porque o faz se sentir mais próximo do pai, como se ele sempre tivesse tido o
sobrenome do homem de quem tanto se orgulha e os anos sem ele não existissem. Está
aí uma coisa que eu sei e a Clara não. Rá!
Alguém
me diz por que eu gosto tanto dessa sensação, por favor?
Mas
é aí que eu paro e penso no que ela acabou de dizer. Tipo, como é que é?
— A mãe? — pergunto, porque por um instante
acho que minha Branquinha está alucinando.
— Sim. Quando ela me ligou eu
percebi que nos conhecíamos. Ela é psicóloga, como o Teo deve ter te contado, e
eu já me tratei com ela. Eu gostava muito dela na época. Fiquei lá em casa
pensando e acabei decidindo vir antes do horário de visitas, para ver se ela
precisava de alguma coisa.
De repente, estou me sentindo como se
estivesse num capítulo de novela. Sério isso, produção? Ela tinha que conhecer
a mãe do cara e ainda ter um laço com ela? Eu não estou com ciúmes nem nada,
mas...
— Que coincidência estranha.
— É.
Ela para por aí, como se fosse a Ms.
Pac-Man[1] e
já tivesse comido todas as palavras do labirinto. Às vezes a Clara conta umas
histórias esquisitas que me deixam na dúvida. Não é como se eu pudesse dizer
que é mentira. É até bem plausível, para ser sincera. Mas tem alguma coisa aí.
Alguma coisa que eu não sei explicar. Em todo caso, prefiro sempre apostar que
ela não mentiria para mim ou que nunca faria nada por mal. Não consigo evitar
confiar nela. E também não foi para ficar tentando entendê-la que vim até aqui.
Se ela chegou mais cedo, pelo menos pode me preparar o ânimo para o que vou
encontrar.
— E como ele está? Você já viu o
Teo, não viu?
— Vi. Ele está bem. Está acordado e
só se queixou de um pouquinho de dor. Está esperando por você, com medo de
levar uma bronca.
Parece mesmo algo que o Teo diria.
Ele acha que sou brava. Vive me chamando de Dona Onça e dizendo que eu dou
bronca em todo mundo. Até parece! Eu não sou assim. Quem é esse moleque idiota
para achar que me conhece? Só porque passamos umas boas horas conversando
direto nos últimos dias? Tipo, até amanhecer o dia e tal? Se isso fizesse a
gente conhecer bem alguém eu não teria me espantado tanto quando soube que ele
sofreu o acidente porque encheu a cara! Idiota. Talvez eu devesse mesmo ficar
brava com ele. Exceto que o que eu quero de verdade, lá no fundo, é exatamente
o contrário disso.
Merda!
— Vamos lá, então — eu digo, mas aí
me imagino lá dentro com ele e estaco no lugar.
— Paty? O que foi? — Clara pergunta
depois de dar alguns passos e perceber que não estou acompanhando.
Ah, nada. É só que eu quero me jogar
nos braços de um imbecil e chorar por causa do susto que ele me deu. Mas eu não
posso fazer isso, porque não sou a namorada fragilzinha dele e nem quero ser.
Porque ele é só mais uma droga de um moleque inconsequente de carinha bonita
que vai me decepcionar. E porque, apesar das evidências, eu não acredito nisso
de verdade e a grande idiota aqui sou eu.
— Eu não sei como agir. Estou muito
puta com ele.
Ou comigo mesma. Sei lá.
— Eu entendo, mas não acho que este
seja o melhor momento para...
— Eu fiquei com medo — confesso,
porque, exceto pelo próprio Teo e por minha avó, Clara é a única pessoa com
quem tenho vontade de me abrir. — Droga, fiquei com muito medo! E quero dar na
cara dele por isso.
Ela olha para mim com pena, mas no
rosto dela não fica tão ultrajante quanto possa parecer. Esse tipo de expressão
fica muito natural no seu rostinho de anjo.
— Respira, Paty. Vai ficar tudo bem.
Olho no fundo de seus olhos enquanto
ela segura meu rosto entre as mãos e me lembro: quando você percebe, é ela quem
está cuidando de você.
— Vai dar tudo certo — ela insiste e
depois me dá um abraço. Acho que eu estava mesmo precisando disso, porque me
acalma e em pouco tempo me sinto pronta para enfrentar o idiota de cara bonita.
Faço um sinal para ela e me deixo
conduzir até o quarto dele, onde somos recebidas pela linda e espantosamente jovem
mãe do imbecil.
— Então você é a famosa e temível
Paty — ela brinca. — Entre aqui, querida. Obrigada por ter vindo.
Droga, eu tinha me esquecido dela. E
certamente não esperava me importar com o fato de ela ter gostado de mim.
— Vou deixá-los à vontade para
conversar — diz a mulher. — Preciso ligar para meu marido.
Depois disso, ela sai e eu fico ali,
sem saber o que fazer, com medo de chegar perto dele e lhe sentar a mão na cara
ou — o que seria mil vezes pior — cair no choro quando ele me olhar nos olhos e
perceber o que estou sentindo. Mas Clara me arrasta até lá de qualquer jeito,
apesar de meus medos tontos que ela certamente já sacou.
— Oi. Como você está? — Opto pela
abordagem mais neutra. Alguma coisa segura entre o choro e a agressividade, mas
me sinto estranha na mesma hora.
Como assim, como ele está, gênio?
Atropelado, oras! É assim que ele está.
— Bem — ele responde, apesar disso.
— Paty...
— Oi?
Ele tenta respirar fundo, meio que
procurando as palavras, mas parece que fazer isso lhe causa dor e eu quase
fraquejo em minha resolução de parecer durona. Porque, sim, eu decidi isso nos
últimos segundos, mas acho que não está funcionando tão bem quanto eu gostaria.
— Você está brava? Porque eu sei que
mereço, mas não gosto quando você fica chateada, menos ainda se eu for o
culpado
Ah,
não! Não me venha ficar todo fofo para cima de mim. Você não tem esse direito.
—
Não estou brava. Por que estaria? — Neutra.
Comporte-se de maneira neutra. — Só vim mesmo fazer uma visita, ver como
você está.
— Certo. É que eu achei que... Bom,
você sempre me dá bronca quando eu faço alguma besteira. E desta vez foi uma
das grandes.
De novo com essa história de que eu
sempre dou bronca. Parece até que está querendo que eu diga alguma coisa. Que
carência! Quem vê pensa que eu me comporto como se fosse mãe dele! Só não gosto
de ver meus amigos se prejudicarem sem motivo, então quando vejo que estão
agindo feito burros empacados eu digo alguma coisa. Não tem nada de mau nisso.
Tem?
— Ninguém está chateado com você,
Teo — Clara intervém com aquele jeito de sempre pôr panos quentes em tudo. — É
só que todos nós ficamos muito preocupados.
— Desculpe — ele responde
constrangido. — Eu sei que é até estranho para um cara da minha idade e que,
ainda por cima, trabalha em bares, mas eu não estou acostumado a beber. Aí
acabei perdendo a medida. Eu estava chateado e achei que não tinha problema
descontrair um pouco.
Chateado. Sei muito bem por quê. Já
faz uns dias que ele está remoendo a ideia de que a Clara e o Eric são
oficialmente um casal agora. Mas, sério, gente, existe coisa mais imatura do
que afogar as mágoas em álcool?
— É, mas descontrair um pouco não
significa bancar o ridículo. — Não consigo segurar essa, mesmo com a Clara me
dando aquele olhar de censura e Teo se encolhendo como se eu tivesse lhe dado o
tapa que eu queria.
— Aí está a Paty que eu conheço —
ele diz, com um sorrisinho meio constrangido brotando no canto da boca.
Só falta ele dizer: “Não falei?”
— Foi mal.
— Não, não foi mal. Vem aqui, por
favor — ele me chama e eu fico meio sem entender.
Como assim, vem aqui? Eu já estou do
lado dele! Mas então ele puxa meu braço de leve, como se quisesse que eu me abaixasse
e ficasse mais perto ainda. Como se quisesse... me abraçar!
Ai,
caramba.
Quando
consigo chegar a essa conclusão já estou nos braços dele. É o abraço mais
desajeitado do mundo, com ele deitado e eu de pé, inclinada sobre ele e
tentando tomar cuidado com o braço onde está o soro, além de desviar de toda
aquela parafernália que está perto do leito. É basicamente meu rosto tocando o
dele enquanto ele enlaça meu pescoço de um jeito meio torcido, mas é... bom!
Bom demais, meu Deus! Preciso sair
daqui, mas cadê a força para isso?
— Desculpa, Paty. De verdade. Você
tem sido tão legal comigo e eu não dei à sua amizade o valor que merecia.
O fato de os lábios dele estarem
perto demais do meu ouvido ajuda bastante, mas a verdade é que só as palavras,
mesmo que tivessem sido ditas a um quilômetro de distância, já teriam bastado
para me amolecer. Ele faz um carinho em meu cabelo e me solta, tentando se
endireitar. Acho que a posição estava meio incômoda para ele, embora para mim
estivesse boa o suficiente. Clara se apressa para ajudá-lo a se ajeitar e me dá
um pouco de tempo para me recompor.
Graças
a Deus!
— E para seu governo — ele completa
—, eu gosto quando você me chama a atenção. Me sinto importante. Não me oponho
que meus amigos cuidem de mim.
— É verdade — Clara confirma. — Paty
faz a gente se sentir cuidado, não é?
Teo assente e os dois ficam trocando
olhares como se eu não estivesse ali. Reparo agora que eles têm o mesmo jeito
de me desarmar com essas palavrinhas doces e a atitude humilde. E a mesma
expressão terna e tranquilizadora no rosto também. Parece até que foram feitos
um para o outro. Sinto um pouquinho de vergonha de ficar feliz pelo
Eric-chefinho ser tesudo demais, mas ainda bem que ele existe, porque... Opa!
Seja
forte, Patrícia! Ele mesmo disse que te considera uma amiga.
—
Mas, bom... — Limpo a garganta num gesto super elegante e sutil. Ninguém nem
diria que estou tentando mudar de assunto e disfarçar meu constrangimento. — Você não me disse como está se sentindo.
—
Eu estou legal. Melhor agora que vocês estão aqui. É muito bom ter um pouco de
companhia para a minha mãe poder relaxar um pouco, porque eu fico chateado de
vê-la tão preocupada. Nunca mais vou beber nada, só pra não ter que ver ela e
meu pai sofrerem desse jeito de novo. E vou ficar bem esperto com algumas
pessoas também... — Depois de ter disparado a falar, ele faz uma pausa,
pensativo. —Pelo menos eu não usei as outras coisas que Esther me ofereceu...
Não que eu estivesse considerando, claro, mas ela bem que insistiu. Desculpe
por não ter ouvido você, Clara. Eu não me lembro muito bem do que houve ontem,
mas sei que não fui nada legal.
— Tudo bem — ela diz, mas seus olhos
estão arregalados de pânico e seu rosto está vermelho. Parece que existem
alguns detalhes que ela deixou de fora da história que me contou.
— Ahn, quem? Você estava com...? E
ela te ofereceu...? — Quando finalmente registro devidamente as palavras,
parece que engoli meio quilo de pregos. — Você. Fez. O quê?
Tudo
bem, esse olhar de mosca morta pra cima da Clara eu posso aguentar. Ela é minha
amiga e a melhor pessoa que conheço fora a minha avó. Eu aceitaria perdê-lo
para ela a qualquer hora se achasse que estava mesmo sobrando na situação. Mas
Esther? A vadia-morena-de-voz-sussurrante-Esther? Ah, mas não mesmo!
— Escuta aqui, onde você estava com
a cabeça, hein?
Percebo que Clara está me segurando
sutilmente, como se eu fosse algum tipo de onça brava que fosse pular no
pescoço de um coitado que está de cama com as costelas quebradas. Isso me deixa
mais irritada ainda. Porque eu acho que até seria capaz do jeito que estou me
sentindo agora.
— Eu... Só queria me divertir um
pouco... Ela estava sendo legal e é tão gata. Meus amigos...
— Ah, deixa eu adivinhar: seus amigos
ficaram te incentivando? Acharam bonito te jogar numa cilada, né? Só pode. Ou
isso ou são um bando de manés. Se algum de vocês fosse tentar comer o peixão ia
sair vomitando piranha, especialmente um cara metido a bonzinho feito você. Porque
deixa eu te falar uma coisa, Teo, a vadia não é para o bico de vocês, moleques
tontos, não! E você vai ver o quanto ela vai ficar gata depois que eu estourar
a cara dela!
— Calma, Paty.
— Que calma o quê, Clara! A
vagabunda fica querendo pegar nossos homens agora e você fica aí pedindo calma!
Já estava devendo uma peruca nova para o travesti que é meu amigo desde o dia
me que aquela piranha te maltratou no On the Rocks. E vai ser hoje mesmo que eu
vou providenciar uma. A Valeska vai adorar o cabelão escuro.
Quando olho para o sorrisinho mal
disfarçado dela percebo a besteira que fiz. Ela não está rindo da história da
peruca, mas sim do meu ato falho. “Nossos homens”. O que é que eu estou
pensando com esse discurso inflamado fora
de controle? Ai, caramba! Teo está com os olhos arregalados.
— Menos mal — digo para ele, porque
já é tarde para voltar atrás. — Pelo menos agora você já sabe que eu estou no
páreo.
Saio pisando firme, porque se ficar
mais um segundo ali sou capaz de devolver meu almoço. Clara vem atrás de mim e
me alcança depois de um tempo, já fora do hospital.
— Paty, você está bem?
— Ah... Não?
— Claro — ela diz, toda calminha,
carinhosa e ainda rosinha demais para o meu gosto. — Pergunta idiota a minha.
Mas, bem, se ajuda em alguma coisa, acho que ele gostou de saber.
Levanto os olhos para ela, morrendo
para perguntar por que ela acha isso, mas com vergonha de fazê-lo.
— Fiz um show lá dentro, não foi?
— É, foi interessante. Mas ele
estava sorrindo no final.
— Deve ser por causa da história da
peruca.
— Sorrindo, Paty. De alegria. Não
dando risada. Acho que ele não tinha percebido que você estava a fim. Se ele
for um pouquinho igual a mim é meio lento para perceber essas coisas, mas agora
ele vai começar a olhar tudo de outra perspectiva.
Talvez ele seja mesmo parecido com
ela nesse aspecto, não duvido. Na realidade, consigo perceber muitas coisas em
que eles são parecidos. Talvez seja por isso que me sinto tão atraída — ainda
que de maneiras diferentes — pelos dois. Mas a verdade é que Teo também percebe
isso. Do mesmo jeito que deve perceber que eu sou muito diferente dele com toda
essa “delicadeza” que me é peculiar, como já me disseram por aí.
— Não sei, Clara. Ele ainda gosta de
você.
— Confie em mim. Essa ilusão não vai
durar muito. Ele vai entender logo que somos só amigos.
Ela parece certa demais disso e não
tem razão nenhuma para estar assim. Mas por causa do mesmo instinto que me faz
confiar inexplicavelmente nela toda vez, as palavras me enchem de esperança.
— Como?
— A mãe dele gostou de você — Engraçado
que a Clara acha que eu não percebo quando ela desvia dos assuntos
descaradamente. Eu percebo toda vez, é claro. Não sou boba. Mas respeito o
silêncio dessa minha amiga estranha mais do que ela imagina. — Eu conheço
Marina. Você tem uma aliada nela. Duas se contar comigo.
De qualquer forma, o que ela diz
mexe em alguma coisa dentro de mim. Pelo visto, minha sorte talvez se apresente
num futuro próximo para o nosso beijo francês. Com direito a muita língua, se
Deus quiser, porque agora eu resolvi encarar essa história de frente, e quando
faço isso eu resolvo as coisas. O amor só é para os fracos quando a pessoa
envolvida não é forte como eu. Além do mais, eu nunca disse que não podia mudar
de ideia pelo cara certo. E até onde meu coração anda dizendo, Teo é esse cara.
Respiro fundo e me sinto aliviada
por finalmente assumir isso.
Pois é. Patrícia Moraes não se
apaixona. Sempre.
[1] Ms.
Pac-Man é a versão feminina de um jogo muito popular desde a década de 80.
Nele, a personagem percorre um labirinto e tem que ir comendo as frutinhas que
aparecem no caminho.
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