Capítulo 38 – Contra Todas as Probabilidades
How can I just let you walk away
Just let you leave without a trace?
When I stand here taking every breath
with you, ooh ooh
You're the only one who really knew
me at all
How can you just walk away from me
When all I can do is watch you leave?
'Cause we've shared the laughter and
the pain
And even shared the tears
You're the only one who really knew
me at all
So take a look at me now
Well there's just an empty space
And there's nothing left here to remind
me
Just the memory of your face
Ooh, take a look at me now
Well there's just an empty space
And you coming back to me is against
the odds
And that's what I've got to face
(Against
All Odds – Phil Collins)
Peg
A conversa na
fila do escorregador parecia animada e, pelo jeito, o responsável pelas risadas
era meu menino, já que as outras crianças se reuniam em torno dele. John era
assim, “um bom O’Shea”, como diria Kyle, o tio babão. Por onde passava, seu
carisma cativava amizades instantâneas.
Aparentemente
chegando a algum tipo de combinação estimulante, ele estendeu a mão para o alto
recebendo vários toques em sua palma, num cumprimento que tinha aprendido com
Jamie e que eles chamavam de “high five”.
— Mãe, mamãe —
chamou, correndo até o banco do parque onde eu o esperava. — Podemos comprar um
sabor diferente de sorvete pra cada um dos meus amigos? Vamos juntar tudo e
fazer um piquenique!
— Claro! —
respondi, checando com minha visão periférica o homem sentado ao meu lado
fingindo não prestar atenção. — Mas vou precisar que pelo menos alguns de vocês
venham comigo até o sorveteiro. Ou não vai dar pra carregarmos... quatro,
cinco...
— Sete sorvetes
— o homem completou, dirigindo-nos um sorriso discreto. — Eu posso ajudar, se
quiserem.
— Legal! O
senhor também vai querer participar do piquenique de sorvete? E você, mamãe?
Esperei que o
homem respondesse ao convite antes de mim. O azul muito escuro dos olhos dele
adquiriu um brilho divertido.
— Obrigado,
amigo. Mas estou indo trabalhar na limpeza do bairro daqui a pouco. De qualquer
jeito, acho que por agora você tem amigos o bastante com quem dividir.
— Nããão! — John
negou veementemente, estendendo o som para acentuar o protesto. — Sempre cabe
mais gente.
O
homem gargalhou e seu rosto ganhou um ar jovial que reconheci com súbita ternura,
satisfeita em perceber que, apesar do jeito sério acentuado pelos fartos
cabelos grisalhos, sua expressão jamais parecia manter-se austera. A simpatia
que ele me despertava era inegável e imediata cada vez que sorria, mas evitei
pensar nisso, da mesma forma que tentava evitar qualquer antecipação
ultimamente. Se eu podia contar em ter aprendido alguma coisa, era que tudo
seguia seu próprio fluxo, alheio a previsões.
Depois
de dizer que aceitaríamos a ajuda do “estranho” gentil, nós três atravessamos
até a outra calçada do parque, onde estava o sorveteiro. Sorrateiramente,
lancei um olhar para o furgão estacionado próximo, mas Ian não estava em nenhum
lugar visível, então apenas me concentrei na tarefa presente, tentando manter a
cabeça fria.
—
Vou esperar o papai chegar para tomar o meu sorvete — disse a John. — Ele vai
querer companhia para tomar o dele, não acha?
—
Aham, sim. Você acha que meus amigos esperam?
—
Não precisam. Ou o de vocês vai derreter.
— Com certeza —
nosso novo amigo confirmou, lambendo um pingo que tinha escorrido pelas costas
de sua mão.
Com um gesto
amplo, ele sinalizou para que o seguíssemos e, quando chegamos ao banco onde
estivéramos sentados, as crianças estavam todas à espera e se dispersaram
rapidamente com risinhos e agradecimentos, indo se sentar em círculo sob uma
árvore próxima, passando os cones de sorvete de mão em mão.
— Você tem uma
criança adorável — elogiou. — E acho que apesar do ritmo acelerado, deve ser
estimulante acompanhar — acrescentou segundos depois, rindo do fato de que John
já tinha entregado o sorvete pela metade para um amigo e corrido para o
escorregador de novo.
— John me faz
sentir sortuda por tê-lo.
— Imagino. Todas
as mães e pais com quem converso têm esse mesmo ar de deslumbre — disse de modo
espirituoso. — Acho que compensa as preocupações, não é?
Assenti,
sorrindo.
— As
preocupações também são grandes. Mas não é nada comparado ao amor, certamente.
O “ar de deslumbre” se justifica.
A resposta dele veio
em um leve curvar de lábios apenas. Em seguida, os olhos de meu novo amigo
fitaram o chão para, por fim, se desviarem dos meus, o brilho prateado fugidio
seguindo o movimento de pessoas ao longe. Parecia que o assunto tinha se
encerrado subitamente, mas resolvi me arriscar mais.
— Você tem
filhos?
— Não — ele
respondeu de pronto. Uns poucos instantes se passaram antes que completasse,
ainda sem olhar para mim: — Ele tinha dois, meu hospedeiro. Mas faz muitos anos
que não os vejo — falou, finalmente voltando a me encarar com uma expressão
séria que não dava a entender muita coisa.
— Muitos laços
familiares se romperam quando chegamos. Não houve identificação entre as Almas,
então elas simplesmente... — Dei de ombros, tentando aparentar alguma
impassibilidade. — Cada um foi para um canto, acho. Foi o que ouvi dizer.
— Hum — ele
concordou concisamente. Quer dizer, era tão lacônico que mal dava para saber se
era concordância, mas deduzi que sim, da mesma forma que ficou claro que o
assunto tinha chegado a outro beco sem saída.
Decidi por uma
abordagem mais direta.
— Eu me chamo
Peregrina. Qual é o seu nome?
Com um sorriso
de lado que emoldurava sua beleza madura, o homem me respondeu, parecendo
ligeiramente envergonhado e divertido ao mesmo tempo.
— Seu nome diz
muito sobre você, viajante. Acho que esse é o propósito, afinal. Eu era do
Planeta dos Ursos e quase todos que conheço que vieram de lá mantiveram alguma
relação com a palavra gelo em seus nomes. Tem uma sonoridade bonita nesta
língua
.
Mas a única coisa que me vinha à mente quando eu tentava pensar em algo era o
apelido pelo qual todos me chamavam quando cheguei. Você sabe, eu sou de uma
das primeiras levas...
— E logo no
começo, alguns tiveram que passar por seus hospedeiros — completei.
— Sim — ele
confirmou meio constrangido. Então me estendeu a mão em cumprimento. — Pode me
chamar de Paddy.
— Muito prazer,
Paddy. — Sorri.
Ele voltou a
observar as crianças, distraído, e deixei o momento passar, tentando não
apressar nada, mas isso custou aos meus nervos. Talvez eu tenha imaginado esta
parte, mas quase pude sentir o olhar de Ian às minhas costas, questionando em
que passo eu conduziria as coisas agora. Ou quem sabe fosse minha própria
ansiedade que eu tentava controlar.
— Sabe, meu companheiro,
o pai de John, vinha muito aqui quando era criança. Os pais o traziam com o
irmão. O lugar preferido dele também era o escorregador gigante.
O perfil de
Paddy se alterou ligeiramente. O breve sorriso que ele tinha nos lábios quando
comecei a contar a história se desfez e sua testa se franziu um pouco. Ele me
olhou nos olhos sem dizer nada, depois olhou para John. A risada alta do meu
garoto preencheu nossos ouvidos enquanto ele corria com as outras crianças e
então ele parou e apoiou as duas mãos nos joelhos, tomando fôlego. Exatamente
como Ian fazia quando brincavam de pega-pega.
— Não — ele
soltou um riso de desdém, balançando a cabeça. — Estou imaginando coisas.
Mesmo assim,
diante da própria negação, seu corpo se virou inteiro para mim, prestando
atenção total, como se não fosse uma afirmação, mas uma pergunta que ele me
fazia. Senti que precisava responder sem rodeios, por mais que tivesse lutado
para ser cuidadosa até aqui.
— Não, Paddy,
você não está imaginando coisas — respondi séria, ousando colocar minha mão
sobre a dele. — Trago notícias.
Espantado, ele
olhou do meu rosto para nossas mãos, e depois de volta aos meus olhos.
— Quando ouvi
dizer o que faziam com hospedeiros resistentes... — a expressão dele era
comovida, à beira das lágrimas. — Eles fugiram e eu tive medo porque nunca
voltaram. Se tivessem se tornado Almas, acho que teriam voltado. Então me
perguntei se teriam conseguido sobreviver. Mas eu não sabia. Eu não sabia.
Apenas fiquei esperando eles voltarem. — As palavras se despejavam fora de
controle. Então ele virou a palma da mão para cima e apertou a minha. — Eles
sobreviveram.
— Sim, eles
sobreviveram. São humanos.
Uma lágrima
fujona escorreu pelo rosto de Paddy antes que ele a secasse com a manga da
camisa. E eu quase pude ver um peso invisível abandonar seus ombros enquanto
ele assentia com a cabeça, sem a menor preocupação em disfarçar o alívio.
— Aquela criança
— disse, apontando John com o queixo. — Ele tem os olhos de Alice.
— Assim como o
pai dele — concordei. — Os de Kyle se parecem mais com os seus.
Ele sorriu por
um instante, quase perdido em meio ao turbilhão, então finalmente pareceu colocar
os pensamentos em alguma ordem.
— Onde eles
estão? Onde estiveram esse tempo todo?
— Moramos no
Arizona. Eles encontraram uma comunidade de humanos lá, logo no começo da
ocupação. Foi assim que nos conhecemos. Eu cheguei até lá atrás da família de
minha hospedeira, então encontrei meu lar em Ian. Não sou mais uma viajante,
Paddy.
Ele sorriu à
menção de seu comentário anterior e me analisou por breves segundos.
— Ian sempre foi
o mais cuidadoso. O mais compreensivo e diplomático. Não me espanta que ele
tenha pedido a você que viesse.
No primeiro
instante, os elogios a Ian pareceram inocentes, mas o sorriso que Paddy me
lançou em retribuição ao meu não lhe subia aos olhos. Então entendi as
implicações do que ele dizia.
Justamente o que
tínhamos previsto. E exatamente o que queríamos evitar.
— Paddy, eu não
estou aqui como negociadora. Não vim pedir, de Alma para Alma, que você se
submeta às retiradas. — Enquanto falava, percebi que meu toque parecia
estranho, então soltei sua mão e ele a recolheu cuidadosamente, como se para
não me insultar. Era quase como se estivesse desconfiado agora, me sondando
inseguro sobre se aquilo era algum tipo de hábito humano que deveria aprender.
Endireitei o corpo, numa postura mais familiar às Almas e ele imitou meu gesto.
— Vim porque Ian e Kyle decidiram que não querem te pressionar de nenhum modo.
Eles queriam saber de você e também queriam que soubesse que estão bem, mas não
vão se impor. Se você não quiser vê-los, se preferir deixar tudo como sempre
foi, eles vão respeitar sua decisão.
Paddy me ouviu
com uma atenção lúcida e respeitosa, mas a última frase pareceu tirá-lo da
espécie de transe não responsivo em que tinha entrado.
— Eles estão
aqui!? Ian e Kyle vieram com você? — perguntou, olhando freneticamente ao
redor.
— Ian virá se eu chamar — expliquei, omitindo o fato de que Ian estava
a poucos metros, esperando no furgão, porque tive medo de que a proximidade
inquietasse Paddy ainda mais. Eu ainda não sabia se ele estava com medo ou
ansioso, mas de qualquer jeito, era importante que ficasse calmo. — Kyle está
em missão de paz no Kansas, mas ele e Sunny virão para Portland se você quiser
vê-lo.
— Kyle faz parte dos esforços de paz! — ele exclamou, surpreso e
admirado quando confirmei. — E quem é Sunny?
— Luz do Sol Através do Gelo, a esposa de Kyle.
— Ele se casou com uma Alma!?
— Paddy — chamei pacientemente, pousando a mão em seu ombro desta vez.
— Muita coisa mudou, os garotos de que você se lembra são homens maduros agora.
— Não tenho dúvidas disso, mas... — ele parou, deixando a frase pela
metade. Então pegou minha mão em seu ombro e a segurou entre as dele. — Não
estou fazendo um pré-julgamento. E preciso que vocês entendam que quero muito
vê-los. Não tenho medo... Quer dizer, eu acho
que não tenho medo do que isso me custaria. Só sei que não conseguiria me
levantar daqui e ir pra casa sabendo que rejeitei a aproximação dos filhos de
Patrick, porque... Eu sempre quis, sempre sonhei com isso. Mas não entendo como
posso ser o suficiente.
Eu entendia. Dentre as Almas em nossa família, incluindo eu mesma,
Paddy não era o primeiro e provavelmente não seria o último a lidar com essa
sensação.
— Você se lembra de Jodi? — questionei.
—Jodi... — repetiu, franzindo o cenho. — Sim, eu me lembro. Era a
namorada de Kyle. Há anos não pensava nela, mas Patrick gostava bastante da
garota. O que houve com ela?
— O mesmo que houve com todos os outros humanos na vida dele, exceto
por Ian — falei, e Paddy assentiu, compreendendo. — Anos atrás, quando Kyle
descobriu que era possível retirar uma Alma de seu hospedeiro, ele raptou Sunny
e a colocou em um criotanque enquanto esperava Jodi acordar.
— Céus! — ele murmurou, empalidecendo um pouco.
— Mas ela não acordou. E Kyle sofre a perda dela pela segunda vez.
Isso quase o destruiu. Pelo menos até Sunny ser devolvida ao corpo.
— Entendo. Então ele ficou com Sunny para remediar a falta de Jodi?
— Não, é aí que eu queria chegar. Kyle se apaixonou por Sunny de
verdade. A lembrança de Jodi se mantém, há muito amor e respeito por ela entre
os dois, mas eles têm sua própria história agora. Sunny não é uma substituta,
nem você seria.
De repente, o peso de nossa conversa parecia grande demais para
carregar, e Paddy voltou a fugir dela concentrando-se nas crianças do parque.
Deixei-o a sós com seus pensamentos por um instante excepcionalmente longo,
durante o qual pude sentir uma aproximação familiar. Ian estava a alguns passos
de nós e, virando o rosto para observá-lo, percebi a intensidade de sua
expressão emocionada, dos olhos safira que brilhavam com lágrimas nascentes.
— Senti falta deles todos os dias — Paddy continuou sem perceber que
tínhamos companhia. — Mas não tenho ilusões. Eles estão em todas as lembranças
que guardo e que este lugar me desperta, mas eu não estou nas deles. É Patrick
quem ocupa esse lugar de direito. E sei que eles foram embora por medo e
fizeram muito bem em partir, mas fizeram isso porque amavam tanto o pai e o
conheciam tão bem que nunca o enxergaram em mim. Posso ser eu mesmo, como Sunny, e ter minha
própria história. Minhas próprias lembranças. Mas temo que isso só faria bem
para mim. Se já aprenderam a lidar com a dor da ausência de Patrick, se já
seguiram adiante, não tem sentido serem lembrados o tempo todo de quem eu não
sou.
Eu queria dizer que ele estava errado, que precisava dar a Ian e Kyle
o direito de decidirem o que lhes traria mais dor, porque na verdade eles já
haviam feito isso. Mas acabei guardando tudo em meu peito, porque agora Ian
poderia dizer por si mesmo. Contudo, havia uma última coisa que eu precisava
perguntar antes que ele assumisse a conversa, por isso fiz sinal para que esperasse.
— Essa forma de colocar o interesse deles acima dos seus é familiar
para você, não é, Paddy? Não é a primeira vez que você age como pai.
— O que quer dizer?
— Você ficou dias convivendo com Ian e Kyle, tempo o bastante para
chamar Curandeiros que ajudassem com a inserção, como mandava o protocolo. E
quando eles finalmente fugiram, os Buscadores podiam tê-los alcançado se você tivesse
feito o alerta nas primeiras horas da manhã. Mas você deu a eles tempo para ganhar
distância, não foi? — arrematei, externando minhas suspeitas pela primeira vez,
desde que Ian me contou melhor os detalhes e me mostrou o caminho percorrido
por Portland. O Escritório Central dos Buscadores ocupava uma posição estratégica
de saída para a rodovia. Segundo Logan me explicara, era praxe no começo das
ocupações, justamente para facilitar a mobilidade.
— Eu me levantei mais tarde naquele dia... — disse Paddy, mas foi
interrompido pelo sobressalto de uma voz que lhe devia ser familiar.
— Você fez isso? — perguntou Ian, contornando o banco e sentando-se ao
meu lado, perto o bastante de Paddy para poder olhá-lo nos olhos, longe o
suficiente para se proteger da intensidade das emoções dos dois. — Você nos
ajudou a fugir?
— Não sei — o outro respondeu com uma expressão que misturava angústia,
surpresa e ternura. — Pensei muito nisso, mas não tenho uma reposta.
— Teria sido mais fácil para você chamar os Buscadores. Era o que esperavam
que fizesse, certo? — Ian insistiu e Paddy confirmou assentindo. — Você não
teria ficado sozinho.
— Eu só dormi um pouco mais, demorei para perceber a ausência de
vocês. Isso também é verdade.
— Também é verdade — Ian
repetiu, sorrindo. — Eu sinto muito, Paddy — disse, pronunciando o nome
devagar, testando a dificuldade de chamar aquele corpo de outra coisa que não
fosse “pai”.
— Sente muito? Mas pelo quê?
—Por ter fugido e deixado você sozinho. Por ter sido motivo de
preocupação. Pela falta que você disse ter sentido ao longo dos anos.
Paddy hesitou, sem saber ao certo o quanto Ian tinha escutado.
— Vocês tinham que fazer isso — falou, resignado. — Não podia ser de
outra maneira.
— Não, não podia. Mesmo assim, eu sinto muito. Você merecia ter tido
uma família.
Paddy controlou a respiração, estudando a calma calculada de Ian como
se soubesse tão bem quanto eu que aquele pedido estranho de desculpas era tão
sincero quanto difícil.
— Nunca culpei vocês. Fui eu que nunca consegui me desligar. Apenas...
fico feliz em saber que estiveram seguros todo esse tempo. E que são felizes.
— Kyle sempre quis vir atrás de você, mas eu tive medo. Não era
seguro.
— Eu entendo.
— Eu devia ter vindo. Sempre me perguntei se você sentia nossa falta
e, de algum jeito, sempre soube que a resposta era sim. Mas nós não estávamos
prontos. Você entende isso, Paddy? Nunca foi sobre não ser capaz de gostar de
você.
— Peregrina me contou sobre Jodi e Sunny. Está tudo bem, Ian.
Eu podia sentir o calor que o corpo de Ian emanava enquanto Paddy o
encarava com olhos marejados e lhe assegurava com voz falha. Aquele era um
momento difícil de mensurar ou definir, mas me parecia impossível que alguém
pudesse passar por ele como se nada tivesse mudado. Por isso soava quase
redundante o pedido que Ian fez em seguida.
—Kyle e eu conversamos muito e sabemos que não temos garantias de que
não haverá sofrimentos. Mas temos certeza de que podemos amar você. No fim, a
vida não é nada se a gente não se arriscar. Então eu peço, se você puder fazer
isso, se for possível, que abra um espaço para nós em sua vida. Será que você
pode?
Paddy ensaiou uma resposta, mas ela não veio de imediato. A voz parecia
parada em sua garganta, estrangulada.
— Eu nunca... — esforçou-se para dizer. — Nunca achei que...
A frase ficou incompleta quando John se aproximou, barulhento e
animado, saltando no colo de Ian.
— Papai, papai!
Então Paddy explodiu num choro silencioso, escondendo o rosto entre as
mãos. Ian cochichou algo no ouvido de John e o colocou em meu colo, para então
passar os braços em torno dos ombros que um dia haviam lhe amparado também, na
figura de seu próprio pai.
Atrás de nós, um carro conhecido estacionou próximo ao meio-fio. Kyle
saiu primeiro e Sunny apareceu logo depois, contornando rápido a partir do
lugar do motorista para estar ao lado do homem que amava. Eu não sabia que eles
estavam a caminho, mas devia ter previsto que Kyle não conseguiria esperar por
um sinal positivo. De todo jeito, suspirei aliviada e feliz pela presença deles
e sorri para ambos, tocando levemente o braço de Ian para que os notasse.
Como se já soubesse, Ian apenas encarou Kyle por sobre o ombro de
Paddy e eles se comunicaram em sua linguagem silenciosa de irmãos e cúmplices.
Eu me levantei dando a mão a John e fui até meu cunhado, tocando-lhe o ombro em
um leve incentivo. Sunny segurou a outra mãozinha de John e, sorrindo uma para
outra, fomos buscar outro sorvete enquanto Kyle se sentava do outro lado de
Paddy e o acercava em um longo e esperado abraço.