Capítulo 35 – Eric
“Caos”
Ooh I'm a mess right
now
Inside out
Searching for a sweet
surrender
But this is not the
end
I can't work it out,
how?
Going through the
motions
Going through us
And though I've known
it for the longest time
And all of my hopes
All of my words are
all over written on the signs
But you're my road
walking me home
Home, home
See the flames inside
my eyes
It burns so bright I
wanna feel your love
Easy baby maybe I'm a
liar
But for tonight I
wanna fall in love
(I’m a Mess – Ed Sheeran)
Não posso fazer isso...
Bato com a lateral do punho em minha
têmpora para afastar o barulho. Insuportável. Não consigo pensar.
Achei
que estivesse acostumado com a dor. Achei que pudesse controlá-la e suportá-la
até o fim dos tempos se fosse preciso. Para ficar ao lado dela. Eu faria o que
fosse preciso, isso ou qualquer outra coisa.
Acontece
que não posso. Não posso fazer o que é preciso. Não posso suportar as
consequências de chegar a ela pelo caminho errado, de não merecer o que ela
pode me dar, agora eu sei.
Mas também não posso
suportar as malditas vozes em meu coração. A dor que clama por alívio. O
impasse me sufoca.
Não posso fazer isso...
Achei
que não me importaria com ninguém se pudesse ter paz. Se pudesse ter o que
queria. Não me pareceu muito. Clara apenas. Por quanto tempo ela quisesse ficar.
A força dela me ajudando a controlar minha fraqueza até que pudesse encontrar
uma maneira de fazer isso sozinho. Achei que o egoísmo era meu amigo e que eu
não teria escrúpulos de afastar quem me atrapalhasse. Esther ou qualquer um que
eu pudesse jogar na cova dos leões que ela representa.
Mas quando aquela maldita
trouxe o garoto para a jogada, quando o atraiu como um cordeiro, afetando Clara
como se estivesse lhe dando um soco, percebi que qualquer coisa que a machuque
fere a mim com mais força. Não consigo lidar com sua dor, não consigo suportar
o medo que ela sente quando qualquer coisa ameaça quem ela ama.
E ela o ama.
Mais do que nunca, isso
ficou claro para mim ontem à noite.
Não acho que ela minta
quando diz que não há nada entre eles. A cena ridícula que o moleque armou no
bar me confirmaria isso se eu achasse que Clara seria capaz de mentir. Mas
estou certo de que ela não está pronta para excluí-lo de sua vida. Então ele
vai continuar tentando.
Quero matá-lo por isso.
Sei que ela também me
ama. De alguma forma que não entendo e que já é muito mais do que eu mereço.
Sei que me quer tanto quanto eu a quero e que não estou sozinho quando estamos
juntos. Parece algo tolo de se dizer, mas não é.
Minha maldição é também
meu maior talento. Eu entendo as pessoas. Sei como funcionam. E a minha vida
toda estive acostumado a ver almas sozinhas em corpos acompanhados. Com a
maioria das pessoas é assim. Sempre foi assim comigo.
Sexo, contato físico. Tudo
que antecede a isso. Todos os fingimentos a que nos dedicamos antes de afundar
nossa própria solidão no corpo de outro alguém, antes de conseguir aquele
segundo de ilusão em que os instintos sufocam qualquer dor... Tudo não passa de
um mero ritual. Um investimento penoso pelo valor do espasmo passageiro que
simula uma conexão.
Mas não seria assim com
ela. Quando estamos juntos, estamos verdadeiramente ali. E não importa o quanto
meu corpo anseie pelo dela, não há desespero nessa fome. Só paz. O silêncio
precioso que só é interrompido pela voz dela. E pelo toque de que necessito em
um nível que ainda não sou capaz de compreender, mas que nunca me machuca.
Desde a primeira vez,
sempre que toco a pele dela pareço ter encontrado as respostas para todas as
perguntas que me acostumei a ignorar. Como se tudo pudesse ficar bem e a luz
que emana dela fosse capaz de desfazer todas as sombras.
Mas então tem a droga do
garoto puro e claro como ela, feito à sua semelhança como se fosse
especialmente moldado para ficar ao seu lado. E tudo em que consigo pensar é em
quebrar todos os ossos do corpo dele com um martelo. Tomar-lhe a voz. O jeito.
Transformar seu rosto pacífico em algo disforme. Estragar tudo o que ela ama a
respeito dele, mesmo sabendo que eu jamais conseguiria fazê-lo.
Sim, eu posso odiá-lo.
Posso invejar o que quer que Clara sinta por ele e fantasiar com todas as
formas como gostaria de fazer-lhe mal, mas não posso realmente fazer isso. Porque ela o ama. Principalmente porque ela o
ama.
Fecho meus olhos com
força, mas o gesto só piora as coisas. Quando isolo o resto do mundo, tudo o
que sobra é o caos dentro de mim. Todas as imagens e emoções que só posso
sentir, mas não posso controlar. Tudo que não é nem nunca foi escolha minha.
Eu vinha conseguindo
lidar com isso. Clara abriu um caminho esquecido dentro de mim. Por causa dela,
minhas próprias emoções falam mais alto. Mas hoje isso não significa nada. Hoje
elas são apenas o tom mais dissonante entre todos os gritos que preciso calar e
não consigo.
Preciso vê-la.
Olho para a parede à
minha frente, catalogando as manchas, tentando visualizar desenhos, desesperado
por alguma harmonia. Tento encontrar padrões na tinta, organizá-los em figuras
discerníveis que minha mente possa catalogar. Já fiz isso, uma e outra vez. E depois
mais outra. Mas não está mais ajudando. Remexo em meus bolsos e tudo o que
encontro é minha carteira, minhas chaves e o celular. Olho para a tela outra
vez, esperando notícias. Sei que ela saiu do hotel em que passou boa parte da
tarde, mas ainda não sei para onde foi depois disso. Espero que esteja vindo
para casa.
O chão do corredor em
frente à porta dela há muito se tornou extremamente desconfortável, mas não é
por isso que me movo, tentando acertar um pouco minha postura. Pensar em como
ela vai reagir quando me encontrar é o que me deixa tenso.
Eu não devia estar aqui. Sei disso. Assim como não devia ter feito a
maior parte das coisas que fiz. Preciso respeitar o espaço dela, mas não
consegui frear minhas ações. O segurança que contratei para protegê-la à
distância me garantiu que ela está bem, mas eu preciso ver com meus próprios
olhos.
Assim como preciso ouvir
dela quem é Alberto Sampaio ou o que ele tem a ver com o atropelamento do tal
Teo, Caio ou como diabos se chama o rival que menosprezei até ser tarde demais.
Tenho que senti-la e entender o que quer de mim agora que parece estar em
dúvida entre ele e eu, e encontrar meios de adiar sua resolução e mostrar que
estou disposto a lutar por ela.
Como se eu tivesse
escolha a não ser respeitar sua decisão. Como se tivesse alguma alternativa que
não fosse lutar com tudo o que tenho por aquilo que não consigo perder. De
qualquer forma, não consigo estar em outro lugar que não seja aqui. A menos que
queira enlouquecer de vez. Se é que já não enlouqueci. O quanto de lucidez
seria preciso para discernir?
O barulho se torna mais
intenso. Desde ontem, as vozes se tornaram mais ativas e frenéticas. Acima de
tudo, mais difíceis de controlar. Minha cabeça dói e o caos ameaça me afogar.
Respiro e me concentro,
silenciando tudo enquanto consigo, procurando por ordem em qualquer lugar em que
possa encontrar enquanto dou comandos ao meu cérebro para que se foque. Preciso
me agarrar a qualquer coisa, mas os padrões irregulares da tinta já meio gasta não
servem mais, sinto a necessidade de algo mais palpável. Então começo a pensar
em coisas estúpidas, saídas de emergência como tirar todas as chaves da argola
que as prende juntas e separá-las por tamanho ou qualquer outro critério.
Estou ocupado com isso
quando a chave do prédio dela me chama a atenção. Mais um prova de que tenho
muito a aprender no que se refere a refrear meus impulsos. Eu quis ter livre
acesso ao prédio e providenciei isso. Assim como dei um jeito de conseguir o
bar quando percebi que precisava estar perto de Clara. Por sorte, Samuel tinha
tornado tudo simples com sua imprudência, mas eu teria conseguido fazer parte
da vida dela por outros meios se fosse necessário. Porque simplesmente não
estou acostumado a medir esforços quando encontro algo que desejo. Eu reivindico
as coisas, tomo o meu direito de desfrutá-las sem me importar com mais nada.
Sempre tive orgulho
disso. Sempre achei que era algo que me fazia forte.
E agora me parece
completamente inadequado e vergonhoso. Como de fato é. Forçar minha entrada em
sua vida é algo que eu teria feito de qualquer maneira — não consigo imaginar
um mundo em que eu soubesse de sua existência e não a quisesse de alguma forma entrelaçada
à minha —, mas agora consigo enxergar o que isso faz de mim. E a consciência
pode ser uma vadia sádica.
Talvez seja por isso,
para punir a mim mesmo, que tenho me obrigado a resistir ao desejo vertiginoso
e irracional que sinto por ela. Fisicamente falando, quase dói. Mas
emocionalmente é ainda mais difícil de suportar. Não consigo deixar de imaginar
como seria. O laço. A conexão. A verdade inédita do que eu sentiria. O quão
incrivelmente impossível seria suportar se eu tivesse que me afastar depois.
Não posso fazer isso...
Me afastar. Me entregar.
Querer que ela se entregue. Passar a vida sentindo-me ridiculamente vulnerável
desta maneira.
O celular vibra com a
mensagem de que ela está chegando.
Estou esgotado antes
mesmo de começar, mas não posso fugir agora. Penso em me levantar, descer e
fingir que cheguei neste mesmo instante, mas isso acaba me parecendo ainda mais
ridículo do que a verdade. Então fico onde estou, aberto como jamais estive à
sua percepção de quem eu sou, e espero.
Os minutos que me separam
dela são engolidos por minha ansiedade e então ela surge do elevador a alguns
metros de mim. As vozes se silenciam imediatamente quando ela me lança o primeiro
olhar, mas em seu lugar sou tomado pelos sentimentos dela. O amor
inconfundível, a preocupação que tenta abafar, as dúvidas que a devoram... Ela
está tão cansada que mal tem ânimo para se mexer. E como o cretino egoísta que
sou, estou aqui para forçá-la a ainda mais um round.
— Oi — ela diz. Sua
expressão é neutra, mas sei que há muitas coisas por trás daqueles olhos. Ela
tenta disfarçar a postura defensiva, mas está indubitavelmente lá. — Como você
entrou aqui? Como você sempre entra?
Abro a mão diante dela,
revelando a chave que tirei da sequência estendida no chão diante de mim quando
ouvi o som do elevador chegando. Ela arregala os olhos por um segundo e depois
lança um olhar para as outras no chão e suspira. Penso em desmanchar aquela
idiotice, mas tudo em que consigo pensar no instante seguinte é em reposicionar
as chaves que ficaram, de modo que volte a haver um dedo de distância entre
elas. Exatamente. E é o que faço quando Clara não se move nem diz nada.
Ouço quando ela suspira
de novo e se aproxima depois de um tempo, parecendo vencida por alguma coisa
mais forte que nós dois. Recuo instintivamente quando ela se senta ao meu lado.
É um reflexo estúpido que tento disfarçar, fingindo que estava apenas
corrigindo minha postura para poder encará-la de frente, mas sei que não fui
rápido o suficiente.
— O que significa isso? —
ela pergunta.
— Eu... Paguei um vizinho
seu pela chave. Foi no dia em que te deixei o presente.
Tenho um pensamento
idiota sobre como ela devia tomar cuidado com vizinhos sem escrúpulos que
vendem a pouca segurança de que o prédio dispõe a qualquer um com lábia e
dinheiro, mas então percebo a ironia. Ela devia é ser realmente cuidadosa com
as pessoas que mentem para ela e ainda assim entram pela porta da frente.
— Desculpe — peço, porque
não há forma de justificar o que fiz, então nem tento. Apenas seguro a mão dela
e deposito a chave ali, fechando seus dedos em torno daquele objeto que parece
tão enganadoramente inofensivo quando a pessoa que o segura.
Ao tocá-la, tudo está ali
novamente: a paz que ela me traz, o desejo e as emoções passionais que
desperta, tudo que eu amo. Beijo a mão dela e a continuo segurando, incapaz de
soltá-la. Ela fecha os olhos por um momento, e com a outra mão toca meus
cabelos, os dedos percorrendo minha nuca numa carícia suave e arrepiante.
— Se você queria uma
chave, deveria ter permitido que eu a desse a você. Poderia ter pedido — ela
sussurra, me surpreendendo, me desarmando.
Clara nunca foi nem nunca
será inofensiva.
— Essa é você ficando
brava comigo?
— Não, esta sou eu
cansada demais para fingir que não te perdoo. E muito aliviada de que você
esteja deste lado da porta.
— Eu juro que não faria
isso. Juro que não entraria na sua casa.
Saberia como, mas não
faria. A menos que achasse que ela estava em perigo... A menos que fosse
necessário para o bem dela.
— Desculpe — peço de
novo.
Clara apoia a cabeça na
parede e me concede um sorriso de canto, estendendo a chave de volta para mim.
— Espere até que eu
queira te dar a chave do apartamento, ok? Talvez depois que eu souber mais
sobre você do que apenas seu sobrenome.
Quando ela diz isso, toda
e qualquer resistência que eu estivesse tentando manter rui em pedaços. Ela não
está me dando apenas seu perdão, está me dando uma chance. Está me dizendo que
se eu não estragar tudo as coisas vão ficar bem. De repente, não consigo mais
me conter e procuro seus lábios com os meus, apertando-a com força entre meus
braços. As mãos dela percorrem minhas costas, meu peito, agarram meus cabelos,
e um gemido fraco escapa por entre sua respiração acelerada.
— Minha Luz — sussurro
para ela. — Minha Clara. Você é minha.
Ela olha para mim de um
jeito diferente quando digo isso. Vulnerável ao meu desejo, mas também de posse
de seu próprio. O beijo furioso parte dela desta vez, fazendo com que eu perca
um pouco mais do meu controle já tão comprometido. Os lábios macios e a língua
quente brincam na pele de meu pescoço, experimentando, e meus dedos ousam um
pouco mais, apertando seu seio sobre a roupa, levantando-o enquanto minha
língua prova a pele revelada pelo decote discreto. Ela geme baixinho, mas me
afasta em seguida.
— Estamos no chão do
corredor — murmura, e começa a rir em seguida, divertindo-se com a situação.
— Daríamos um belo
espetáculo para os vizinhos de andar — comento para fazê-la corar, deixando
minha mente esfriar um pouco enquanto também me divirto com o constrangimento
dela. — Mas prefiro que a visão seja só minha.
Ela solta outra risada e
desvia o olhar, sem graça.
— Não conheço você, Eric.
Nem você me conhece bem. Sabemos tão pouco um do outro...
Sei o que ela quer dizer
com isso. Está me lembrando da conversa que tivemos naquela primeira noite em
que nos acertamos, sobre irmos devagar e darmos tempo um ao outro.
— Pergunte — digo sem
pensar.
Ela pisca surpresa, como
se não acreditasse no que ouviu. Em seguida sua expressão se ilumina e o desejo
insano de antes é substituído por ternura e algo mais que não identifico.
Talvez um reflexo de minha própria confusão, de meu próprio medo.
Não sei até onde estou
disposto a ir. Certamente não estou preparado para que ela saiba de tudo, para
correr o risco de perdê-la definitivamente, mas quero encontrar um caminho até
ela que não seja pavimentado por mentiras. Quero alcançá-la. E não posso
esperar que seja pelo caminho mais fácil. Trocar o passado por um presente
confortável não me comprará um futuro.
E eu posso até estar louco,
mas consigo sonhar com um.