sábado, 26 de dezembro de 2015

ELS - Bônus 35 - Eric

Capítulo 35 – Eric
“Caos”

Ooh I'm a mess right now
Inside out
Searching for a sweet surrender
But this is not the end

I can't work it out, how?
Going through the motions
Going through us

And though I've known it for the longest time
And all of my hopes
All of my words are all over written on the signs
But you're my road walking me home
Home, home

See the flames inside my eyes
It burns so bright I wanna feel your love
Easy baby maybe I'm a liar
But for tonight I wanna fall in love

(I’m a Mess – Ed Sheeran)

           
Não posso fazer isso...

            Bato com a lateral do punho em minha têmpora para afastar o barulho. Insuportável. Não consigo pensar.
            Achei que estivesse acostumado com a dor. Achei que pudesse controlá-la e suportá-la até o fim dos tempos se fosse preciso. Para ficar ao lado dela. Eu faria o que fosse preciso, isso ou qualquer outra coisa.
            Acontece que não posso. Não posso fazer o que é preciso. Não posso suportar as consequências de chegar a ela pelo caminho errado, de não merecer o que ela pode me dar, agora eu sei.
Mas também não posso suportar as malditas vozes em meu coração. A dor que clama por alívio. O impasse me sufoca.
Não posso fazer isso...
            Achei que não me importaria com ninguém se pudesse ter paz. Se pudesse ter o que queria. Não me pareceu muito. Clara apenas. Por quanto tempo ela quisesse ficar. A força dela me ajudando a controlar minha fraqueza até que pudesse encontrar uma maneira de fazer isso sozinho. Achei que o egoísmo era meu amigo e que eu não teria escrúpulos de afastar quem me atrapalhasse. Esther ou qualquer um que eu pudesse jogar na cova dos leões que ela representa.
Mas quando aquela maldita trouxe o garoto para a jogada, quando o atraiu como um cordeiro, afetando Clara como se estivesse lhe dando um soco, percebi que qualquer coisa que a machuque fere a mim com mais força. Não consigo lidar com sua dor, não consigo suportar o medo que ela sente quando qualquer coisa ameaça quem ela ama.
E ela o ama.
Mais do que nunca, isso ficou claro para mim ontem à noite.
Não acho que ela minta quando diz que não há nada entre eles. A cena ridícula que o moleque armou no bar me confirmaria isso se eu achasse que Clara seria capaz de mentir. Mas estou certo de que ela não está pronta para excluí-lo de sua vida. Então ele vai continuar tentando.
Quero matá-lo por isso.
Sei que ela também me ama. De alguma forma que não entendo e que já é muito mais do que eu mereço. Sei que me quer tanto quanto eu a quero e que não estou sozinho quando estamos juntos. Parece algo tolo de se dizer, mas não é.
Minha maldição é também meu maior talento. Eu entendo as pessoas. Sei como funcionam. E a minha vida toda estive acostumado a ver almas sozinhas em corpos acompanhados. Com a maioria das pessoas é assim. Sempre foi assim comigo.
Sexo, contato físico. Tudo que antecede a isso. Todos os fingimentos a que nos dedicamos antes de afundar nossa própria solidão no corpo de outro alguém, antes de conseguir aquele segundo de ilusão em que os instintos sufocam qualquer dor... Tudo não passa de um mero ritual. Um investimento penoso pelo valor do espasmo passageiro que simula uma conexão.
Mas não seria assim com ela. Quando estamos juntos, estamos verdadeiramente ali. E não importa o quanto meu corpo anseie pelo dela, não há desespero nessa fome. Só paz. O silêncio precioso que só é interrompido pela voz dela. E pelo toque de que necessito em um nível que ainda não sou capaz de compreender, mas que nunca me machuca.
Desde a primeira vez, sempre que toco a pele dela pareço ter encontrado as respostas para todas as perguntas que me acostumei a ignorar. Como se tudo pudesse ficar bem e a luz que emana dela fosse capaz de desfazer todas as sombras.
Mas então tem a droga do garoto puro e claro como ela, feito à sua semelhança como se fosse especialmente moldado para ficar ao seu lado. E tudo em que consigo pensar é em quebrar todos os ossos do corpo dele com um martelo. Tomar-lhe a voz. O jeito. Transformar seu rosto pacífico em algo disforme. Estragar tudo o que ela ama a respeito dele, mesmo sabendo que eu jamais conseguiria fazê-lo.
Sim, eu posso odiá-lo. Posso invejar o que quer que Clara sinta por ele e fantasiar com todas as formas como gostaria de fazer-lhe mal, mas não posso realmente fazer isso. Porque ela o ama. Principalmente porque ela o ama.
Fecho meus olhos com força, mas o gesto só piora as coisas. Quando isolo o resto do mundo, tudo o que sobra é o caos dentro de mim. Todas as imagens e emoções que só posso sentir, mas não posso controlar. Tudo que não é nem nunca foi escolha minha.
Eu vinha conseguindo lidar com isso. Clara abriu um caminho esquecido dentro de mim. Por causa dela, minhas próprias emoções falam mais alto. Mas hoje isso não significa nada. Hoje elas são apenas o tom mais dissonante entre todos os gritos que preciso calar e não consigo.
Preciso vê-la.
Olho para a parede à minha frente, catalogando as manchas, tentando visualizar desenhos, desesperado por alguma harmonia. Tento encontrar padrões na tinta, organizá-los em figuras discerníveis que minha mente possa catalogar. Já fiz isso, uma e outra vez. E depois mais outra. Mas não está mais ajudando. Remexo em meus bolsos e tudo o que encontro é minha carteira, minhas chaves e o celular. Olho para a tela outra vez, esperando notícias. Sei que ela saiu do hotel em que passou boa parte da tarde, mas ainda não sei para onde foi depois disso. Espero que esteja vindo para casa.
O chão do corredor em frente à porta dela há muito se tornou extremamente desconfortável, mas não é por isso que me movo, tentando acertar um pouco minha postura. Pensar em como ela vai reagir quando me encontrar é o que me deixa tenso.
Eu não devia estar aqui.  Sei disso. Assim como não devia ter feito a maior parte das coisas que fiz. Preciso respeitar o espaço dela, mas não consegui frear minhas ações. O segurança que contratei para protegê-la à distância me garantiu que ela está bem, mas eu preciso ver com meus próprios olhos.
Assim como preciso ouvir dela quem é Alberto Sampaio ou o que ele tem a ver com o atropelamento do tal Teo, Caio ou como diabos se chama o rival que menosprezei até ser tarde demais. Tenho que senti-la e entender o que quer de mim agora que parece estar em dúvida entre ele e eu, e encontrar meios de adiar sua resolução e mostrar que estou disposto a lutar por ela.
Como se eu tivesse escolha a não ser respeitar sua decisão. Como se tivesse alguma alternativa que não fosse lutar com tudo o que tenho por aquilo que não consigo perder. De qualquer forma, não consigo estar em outro lugar que não seja aqui. A menos que queira enlouquecer de vez. Se é que já não enlouqueci. O quanto de lucidez seria preciso para discernir?
O barulho se torna mais intenso. Desde ontem, as vozes se tornaram mais ativas e frenéticas. Acima de tudo, mais difíceis de controlar. Minha cabeça dói e o caos ameaça me afogar.
Respiro e me concentro, silenciando tudo enquanto consigo, procurando por ordem em qualquer lugar em que possa encontrar enquanto dou comandos ao meu cérebro para que se foque. Preciso me agarrar a qualquer coisa, mas os padrões irregulares da tinta já meio gasta não servem mais, sinto a necessidade de algo mais palpável. Então começo a pensar em coisas estúpidas, saídas de emergência como tirar todas as chaves da argola que as prende juntas e separá-las por tamanho ou qualquer outro critério.
Estou ocupado com isso quando a chave do prédio dela me chama a atenção. Mais um prova de que tenho muito a aprender no que se refere a refrear meus impulsos. Eu quis ter livre acesso ao prédio e providenciei isso. Assim como dei um jeito de conseguir o bar quando percebi que precisava estar perto de Clara. Por sorte, Samuel tinha tornado tudo simples com sua imprudência, mas eu teria conseguido fazer parte da vida dela por outros meios se fosse necessário. Porque simplesmente não estou acostumado a medir esforços quando encontro algo que desejo. Eu reivindico as coisas, tomo o meu direito de desfrutá-las sem me importar com mais nada.
Sempre tive orgulho disso. Sempre achei que era algo que me fazia forte.
E agora me parece completamente inadequado e vergonhoso. Como de fato é. Forçar minha entrada em sua vida é algo que eu teria feito de qualquer maneira — não consigo imaginar um mundo em que eu soubesse de sua existência e não a quisesse de alguma forma entrelaçada à minha —, mas agora consigo enxergar o que isso faz de mim. E a consciência pode ser uma vadia sádica.
Talvez seja por isso, para punir a mim mesmo, que tenho me obrigado a resistir ao desejo vertiginoso e irracional que sinto por ela. Fisicamente falando, quase dói. Mas emocionalmente é ainda mais difícil de suportar. Não consigo deixar de imaginar como seria. O laço. A conexão. A verdade inédita do que eu sentiria. O quão incrivelmente impossível seria suportar se eu tivesse que me afastar depois.
Não posso fazer isso...
Me afastar. Me entregar. Querer que ela se entregue. Passar a vida sentindo-me ridiculamente vulnerável desta maneira.
O celular vibra com a mensagem de que ela está chegando.
Estou esgotado antes mesmo de começar, mas não posso fugir agora. Penso em me levantar, descer e fingir que cheguei neste mesmo instante, mas isso acaba me parecendo ainda mais ridículo do que a verdade. Então fico onde estou, aberto como jamais estive à sua percepção de quem eu sou, e espero.
Os minutos que me separam dela são engolidos por minha ansiedade e então ela surge do elevador a alguns metros de mim. As vozes se silenciam imediatamente quando ela me lança o primeiro olhar, mas em seu lugar sou tomado pelos sentimentos dela. O amor inconfundível, a preocupação que tenta abafar, as dúvidas que a devoram... Ela está tão cansada que mal tem ânimo para se mexer. E como o cretino egoísta que sou, estou aqui para forçá-la a ainda mais um round.
— Oi — ela diz. Sua expressão é neutra, mas sei que há muitas coisas por trás daqueles olhos. Ela tenta disfarçar a postura defensiva, mas está indubitavelmente lá. — Como você entrou aqui? Como você sempre entra?
Abro a mão diante dela, revelando a chave que tirei da sequência estendida no chão diante de mim quando ouvi o som do elevador chegando. Ela arregala os olhos por um segundo e depois lança um olhar para as outras no chão e suspira. Penso em desmanchar aquela idiotice, mas tudo em que consigo pensar no instante seguinte é em reposicionar as chaves que ficaram, de modo que volte a haver um dedo de distância entre elas. Exatamente. E é o que faço quando Clara não se move nem diz nada.
Ouço quando ela suspira de novo e se aproxima depois de um tempo, parecendo vencida por alguma coisa mais forte que nós dois. Recuo instintivamente quando ela se senta ao meu lado. É um reflexo estúpido que tento disfarçar, fingindo que estava apenas corrigindo minha postura para poder encará-la de frente, mas sei que não fui rápido o suficiente.
— O que significa isso? — ela pergunta.
— Eu... Paguei um vizinho seu pela chave. Foi no dia em que te deixei o presente.
Tenho um pensamento idiota sobre como ela devia tomar cuidado com vizinhos sem escrúpulos que vendem a pouca segurança de que o prédio dispõe a qualquer um com lábia e dinheiro, mas então percebo a ironia. Ela devia é ser realmente cuidadosa com as pessoas que mentem para ela e ainda assim entram pela porta da frente.
— Desculpe — peço, porque não há forma de justificar o que fiz, então nem tento. Apenas seguro a mão dela e deposito a chave ali, fechando seus dedos em torno daquele objeto que parece tão enganadoramente inofensivo quando a pessoa que o segura.
Ao tocá-la, tudo está ali novamente: a paz que ela me traz, o desejo e as emoções passionais que desperta, tudo que eu amo. Beijo a mão dela e a continuo segurando, incapaz de soltá-la. Ela fecha os olhos por um momento, e com a outra mão toca meus cabelos, os dedos percorrendo minha nuca numa carícia suave e arrepiante.
— Se você queria uma chave, deveria ter permitido que eu a desse a você. Poderia ter pedido — ela sussurra, me surpreendendo, me desarmando.
Clara nunca foi nem nunca será inofensiva.
— Essa é você ficando brava comigo?
— Não, esta sou eu cansada demais para fingir que não te perdoo. E muito aliviada de que você esteja deste lado da porta.
— Eu juro que não faria isso. Juro que não entraria na sua casa.
Saberia como, mas não faria. A menos que achasse que ela estava em perigo... A menos que fosse necessário para o bem dela.
— Desculpe — peço de novo.
Clara apoia a cabeça na parede e me concede um sorriso de canto, estendendo a chave de volta para mim.
— Espere até que eu queira te dar a chave do apartamento, ok? Talvez depois que eu souber mais sobre você do que apenas seu sobrenome.
Quando ela diz isso, toda e qualquer resistência que eu estivesse tentando manter rui em pedaços. Ela não está me dando apenas seu perdão, está me dando uma chance. Está me dizendo que se eu não estragar tudo as coisas vão ficar bem. De repente, não consigo mais me conter e procuro seus lábios com os meus, apertando-a com força entre meus braços. As mãos dela percorrem minhas costas, meu peito, agarram meus cabelos, e um gemido fraco escapa por entre sua respiração acelerada.
— Minha Luz — sussurro para ela. — Minha Clara. Você é minha.
Ela olha para mim de um jeito diferente quando digo isso. Vulnerável ao meu desejo, mas também de posse de seu próprio. O beijo furioso parte dela desta vez, fazendo com que eu perca um pouco mais do meu controle já tão comprometido. Os lábios macios e a língua quente brincam na pele de meu pescoço, experimentando, e meus dedos ousam um pouco mais, apertando seu seio sobre a roupa, levantando-o enquanto minha língua prova a pele revelada pelo decote discreto. Ela geme baixinho, mas me afasta em seguida.
— Estamos no chão do corredor — murmura, e começa a rir em seguida, divertindo-se com a situação.
— Daríamos um belo espetáculo para os vizinhos de andar — comento para fazê-la corar, deixando minha mente esfriar um pouco enquanto também me divirto com o constrangimento dela. — Mas prefiro que a visão seja só minha.
Ela solta outra risada e desvia o olhar, sem graça.
— Não conheço você, Eric. Nem você me conhece bem. Sabemos tão pouco um do outro...
Sei o que ela quer dizer com isso. Está me lembrando da conversa que tivemos naquela primeira noite em que nos acertamos, sobre irmos devagar e darmos tempo um ao outro.
— Pergunte — digo sem pensar.
Ela pisca surpresa, como se não acreditasse no que ouviu. Em seguida sua expressão se ilumina e o desejo insano de antes é substituído por ternura e algo mais que não identifico. Talvez um reflexo de minha própria confusão, de meu próprio medo.
Não sei até onde estou disposto a ir. Certamente não estou preparado para que ela saiba de tudo, para correr o risco de perdê-la definitivamente, mas quero encontrar um caminho até ela que não seja pavimentado por mentiras. Quero alcançá-la. E não posso esperar que seja pelo caminho mais fácil. Trocar o passado por um presente confortável não me comprará um futuro.

E eu posso até estar louco, mas consigo sonhar com um.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

CD2 Cap 20

Capítulo 20 — A Velha Arte de Ruminar

In the days of my youth, I was told what it means to be a man,
Now I've reached that age, I've tried to do all those things the best I can.
No matter how I try, I find my way into the same old jam.
(...)
I know what it means to be alone, I sure do wish I was at home.
I don't care what the neighbors say, I'm gonna love you each and every day.

(Good times bad times – Led Zeppelin)

Jeb

            As provas estavam todas diante de mim e a conclusão era inevitável: eu tinha mesmo virado um velho bundão. Você nunca analisa esse tipo de coisa, nunca leva muito a sério, a menos que esteja acontecendo com você, mas agora eu estava sendo obrigado a encarar a verdade. E apesar de eu precisar disso tanto quanto de uma dor de dente, a coisa toda de ter sentimentos estava finalmente me atingindo.
            Já ouvi dizer que envelhecer traz consequências estranhas para personalidades irrequietas, que ou você se torna uma versão amplificada do mesmo tipo de cabeça dura de sempre, ou você começa a mudar de maneiras que não esperava. Acho que peguei um pouco das duas hipóteses, mas, no fim, o que me assusta é o quanto acabei me apegando às pessoas daqui como se fossem uma família pela qual sou responsável. Eu, o velho e orgulhoso lobo solitário que sempre achou que a vida era mais simples sem alcateias.
Então, com o passar dos anos — especialmente dos últimos —, a solidão passou de fardo inteligente para um estorvo insustentável. Era certo que o “fim do mundo” tinha contribuído para isso; quer dizer, não dá para ficar preso ao último quinhão de humanos que povoam o planeta e não se apegar a eles; mas aí tinha a outra parte. O outro lado que não era mais outro lado, e que, no entanto, agora estava exatamente lá, fora do meu alcance.

Não ter que cruzar com Logan todos os dias tinha até seu lado bom. Pelo menos me dava tempo de colocar a cabeça no lugar e analisar tudo mais friamente antes de dizer qualquer coisa precipitada. Todo o episódio envolvendo o “susto” tinha sido muito estressante para nós dois, e a verdade que eu não confessaria tão cedo era que o cérebro dele não era o único que tinha ficado cheio de caraminholas com as quais eu precisava lidar. O meu também tinha se enchido de memórias esquecidas e fantasmas do passado, mas na verdade, se eu tivesse que ser honesto comigo mesmo, precisaria admitir que foi um pouco antes de sermos “vizinhos de cachola” que a coisa aconteceu.
Tudo começou com aquela música.
A tal musiquinha que Logan e Estrela usavam para ninar Lindsay não era, na verdade, uma canção de ninar. Era uma canção antiga e pouco conhecida que meu pai gostava de cantar para nós e que eu costumava cantarolar para Norah quando estávamos juntos, porque achava que combinava com ela.
Claro que isso não queria dizer nada. Meu pai não tinha composto a música, afinal, e não era impossível que o Logan humano a tivesse simplesmente aprendido em algum disco velho ou com algum maluco preciosista que tivesse cruzado seu caminho na infância. O fato de que o Logan de hoje não guardasse lembrança alguma a respeito não significava que a explicação não pudesse ser simples.
Além disso, naquela noite eu não estava em meu melhor, obviamente, e os momentos anteriores ao meu desmaio eram meio nublados em minha memória. De maneira que a impressão que tive de que a voz dele era parecida demais com a de meu pai talvez não passasse de um devaneio. Assim como existiam diversas explicações para os olhos de Logan serem iguais aos de minha mãe e seu sorriso me lembrar o de Norah às vezes. Explicações existiam às milhares, por certo. E a mais lúcida delas era que eu estava me deixando contaminar pelo quanto gostava dele. Pelo quanto, desde o início, sempre imaginei que se tivesse um filho...
Não! Isso era apenas a velhice e a proximidade da morte fazendo seu trabalho de me pôr a lamentar o que nunca me importei de ter deixado para trás. A vida não era nenhuma droga de novela onde coincidências absurdas aconteciam, por isso eu esperava que tudo não passasse de algum efeito do agravamento natural da minha maluquice costumeira.
No entanto, isso não diminuía a falta que ele e as meninas me faziam e, depois de tudo, saber que uma parte importante da família torta que construímos aqui estava longe era uma fonte diária de preocupações e ansiedade. Tudo por causa da teimosia daquele moleque em provar suas teorias impossíveis.
Se bem que “impossíveis” não era bem a palavra. Eu não podia ser assim tão cínico a ponto de me esquecer de minhas próprias conversas com Nate sobre a possibilidade — ainda que remota — de uma convivência pacífica entre Almas e humanos. Talvez fosse tudo altamente improvável para um futuro próximo, mas o esforço de Logan e Estrela era muito válido de qualquer jeito. Por isso, quando vi que não conseguiria dissuadi-los e que a ideia já tinha ganhado a adesão da maioria, tentei dar todo meu apoio. Mesmo assim, não me senti melhor quanto a tê-lo longe.
Eu não sabia se conversaria com ele a respeito das minhas suspeitas malucas, muito menos, se caso um dia chegasse a fazê-lo, como seria, que palavras usaria, que reações esperaria... Mas de uma coisa eu tinha certeza: por mais que eu amasse este Logan que eu conhecia — porque sim, eu amava, embora essa não fosse uma palavra que eu usasse com muita frequência, era verdade —, havia o outro. Aquele que eu não tive a oportunidade de conhecer e nem teria. Mas no qual eu agora sentia necessidade de pensar.
— Não entendo por que de repente esse assunto te interessou tanto — reclamou Candy, tentando não parecer aborrecida por causa do excesso de perguntas que eu andava lhe fazendo sobre suas lembranças da época em que foi suprimida. — Por que não pergunta para Melanie? Ela tem melhores condições de te esclarecer do que eu.
Eu não tinha a menor intenção de incomodar Candy. A bem da verdade, a mulher era tão gentil que a ideia de a perturbar já estava se tornando quase indigesta, mas eu não podia perguntar a Mel o que queria saber. Porque Mel era uma sobrevivente e eu sabia muito bem como era o exercício de resistir à supressão, eu mesmo já tinha feito isso, ainda que aos trancos e barrancos. O que me atormentava a mente era o que acontecia com quem não conseguia.
            — Desculpe, Candy. Sei que você não gosta de falar nisso, mas é que eu acho que... Bom, a experiência de Mel foi bem diferente da sua.
            — Tem Lacey também.
            E os coiotes lá fora, mas eu bem que poderia deixar cada um em seu canto e viver em paz!
            — Lacey não é tão má assim — ela emendou, lendo meus pensamentos. Ou mais provavelmente minha expressão de quem preferia um tratamento de canal.
            — Eu sei — menti. — Mas me sinto mais confortável falando com você. Ninguém aqui gosta de trazer à tona a maneira como Lacey chegou até nós.
            — Tudo bem. — Candy finalmente se rendeu. — Do que você se lembra?
            — Não me lembro de muita coisa. Acho que acordei primeiro depois que houve a inserção. Logan estava mais confuso que eu no começo, mas depois ele foi ficando mais lúcido. Nós nos mantivemos conversando, porque meu corpo estava fraco e a vontade de ceder à supressão ficava maior a cada minuto.
            — É, eu sei. Eu me lembro disso também. É quase como ter que manter os olhos abertos quando você precisa muito piscar.
            A definição era simples, mas ainda assim precisa, e quando Candy sorriu para mim de forma compreensiva, percebi que gostava de sua linha de pensamento. E também que a danada tinha um sorriso bonito. Porque, aparentemente, eu agora era do tipo que reparava nessas coisas.
            — Exatamente isso —  confirmei. — E depois eu acho que desmaiei. Então passei um tempo tendo uns sonhos esquisitos, como se estivesse dormindo, até que simplesmente comecei a perceber o ambiente ao meu redor de novo...
            — Depois seu corpo e, finalmente, seus movimentos. Comigo também foi assim, só que provavelmente muito mais devagar por causa do tempo de supressão.
            — Era aí que eu queria chegar. Você ficou anos... — Dispersa dentro de si mesma? Eu não sabia como definir, na verdade. Felizmente, ela pareceu me entender. — Você se lembra de alguma coisa? Estava acordada como Mel?
            Candy pensou um pouco, o que acabava sendo meio inesperado, porque era de se imaginar que depois de todo esse tempo ela tivesse feito isso muito vezes, isto é, pensar a respeito de seus anos “fora de si”. Mas, aparentemente, ela não tinha nenhuma resposta na ponta da língua.
            — Eu sempre achei que não estivesse — disse, finalmente. — Se você me fizesse essa mesma pergunta tempos atrás eu diria, sem sombra de dúvida, que não, não estava acordada. Mas o que aconteceu com você me impressionou um bocado, sabe? Vocês sempre foram discretos, mas eu convivo muito com Doc e Estrela, e assim acabei ouvindo coisas... Então comecei a pensar em minha própria experiência e percebi que tenho lembranças. No começo, eu nem tinha muita certeza se eram realmente isso ou se eram sonhos que tive depois, mas agora sei que eram memórias mesmo. Não é nada muito específico, mas o fato é que já não posso dizer se eu estava dormindo o tempo todo, como antes pensei que estava.
            — E essas lembranças se relacionam a quê?
            — A coisas que eram importantes para mim antigamente, mesmo que agora eu me sinta completamente mudada. — Algo em minha expressão deve ter denunciado minha confusão, porque Candy se apressou em me esclarecer. — Eu era uma pessoa muito rígida antes de tudo isso acontecer. Tinha uma religião e certezas muito específicas que eu não mudaria por nada, um mundo perfeitamente quadrado que não admitia curvas ou arestas sem aparar. Agora já não consigo mais ser assim, mas não é só porque certeza nenhuma cabe nesta nova realidade, e sim porque acho que um pouco de Verana ficou em mim. Ou muito, na verdade.
            Muitas vezes, Logan e eu falamos sobre isso, sobre o fato de ele e o humano terem, de certa forma, se fundido em um só. Por isso o que Candy estava me contando fazia todo sentido, mas ainda não me ajudava a chegar a nenhuma conclusão, porque o que eu queria mesmo saber, por mais que me custasse admitir, era como e por quanto tempo um humano poderia sobreviver depois da inserção.
            — Não estou certo de que entendi, Candy. Sobre as lembranças... Você acha que foram elas que te ajudaram a sobreviver?
            — Sim, é minha única explicação. Quando eu digo que mudei, você não entende a dimensão do quanto, mas comparando minha experiência com a de Melanie eu tenho certeza de que fiquei por causa do meu marido.       — Você era casada?
            Fiquei surpreso por não saber disso. Afinal, nós todos conversamos muito por aqui, considerando que em muitos dias é só o que temos para fazer. Não sou exatamente um modelo de livro aberto, mas acho que um laço forte o suficiente para mantê-la viva era algo que valeria a pena ser mencionado. Mesmo que eu não estivesse entre seus amigos mais chegados.
            — Eu fui, mas não faço ideia de onde ele esteja agora. Aparentemente, não aconteceu com Verana aquilo que acontece com muitas Almas, de sentirem uma identificação com os parceiros de seus hospedeiros, e ele deve ter ido para outro canto.
            — Sinto muito.
            — Não é de se espantar, ele não me amava e não era um casamento feliz — ela completou, como se me dissesse que eu não precisava lhe dar as condolências. — Mas eu estava presa a ele, não admitia a possibilidade de separação. E é por isso que digo que mudei muito. Porque desde que abri os olhos eu soube que, mesmo que isso fosse possível, eu jamais voltaria para um relacionamento abusivo como aquele.
            Abusivo. A palavra me picou como uma punhalada. Não havia equívoco possível quanto ao que ela queria dizer e meu estômago se revoltou de ódio, porque eu queria poder arrebentar a cara de um sujeito como que não respeitava mulheres e crianças, mesmo que todos eles tivessem ficado no passado e agora provavelmente fossem Alminhas amigáveis.
A ausência desses canalhas era uma vantagem inegável do fim do mundo conhecido, mas ao mesmo tempo me causava uma frustração egoísta por não poder fazer a justiça tardia pela qual eu ansiava. Desde que soube do passado de Logan, lidar com a raiva estava sendo... Bom, o maior desafio dentre os desafios. O estômago embrulhado era resultado de ter que engolir todas as coisas amargas que passavam por minha cabeça cada vez que pensava no assunto. Mas era melhor guardar essa parte para mim.
— Mais uma vez, sinto muito — falei, forçando-me a deixar minha revolta de lado. Mexer nessas lembranças devia ser muito doloroso para ela, e meu desconforto perdia a importância diante disso. — Queria que você não tivesse passado por algo assim.
— Eu também, mas já me perdoei meu passado — ela respondeu. Em seguida, a atmosfera pareceu pesar um pouco e Candy resolveu fingir que os livros de Doc sobre a mesa estavam em completa desordem, precisando de sua total atenção. — Bem — suspirou, sorrindo em seguida — , consegui responder o que você queria saber?
Sim.
E não.
Eu não sabia bem o que estava esperando ouvir, porque, afinal, nada daquilo era exatamente novo para mim. A experiência de Candy tinha mostrado apenas que era possível sobreviver à supressão, da mesma forma que a da Sunny deixava evidente que nem sempre era esse o caso, mesmo que uma menina como Jodi tivesse muito a que se prender. Portanto, se havia algum critério que definisse quem tinha chances, ele não era nada óbvio. Talvez se fosse a teimosia o Logan humano ainda estivesse lá dentro, mas o que significaria se fosse esse o caso? E se não fosse?
— Você sofreu? Digo, enquanto Verana esteve no seu corpo?
— Não. Como eu disse, era como se eu estivesse dormindo. Não foi assim com você?
— Foi exatamente assim — confirmei, mais para encerrar o assunto e não correr o risco de que ela fizesse outras perguntas.  Não era justo depois que eu tinha feito as minhas, mas eu podia viver com essa injustiça, especificamente. — Obrigado por me aguentar, Candy. É que esse é um assunto difícil de conversar com outra pessoa que não seja o Logan, e como ele não está aqui...
— Você sente falta dele, não é?
E bem de acordo com o esperado, aqui estava uma pergunta que eu não queria responder. Não porque eu não soubesse a resposta. A maioria das perguntas que não gostamos de responder são aquelas cujas respostas estão na ponta de nossa língua. Era só porque eu não tinha engolido ainda o quanto eu tinha me tornado egoísta nos últimos tempos, disfarçando minha vontade de tê-lo por perto — mesmo que fosse para esquentar minha cabeça com suspeitas que eu não tinha como confirmar —  com uma preocupação meio injustificada com a segurança do grupo.
“Confie em mim, Jeb”, disse Logan na manhã em que partiu. “O único risco que há vai ser voltarmos de mãos vazias.”
E então ele riu, daquele jeito que fazia minhas preocupações parecerem meras excentricidades. Do jeito que Norah ria. E quando eu quis abraçá-lo em despedida, não consegui. Simplesmente deixei-o ir. Com um tapinha nas costas e um punhado de advertências de cuidado.
— Claro — respondi, tentando manter um tom neutro.
— Claro — Candy repetiu, e em seguida sorriu, cheia de mistérios como se entendesse. — Eu... nunca falei sobre meu marido com ninguém...
— Vou guardar segredo! — apressei-me em dizer.
— Só queria dizer obrigada. Foi bom conversar. Mas tenho que ir ajudar com o jantar agora, prometi a Paige.
— Tudo bem — resmunguei sem graça pela falta do que dizer.
Na porta do hospital, Candy se voltou para mim, e pela primeira vez enxerguei uma amiga nela.
— Você é um homem bom, Jeb. As pessoas fazem bem em confiar em você. Talvez você pudesse confiar um pouco nelas também.
E com essas palavras dignas de serem ruminadas e digeridas, Candy saiu para cuidar do jantar.

sábado, 12 de dezembro de 2015

ELS Cap 35

Capítulo 35 — Calma
I lose control when I'm close to you babe
I lose control don't look at me like this
There's something in your eyes, is this love at first sight
Like a flower that grows, life just wants you to know
All the secrets of life

It's all written down in your lifelines
It's written down inside your heart

You and I just have a dream
To find our love a place,
where we can hide away
You and I were just made
To love each other now, forever and a day

(You And I – Scorpions)

Acho que eu não sabia o quanto tinha realmente sentido a falta de Alberto até reencontrá-lo hoje. Falar com ele pelo telefone ou por escrito sempre é bom o bastante, mas nada se compara a estar na presença dele, ouvir sua voz sem o filtro da distância e abraçar a sensação de volta ao lar que ele me traz. Saudade é um sentimento com o qual me acostumei e que forjou a maior parte das minhas defesas emocionais, mas a beleza de saciá-la é algo que provavelmente nunca deixará de me surpreender, por isso, apesar do dia que tive, estou em paz. Embora também esteja exausta.
Estar com Beto me faz muito bem e por isso resisti o quanto pude a nos separarmos, mas eventualmente o cansaço veio com força e me venceu. Sinto-me como se estivesse acordada há uma semana. Não pelas horas que efetivamente passaram desde que o telefonema de Marina me despertou, mas pelo impacto deste dia estranho, que com seu misto de emoções extremas parece não acabar.
Não é tarde agora, a noite está apenas começando e se não fosse minha folga eu ainda teria algumas horas de trabalho pela frente, um fim de domingo típico para mim. Contemplo por um momento o quanto seria bom que este fosse apenas mais um dia igual aos outros, mas apesar de minha ânsia por normalidade, fico feliz por poder voltar para o refúgio de meu apartamento e descansar ao invés de trabalhar, mesmo que Blue não esteja lá para me distrair com sua recepção exaltada e seu amor reconfortante. Meu coração se aperta um pouquinho quando me lembro que não o verei até amanhã. Em pouco tempo, a casa já se tornou tão plena da presença dele que não consigo mais imaginá-la vazia. Espero que ele não sinta a minha falta como sinto a dele.
Casa vazia. Ausências. Estou cansada disso também.
Tento me focar no presente e, enquanto estou dirigindo, meus pensamentos se alternam entre coisas importantes e aleatórias. Penso em Beto e Júlia, e em como estão bonitas as árvores floridas no canteiro central da avenida. Penso em almas perdidas querendo fazer mal a Caio de propósito e no cheiro bom que vem da pizzaria de onde sai um entregador apressado em sua moto, passando ao meu lado quando o semáforo fica verde. Penso na pequena Clara, filha de Marina e Fernando, e em como deve ser sua vozinha de criança esperta e feliz enquanto canto junto com a música que me envolve vinda do rádio. Penso em mim mesma, por fim. E em Eric. Na inevitável vontade de me fechar em nossa bolha frágil e não sentir mais nada, exceto sua presença em toda parte.
                Quero sua voz, seus olhos e suas mãos macias sobre mim. Quero a calma e o caos que se instalam e se alternam quando nos tocamos. E quero não ter que pensar nas coisas que escondemos um do outro, em toda carga que ele deve carregar completamente sozinho e em como nunca parece realmente disposto a me deixar entrar. Quero que as dúvidas sejam apenas suposições distantes e fictícias e que minha vida possa ser simples outra vez. Só que com ele.
                Estaciono o carro e entro no elevador mecanicamente, deixando meu corpo executar sem pressa as ações rotineiras enquanto minha mente fica à deriva. Ainda estou pensando em seus olhos oceânicos quando a surpresa me toma. Em frente ao meu apartamento, como se a força de meu desejo fosse o bastante para trazê-lo até mim, vejo Eric à minha espera. Por um momento, resisto à ideia de que alguma coisa na cena me incomoda e a alegria de vê-lo é maior que a razão, mas então o que quer que esteja me parecendo errado começa a penetrar meus sentidos.
Eric está sentado no chão do corredor, as costas apoiadas na parede ao lado da minha porta e as pernas dobradas diante de si. Seus cabelos estão desalinhados, como se ele tivesse passado os dedos por eles repetidamente, e há uma tensão estranha em sua postura. Quando observo seu rosto com mais atenção, percebo que olheiras ligeiramente escuras contrastam com a palidez doentia que sua pele não costuma ostentar e acentuam a profundidade do azul que me encara de volta. Sua expressão é, como sempre, difícil de decifrar, mas pela primeira vez consigo ler sua energia claramente e ela é angustiada e caótica, refletindo a partir dele em todas as direções como se sua alma fosse mesmo o prisma que sempre me pareceu. Vê-lo assim é uma imagem perturbadora e dolorosa. E eu não sei o que pensar. Exceto que de repente me dou me conta de que ele não deveria estar aqui.
                —  Oi —  digo, apenas para ter certeza de que não é algum tipo de devaneio proveniente do cansaço, mas ele não responde e continuo suspensa no que parece ser um sonho ao mesmo tempo bom e estranho.
Senti saudades dele, mas por mais que ao longo de todo dia eu tenha ansiado por vê-lo, estar diante dele agora é algo totalmente inesperado, como uma materialização da máxima de que se deve ter cuidado com o que se deseja. Tento ficar feliz, porque afinal de contas ele está aqui e meu corpo e meu coração não querem explicações, especialmente quando ele parece carecer tanto de mim, mas minha mente não está muito a fim de se calar e hoje ela está precisando de algumas respostas.
— Como você entrou aqui? Como você sempre entra? — pergunto, porque não é a primeira vez que encontro indícios de seu livre acesso ao prédio.
Uma suspeita que eu nem sabia que tinha se confirma quando ele me estende a mão como se quisesse que eu a segurasse, mas bem em sua palma está a chave da porta do meu humilde prédio com valor de condomínio modesto demais para bancar um porteiro. Não sei como ele conseguiu isso, e nem por que achou que precisava, mas consigo discernir nitidamente a vergonha em seu olhar, a consciência de que foi invasivo.
Sigo a direção de seus olhos quando ele os desvia de mim e vejo que as coisas dele estão espalhadas pelo chão. Mas então reparo bem e noto que “espalhadas” não é uma boa palavra. Como numa versão reduzida da mesa em seu escritório, tudo está perfeita e estranhamente distribuído: quatro chaves posicionadas em fila, ordenadas por tamanho, enquanto o chaveiro de onde elas provavelmente foram tiradas está no meio um pouco acima, formando um triângulo equilátero com a carteira e o celular.
Vejo sua mão se mover de forma hesitante, como se ele fosse recolher tudo e se levantar dali, falar comigo e me dar uma explicação dissimulada e plausível, mas ele para o movimento no ar, a meio caminho, e o que faz em vez disso é reposicionar a sequência suprindo o espaço que antes devia estar sendo ocupado pela minha chave, esmerando-se para deixar as que sobraram à mesma distância, medida com a lateral do indicador. Eric trabalha nisso como uma minúcia artística e não tenho certeza se ele percebe quanto tempo fica em silêncio remontando seu triângulo perfeito, me evitando.
A coisa toda meio que me assusta e quero entender o que está acontecendo com ele, mesmo tendo certeza de que ele não vai me contar. É desalentador e inusitado o quanto esse homem normalmente tão altivo e seguro de si agora parece mais frágil e confuso do que nunca. E não acho que seja coincidência que todas as vezes em que pude olhar um pouco mais profundamente suas emoções foi exatamente assim que ele me pareceu, embora nunca tanto quanto hoje.
Sento-me ao seu lado, controlando meu impulso desesperado de abraçá-lo, deitar sua cabeça em meu colo e acolher seu corpo delgado e forte como se ele fosse algo que eu pudesse guardar e proteger. Faço isso porque meu movimento desperta nele uma reação estranha, como se por um milésimo de segundo ele se encolhesse, com medo de mim ou de alguma coisa que só ele vê. Há um breve lampejo em seus olhos de algo que não consigo entender e logo a energia caótica já não é mais tão evidente, embora tudo ainda me pareça muito confuso.
— O que significa isso? — pergunto sem saber ao certo a que parte me refiro, apenas tentando entender um pouco do que está acontecendo com ele neste momento
— Eu... Paguei um vizinho seu pela chave. Foi no dia em que te deixei o presente.
Claro. Daquela vez eu achei estranho, mas formulei uma explicação plausível na hora e depois acabei esquecendo de perguntar. Imagino se ele diria a verdade se eu o fizesse, mas por mais estranho que pareça, fico achando que sim.  Ele sempre me disse que não podia me contar certas coisas, mas que não inventaria mentiras para responder às minhas perguntas. Quem nunca o pressionou por respostas claras fui eu.
Você sequer fez perguntas, quem dirá as certas! Mas é assim com quem tem telhado de vidro, não é?
— Desculpe — ele diz e seu coração parece preso em sua garganta, fazendo aparições na falha sutil de sua voz, nos dedos que se movem nervosamente, nos olhos que não sustentam os meus por mais do que alguns segundos...
Ele me devolve a chave e segura minha mão em torno dela, beijando meus dedos enquanto o calor de sua pele e de seus lábios me dissolve qualquer resistência. Nunca vou entender isso, nunca vou saber se todas as pessoas se sentem assim, mas o toque de Eric é uma prisão à qual me entrego sem reservas, querendo sempre a sentença perpétua. É só a pressão desesperada de seus lábios, o calor de sua mão em torno da minha, mas me faz querer fechar os olhos e me entregar àquela força que me envolve como se fosse sua única razão de existir.
Não resisto, nem vejo por que fazer isso, e minha mão livre busca seus cabelos, os dedos percorrendo de leve sua nuca e a rigidez dos músculos de seu pescoço que relaxam lentamente sob a pele quente. Um pouco daquela dor de antes se dissolve assim, nesse contato simples, seus olhos de desanuviam e eu subitamente entendo tudo. O conhecimento estava ali o tempo todo, apenas à espera do minuto exato em que precisava ser compreendido. Mas agora é claro como água. Eu ouvi. E sei. Eric também é uma missão.
É como se uma luz tivesse se acendido na escuridão a que meus olhos estavam acostumados, e agora é muito fácil perceber. Não foi por acaso que ele entrou em minha vida, não é coincidência que, apesar de todas as vezes em que quis desistir e ser humana, eu tenha resistido tempo o suficiente para ouvir esse Chamado específico. Não é mera impressão romântica que nossa história pareça programada para acontecer, escrita antes de nossa própria existência.
Eric realmente foi feito para mim. Para que pudéssemos, de formas que ainda não sou capaz de entender, salvar um ao outro para sempre.
Uma calma absoluta me invade e a confusão que vejo em seu rosto não me assusta mais. Sou capaz de lidar com isso, agora mais do que nunca eu sei. Vou cuidar dele, dar-lhe o tempo de que precisa. Vou tentar entendê-lo e esperar por ele. E vou fazer isso da forma certa, sem sair do seu lado. Vivendo todos os passos que nosso relacionamento precisa dar, que nós merecemos. Preciso que ele entenda isso.
— Se você queria uma chave, deveria ter permitido que eu a desse a você. Poderia ter pedido.
                Ele olha para mim esperançoso, como se já tivesse desenhado em sua mente todo um cenário em que eu o expulsaria daqui e eu o estivesse reestruturando neste momento. Apesar de todas as vezes em que lhe disse que não o deixaria, ele ainda parece carregar todas as dúvidas que eu gostaria que não existissem mais, porque o que acontece dentro de mim é bem mais simples do jamais foi para ele. Eu o quero. Agora ainda mais.
— Essa é você ficando brava comigo? — ele testa, sorrindo pela primeira vez desde que cheguei.
— Não, esta sou eu cansada demais para fingir que não te perdoo. E muito aliviada de que você esteja deste lado da porta.
É verdade. Muito embora eu não entenda bem as intenções de Eric, e por mais que minhas reações humanas — e físicas — a ele por vezes nublem minha percepção, eu sempre soube que ele nunca me faria mal de propósito. Meu instinto especial me diz isso, mas há também o que vejo em seus olhos. Ainda assim, não gosto da ideia de que ele ultrapasse meus limites e quero que ele entenda que uma vez já foi o suficiente.
— Eu juro que não faria isso. Juro que não entraria na sua casa. — Ele parece ansioso para que eu saiba disso, e eu acredito, mas ele ainda não parece capaz de apostar que está tudo bem entre nós. —  Desculpe — repete.
Acho que ele nunca me pareceu tão bonito quanto neste momento, completamente desprovido de suas defesas usuais, meu príncipe fora de seu trono de gelo, esperando como se eu também fosse seu salto de fé. Sei que nas atuais circunstâncias isto é apenas simbólico, mas estendo a chave de volta para ele, desta vez porque quero, porque decidi confiar em seu amor e na velocidade de meus próprios passos em sua direção.
— Espere até que eu queira te dar a chave do apartamento, ok? Talvez depois que eu souber mais sobre você do que apenas seu sobrenome.
O anseio pela verdade não desaparece como mágica quando resolvo confiar plenamente nele. Pelo contrário. A confiança me vem tão naturalmente quanto a expectativa de que ele confie em mim também, e eu quero conhecê-lo. Quero saber tudo o que houver para saber sobre ele e quero que ele me decifre e me aceite por inteiro em troca. É só que depois de uma vida inteira de evasivas e segredos eu sei o quanto pode ser difícil decidir qual será o próximo passo, especialmente quando temos os dois que dá-lo ao mesmo tempo.
Neste momento, porém, nossos corpos parecem decidir por nós e ele me beija, retendo-me em seu abraço com uma espécie de desespero ancestral e frenético. Me rendo facilmente e correspondo, admitindo para mim mesma que era isso que eu queria desde o princípio, que seus lábios me fizessem esquecer do mundo.
— Minha Luz. Minha Clara. Você é minha — ele me diz, a voz rouca pelo desejo rasgando meus sentidos e entrando em minha alma como se não houvesse nenhuma barreira entre nós. Ao menos quando estamos assim.
Preciso de mais. Imediatamente sei disso. E volto a beijá-lo, porque sempre amei as palavras, mas esse tipo de silêncio está me dizendo muito mais. Infinitamente mais. Está me dizendo que sim, eu sou mesmo dele, e ele é meu também.
Exploro sua pele, provando seu gosto com minha boca, deixando minhas mãos testarem a firmeza de seus músculos. E então ele faz o mesmo, segurando meu seio como se reivindicasse o que meu corpo quer lhe dar. O calor de suas mãos atravessa o tecido e a língua dele desliza pelo meu decote, provocando, disposta a ir o quão longe eu permitir.
Um gemido escapa por meus lábios e o som daquele misto de alívio com febre me faz atentar para a realidade inconveniente de que estamos sentados no chão, prensados contra a parede do corredor, e que a qualquer momento alguém pode aparecer e nos forçar para fora de nosso mundo. E eu ficaria furiosa com isso.
— Estamos no chão do corredor — digo, e rio imaginando o que ele diria se eu saísse exigindo privacidade de algum vizinho que inconvenientemente resolvesse passar por aqui.
                Você perdeu mesmo a vergonha!
— Daríamos um belo espetáculo para os vizinhos de andar. — Um dos cantos de seus lábios se levantam naquele sorriso tipicamente malicioso que ele costuma me mostrar quando está me provocando, e mais um pouco de meu bom senso sai correndo escada a baixo. — Mas prefiro que a visão seja só minha — ele completa, plantando a imagem em minha cabeça, o que, sinceramente, só piora as coisas para mim.
É, esse é mesmo o tipo de coisa que ele diria, caso você ainda esteja se perguntando o que ele acharia de sua recém-descoberta safadeza.
“Não tão recente assim.”
Sei o que vai acontecer se eu o chamar para entrar e continuarmos assim, mas talvez... Não! Nós já conversamos sobre isso. Tempo ao tempo.
Rio sem graça e desvio o olhar, porque aquele sorriso... Ah, preciso me concentrar!
— Não conheço você, Eric. Nem você me conhece bem. Sabemos tão pouco um do outro...
A mão dele sobe distraidamente pelo meu braço e desliza pelo contorno de meu ombro, repousando ali enquanto a ponta de seus dedos massageia suavemente a pele sob a alça da regata que estou usando. Ele não percebe o quão íntimo aquele toque me parece, o quanto o calor que sua pele emana me faz querer fechar os olhos. Seus pensamentos parecem perdidos em outro lugar, enquanto os meus...
Estão perdidos também!
— Pergunte — ele me surpreende de súbito, e demoro um momento para entender o que ele quer dizer.
A palavra fica girando em círculos em minha cabeça, brigando para entrar em qualquer espaço que eu lhe ceder e criar raízes ali. Então, por fim, acontece. Ela floresce e percebo que Eric acabou de dar o primeiro passo. E está me esperando do outro lado do limite que estivemos esperando que se quebrasse.
O que faço com isso agora?
O caminho que se estende em minha frente não é familiar e isso, obviamente, me assusta um pouco. Meu instinto de proteger meus segredos começa a gritar. Foram anos me fechando em meu próprio mundinho restrito. Anos suficientes para que eu aprendesse que perguntas que vêm acompanhadas de respostas têm em seu encalço a intenção de reciprocidade. Parecia mais fácil imaginar como seria quando Eric me desnudasse esta possibilidade, mas quando ele finalmente me deixa entrar fico com medo.
 “Ei, gato, já que você me contou tantas coisas, também tenho algo a dizer. Bom, é que... Eu sou um tipo de anjo, sabia? Ah, o quê? Você sempre soube? Tudo bem pra você, então? Não, não. Não estou brincando... É, não é uma metáfora. É só... um pouco complicado. Mas veja pelo lado bom: sabe aquele ciúme todo que você tem do Caio? Não precisa. É que ele é um anjo também. E é meio que meu filho. É, eu tenho idade para isso, sim. Tenho inclusive idade para ser sua mãe também. Eu sei que é complicado, mas achei que estava na hora de você saber.”
Acalme-se! Ele vai entender. Você o ama porque ele é especial. O amor é um desígnio. Ele é o seu. O que significa que você é o dele.
A conversa que tive com Beto hoje volta a ressoar em minha mente.
Beto e Júlia.
Caio.
Eric.
A necessidade da verdade.
O homem que amo abrindo as portas de seu coração para mim e fazendo-me amá-lo ainda mais por isso.
No final, é isso que importa.
Tenha coragem. Como ele. Talvez a noite não tenha horas o suficiente para que vocês precisem chegar nas partes complicadas. Talvez “tempo ao tempo” seja isso, afinal. Começar do começo e partir daí. Aos poucos.
Sim, talvez eu não aprenda tudo o que há para aprender sobre nós dois esta noite. Talvez eu não saiba fazer as perguntas certas e tenha medo do que vou ouvir em resposta. Talvez eu mesma não consiga dizer o que preciso dizer. Mas o fato é que este dia que parece sem fim vai terminar em algum momento. E em seu lugar virá um dia novo. E depois outro. E mais outro. E em todos eles, Eric estará comigo. Isso me parece razão o suficiente para encarar o salto de fé outra vez.
— Vamos —  digo a ele, estendendo a mão para nos levantarmos e entrarmos. — Vamos fazer isso lá dentro com uma xícara de café.
—  Só se for café irlandês[1] para mim — ele brinca.
— Pode ser que eu queira um também — rio, mas não estou mais com medo.
Nem um pouco.
Eu acho.



[1] Irish coffee (ou café irlandês) é uma bebida a base de café, uísque irlandês, açúcar e chantilly. Há um estereótipo de que os irlandeses são grandes consumidores de bebidas alcoólicas e Eric brinca com essa ideia, considerando que há uma certa tensão na situação.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

CD2 - Cap 19

Capítulo 19 – No Caminho Certo

We are young, we are one
Let us shine for what it's worth
To your place, place, place
We're on our way, way, way
We're on our way, way, way
We're on our way somehow
Hold me close, close, close
We're losing time, time, time
We're losing time, time, time
We're falling to the ground


(On Our Way – The Royal Concept)

Estrela

            Logan estava vivendo e respirando Nova Orleans, minha nossa!
            — Laissez les bons temps rouler — ele recitava num francês impecável. "Deixe os bons tempos rolarem", como dizia o lema não-oficial da cidade. Essa era sua resposta padrão para tudo agora.
            Ele conseguia até mesmo fabricar um “autêntico” sotaque cajun[1] se quisesse, mesmo que tivéssemos decidido não tentar nos passar por nativos quando nos mudamos para cá, três meses atrás.
            Dissemos a todos que vínhamos de Albuquerque, no Novo México, porque a natureza semelhante à do Arizona garantiria que qualquer menção ao deserto que Lindsay eventualmente deixasse escapar se justificaria, e porque, ainda assim, o estado vizinho ficava a uma distância segura do nosso lar, incrustado nas rochas de Picacho Peak. Além disso, Albuquerque era uma cidade grande o bastante para explicar o nosso desconhecimento de algumas áreas, caso encontrássemos alguém que conhecesse o lugar e começasse a fazer perguntas.
            Nós já tínhamos estado lá algumas poucas vezes e Melanie, que havia nascido em Albuquerque, apesar de ter se mudado quando ainda era muito pequena, nos falou sobre o que se lembrava. Por pura precaução, procuramos estudar a cidade também, tentando reunir todas as informações que pudéssemos. Mas a verdade é que não esperávamos por mais do que a curiosidade rotineira que algumas Almas manifestavam quando conheciam pessoas novas. E para elas construímos uma história plausível e interessante, que justificava tanto nossa saída do nosso lar fictício no Novo México, quanto nossa mudança daqui quando decidíssemos que era hora de partir.
            Éramos Tempestade Solar e Luz das Constelações, interessados em conhecer o máximo de lugares diferentes que pudéssemos conhecer, registrando todas as particularidades que pudéssemos perceber. Explicávamos que nosso objetivo real era estudar e comparar a influência da herança dos humanos para nossos hábitos, instruindo as novas gerações, como nossa filha humana, por exemplo, sobre tolerância e diversidade, entre outras coisas.
Dizíamos que tínhamos pensado nisso quando começaram nossas inquietações sobre o futuro dela, o que não deixava de ser verdade, porque Logan sempre achou que as mentiras mais fáceis para nós eram aquelas que constituíam versões próximas da realidade. E ele tinha razão. Era o melhor disfarce que já tínhamos elaborado. Para a situação mais inusitada e potencialmente perigosa que já tínhamos vivido também. Então era fundamental que funcionasse, como de fato estava funcionando.
O mundo das Almas era fundamentado em confiança mútua. A crença no bem comum e a colaboração irrestrita de todos para alcançá-lo garantia o respeito à individualidade e também à privacidade. Quando você dizia uma coisa, ninguém tinha motivos para contestar. Então tudo vinha correndo bem desde que nos registramos no Escritório Demográfico.
Como zeladores da ordem, os Buscadores é que atribuíam moradias a quem chegava à cidade, e as tarefas mais genéricas também. Como muitas dessas ocupações, como a limpeza da cidade, por exemplo, eram feitas coletivamente, cada morador novo tinha que se apresentar e dizer quando e quantas vezes poderia colaborar. Da mesma forma, quem fosse embora tinha que comunicá-los também, como fizemos quando deixamos Phoenix.
Confesso que a coisa toda de falar com Buscadores me deixou muito tensa, mas a duras penas percebi que não era realmente perigoso. O Escritório existia apenas como uma forma de controlar a densidade populacional e distribuir os trabalhos comunitários, mas não havia registros muito detalhados.
De início, um dos meus medos era que alguém pudesse entrar em contato com o Escritório de Albuquerque, mas Logan me garantiu que isso não era feito desse jeito. De fato, quando alguém saía da cidade, o Escritório local simplesmente dava baixa nos nomes, considerando que as atribuições daquela Alma seriam devidamente redistribuídas nos dias seguintes e que havia uma moradia vaga, e era a isso que o registro se limitava. Ninguém se importaria com para onde íamos ou por quê.
De qualquer forma, não pude evitar a apreensão quando tivemos que nos registrar, e um pouco também nos dias subsequentes, mas então eu percebi que o começo era o pior momento e que o pior momento era, na verdade, só um monte de expectativas pessimistas. Ninguém desconfiava de nada. Eu só tinha esquecido como era viver entre as Almas. Ou, como Logan lembrou, meu tempo fora das cavernas tinha sido cercado de medo e ansiedade por proteger os segredos de Peg, e era difícil imaginar que o cotidiano normalmente era só mesmo isto: normal.
Então, não mais que de repente, aqui estávamos nós “brincando de casinha”, como diria Kyle. Saindo para trabalhar de manhã, levando Lindsay à escola, cozinhando juntos no fim da noite, namorando nos parques enquanto nossa filha brincava... Coisas perfeitamente normais. Para os outros.
Eu me sentia culpada por estar gostando tanto disso, mas não podia negar que, se não fosse pela saudade terrível que me chamava de volta, podíamos ser muito felizes em Nova Orleans. Ou em qualquer outro lugar, na verdade. Felizmente, a falta que sentíamos de todos — sobretudo de John — nos mantinha focados.
— Você percebe, amor? Estamos no caminho certo — Logan comentou quando chegamos em casa naquele fim de tarde.
Tínhamos estado num dos muitos festivais no Quarteirão Francês, nos divertindo e conhecendo Almas que se encantavam com Lindsay e com as ideias sobre convivência pacífica que estávamos lançando.
Logan tirou o chapéu Fedora que era sua nova mania e passou os dedos pelos cabelos castanho-claros, do jeito que sempre fazia quando estava nervoso ou empolgado. Olhei para ele e me perdi por um instante, feliz pelo quanto ele estava mais tranquilo e leve agora que a “crise pós-Jeb” parecia sob controle. Os pesadelos aconteciam com cada vez menos frequência, e meu marido estava finalmente entendendo que não podia se preocupar o tempo todo, que era preciso, como diziam aqui e ele aprendera a repetir, deixar os bons tempos rolarem.
Naquela manhã tínhamos tido o que considerávamos um progresso incalculável. Desde que chegamos, eu estava trabalhando em uma escola infantil, como orientadora das crianças humanas. Esse tipo de instalação era uma novidade na nossa sociedade, mas àquelas alturas havia um bom número delas em cada parte do mundo, perfeitamente organizadas à nossa maneira.
Lá, as crianças humanas conviviam entre si e aprendiam a manter o mundo do jeito que estava agora: restaurado e harmônico. Não escondíamos nada delas, era-lhes dito que pertencíamos a espécies diferentes, que as coisas eram muito diversas antes, mas isso era apenas teoria em suas mentes em desenvolvimento. Na prática, o mundo delas era o nosso, nós éramos seus pais, suas famílias, seus irmãos, e todos eram tratados como iguais, exceto que, assim como no mundo de antes, as crianças precisavam de escolas.
Não havia muita coisa semelhante às escolas humanas, porém. Claro que no devido tempo elas aprendiam coisas como ler e escrever, além de serem estimuladas nas habilidades artísticas intrínsecas à condição humana, mas de resto eram instruídas na nossa ciência, livres para ir e vir e aprender sobre o que quer que desejassem, no tempo que escolhessem.
Também não havia professores, não como antigamente. Voluntários vinham todos os dias para ensinar o que soubessem: jardinagem, culinária, o jeito como certo produto era fabricado, como os rios tinham sido limpos e todo tipo de coisa que valesse a pena ser ensinada, o que para nossas crianças curiosas era absolutamente tudo. Eu, em conjunto com outros Orientadores, era mais como uma espécie de babá que os acompanhava e os ajudava a manejar e reter o conhecimento novo.
Os mais velhos conviviam com os mais novos e os ajudavam a aprender também, eram incentivados a cuidar deles, tanto quanto de si mesmos, e não havia séries ou avaliações. Quando atingissem a idade adulta, eles se integrariam na sociedade de acordo com sua vocação, aprimorando os conhecimentos necessários para isso com Almas experientes.  O mesmo acontecia com as Almas que ocupavam hospedeiros “imaturos”, mas sua educação era diferenciada, embora acontecesse nas mesmas instalações e houvesse partes em comum.
A convivência era tranquila e produtiva. As Almas floresciam em conjunto com seus corpos e evoluíam dia a dia, naturalmente mais rápido do que os humanos, mas ainda assim num ritmo apropriado à maturação de seus hospedeiros. A eles era dada toda atenção necessária, mas a verdade era que, animados pela perspectiva de uma sociedade cada vez mais diversa e interessante, os olhos de nossa comunidade estavam voltados para a novidade do crescimento dos humanos.
Humanos diferenciados por serem nossos filhos, nascidos num mundo em que tinham o direito à bondade e a chance de nunca precisarem abdicar de sua pureza. Participar de alguma forma disso era uma experiência maravilhosa! E eu mal podia esperar para dividi-la com Peg, assim como não conseguia evitar meu desejo de que John estivesse aqui, passando por novas situações exatamente como Lindsay. Como mãe, a sensação de ajudar a construir quem aqueles seres encantadores seriam era avassaladoramente boa, mas acompanhar enquanto cresciam por si mesmos em companhia de seus pares era ainda melhor.
Era isso que perdiam os pais que entregavam seus filhos como hospedeiros. As Almas que os ocupavam precisavam crescer também, adquirir todo conhecimento e experiência que faltava a seus corpos, mas a menos que também tivessem nascido na Terra não era a mesma coisa.
No que dizia respeito a eles, a Terra não era um mundo novo visto por olhos inocentes e puros. Era apenas um mundo novo. Selvagem. Diverso. Assustador até. Mas não realmente um desenho a que se acrescentavam traços novos e únicos a cada dia. Jamais a descoberta infinita proporcionada por um coração imaculado.
O espanto das crianças com o mundo em que viviam nunca diminuía, sua delicadeza em lidar com ele jamais nos decepcionava. Eles eram naturalmente capazes de uma inteligência emocional que era constantemente incentivada e aprimorada. E com elas aprendíamos mais sobre ser Almas do que jamais poderíamos ensinar-lhes sobre ser humanos. Era paradoxal e lindo. Cada atitude infantil em que nos víamos misturados e refletidos restaurava nossa fé na humanidade e de que um dia este planeta poderia ser novamente entregue aos seus herdeiros e quem sabe, caso eles assim o desejassem, divididos conosco. Por isso o interesse do conselho.
Por influência de Logan — ou melhor, de Tempestade Solar, seu membro mais recente —, naquela manhã eles tinham sido persuadidos a visitar a escola, ao mesmo tempo que propostas do tipo estavam sendo espalhadas aos conselhos de todo o país. Lentamente, uma realidade de paz entre humanos e Almas ia se tornando cada vez mais palpável.
Essa era nossa vitória, o que Logan queria dizer com estarmos no caminho certo. Era um começo e, em nome de nossos filhos, não nos furtaríamos a percorrer todo o caminho lançando novas sementes. Um dia de cada vez.








[1] No século XVIII, devido a conflitos com os ingleses, muitos franceses saíram de uma colônia no Canadá e se estabeleceram em Nova Orleans, originando a cultura cajun a partir da influência mútua e convívio com os moradores locais.

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