quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

CD2 - Cap 19

Capítulo 19 – No Caminho Certo

We are young, we are one
Let us shine for what it's worth
To your place, place, place
We're on our way, way, way
We're on our way, way, way
We're on our way somehow
Hold me close, close, close
We're losing time, time, time
We're losing time, time, time
We're falling to the ground


(On Our Way – The Royal Concept)

Estrela

            Logan estava vivendo e respirando Nova Orleans, minha nossa!
            — Laissez les bons temps rouler — ele recitava num francês impecável. "Deixe os bons tempos rolarem", como dizia o lema não-oficial da cidade. Essa era sua resposta padrão para tudo agora.
            Ele conseguia até mesmo fabricar um “autêntico” sotaque cajun[1] se quisesse, mesmo que tivéssemos decidido não tentar nos passar por nativos quando nos mudamos para cá, três meses atrás.
            Dissemos a todos que vínhamos de Albuquerque, no Novo México, porque a natureza semelhante à do Arizona garantiria que qualquer menção ao deserto que Lindsay eventualmente deixasse escapar se justificaria, e porque, ainda assim, o estado vizinho ficava a uma distância segura do nosso lar, incrustado nas rochas de Picacho Peak. Além disso, Albuquerque era uma cidade grande o bastante para explicar o nosso desconhecimento de algumas áreas, caso encontrássemos alguém que conhecesse o lugar e começasse a fazer perguntas.
            Nós já tínhamos estado lá algumas poucas vezes e Melanie, que havia nascido em Albuquerque, apesar de ter se mudado quando ainda era muito pequena, nos falou sobre o que se lembrava. Por pura precaução, procuramos estudar a cidade também, tentando reunir todas as informações que pudéssemos. Mas a verdade é que não esperávamos por mais do que a curiosidade rotineira que algumas Almas manifestavam quando conheciam pessoas novas. E para elas construímos uma história plausível e interessante, que justificava tanto nossa saída do nosso lar fictício no Novo México, quanto nossa mudança daqui quando decidíssemos que era hora de partir.
            Éramos Tempestade Solar e Luz das Constelações, interessados em conhecer o máximo de lugares diferentes que pudéssemos conhecer, registrando todas as particularidades que pudéssemos perceber. Explicávamos que nosso objetivo real era estudar e comparar a influência da herança dos humanos para nossos hábitos, instruindo as novas gerações, como nossa filha humana, por exemplo, sobre tolerância e diversidade, entre outras coisas.
Dizíamos que tínhamos pensado nisso quando começaram nossas inquietações sobre o futuro dela, o que não deixava de ser verdade, porque Logan sempre achou que as mentiras mais fáceis para nós eram aquelas que constituíam versões próximas da realidade. E ele tinha razão. Era o melhor disfarce que já tínhamos elaborado. Para a situação mais inusitada e potencialmente perigosa que já tínhamos vivido também. Então era fundamental que funcionasse, como de fato estava funcionando.
O mundo das Almas era fundamentado em confiança mútua. A crença no bem comum e a colaboração irrestrita de todos para alcançá-lo garantia o respeito à individualidade e também à privacidade. Quando você dizia uma coisa, ninguém tinha motivos para contestar. Então tudo vinha correndo bem desde que nos registramos no Escritório Demográfico.
Como zeladores da ordem, os Buscadores é que atribuíam moradias a quem chegava à cidade, e as tarefas mais genéricas também. Como muitas dessas ocupações, como a limpeza da cidade, por exemplo, eram feitas coletivamente, cada morador novo tinha que se apresentar e dizer quando e quantas vezes poderia colaborar. Da mesma forma, quem fosse embora tinha que comunicá-los também, como fizemos quando deixamos Phoenix.
Confesso que a coisa toda de falar com Buscadores me deixou muito tensa, mas a duras penas percebi que não era realmente perigoso. O Escritório existia apenas como uma forma de controlar a densidade populacional e distribuir os trabalhos comunitários, mas não havia registros muito detalhados.
De início, um dos meus medos era que alguém pudesse entrar em contato com o Escritório de Albuquerque, mas Logan me garantiu que isso não era feito desse jeito. De fato, quando alguém saía da cidade, o Escritório local simplesmente dava baixa nos nomes, considerando que as atribuições daquela Alma seriam devidamente redistribuídas nos dias seguintes e que havia uma moradia vaga, e era a isso que o registro se limitava. Ninguém se importaria com para onde íamos ou por quê.
De qualquer forma, não pude evitar a apreensão quando tivemos que nos registrar, e um pouco também nos dias subsequentes, mas então eu percebi que o começo era o pior momento e que o pior momento era, na verdade, só um monte de expectativas pessimistas. Ninguém desconfiava de nada. Eu só tinha esquecido como era viver entre as Almas. Ou, como Logan lembrou, meu tempo fora das cavernas tinha sido cercado de medo e ansiedade por proteger os segredos de Peg, e era difícil imaginar que o cotidiano normalmente era só mesmo isto: normal.
Então, não mais que de repente, aqui estávamos nós “brincando de casinha”, como diria Kyle. Saindo para trabalhar de manhã, levando Lindsay à escola, cozinhando juntos no fim da noite, namorando nos parques enquanto nossa filha brincava... Coisas perfeitamente normais. Para os outros.
Eu me sentia culpada por estar gostando tanto disso, mas não podia negar que, se não fosse pela saudade terrível que me chamava de volta, podíamos ser muito felizes em Nova Orleans. Ou em qualquer outro lugar, na verdade. Felizmente, a falta que sentíamos de todos — sobretudo de John — nos mantinha focados.
— Você percebe, amor? Estamos no caminho certo — Logan comentou quando chegamos em casa naquele fim de tarde.
Tínhamos estado num dos muitos festivais no Quarteirão Francês, nos divertindo e conhecendo Almas que se encantavam com Lindsay e com as ideias sobre convivência pacífica que estávamos lançando.
Logan tirou o chapéu Fedora que era sua nova mania e passou os dedos pelos cabelos castanho-claros, do jeito que sempre fazia quando estava nervoso ou empolgado. Olhei para ele e me perdi por um instante, feliz pelo quanto ele estava mais tranquilo e leve agora que a “crise pós-Jeb” parecia sob controle. Os pesadelos aconteciam com cada vez menos frequência, e meu marido estava finalmente entendendo que não podia se preocupar o tempo todo, que era preciso, como diziam aqui e ele aprendera a repetir, deixar os bons tempos rolarem.
Naquela manhã tínhamos tido o que considerávamos um progresso incalculável. Desde que chegamos, eu estava trabalhando em uma escola infantil, como orientadora das crianças humanas. Esse tipo de instalação era uma novidade na nossa sociedade, mas àquelas alturas havia um bom número delas em cada parte do mundo, perfeitamente organizadas à nossa maneira.
Lá, as crianças humanas conviviam entre si e aprendiam a manter o mundo do jeito que estava agora: restaurado e harmônico. Não escondíamos nada delas, era-lhes dito que pertencíamos a espécies diferentes, que as coisas eram muito diversas antes, mas isso era apenas teoria em suas mentes em desenvolvimento. Na prática, o mundo delas era o nosso, nós éramos seus pais, suas famílias, seus irmãos, e todos eram tratados como iguais, exceto que, assim como no mundo de antes, as crianças precisavam de escolas.
Não havia muita coisa semelhante às escolas humanas, porém. Claro que no devido tempo elas aprendiam coisas como ler e escrever, além de serem estimuladas nas habilidades artísticas intrínsecas à condição humana, mas de resto eram instruídas na nossa ciência, livres para ir e vir e aprender sobre o que quer que desejassem, no tempo que escolhessem.
Também não havia professores, não como antigamente. Voluntários vinham todos os dias para ensinar o que soubessem: jardinagem, culinária, o jeito como certo produto era fabricado, como os rios tinham sido limpos e todo tipo de coisa que valesse a pena ser ensinada, o que para nossas crianças curiosas era absolutamente tudo. Eu, em conjunto com outros Orientadores, era mais como uma espécie de babá que os acompanhava e os ajudava a manejar e reter o conhecimento novo.
Os mais velhos conviviam com os mais novos e os ajudavam a aprender também, eram incentivados a cuidar deles, tanto quanto de si mesmos, e não havia séries ou avaliações. Quando atingissem a idade adulta, eles se integrariam na sociedade de acordo com sua vocação, aprimorando os conhecimentos necessários para isso com Almas experientes.  O mesmo acontecia com as Almas que ocupavam hospedeiros “imaturos”, mas sua educação era diferenciada, embora acontecesse nas mesmas instalações e houvesse partes em comum.
A convivência era tranquila e produtiva. As Almas floresciam em conjunto com seus corpos e evoluíam dia a dia, naturalmente mais rápido do que os humanos, mas ainda assim num ritmo apropriado à maturação de seus hospedeiros. A eles era dada toda atenção necessária, mas a verdade era que, animados pela perspectiva de uma sociedade cada vez mais diversa e interessante, os olhos de nossa comunidade estavam voltados para a novidade do crescimento dos humanos.
Humanos diferenciados por serem nossos filhos, nascidos num mundo em que tinham o direito à bondade e a chance de nunca precisarem abdicar de sua pureza. Participar de alguma forma disso era uma experiência maravilhosa! E eu mal podia esperar para dividi-la com Peg, assim como não conseguia evitar meu desejo de que John estivesse aqui, passando por novas situações exatamente como Lindsay. Como mãe, a sensação de ajudar a construir quem aqueles seres encantadores seriam era avassaladoramente boa, mas acompanhar enquanto cresciam por si mesmos em companhia de seus pares era ainda melhor.
Era isso que perdiam os pais que entregavam seus filhos como hospedeiros. As Almas que os ocupavam precisavam crescer também, adquirir todo conhecimento e experiência que faltava a seus corpos, mas a menos que também tivessem nascido na Terra não era a mesma coisa.
No que dizia respeito a eles, a Terra não era um mundo novo visto por olhos inocentes e puros. Era apenas um mundo novo. Selvagem. Diverso. Assustador até. Mas não realmente um desenho a que se acrescentavam traços novos e únicos a cada dia. Jamais a descoberta infinita proporcionada por um coração imaculado.
O espanto das crianças com o mundo em que viviam nunca diminuía, sua delicadeza em lidar com ele jamais nos decepcionava. Eles eram naturalmente capazes de uma inteligência emocional que era constantemente incentivada e aprimorada. E com elas aprendíamos mais sobre ser Almas do que jamais poderíamos ensinar-lhes sobre ser humanos. Era paradoxal e lindo. Cada atitude infantil em que nos víamos misturados e refletidos restaurava nossa fé na humanidade e de que um dia este planeta poderia ser novamente entregue aos seus herdeiros e quem sabe, caso eles assim o desejassem, divididos conosco. Por isso o interesse do conselho.
Por influência de Logan — ou melhor, de Tempestade Solar, seu membro mais recente —, naquela manhã eles tinham sido persuadidos a visitar a escola, ao mesmo tempo que propostas do tipo estavam sendo espalhadas aos conselhos de todo o país. Lentamente, uma realidade de paz entre humanos e Almas ia se tornando cada vez mais palpável.
Essa era nossa vitória, o que Logan queria dizer com estarmos no caminho certo. Era um começo e, em nome de nossos filhos, não nos furtaríamos a percorrer todo o caminho lançando novas sementes. Um dia de cada vez.








[1] No século XVIII, devido a conflitos com os ingleses, muitos franceses saíram de uma colônia no Canadá e se estabeleceram em Nova Orleans, originando a cultura cajun a partir da influência mútua e convívio com os moradores locais.

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