sexta-feira, 5 de julho de 2019

Epílogo CD2


Epílogo



Lindsay



12 anos depois...



Pequei meu caderno e fugi para meu lugar preferido na fazenda: a sombra de uma grande árvore à beira do lago.

Havia muitos lugares que eu amava aqui. Como a Grande Cozinha, de onde agora vinham risadas e conversas alegres. A estufa de cheiro doce e ar fresco que me parecia mágica. Ou, ainda, a imensa clareira onde as crianças amavam brincar e onde antes eu tinha passado tanto tempo entre brinquedos também.

Este aqui, porém, era meu refúgio. Meu repouso. Embora não fosse exatamente um esconderijo.

— Fazendo poesia de novo, Lindy? — disse John, chegando de mansinho e, por cima do meu ombro, tentando bisbilhotar o caderno onde eu anotava minhas ideias.

— Eu não fico xeretando na sua coleção de insetos! — joguei na cara dele, usando o caderno fechado no susto para bater em seu ombro, o que só me rendeu uma careta e uma risada. — Já te falei que não são poesias, Johnny — suavizei.

Não eram. Não exatamente. Quer dizer, sei lá. Eu não sabia bem o que eram. Ideias e coisas que eu sentia. Ultimamente percebi que me fazia bem guardar certas sensações para mim mesma. Assim como era gostoso revisitá-las mais tarde. Era isso que eu estava tentando fazer.

— Só queria descansar um pouco — confessei. — A fazenda hoje está muito agitada.

Era domingo e todos os nossos amigos estavam presentes. Além das três Casas de Visitantes completamente cheias, ainda havia gente hospedada nas nossas casas também. Tudo por conta do aniversário de 80 anos do meu avô.

— Não é que eu não goste, mas... — continuei, tentando explicar ao meu melhor amigo o quanto eu às vezes precisava de só um pouquinho de silêncio.

— Tudo bem, Lindy. Eu entendo — ele se adiantou. — Fazer o que se nosso velho Jeb é tão querido?

— Só estou feliz por não ir à escola amanhã — disse Caleb, sentando-se ao meu lado também, vindo sabe-se lá de onde.

Caleb sempre fazia isso de aparecer do nada. Dava até para desconfiar que estivesse sempre de olho em onde John e eu estávamos. Isso porque, aos 11 anos, acho que ele se sentia mais próximo de nós do que dos outros primos menores.

— Não sei do que você está fingindo reclamar — John o provocou. — Todo mundo sabe que você gosta de ir na escola.

— Gosto das aulas de atletismo. E dos meus amigos. E de algumas palestras. E também...

— Gosta de ir na escola — afirmei, encerrando a discussão.

Caleb olhou para mim e sorriu. Tinha aqueles mesmos olhos com pontos dourados de Tio Jared, mas os traços de Tia Mel também eram fortes, tudo estampado na mistura mais perfeita.

Todos nós íamos à escola na cidade mais próxima, onde Tia Sharon trabalhava como professora e John queria trabalhar também, embora às vezes dissesse que queria dar aulas na universidade, como Tia Peg.

Mas, bem, além de nós três, ainda havia nossos primos, o que dava quase para encher um ônibus.

Assim, como Doc, Candy e minha mãe trabalhavam na Instalação de Cura de lá também, acabamos arranjando um para acomodar todo mundo. Brandt dirigia e, embora o calendário de aulas fosse bem flexível, a gente acabava indo sempre para a cidade, o que era bom. Porque eu gostava de estar em contato com outros almanos, que era como, de repente, a mídia tinha passado a chamar os filhos humanos das Almas.

Acima de tudo, eu gostava de conviver com as Almas. Tendo sido criada por pais como os meus, simplesmente me sentia em casa.

Mesmo assim, decidimos ficar na fazenda alguns dias desta semana, para poder estar junto com nossos convidados e aproveitar a visita.

Apesar de toda agitação a que estava me tornando avessa nos últimos tempos, eu estava adorando o fato de rever todo mundo de uma vez. Sentia falta de todos, especialmente de Tia Lily, o que tornava o fato de ela e Cal estarem com a bebê Florence em minha casa superespecial.

Depois de se casarem, dez anos atrás, eles sempre passavam longas temporadas aqui, mas moravam mesmo, na maior parte do tempo, no Condomínio da Antiga Fábrica de Doces de Nate. A fábrica, aliás, tinha sido reconstruída e funcionava a pleno vapor, com os moradores do condomínio, em sua maioria, trabalhando nela. Lily e Cal, entretanto, trabalhavam como botânicos e paisagistas, principalmente recriando espécies de flores extintas, que foi algo que aprenderam a fazer juntos.

Eu adorava isso. E achava a história dos dois muito inspiradora, do tipo que eu queria para mim. Sem sofrimentos ou conflitos, uma coisa que simplesmente aconteceu, porque tinha que ser. Tipo uma noite que amanhece em calmaria.

“Foi tudo culpa da bendita estufa”, Tia Lily costumava dizer. “Passávamos tanto tempo sozinhos lá que era impossível não sentir falta quando Cal voltava para casa.”

Seja como for, por mais que Lily tentasse fazer parecer uma coisa corriqueira, acho que as flores tinham mesmo algum poder, porque eles não foram o único casal que floresceu lá.

Quando começaram os primeiros contatos feitos pelos Esforços de Paz, Tia Peg tomou uma decisão difícil. Por mais doloroso que parecesse, achou que devia uma explicação a Fiandeira das Nuvens, a mãe biológica de sua hospedeira.

Contrariando as expectativas, a mulher chorou de alívio quando soube que Pet tinha sido mandada de volta ao planeta que tanto amava. Porque, bem, não era o que se podia esperar cada vez que uma Alma desaparecia sem deixar explicação. Então, saber que aquela Alma com quem dividira anos de existência na Terra estava bem, fez seu coração se acalmar de imediato.

Nós a chamamos de Fia aqui, e ela era uma Alma típica, inclusive na facilidade que tinha para o perdão. Porque, no fim, era importante demais para ela estar ao lado da filha de sua hospedeira, mesmo que fosse Peregrina e não Pet a Alma por trás dos traços angelicais.

Em pouco tempo, Fia convenceu-se de que queria morar conosco, especialmente depois que Peg engravidou, um pouco depois de Melanie dar à luz Caleb. Quando Pétala nasceu, a pura e loura imagem da mãe na figura da menina mais doce que já conheci, Fia se apaixonou por ela no mesmo instante. Por isso quis estar perto.

Por essa época, Lily estava indo viver com Cal e a estufa foi deixada aos cuidados da nova moradora. O outro avô coruja, Paddy, se ofereceu para ajudar. Assim, as flores operaram sua magia outra vez e eles se descobriram um apaixonados.

Foi lá também que Rio e Céu conheceram nossa família. Então, alguns dias depois, veio Terra Sonora. Como ele tinha três filhos biológicos, mais ou menos da idade do Tio Jamie, logo eles também começaram a frequentar nossa casa, e as visitas de Céu, embora menos frequentes que as de Rio, eram superanimadas por causa da nossa nova família grande.

Além deles, o pai e os irmãos de Jared também vêm sempre, junto com as cunhadas e sobrinhos que ele nem sabia que tinha. Os pais de Tia Sunny, que também ficaram aliviados em saber que ela estava segura, vieram duas ou três vezes no começo, mas então nasceram as gêmeas, e eles acabaram se tornando visitantes assíduos também.

As gêmeas, aliás, eram mesmo cativantes, se você soubesse lidar com suas personalidades opostas e marcantes. Ally e Lucy tinham oito anos e se pareciam com a mãe em tudo, exceto pelo temperamento de Lucy, herdado e moldado exatamente ao do Tio Kyle. As duas, que eram a exata combinação de placidez e explosão sob a mesma aparência, deixavam o pai louco, mas Tia Sunny tirava de letra.

Tia Sharon e Tio Doc também tiveram filhos. Seth tinha nove anos e Christian, ou Kit, tinha seis, mas eram tão companheiros um do outro, tão semelhantes, que era como se tivessem a mesma idade. Ambos curiosos e amorosos, com um grande amor pelos estudos. Por causa disso, adoravam Rio, de quem  Kit se dizia o melhor amigo. Seth, entretanto, dizia a todos que, depois dos pais, sua pessoa preferida no mundo era sua avó Maggie.

Coisa de criança, eu acho. Porque para mim, hoje em dia, eram todos eles.

Simplesmente, não era possível pensar em alguém que eu amasse menos por aqui. Minha família era grande e só crescia. E eu aprendia muito com cada um.

Ainda assim, havia um lugar todo especial em meu coração para a única pessoa, dentre as que já amei, que não estava mais comigo.

O nome dele era Celestino, mas eu o chamava de Biso. E ele era uma Alma. Era também o avô da minha amada Tia Kate.

Havia uma espécie de trato entre Almas e humanos remanescentes. Que se fosse de comum acordo, ou melhor, se fosse da livre e espontânea vontade da Alma, podia-se tentar resgatar a consciência suprimida do hospedeiro. Meu pai passou por isso certa vez: um penoso processo de retiradas consecutivas, enquanto o corpo era mantido em coma.

Não funcionava. Pelo menos até onde tínhamos notícia.

Exceto por meu pai e por Tia Sunny, muito tempo atrás, nunca nenhum de nós tentou. Era perigoso. E todo mundo aqui concordava que bastava de sofrimento.

Mas nós sabíamos que havia Almas lá fora que tinham tentado. Como parte dos Esforços de Paz, meus pais e meus tios Ian, Peg, Kyle e Sunny já tinham até mesmo viajado para outros países, e nós mantínhamos contato com quase todas as células remanescentes que eles tinham ajudado. Toda vez que algum desses humanos procurava seus parentes, toda vez que alguém se arriscava, o resultado era o mesmo. Nada.

Já havia passado tempo demais. E ficava cada vez menos seguro tentar.

Por isso Rachel e Kate jamais cogitariam pedir isso a Celestino. Elas só não contavam que ele faria mesmo assim. Mesmo antes de conhecê-las bem, mesmo quando o único contato feito, um breve encontro mediado por Tia Peg, era tudo o que tinham.

Eu me lembro bem até hoje. Tia Kate ficou furiosa! Durante toda minha vida, nunca achei que a veria transtornada daquele jeito, mas quando soube, ela saiu daqui direto para a Instalação onde ele estava, disposta a arrancá-lo do coma “na marra” se fosse preciso.

Foi necessário que Tio Jamie, Rachel e Brandt intercedessem para que ela não fizesse uma loucura. Mesmo assim, no minuto em que ele foi trazido de volta da primeira retirada, ela implorou para que Celestino não se arriscasse mais, porque se lembrava do que meu pai tinha passado e, diferente dele,  o avô não era mais um homem jovem e forte.

Não sei bem o que aconteceu naquela noite, as palavras exatas que foram ditas, mas sei que Kate e Rachel o convenceram e ele veio morar aqui. E foi assim que todos nós passamos a amá-lo como o ser mais delicado que havia. Dia após dia, ano após ano.

Foi a melhor década de todas, a última de sua vida. Porque Celestino queria entender a experiência completa, queria saber o que havia na outra ponta. Ele achava que havia honra em não adiar a velhice, em abraçá-la com toda a humildade que vinha com o declínio do corpo. Para meu Biso, havia mérito em nos ensinar e aprender sobre o valor do tempo. E ele tinha razão.

Então, embora ele cuidasse ao máximo de sua saúde, um dia seu coração simplesmente parou de bater. Bem aqui, embaixo de sua árvore preferida. Exatos seis meses depois do nascimento de sua bisneta Celeste.

Foi Rachel quem o encontrou no fim de uma tarde de verão feito esta. E aquele foi o dia em que Almas e almanos aprenderam sobre a morte. Ironicamente, não foi um humano que nos ensinou. Mas nós entendemos.

Uma vida de amor e bondade é o suficiente. Uma vida em que se é amado vale tudo. Porque a dor que fica não é o resultado final. Ela é só uma prova de que você fez as outras pessoas felizes.

Era por isso que eu vinha sempre aqui. Para lembrar.

Porque um dia este lugar já foi o símbolo da maior dor que conheci. Mas não podia ser só isso. Não devia. Este seria o lugar onde eu ainda havia de entender qual seria minha marca neste mundo, pois tenho certeza que foi isso que Biso pôde ver antes de fechar os olhos. E é disso que vai se lembrar quando acordar no futuro, em outro planeta. Ele vai saber que foi amado aqui e que fez a diferença.

Quero o mesmo para mim. Quer dizer, sei que não vou para outro planeta, provavelmente, a menos que a tecnologia se aprimore muito, mas quero fazer a diferença aqui de qualquer jeito. Como Tia Peg e meus pais. Como Vovô Jeb e meus tios.

Aos 16 anos, ninguém sabe ao certo aonde a grande aventura da vida vai dar. Mas estou aqui para descobrir. Não tenho pressa.

Eu vou continuar.

— Ei, Lindy — chamou John, quebrando nosso silêncio e apontando para a cozinha. — Acho que está chegando a hora do bolo.

Seguindo a mão dele, vi Vovó Candy gesticulando, nos chamando para voltar e, de repente, voltei a sentir vontade de estar na agitação. Não havia lugar melhor, afinal.

— O último a chegar fica sem bolo — gritou Caleb antes de sair correndo.

John e eu trocamos um olhar e gargalhamos. Por fim, ele me estendeu a mão e seguimos juntos para nossa casa.




quinta-feira, 4 de julho de 2019

CD2 Cap 43 Final


Capítulo 43 – Remate

I see trees of green, red roses too

I see them bloom for me and you

And I think to myself, what a wonderful world

I see skies of blue and clouds of white

The bright blessed days, the dark sacred night

And I think to myself, what a wonderful world

The colors of the rainbow, so pretty in the sky

Are also on the faces of people going by

I see friends shaking hands, saying: How do you do?

They're really saying: I love you

I hear babies crying, I watch them grow

They'll learn much more, than I'll never know

And I think to myself, what a wonderful world

Yes, I think to myself, what a wonderful world

(What a Wonderful World – Louis Armstrong)

Logan



Perdi a noção da hora enquanto trabalhava. Ou pelo menos foi o que pensei quando espiei pela porta do ateliê e vi Estrela e Lindsay adormecidas no sofá. Enquanto isso, uma animação com música e bichos falantes era projetada pela SmartCombo e a luz azulada da tela brincava nos rostos delas.

Saí de mansinho e desliguei o desenho, acendendo apenas uma tênue luminária para iluminar o caminho para os quartos. Nosso dia tinha sido bem cansativo, levando Rio, Céu e Terra Sonora ao aeroporto, então imaginei que Estrela estaria exausta e mal se moveria quando eu tentasse acordá-la. Mesmo assim, apenas um roçar de meus lábios no rosto dela foi suficiente para que abrisse os olhos desperta.

— Você terminou? — perguntou como se estivéssemos continuando uma conversa, e, apesar da aparente falta de contexto, eu sabia que ela estava se referindo à peça em que estive trabalhando.

— Sim, está pronta. Quer ver?

— Aham — ela murmurou, conseguindo parecer ao mesmo tempo sonolenta e animada.

— Ela está com os dentes escovados? — Apontei para Lindsay, observando que já estava vestida com seu pijama de unicórnios preferido.

— Está, sim. Disse que queria comer pipoca, mas como eu sabia que ela dormiria em quinze minutos, consegui convencê-la a deixar para amanhã.

— No café da manhã? — adivinhei.

— Mas, bem, aí será outro dia para se negociar, não é? Provavelmente consigo convencê-la a deixar para o lanche da tarde. Ou ela vai até a casa de Maggie e consegue o que quer escondido.

Contive uma risada, imaginando a cena, ao mesmo tempo em que apreciava o jeito delicado como Estrela lidava com as manias de nossa menininha.

Mais recentemente, ela tinha decidido que gostava mais de pipoca do que de qualquer outra coisa, e queria substituir todas as refeições por uma porção delas. Tínhamos que debater com ela o dia todo para reduzir a um único lanche e todo mundo ajudava, de maneira que a luta era contínua, mas não solitária. Sunny, em especial, se desdobrava em agradar Lindsay com outras coisas de que gostasse, mas Magnólia teimava em “contrabandear” tudo o que nossa ruivinha manipuladora pedia.

“A vida é curta. Não faz mal deixar a menina ser feliz enquanto é criança”, insistia. “É só uma fase, daqui a pouco ela esquece.”

Talvez Magnólia tivesse razão: era só uma fase. Ou pelo menos foi o que pensamos na fase dos bolos. Que tinha sido antes da fase dos biscoitos que, por sua vez, aconteceu logo depois da época em que ela preferia os sorvetes.

— Amanhã é minha vez como negociador — falei, suspendendo Lindsay nos braços.

Estrela ostentou uma expressão desafiadora, antecipando a disputa enquanto se espreguiçava no sofá. Subi as escadas para o quarto e, quando voltei depois de colocar nossa filha na cama, encontrei minha esposa no ateliê, sorrindo diante de meu trabalho.

— Ficou lindo! Você tem se saído um ótimo aluno — disse orgulhosa, já que vinha se dedicando a me ensinar a desenhar. — Tem alguma coisa que você não faça bem?

— Não ficou tão bom quanto ficaria se você tivesse feito — admiti, olhando em volta para as paredes cobertas pelos quadros cada vez melhores que ela criava.

— Mas quando comecei não era nem a metade tão boa quanto você, novato.

— Mentira — ri, colocando as mãos sobre a mesa contra a qual ela estava encostada, prendendo-a ali. — Você sempre foi perfeita. — Ela sorriu, se contorcendo pelo arrepio que minha respiração em seu pescoço causava. — Como você bem sabe, eu sempre soube apreciar a beleza. Sua e de sua arte.

— Era outro corpo naquele tempo, lembra?

— E isso importa? Era você. Simples assim.

Deixei meus lábios percorrem o pescoço dela, apreciando o gosto da pele macia, e Estrela soltou um suspiro suave, me abraçando quando mordi o lóbulo de sua orelha.

— Você nunca me leva a sério quando te elogio — ela disse, e senti que balançava a cabeça de um lado para o outro contra meu ombro. — Mas teima em me colocar num pedestal.

— Nada disso, não é minha imaginação que estrelas estão no ponto mais alto que meus olhos enxergam.

— Ah, que poético! — ela riu e eu acompanhei, ciente do quanto tinha soado canastrão, embora falasse a verdade.

Nós nos afastamos em nosso abraço e, enquanto ela fingia se concentrar outra vez no trabalho sobre a mesa, observei sua risada se transformar no sorriso suave e tenso que Estrela tinha quando queria que eu entendesse as coisas à sua maneira.

— O que foi? — perguntei, passando a mão por suas costas.

— Nós percorremos um longo caminho, não foi?

— Fizemos muitas coisas, sim — A resposta parecia óbvia, mas eu não estava certo sobre em que ponto ela queria chegar.

— Sim, muitas coisas. Mas não estou falando sobre as coisas que fizemos, estou falando de quem nos tornamos.

— E o que foi que nós nos tornamos? — Puxei-a pela mão para se sentar em meu colo na poltrona de leitura, aquela antiga e espaçosa em que costumávamos passar nossas noites insones quando Estrela amamentava Lindsay.

— Humanos, eu acho. Ao menos em parte. Pais, obviamente. E também... Sou irmã e amiga agora. Você se tornou filho. Mudamos e lutamos pelos nossos amigos, pelas nossas crenças. E fizemos isso juntos. Nós aprendemos a amar.

— Você sempre soube amar.

— Não. Eu aprendi com você. A primeira pessoa que amei e que era verdadeiramente “minha pessoa”. Você apostou em mim mesmo quando achava que eu era louca, vivendo os amores de outra.

— Você estava lutando por Peregrina e pela família dela. Eu podia não entender por que você achava que aquela era a melhor maneira, mas nunca tive dúvidas de que você estava protegendo John com todas as suas forças.

— E você me protegeu para que eu pudesse fazer isso, não foi?

— Você também me protegeu.

— Sim, eu sei. A loucura das extrações.

Era assim que Jeb se referia ao período em que tentamos despertar o Logan humano. E Estrela sabia que era a isso, principalmente, que eu me referia quando dizia que ela me apoiava em tudo. Porque eu sabia — e lamentava — o quanto tinha lhe custado. Sempre seria grato por aquilo, não importava o que ela me dissesse.

— Você sabe que eu sempre vou te colocar num pedestal... Pelo que te fiz passar. — Abaixei a cabeça, sem conseguir evitar o sentimento ruim que pensar na dor dela me trazia.

— Esse é meu ponto — Estrela levantou meu rosto com as pontas dos dedos. — Eu fiz porque você precisava de mim. Da mesma forma que precisei de você antes. E é como seria em qualquer dia das nossas vidas. Nossas aventuras como “infiltrados” em Nova Orleans, nosso trabalho nos Esforços de Paz... Fizemos tudo juntos.

— Irrevogavelmente fundidos — sussurrei.

— Irrevogavelmente fundidos — ela repetiu. — Somos iguais, Logan. Somos duas partes da mesma coisa. Lado a lado, entende?

— Entendo.

E entendia mesmo. Eu sabia que ela queria dizer que se incomodava com o modo como eu às vezes parecia tratá-la. Como uma estrela de fato. Uma ideia perfeitamente inalcançável. Não como uma mulher comum e com defeitos. O que ela não entendia, porém, era que os defeitos não significavam nada para mim. Estrela jamais seria comum aos meus olhos.

— Eu sei que você estará sempre ao meu lado, tão incondicionalmente quanto eu vou estar do seu — expliquei. — Já aprendi a não questionar se mereço essa sorte, porque sei que você não gosta que eu faça isso. Mas não muda o fato de que me considero um homem sortudo por tê-la em minha vida. Então, querida Estrelinha, você vai ter que se conformar em ser idolatrada, sinto muito.

Estrela revirou os olhos de um jeito teatral, me deixando saber que não iria mais discutir comigo. Depois sorriu, absolutamente luminosa.

— Você não tem jeito.

— E você gosta de mim assim.

— Sim, gosto muito — ela confirmou, beijando minhas pálpebras e depois minha boca. — Eu amo você.

— Também te amo — respondi, e ficamos apenas contemplando o momento em silêncio depois disso, as pontas de meus dedos correndo calmamente pela pele macia do rosto dela.

— Você vai entregar o presente a Jeb agora? — perguntou suavemente, bocejando de cansaço. — Acho que ele ainda vai estar acordado. Sempre demora a dormir quando o dia foi agitado.

— Sim. Vou até lá sondar se as luzes estão acesas. Assim “trocamos dois dedos de prosa”, como ele diz, e eu te deixo descansar um pouco. Como ainda não estou com sono, acho que não custa tentar, principalmente depois de você me dar todo esse sermão pra me convencer a aceitar um elogio — provoquei.

— Não foi só por isso! — ela protestou, bem-humorada. — Só gosto de checar de vez em quando se você está mesmo aprendendo alguma coisa com nossas experiências — completou, retribuindo a provocação.

Touché.

Dei um sorriso de lado, daqueles que eu sabia que ela adorava e que eu às vezes dava propositalmente para jogar charme. Ela riu e beijou o canto da minha boca em uma carícia tão delicada que me fez fechar os olhos.

— É só que... Não sei, mas estar aqui, neste lugar, nesta casa, com tantas coisas mudadas, me dá uma sensação de desfecho, sabe? — explicou. — Às vezes não sei como lidar com isso e fico tentando tirar lições de tudo.

— Este é um desfecho, mas não o fim. Não é a mesma coisa. Ainda temos o que aprender. E tempo para isso.

— Eu sei. Está mais para um começo. Precisamos “deixar os bons tempos rolarem”, não é mesmo? — ela repetiu o lema de Nova Orleans, que eu adorava.

— Laissez les bons temps rouler — recitei em francês, como eles diziam por lá.

— É um bom lema, não se pode negar.

Fechei meus olhos de novo quando os lábios dela acariciaram minha testa, enquanto isso ela ficou de pé para comtemplar as próprias pinturas e esboços.

Retratos de pessoas amadas. Paisagens de Picacho Peak. O amplo milharal iluminado pelo reflexo do sol nos espelhos. E, por fim, os campos da Fazenda Stryder.

— Bem — disse, virando-se para mim enquanto eu continuava sentado a observá-la, o calor do corpo dela ainda aquecendo o meu. — Eu não me arrependo de nada. Faria tudo de novo, quantas vezes fosse preciso.

— Você sabe que eu também faria. — Sorri. — No fim, se você quiser tirar uma lição disso tudo, acho que pode ser essa.

— A de que valeu a pena.

— Sim, valeu a pena — concordei. — Valeu muito a pena.



********

— Pai? — chamei enquanto subia a escada da varanda, mas ele não respondeu de imediato. Apenas continuou olhando para a lua acima das casas.

Às vezes Jeb fazia isso. Demorava para responder como se o vocativo não fosse para ele.

No começo, cheguei a achar que ele se esquecia de que agora tinha alguém que o chamava de pai. Mas então ele me disse que estava ouvindo. Que gostava de apenas ouvir. Então não questionei mais. Era, de fato, uma palavra que eu também gostava de ouvir. E de dizer.

— Oi, filho — respondeu, finalmente voltando os olhos para mim quando apoiei os antebraços no parapeito de madeira, ao lado dele. — Acordado tão tarde?

— Dia agitado.

— Expulsa o sono, não é?

— Como você está? — questionei, sério, porque ainda não tínhamos falado sobre a partida de Rio, depois de ele e Céu terem passado um mês conosco. — Sei que ele prometeu voltar logo, mas deve ter sido difícil se despedir. Quer dizer, por causa do seu irmão...

— Não foi difícil. Meu irmãozinho já partiu. Essa parte não fica mais fácil, mas já lidei com ela. Esse tempo todo eu queria apenas conhecer Rio. E foi bom. Gostei dele.

— Vocês ficaram um bom tempo conversando.

— Sim, ele é uma figura interessante. Mal conheceu a fazenda e já estava fazendo planos para otimizar a irrigação. É um dos motivos para voltar logo.

— É o trabalho dele — lembrei, embora Jeb já soubesse disso. — O Instituto de Albuquerque é especializado em sustentabilidade no uso dos recursos hídricos.

— Rio me ensinou muito sobre isso. E foi interessante e assustador ao mesmo tempo. Me assustou muito perceber quanta água desperdiçávamos nos velhos tempos. Poluição, encanamentos de esgoto e abastecimento quebrados ou construídos da forma errada, excesso de irrigação quando bastava apenas mudar o tipo de cultura para outra mais resistente, o mau uso nas indústrias... E eram tantas indústrias explorando tudo! A crise hídrica era iminente. Muitos países ficariam sem água e, claro, sem agricultura. Teria sido uma guerra terrível. Nessas horas entendo que a raça humana teria acabado de qualquer jeito.

— Infelizmente, concordo com você.

— Bem, não acabou. Alguns de nós ainda estão aqui. E agora estamos juntos. — Ele me sorriu, apertando meu ombro. — Em boa parte, graças ao trabalho que você vem fazendo.

— Não fiz nada sozinho. Fizemos tudo juntos, cada um ajudando de uma forma.

— Sim, eu sei. Mas hoje me despedi de um novo amigo que me faz lembrar meu irmão. Um pouco da saudade que eu sentia pôde desaparecer para sempre. Jamie agora tem o gosto de rever os pais quando quiser. Melanie se reconciliou com seu senso de família. E, por fim, Magnólia sorriu mais nesse mês que passou do que na última década inteira. Gosto de pensar no quanto meu filho é responsável por tudo isso. Você me deu uma família, Logan. Uma que não está mais quebrada.

— Você também me deu uma família, pai.

A mão em meu ombro me puxou para um meio abraço, daqueles desajeitados que agora costumava me dar. Estendi meus braços e completei o gesto dele, unindo-nos num abraço decente. Quando nos soltamos, senti os habituais tapinhas no rosto, que era um dos jeitos de Jeb dizer que estava feliz e orgulhoso.

— O que você acha que Rio e Céu vão fazer? — perguntei.

Terra Sonora, o companheiro de Céu, tinha vindo também depois de alguns dias, e todos se deram muito bem. Como Confortadores, eles tinham demonstrado imenso interesse em aprender com nossa comunidade. Quanto a Rio, em pouco tempo ele desenvolvera laços significativos com todos da família de Trevor, além de uma grande amizade com Doc. Então achei que não fosse demais imaginar que poderiam querer criar raízes aqui, apesar de seus compromissos profissionais os chamarem de volta por uns tempos.

— Acho que serão visitas constantes, mas eles têm uma vida fora daqui. E, de qualquer jeito, Mel e Jamie concordaram em não esperar nada além disso. — Então ele olhou para mim, ciente das minhas expectativas. — Sempre soubemos que as experiências não seriam iguais para todo mundo — completou, antes que eu pudesse usar as escolhas de Paddy como argumento.

— É só um anseio meio ingênuo de ver todo mundo feliz — expliquei.

— Todo mundo está feliz, filho. As pessoas podem continuar juntas, mesmo que estejam fisicamente separadas.

— Eu sei. — Ri. — Como disse, foi só um impulso ingênuo.

Às vezes, na frente de meu pai, eu me comportava como se soubesse bem menos deste mundo do que realmente sei.

— Se fosse no mundo de antes, provavelmente estariam um para cada lado também. Mel e Jamie teriam ido para a faculdade, talvez encontrado empregos em outras cidades...

— É — confirmei, só para demonstrar que tinha entendido o ponto dele. Depois ficamos contemplando o horizonte por alguns segundos. Pensando. Fazíamos muito isso em nossas conversas. Pensar juntos. — Não sei como vou me sentir se algum dia Lindsay e John quiserem sair daqui.

Jeb olhou para mim, uma expressão solidária no rosto.

— Até lá, se for o caso, o tempo vai preparar sua cabeça. Mas admito que também não vou gostar. Acho que é inevitável querer mantê-los perto. Quando você teve a ideia de se infiltrar nos Conselhos, pensei que...

— Eu não deixaria meus amigos. Jamais deixaria você — interrompi.

— Talvez não de imediato, mas quem sabe quanto tempo as missões poderiam levar? Naquela época era tudo incerteza. E, eventualmente, poderia se tornar mais fácil, ou necessário, se estabelecer em outro lugar.

— Você já tinha a ideia de que eu podia ser seu filho.

— Independente disso, eu sentiria falta de vocês.

— Bem, você nunca vai precisar se preocupar, pelo menos no que diz respeito a mim e a Estrela.

— Todo mundo se separa um dia. É apenas natural, Logan — ele falou e minha expressão se fechou de imediato.

Eu simplesmente odiava quando Jeb entrava nesse assunto. Voltei a fitar o céu. De repente, a finitude da Terra tinha voltado a me incomodar.

— Os tratamentos... — comecei, mas ele me interrompeu.

— Não foram projetados para nos fazer viver para sempre.

— Alguns precisam partir para outros nascerem, eu sei. — Soltei uma risada amarga, lembrando do que Kyle me dissera uma vez, com toda a delicadeza que lhe era peculiar: “Humanos só têm um planeta para povoar, otário!”— Só não preciso fingir que não me importo.

— Claro que não. A gente sempre vai se importar. Mas com o tempo, imagino que até mesmo quem pode viver para sempre entenda que não vale a pena. Por isso as Almas não tornaram o corpo humano imortal. Creio que eles até poderiam, se quisessem. Mas sabem que não deve ser assim.

— O que quer dizer?

— Que se não morrermos, quem morre é Deus. A morte é a única coisa que tememos, que dá perspectiva para os valores que construímos. Se vivêssemos sabendo que não há limites para o que podemos conquistar, o valor das coisas se perderia.

Assenti, conformado. Não havia como discutir essa lógica. Até mesmo a minha espécie precisava considerar o término de cada ciclo. E, eventualmente, a possibilidade de um remate para nossas vidas. Aqui na Terra, muitos como eu passaram a ver esse momento como uma inevitabilidade tão absoluta quanto para os humanos. Eu não queria viver mais do que Lindsay, por exemplo. Por ela, eu precisei me tornar humano no que há de mais intrínseco à vida: o caminhar para a morte.

— Você tem razão — admiti. — Mas não precisamos falar disso agora. Não gosto desse assunto.

— Não, não precisamos falar. Só me prometa que quando chegar a hora de lidar com isso você vai se lembrar que é um preço que compensa.

Ser parte de uma família, de um grupo. Amar e ser amado. Eu aprendi essas coisas aqui. Neste planeta. E para onde quer que vá minha consciência quando este corpo perecer, se é que essa parte de mim vai continuar e seguir para o cosmo ou qualquer outro lugar, amor estará na minha constituição. Porque na Terra foi onde encontrei meu coração.

— Eu vou ficar bem, pai. Você pode ficar tranquilo. Um único dia com vocês já valeria qualquer coisa. É como Peg diz, há uma balança, mas ser parte disso que vivemos faz com que ela penda sempre a meu favor.

Jeb me observou em silêncio, analisando minhas palavras. Depois sorriu e estendeu a mão para bagunçar meu cabelo como se eu fosse um garoto.

— O que é aquele pacote mal-acabado que você trouxe ali? — perguntou, indicando que já tinha se dado por satisfeito no que dizia respeito aos assuntos sérios.

Dirigi o olhar ao pacote deixado ao pé da escada, esquecido, e gargalhei pelo “mal-acabado”, porque estava mesmo. Na pressa de pegar Jeb acordado, eu tinha apenas apanhado um punhado de papel pardo e enrolado em torno da madeira. Desci a escada e o trouxe para cima, entregando-o nas mãos do destinatário.

— É uma coisa que fiz para você. Quer dizer, para todos nós. Notei que precisava quando trouxe Rio e Céu para a fazenda.

Removendo o papel, Jeb revelou uma placa de madeira com as palavras “Fazenda Stryder” desenhadas com um aparelho chamado pirógrafo. Não tinha havido um batizado formal, mas era dessa forma que todos tínhamos nos referido à nossa nova casa desde o começo. Simplesmente pareceu natural. Abaixo do nome, coloquei a imagem mais caprichada em que consegui pensar.

— Uma mandala? — ele perguntou, e me surpreendi que Jeb soubesse como se chamava o intrincado traçado de círculos concêntricos. Eu não sabia ao certo se era uma desenho comum.

— Eu queria algo que fosse legal e tivesse significado. Então pesquisei e descobri que mandalas simbolizam harmonia e integração. Achei que combinava com este lugar.

— Combina muito, filho. Obrigado — disse, sorrindo, sem levantar os olhos da imagem.

Então se sentou numa das cadeiras da varanda, com a placa sobre os joelhos, fazendo sinal para que eu também me sentasse.

— Não sabia que você estava aprendendo a fazer isso — observou enquanto eu me acomodava ao seu lado, por certo referindo-se à pirografia.

— Estou experimentando técnicas. Sempre gostei de todo tipo de arte, mas tenho que confessar que era arrogante e perfeccionista demais para tentar aprender alguma coisa. Agora Estrela tem nos ensinado a desenhar e tive que ser humilde, porque é óbvio que os desenhos de Lindsay com guache são muito melhores que qualquer coisa que eu faça.

— É óbvio — ele reconheceu, soltando uma gargalhada que acompanhei. — Amanhã vamos juntos até a entrada para colocar a placa. Leve a Lindy. Podemos passar e pegar John também. Acho que eles devem participar do momento solene.

— Claro — falei. Depois fiquei pensando sobre aquilo.

“Momento solene”.

Jeb falou em tom de brincadeira, mas acho que ele tinha uma certa razão na escolha da palavra. Porque parecia uma coisa simples. Colocar uma placa sinalizando a entrada de nossa casa. O nome de Jeb escrito nela, nos identificando. Parecia simples. Mas não era. Queria dizer muito.

— Você já tinha pensado que uma coisa assim pudesse acontecer? — questionei.

Com as sobrancelhas arqueadas e uma resignação admirada, ele me respondeu:

— Para ser sincero, não pensei que nada disso pudesse acontecer. É o futuro que nos esperava, filho. E você nos trouxe até ele.

— Já disse que não fiz nada sozinho.

— É claro que não. Esse é o princípio da coisa, afinal. De qualquer jeito, obrigado.

Senti seus tapinhas nas costas da minha mão, aquela que estava sobre o braço da cadeira. Olhei para ele e sorri, encarando os olhos vivos e sábios de meu pai, sentindo meu coração se expandir no processo.

Depois voltamos a contemplar juntos a linha do horizonte, bem lá onde a terra se unia ao céu.




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Entre a Luz e as Sombras

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