Epílogo
Lindsay
12 anos depois...
Pequei meu caderno e fugi para meu
lugar preferido na fazenda: a sombra de uma grande árvore à beira do lago.
Havia muitos lugares que eu amava
aqui. Como a Grande Cozinha, de onde agora vinham risadas e conversas alegres.
A estufa de cheiro doce e ar fresco que me parecia mágica. Ou, ainda, a imensa
clareira onde as crianças amavam brincar e onde antes eu tinha passado tanto
tempo entre brinquedos também.
Este aqui, porém, era meu refúgio.
Meu repouso. Embora não fosse exatamente um esconderijo.
— Fazendo poesia de
novo, Lindy? — disse John, chegando de mansinho e, por cima do meu ombro, tentando
bisbilhotar o caderno onde eu anotava minhas ideias.
— Eu não fico xeretando
na sua coleção de insetos! — joguei na cara dele, usando o caderno fechado no
susto para bater em seu ombro, o que só me rendeu uma careta e uma risada. — Já
te falei que não são poesias, Johnny — suavizei.
Não eram. Não exatamente.
Quer dizer, sei lá. Eu não sabia bem o que eram. Ideias e coisas que eu sentia.
Ultimamente percebi que me fazia bem guardar certas sensações para mim mesma.
Assim como era gostoso revisitá-las mais tarde. Era isso que eu estava tentando
fazer.
— Só queria
descansar um pouco — confessei. — A fazenda hoje está muito agitada.
Era domingo e todos
os nossos amigos estavam presentes. Além das três Casas de Visitantes
completamente cheias, ainda havia gente hospedada nas nossas casas também. Tudo
por conta do aniversário de 80 anos do meu avô.
— Não é que eu não
goste, mas... — continuei, tentando explicar ao meu melhor amigo o quanto eu às
vezes precisava de só um pouquinho de silêncio.
— Tudo bem, Lindy.
Eu entendo — ele se adiantou. — Fazer o que se nosso velho Jeb é tão querido?
— Só estou feliz
por não ir à escola amanhã — disse Caleb, sentando-se ao meu lado também, vindo
sabe-se lá de onde.
Caleb sempre fazia
isso de aparecer do nada. Dava até para desconfiar que estivesse sempre de olho
em onde John e eu estávamos. Isso porque, aos 11 anos, acho que ele se sentia
mais próximo de nós do que dos outros primos menores.
— Não sei do que
você está fingindo reclamar — John o provocou. — Todo mundo sabe que você gosta
de ir na escola.
— Gosto das aulas
de atletismo. E dos meus amigos. E de algumas palestras. E também...
— Gosta de ir na
escola — afirmei, encerrando a discussão.
Caleb olhou para
mim e sorriu. Tinha aqueles mesmos olhos com pontos dourados de Tio Jared, mas
os traços de Tia Mel também eram fortes, tudo estampado na mistura mais
perfeita.
Todos nós íamos à
escola na cidade mais próxima, onde Tia Sharon trabalhava como professora e
John queria trabalhar também, embora às vezes dissesse que queria dar aulas na
universidade, como Tia Peg.
Mas, bem, além de
nós três, ainda havia nossos primos, o que dava quase para encher um ônibus.
Assim, como Doc,
Candy e minha mãe trabalhavam na Instalação de Cura de lá também, acabamos arranjando
um para acomodar todo mundo. Brandt dirigia e, embora o calendário de aulas
fosse bem flexível, a gente acabava indo sempre para a cidade, o que era bom. Porque
eu gostava de estar em contato com outros almanos, que era como, de
repente, a mídia tinha passado a chamar os filhos humanos das Almas.
Acima de tudo, eu gostava de conviver
com as Almas. Tendo sido criada por pais como os meus, simplesmente me sentia em
casa.
Mesmo assim, decidimos ficar na
fazenda alguns dias desta semana, para poder estar junto com nossos convidados
e aproveitar a visita.
Apesar de toda agitação a que estava
me tornando avessa nos últimos tempos, eu estava adorando o fato de rever todo
mundo de uma vez. Sentia falta de todos, especialmente de Tia Lily, o que
tornava o fato de ela e Cal estarem com a bebê Florence em minha casa superespecial.
Depois de se casarem, dez anos atrás,
eles sempre passavam longas temporadas aqui, mas moravam mesmo, na maior parte
do tempo, no Condomínio da Antiga Fábrica de Doces de Nate. A fábrica, aliás,
tinha sido reconstruída e funcionava a pleno vapor, com os moradores do
condomínio, em sua maioria, trabalhando nela. Lily e Cal, entretanto,
trabalhavam como botânicos e paisagistas, principalmente recriando espécies de
flores extintas, que foi algo que aprenderam a fazer juntos.
Eu adorava isso. E achava a história
dos dois muito inspiradora, do tipo que eu queria para mim. Sem sofrimentos ou
conflitos, uma coisa que simplesmente aconteceu, porque tinha que ser. Tipo uma
noite que amanhece em calmaria.
“Foi tudo culpa da bendita estufa”,
Tia Lily costumava dizer. “Passávamos tanto tempo sozinhos lá que era
impossível não sentir falta quando Cal voltava para casa.”
Seja como for, por mais que Lily
tentasse fazer parecer uma coisa corriqueira, acho que as flores tinham mesmo
algum poder, porque eles não foram o único casal que floresceu lá.
Quando começaram os primeiros contatos
feitos pelos Esforços de Paz, Tia Peg tomou uma decisão difícil. Por mais
doloroso que parecesse, achou que devia uma explicação a Fiandeira das Nuvens,
a mãe biológica de sua hospedeira.
Contrariando as expectativas, a
mulher chorou de alívio quando soube que Pet tinha sido mandada de volta ao
planeta que tanto amava. Porque, bem, não era o que se podia esperar cada vez
que uma Alma desaparecia sem deixar explicação. Então, saber que aquela Alma
com quem dividira anos de existência na Terra estava bem, fez seu coração se
acalmar de imediato.
Nós a chamamos de Fia aqui, e ela era
uma Alma típica, inclusive na facilidade que tinha para o perdão. Porque, no
fim, era importante demais para ela estar ao lado da filha de sua hospedeira,
mesmo que fosse Peregrina e não Pet a Alma por trás dos traços angelicais.
Em pouco tempo, Fia convenceu-se de
que queria morar conosco, especialmente depois que Peg engravidou, um pouco depois
de Melanie dar à luz Caleb. Quando Pétala nasceu, a pura e loura imagem da mãe
na figura da menina mais doce que já conheci, Fia se apaixonou por ela no mesmo
instante. Por isso quis estar perto.
Por essa época, Lily estava indo
viver com Cal e a estufa foi deixada aos cuidados da nova moradora. O outro avô
coruja, Paddy, se ofereceu para ajudar. Assim, as flores operaram sua magia
outra vez e eles se descobriram um apaixonados.
Foi lá também que Rio e Céu
conheceram nossa família. Então, alguns dias depois, veio Terra Sonora. Como
ele tinha três filhos biológicos, mais ou menos da idade do Tio Jamie, logo
eles também começaram a frequentar nossa casa, e as visitas de Céu, embora
menos frequentes que as de Rio, eram superanimadas por causa da nossa nova
família grande.
Além deles, o pai e os irmãos de Jared
também vêm sempre, junto com as cunhadas e sobrinhos que ele nem sabia que
tinha. Os pais de Tia Sunny, que também ficaram aliviados em saber que ela
estava segura, vieram duas ou três vezes no começo, mas então nasceram as
gêmeas, e eles acabaram se tornando visitantes assíduos também.
As gêmeas, aliás, eram mesmo
cativantes, se você soubesse lidar com suas personalidades opostas e marcantes.
Ally e Lucy tinham oito anos e se pareciam com a mãe em tudo, exceto pelo
temperamento de Lucy, herdado e moldado exatamente ao do Tio Kyle. As duas, que
eram a exata combinação de placidez e explosão sob a mesma aparência, deixavam o
pai louco, mas Tia Sunny tirava de letra.
Tia Sharon e Tio Doc também tiveram
filhos. Seth tinha nove anos e Christian, ou Kit, tinha seis, mas eram tão
companheiros um do outro, tão semelhantes, que era como se tivessem a mesma
idade. Ambos curiosos e amorosos, com um grande amor pelos estudos. Por causa
disso, adoravam Rio, de quem Kit se
dizia o melhor amigo. Seth, entretanto, dizia a todos que, depois dos pais, sua
pessoa preferida no mundo era sua avó Maggie.
Coisa de criança, eu acho. Porque para
mim, hoje em dia, eram todos eles.
Simplesmente, não era possível pensar
em alguém que eu amasse menos por aqui. Minha família era grande e só crescia. E
eu aprendia muito com cada um.
Ainda assim, havia um lugar todo
especial em meu coração para a única pessoa, dentre as que já amei, que não estava
mais comigo.
O nome dele era Celestino, mas eu o
chamava de Biso. E ele era uma Alma. Era também o avô da minha amada Tia Kate.
Havia uma espécie de trato entre
Almas e humanos remanescentes. Que se fosse de comum acordo, ou melhor, se
fosse da livre e espontânea vontade da Alma, podia-se tentar resgatar a
consciência suprimida do hospedeiro. Meu pai passou por isso certa vez: um penoso
processo de retiradas consecutivas, enquanto o corpo era mantido em coma.
Não funcionava. Pelo menos até onde
tínhamos notícia.
Exceto por meu pai e por Tia Sunny, muito
tempo atrás, nunca nenhum de nós tentou. Era perigoso. E todo mundo aqui
concordava que bastava de sofrimento.
Mas nós sabíamos que havia Almas lá
fora que tinham tentado. Como parte dos Esforços de Paz, meus pais e meus tios
Ian, Peg, Kyle e Sunny já tinham até mesmo viajado para outros países, e nós
mantínhamos contato com quase todas as células remanescentes que eles tinham
ajudado. Toda vez que algum desses humanos procurava seus parentes, toda vez
que alguém se arriscava, o resultado era o mesmo. Nada.
Já havia passado tempo demais. E
ficava cada vez menos seguro tentar.
Por isso Rachel e Kate jamais
cogitariam pedir isso a Celestino. Elas só não contavam que ele faria mesmo
assim. Mesmo antes de conhecê-las bem, mesmo quando o único contato feito, um
breve encontro mediado por Tia Peg, era tudo o que tinham.
Eu me lembro bem até hoje. Tia Kate
ficou furiosa! Durante toda minha vida, nunca achei que a veria transtornada daquele
jeito, mas quando soube, ela saiu daqui direto para a Instalação onde ele
estava, disposta a arrancá-lo do coma “na marra” se fosse preciso.
Foi necessário que Tio Jamie, Rachel
e Brandt intercedessem para que ela não fizesse uma loucura. Mesmo assim, no
minuto em que ele foi trazido de volta da primeira retirada, ela implorou para
que Celestino não se arriscasse mais, porque se lembrava do que meu pai tinha
passado e, diferente dele, o avô não era
mais um homem jovem e forte.
Não sei bem o que aconteceu naquela
noite, as palavras exatas que foram ditas, mas sei que Kate e Rachel o
convenceram e ele veio morar aqui. E foi assim que todos nós passamos a amá-lo
como o ser mais delicado que havia. Dia após dia, ano após ano.
Foi a melhor década de todas, a
última de sua vida. Porque Celestino queria entender a experiência completa,
queria saber o que havia na outra ponta. Ele achava que havia honra em não
adiar a velhice, em abraçá-la com toda a humildade que vinha com o declínio do
corpo. Para meu Biso, havia mérito em nos ensinar e aprender sobre o valor do
tempo. E ele tinha razão.
Então, embora ele cuidasse ao máximo
de sua saúde, um dia seu coração simplesmente parou de bater. Bem aqui, embaixo
de sua árvore preferida. Exatos seis meses depois do nascimento de sua bisneta
Celeste.
Foi Rachel quem o encontrou no fim de
uma tarde de verão feito esta. E aquele foi o dia em que Almas e almanos
aprenderam sobre a morte. Ironicamente, não foi um humano que nos ensinou. Mas
nós entendemos.
Uma vida de amor e bondade é o
suficiente. Uma vida em que se é amado vale tudo. Porque a dor que fica não é o
resultado final. Ela é só uma prova de que você fez as outras pessoas felizes.
Era por isso que eu vinha sempre
aqui. Para lembrar.
Porque um dia este lugar já foi o
símbolo da maior dor que conheci. Mas não podia ser só isso. Não devia. Este
seria o lugar onde eu ainda havia de entender qual seria minha marca neste
mundo, pois tenho certeza que foi isso que Biso pôde ver antes de fechar os
olhos. E é disso que vai se lembrar quando acordar no futuro, em outro planeta.
Ele vai saber que foi amado aqui e que fez a diferença.
Quero o mesmo para mim. Quer dizer,
sei que não vou para outro planeta, provavelmente, a menos que a tecnologia se
aprimore muito, mas quero fazer a diferença aqui de qualquer jeito. Como Tia
Peg e meus pais. Como Vovô Jeb e meus tios.
Aos 16 anos, ninguém sabe ao certo aonde
a grande aventura da vida vai dar. Mas estou aqui para descobrir. Não tenho
pressa.
Eu vou continuar.
— Ei, Lindy — chamou
John, quebrando nosso silêncio e apontando para a cozinha. — Acho que está
chegando a hora do bolo.
Seguindo a mão
dele, vi Vovó Candy gesticulando, nos chamando para voltar e, de repente,
voltei a sentir vontade de estar na agitação. Não havia lugar melhor, afinal.
— O último a chegar
fica sem bolo — gritou Caleb antes de sair correndo.
John e eu trocamos
um olhar e gargalhamos. Por fim, ele me estendeu a mão e seguimos juntos para
nossa casa.