Capítulo 41
Rio Entre Distâncias
Please tell me there's a new beginning
Coming up with the sunrise
Holding out for a happy ending
And it's gonna be alright
Please tell me there's a new beginning
And it's going to be alright
Someday we'll be closer to loving each other
The way that it should be
The streets that divide us
Will join and unite us
You've gotta believe
(New Beginning
– Noah Guthrie)
Rio Entre as Montanhas
— Está
reconhecendo o lugar? — perguntou Logan enquanto percorríamos a pequena estrada
que, poucos quilômetros à frente, nos daria acesso à Fazenda Stryder.
Dali já era
possível vislumbrar as plantações e, obviamente, Trevor tinha feito aquele
caminho inúmeras vezes, mas aquilo não me trazia nenhuma lembrança ou emoção.
— O caminho
parece familiar, tenho a sensação de que devia reconhecer alguma coisa, mas é
só uma impressão vaga — respondi, encontrando o olhar dele no retrovisor com um
pedido silencioso de desculpas.
— Está tudo
muito diferente, imagino — disse meu novo sobrinho, e eu apenas assenti,
porque, na verdade, não saberia dizer o quão diferentes estavam aquelas terras
do lugar das memórias desvanecidas de Trevor.
— Lembranças
assim se perdem com facilidade — opinou Céu de Inverno. — Passamos por um
processo de desvinculação das emoções do hospedeiro logo que o assumimos. E
lembranças distantes no tempo como essa são apagadas rapidamente.
— Claro. É
compreensível — concordou Estrela gentilmente, mas não perdi o olhar que ela e
Logan trocaram.
Havia muitas
expectativas no ar. A história daquelas pessoas envolvia uma vivência muito
diferente da nossa. A ligação das Almas aculturadas com seus hospedeiros era
diametralmente oposta ao que Céu de Inverno tinha narrado. Por mais que o
conceito em suas palavras fosse completamente familiar para as Almas comuns, Estrela
e Logan não eram comuns. Por isso desejei que minha amiga não tivesse usado um
tom tão profissional.
— Imagino que os
familiares de Trevor e Linda devam estar diferentes também — comentei, tentando
mudar um pouco o foco da conversa. — Os filhos principalmente. Eram
praticamente crianças da última vez em que os vi.
— Mel e Jamie
são ambos adultos agora. E são ótimas pessoas, embora sejam bem diferentes um
do outro — respondeu Estrela. — Jamie é mais expansivo e Mel é mais séria,
sempre muito responsável e prática. Mas isso é porque ela teve que crescer
rápido para poder garantir que o irmão fosse bem cuidado. Então, por muito
tempo, Jamie foi o nosso garotinho protegido, e por isso às vezes pode dar a
impressão de ainda ser um adolescente rebelde tentando se afirmar. Mas ele é
muito maduro. Sempre foi. Nunca cansa de surpreender a gente pela forma como
encara as coisas.
Fiquei pensando
naquilo. Em como Logan disse que foi a pedido de Jamie que ele tinha me encontrado. Aparentemente, o rapaz não
guardava nenhum ressentimento. Mas eu não sabia onde isso deixava Melanie, que
tinha passado a adolescência — esse período tão determinante para os humanos —
salvando a si mesma e ao irmão pequeno. Também não sabia o que pensariam os
irmãos de Trevor. E eu estava bem curioso a respeito.
Deveria estar
nervoso, mas estava mais intrigado e ansioso do que com medo. Desde que os
esforços de paz começaram, me questionei se voltaria a ver algum deles e como
seria se acontecesse.
— Tia Mel e Tio
Jey são fofinhos — disse a menininha ruiva acomodada num assento especial no
banco de trás, entre eu e Céu de Inverno. — Vocês vão adorar eles.
Os pais sorriram
em resposta, como se a interferência da criança tivesse sido mais do que
simplesmente oportuna, mas também uma pérola de compreensão das relações. Então
me flagrei querendo sentir aquele tipo de orgulho, entender como se dava um
sentimento que mudava tantas coisas. Assim como Logan e Estrela, eu já tinha
ouvido falar de muitas Almas que tinham abdicado de sua condição imortal apenas
porque não conseguiam conceber outras vidas sem sua prole humana. E apesar de
eu conseguir me lembrar da intensidade do que Trevor sentia, por um instante,
desejei mais do que isso. Mais do que apenas lembrar.
— O vovô Jeb e a
vovó Maggie são muito legais também. A vovó me deixa comer biscoito escondido e
o vovô me faz cosquinha assim... — Estendendo a mãozinha, a garotinha roçou os
dedos gorduchos em minha barriga. Não senti nada, mas era inusitadamente
divertido vê-la tentar, então fingi uma risada.
Sem fazer a
menor ideia de onde tinha vindo o impulso de agradá-la.
— Eles são seus
irmãos, né? — perguntou Lindsay, a pequena humana de cujo nome eu subitamente
tinha conseguido me lembrar.
Bem, eles eram.
Biologicamente falando. Da mesma forma que Melanie e Jamie Stryder eram meus
filhos. Mas eu não era meu hospedeiro. E simplesmente não conhecia aquelas
pessoas. O que, pensando bem, era uma noção bem complicada. Quase um dilema
filosófico, eu diria. Certamente não era algo que eu saberia explicar a uma
criança.
Lancei um pedido
mudo de socorro pelo espelho retrovisor, mas Céu de Inverno interferiu antes
que Logan ou Estrela viessem em meu auxílio.
— Sim, eles eram
irmãos do hospedeiro Trevor Stryder, mas Rio Entre Montanhas é uma Alma. Então
parentes de sangue é uma definição melhor.
A pequenina
franziu a testa, confusa. A frase não parecia fazer sentido algum para ela. Por
isso, mais uma vez, desejei que Céu de Inverno simplesmente tivesse ficado calada.
Era quase
estranho finalmente admitir isso para mim mesmo, mas eu detestava a maneira
como ela confiava excessivamente em sua função de Confortadora, agindo de modo
mecânico como se suas palavras fossem um manual à prova de erros e as
diferenças individuais fossem irrelevantes.
— Eu não sei o
que são parentes de sangue... —
Lindsay repetiu devagar, como se testasse as palavras. — Tia Flora é nossa
parente de sangue? E o vovô David? Porque eu não conhecia eles antes também.
Nós somos parentes de sangue, Tio Rio?
Logan fez uma
careta estranha para Estrela e ela segurou a mão dele pousada sobre o câmbio.
— Tudo tem
tum-tum, lembra? — ele falou e a filha assentiu sorrindo, parecendo se
conformar com aquela resposta estranha.
— Lindsay
cresceu em um grupo muito unido — explicou Estrela. — Ela chama os mais jovens
de tios e os mais velhos de avós, porque nos consideramos todos família. Para
ela, o conceito de parentesco de sangue não faz sentido.
— Desculpe —
pediu Céu de Inverno, parecendo envergonhada pela primeira vez. — Nossa
orientação aos membros de famílias mistas sempre foi lidar com as dúvidas das
crianças utilizando os fatos.
— E nós
concordamos com isso, por isso não é necessário se desculpar. Mas minha filha
nasceu entre humanos, entre os dela, então o ponto de vista a partir do qual
ela interpreta os fatos às vezes é um pouco diferente. É uma nova realidade
para vocês, Confortadores. E para quem mais for trabalhar com crianças como
Lindsay ou John.
— Claro — disse
Céu de Inverno, por fim concedendo à razão de Estrela. — Minha nossa, eu não
tinha me dado conta! Acho que teremos que estudar essa situação específica e
criar algumas instruções para o trabalho com famílias como a sua. Meu
companheiro, Terra Sonora, vai se entusiasmar com a perspectiva.
— Não acho que
instruções possam ajudar — Logan comentou, ainda parecendo contrariado.
— Acho que nós
apenas temos muito a observar, Céu de Inverno — falei.
— Nisso eu
concordo — ela respondeu.
— Vocês são mais
que bem-vindos para conviver com nossas crianças e aprender com elas — disse
Estrela, novamente sendo gentil. — Aliás, se durante o tempo em que estiverem
na vila quiserem se hospedar em nossa casa... Digo, há uma casa para os
visitantes, e ela é grande e confortável o bastante, mas se um de vocês quiser
mais privacidade, podemos providenciar alguma alternativa.
— Oh, não. Não é
necessário. Rio Entre as Montanhas e eu nos damos muito bem. Somos amigos desde
os primórdios da colonização. Já dividimos o mesmo teto antes.
— É verdade —
confirmei.
Embora a parte
de termos morado juntos fosse óbvia e de conhecimento geral, às vezes o fato de
sermos amigos parecia quase improvável, dadas as diferenças entre nós. Mas Céu
de Inverno não as considerava relevantes o bastante e eu guardava por ela um
imenso carinho por causa das lembranças de Trevor com Linda. Assim, mesmo que
nunca tenhamos nos sentido unidos o suficiente para sermos um par, sempre
mantivemos contato e nos tratamos com grande afeição.
— Acho que
entendo um pouco os laços a que Estrela se refere — disse a ela. — Você e eu,
por exemplo, não somos um casal e nossa ligação familiar poderia perfeitamente
ter desaparecido junto com nossos filhos, mas não foi o que aconteceu.
— Hum, tem
razão. Faz sentido. Na realidade, não é muito diferente dos nossos próprios
laços comunitários. Mesmo tantos de nós tendo nascido da mesma mãe, é o convívio
e o zelo pelo bem comum que nos tornam irmãos. Me pergunto o que sentiremos em
relação aos humanos. O que me diz, Estrela? Certamente, vocês têm alguma
conclusão que possa nos servir de ajuda.
— Eu não saberia
o que dizer. Cada experiência é única, obviamente. Mas acho que tudo depende do
quanto vocês vão se envolver com os humanos a partir de agora, independente das
lembranças que ainda possam guardar.
— Eu sou parente
de sangue do vovô Jeb — disse Lindsay, repentinamente voltando à conversa, como
se estivesse elaborando as ideias enquanto falávamos. — Ele é papai do meu
papai. Mas como é que John é meu irmão?
— Somos todos
parentes de coração, amor — Logan falou num tom suave que eu só o vira usar com
a criança. — Vovô Jeb é meu pai porque nos amamos. John é seu irmão porque ele
também é nossa criança. Nós cuidamos dele e os pais dele cuidam de você. Nós
nos ajudamos e nos amamos. É isso que importa.
— Tá bom.
— Escute,
criança — Céu de Inverno a abordou. — A Tia Céu se confundiu, mas é porque eu
sou nova nisso de família e pensei que para os humanos ter o mesmo sangue fosse
importante. Porque, veja, Melanie e Jamie nasceram da mesma mãe e do mesmo pai,
que são os hospedeiros de Rio Entre as Montanhas e meu... Bem, você deve saber
o que é um hospedeiro... Ela sabe? — perguntou, dirigindo-se a Estrela e Logan,
como se com isso pedisse permissão para continuar a explicação. Mesmo assim,
foi Lindsay quem respondeu.
— No começo,
todo mundo era humano que nem eu — Lindsay começou a recitar, como se fosse uma
história que ela tivesse ouvido muitas vezes. — Aí as Almas vieram morar na
Terra também, mas elas são muito pequenininhas, então precisavam pegar carona. Só que não deu. Elas não queriam machucar
ninguém, mas machucaram. Os humanos que sobreviveram ficaram muito tristes e se
esconderam. As Almas ficaram com medo, porque achavam que a gente tinha raiva
deles. Mas agora vai ficar tudo bem.
— Isso — Céu de
Inverno concordou, impressionada. — Quando Melanie e Jamie ficaram tristes com
nossa chegada, eles se esconderam e nós não os vimos mais. Então é como se não
nos conhecêssemos. Mas agora que está ficando tudo bem, eles querem nos ver,
porque somos parentes de sangue. Foi isso que eu quis dizer.
Senti uma ponta
de orgulho de Céu de Inverno. Claramente, era difícil para ela lidar com as
concepções de uma criança sui generis
[1]
como Lindsay. Tudo era inédito demais e minha amiga não era boa com mudanças de
paradigma. Mesmo assim, a menininha a tinha sensibilizado o bastante para que
ela desse seu melhor e tentasse conciliar a situação, aprendendo com o novo.
— Somos parentes
de sangue por causa dos nossos hospedeiros, mas podemos tentar ser uma família
com o tempo — completei, dando a Céu de Inverno um olhar que pedia que
confirmasse o que eu dizia, independente de suas pretensões reais, e assim ela
o fez. — Porque como seus pais nos explicaram, tem a ver com estarmos juntos,
certo?
Lindsay assentiu
e percebi que estava pondo em palavras uma coisa que eu mesmo tinha acabado de
aprender.
— Então você vai
ser papai dos meus tios, igual o vovô Jeb do meu pai?
— Bem, eu não
sei — respondi honestamente.
— Eu queria.
Vovô Paddy ficou com a gente e ele é legal.
— Paddy é o pai
biológico de dois de nossos amigos — explicou Estrela. — Ele se mudou para cá.
— Entendo —
falei, notando que a semelhança das situações exercia sobre nós uma pressão
incômoda, por isso Paddy não tinha sido mencionado antes em nossas conversas.
— Eles vieram
conhecer nossa família, bebê. Apenas isso — Logan interferiu, esclarecendo a
filha. — Não sabemos o que vai acontecer, mas, no mínimo, seremos muito amigos.
— Isso nós já
somos — ela falou com meiga indignação. E foi minha vez de sorrir como se a
garotinha tivesse dito algo genial.
— Melanie,
Jamie, meu pai, todos vão recebê-los de braços abertos. Almas são familiares
para eles. O campo já foi aberto há muitos anos.
— O que quer
dizer? — perguntou Céu de Inverno.
— Que nós
cortamos o mato para vocês colherem os frutos — Logan completou. — Construímos
relações de confiança e amizade com esses humanos, de modo que eles fazem mais
do que nos aceitar. Eles nos amam. Receber vocês só vai requerer abrir um pouco
mais os braços.
— Você anda
falando como Jeb — disse Estrela, rindo. E Logan a acompanhou.
— Ele parece um
homem sábio — observei. — Excêntrico, segundo me lembro. Mas muito inteligente
e bondoso.
— Jeb me recebeu
como filho muito antes de alguém ter qualquer razão para confiar em mim. Ele
acolheu Estrela sem preconceitos e, antes disso, Peg e Sunny, nossas irmãs.
— Você disse que
ele não quis fazer o teste genético para confirmar que era seu pai.
— Ele disse que
não tem importância — Logan deu de ombros.
— Essas relações
são fascinantes — disse Céu de Inverno. — Mas confesso que não as entendo muito
bem.
— Bem, você se
acostuma — disse ele. — Para mim também foi confuso no começo. Mas é minha
lógica agora.
— Percebo — ela
confirmou, reflexiva. — Vocês se referem à outra criança, John, como se fosse
seu filho também. Estrela disse “nossas crianças” e que Jamie era o garotinho
protegido de todos...
— Eles são
criados por todos. Nossas crianças são filhos de uma comunidade — declarou
Estrela.
— Interessante.
Não somos tão diferentes assim.
— Não, não somos
— concordei com Céu de Inverno.
E esse
pensamento me animou quando atravessamos a velha porteira da qual eu começava a
me lembrar.
— Chegamos —
disse Logan.
Olhei para Céu
de Inverno, confiante de que tínhamos tomado a decisão certa, afinal. Mas a
verdade é que desde o momento em que os caminhos se apresentaram, jamais
cogitei tomar outro que não fosse o que me traria até aqui.