domingo, 5 de maio de 2019

CD2 Cap 41


Capítulo 41
Rio Entre Distâncias

Please tell me there's a new beginning
Coming up with the sunrise
Holding out for a happy ending
And it's gonna be alright
Please tell me there's a new beginning
And it's going to be alright

Someday we'll be closer to loving each other
The way that it should be
The streets that divide us
Will join and unite us
You've gotta believe
(New Beginning – Noah Guthrie)

Rio Entre as Montanhas

— Está reconhecendo o lugar? — perguntou Logan enquanto percorríamos a pequena estrada que, poucos quilômetros à frente, nos daria acesso à Fazenda Stryder.
Dali já era possível vislumbrar as plantações e, obviamente, Trevor tinha feito aquele caminho inúmeras vezes, mas aquilo não me trazia nenhuma lembrança ou emoção.
— O caminho parece familiar, tenho a sensação de que devia reconhecer alguma coisa, mas é só uma impressão vaga — respondi, encontrando o olhar dele no retrovisor com um pedido silencioso de desculpas.
— Está tudo muito diferente, imagino — disse meu novo sobrinho, e eu apenas assenti, porque, na verdade, não saberia dizer o quão diferentes estavam aquelas terras do lugar das memórias desvanecidas de Trevor.
— Lembranças assim se perdem com facilidade — opinou Céu de Inverno. — Passamos por um processo de desvinculação das emoções do hospedeiro logo que o assumimos. E lembranças distantes no tempo como essa são apagadas rapidamente.
— Claro. É compreensível — concordou Estrela gentilmente, mas não perdi o olhar que ela e Logan trocaram.
Havia muitas expectativas no ar. A história daquelas pessoas envolvia uma vivência muito diferente da nossa. A ligação das Almas aculturadas com seus hospedeiros era diametralmente oposta ao que Céu de Inverno tinha narrado. Por mais que o conceito em suas palavras fosse completamente familiar para as Almas comuns, Estrela e Logan não eram comuns. Por isso desejei que minha amiga não tivesse usado um tom tão profissional.
— Imagino que os familiares de Trevor e Linda devam estar diferentes também — comentei, tentando mudar um pouco o foco da conversa. — Os filhos principalmente. Eram praticamente crianças da última vez em que os vi.
— Mel e Jamie são ambos adultos agora. E são ótimas pessoas, embora sejam bem diferentes um do outro — respondeu Estrela. — Jamie é mais expansivo e Mel é mais séria, sempre muito responsável e prática. Mas isso é porque ela teve que crescer rápido para poder garantir que o irmão fosse bem cuidado. Então, por muito tempo, Jamie foi o nosso garotinho protegido, e por isso às vezes pode dar a impressão de ainda ser um adolescente rebelde tentando se afirmar. Mas ele é muito maduro. Sempre foi. Nunca cansa de surpreender a gente pela forma como encara as coisas.
Fiquei pensando naquilo. Em como Logan disse que foi a pedido de Jamie que ele tinha me encontrado. Aparentemente, o rapaz não guardava nenhum ressentimento. Mas eu não sabia onde isso deixava Melanie, que tinha passado a adolescência — esse período tão determinante para os humanos — salvando a si mesma e ao irmão pequeno. Também não sabia o que pensariam os irmãos de Trevor. E eu estava bem curioso a respeito.
Deveria estar nervoso, mas estava mais intrigado e ansioso do que com medo. Desde que os esforços de paz começaram, me questionei se voltaria a ver algum deles e como seria se acontecesse.
— Tia Mel e Tio Jey são fofinhos — disse a menininha ruiva acomodada num assento especial no banco de trás, entre eu e Céu de Inverno. — Vocês vão adorar eles.
Os pais sorriram em resposta, como se a interferência da criança tivesse sido mais do que simplesmente oportuna, mas também uma pérola de compreensão das relações. Então me flagrei querendo sentir aquele tipo de orgulho, entender como se dava um sentimento que mudava tantas coisas. Assim como Logan e Estrela, eu já tinha ouvido falar de muitas Almas que tinham abdicado de sua condição imortal apenas porque não conseguiam conceber outras vidas sem sua prole humana. E apesar de eu conseguir me lembrar da intensidade do que Trevor sentia, por um instante, desejei mais do que isso. Mais do que apenas lembrar.
— O vovô Jeb e a vovó Maggie são muito legais também. A vovó me deixa comer biscoito escondido e o vovô me faz cosquinha assim... — Estendendo a mãozinha, a garotinha roçou os dedos gorduchos em minha barriga. Não senti nada, mas era inusitadamente divertido vê-la tentar, então fingi uma risada.
Sem fazer a menor ideia de onde tinha vindo o impulso de agradá-la.
— Eles são seus irmãos, né? — perguntou Lindsay, a pequena humana de cujo nome eu subitamente tinha conseguido me lembrar.
Bem, eles eram. Biologicamente falando. Da mesma forma que Melanie e Jamie Stryder eram meus filhos. Mas eu não era meu hospedeiro. E simplesmente não conhecia aquelas pessoas. O que, pensando bem, era uma noção bem complicada. Quase um dilema filosófico, eu diria. Certamente não era algo que eu saberia explicar a uma criança.
Lancei um pedido mudo de socorro pelo espelho retrovisor, mas Céu de Inverno interferiu antes que Logan ou Estrela viessem em meu auxílio.
— Sim, eles eram irmãos do hospedeiro Trevor Stryder, mas Rio Entre Montanhas é uma Alma. Então parentes de sangue é uma definição melhor.
A pequenina franziu a testa, confusa. A frase não parecia fazer sentido algum para ela. Por isso, mais uma vez, desejei que Céu de Inverno simplesmente tivesse ficado calada.
Era quase estranho finalmente admitir isso para mim mesmo, mas eu detestava a maneira como ela confiava excessivamente em sua função de Confortadora, agindo de modo mecânico como se suas palavras fossem um manual à prova de erros e as diferenças individuais fossem irrelevantes.
— Eu não sei o que são parentes de sangue... — Lindsay repetiu devagar, como se testasse as palavras. — Tia Flora é nossa parente de sangue? E o vovô David? Porque eu não conhecia eles antes também. Nós somos parentes de sangue, Tio Rio?
Logan fez uma careta estranha para Estrela e ela segurou a mão dele pousada sobre o câmbio.
— Tudo tem tum-tum, lembra? — ele falou e a filha assentiu sorrindo, parecendo se conformar com aquela resposta estranha.
— Lindsay cresceu em um grupo muito unido — explicou Estrela. — Ela chama os mais jovens de tios e os mais velhos de avós, porque nos consideramos todos família. Para ela, o conceito de parentesco de sangue não faz sentido.
— Desculpe — pediu Céu de Inverno, parecendo envergonhada pela primeira vez. — Nossa orientação aos membros de famílias mistas sempre foi lidar com as dúvidas das crianças utilizando os fatos.
— E nós concordamos com isso, por isso não é necessário se desculpar. Mas minha filha nasceu entre humanos, entre os dela, então o ponto de vista a partir do qual ela interpreta os fatos às vezes é um pouco diferente. É uma nova realidade para vocês, Confortadores. E para quem mais for trabalhar com crianças como Lindsay ou John.
— Claro — disse Céu de Inverno, por fim concedendo à razão de Estrela. — Minha nossa, eu não tinha me dado conta! Acho que teremos que estudar essa situação específica e criar algumas instruções para o trabalho com famílias como a sua. Meu companheiro, Terra Sonora, vai se entusiasmar com a perspectiva.
— Não acho que instruções possam ajudar — Logan comentou, ainda parecendo contrariado.
— Acho que nós apenas temos muito a observar, Céu de Inverno — falei.
— Nisso eu concordo — ela respondeu.
— Vocês são mais que bem-vindos para conviver com nossas crianças e aprender com elas — disse Estrela, novamente sendo gentil. — Aliás, se durante o tempo em que estiverem na vila quiserem se hospedar em nossa casa... Digo, há uma casa para os visitantes, e ela é grande e confortável o bastante, mas se um de vocês quiser mais privacidade, podemos providenciar alguma alternativa.
— Oh, não. Não é necessário. Rio Entre as Montanhas e eu nos damos muito bem. Somos amigos desde os primórdios da colonização. Já dividimos o mesmo teto antes.
— É verdade — confirmei.
Embora a parte de termos morado juntos fosse óbvia e de conhecimento geral, às vezes o fato de sermos amigos parecia quase improvável, dadas as diferenças entre nós. Mas Céu de Inverno não as considerava relevantes o bastante e eu guardava por ela um imenso carinho por causa das lembranças de Trevor com Linda. Assim, mesmo que nunca tenhamos nos sentido unidos o suficiente para sermos um par, sempre mantivemos contato e nos tratamos com grande afeição.
— Acho que entendo um pouco os laços a que Estrela se refere — disse a ela. — Você e eu, por exemplo, não somos um casal e nossa ligação familiar poderia perfeitamente ter desaparecido junto com nossos filhos, mas não foi o que aconteceu.
— Hum, tem razão. Faz sentido. Na realidade, não é muito diferente dos nossos próprios laços comunitários. Mesmo tantos de nós tendo nascido da mesma mãe, é o convívio e o zelo pelo bem comum que nos tornam irmãos. Me pergunto o que sentiremos em relação aos humanos. O que me diz, Estrela? Certamente, vocês têm alguma conclusão que possa nos servir de ajuda.
— Eu não saberia o que dizer. Cada experiência é única, obviamente. Mas acho que tudo depende do quanto vocês vão se envolver com os humanos a partir de agora, independente das lembranças que ainda possam guardar.
— Eu sou parente de sangue do vovô Jeb — disse Lindsay, repentinamente voltando à conversa, como se estivesse elaborando as ideias enquanto falávamos. — Ele é papai do meu papai. Mas como é que John é meu irmão?
— Somos todos parentes de coração, amor — Logan falou num tom suave que eu só o vira usar com a criança. — Vovô Jeb é meu pai porque nos amamos. John é seu irmão porque ele também é nossa criança. Nós cuidamos dele e os pais dele cuidam de você. Nós nos ajudamos e nos amamos. É isso que importa.
— Tá bom.
— Escute, criança — Céu de Inverno a abordou. — A Tia Céu se confundiu, mas é porque eu sou nova nisso de família e pensei que para os humanos ter o mesmo sangue fosse importante. Porque, veja, Melanie e Jamie nasceram da mesma mãe e do mesmo pai, que são os hospedeiros de Rio Entre as Montanhas e meu... Bem, você deve saber o que é um hospedeiro... Ela sabe? — perguntou, dirigindo-se a Estrela e Logan, como se com isso pedisse permissão para continuar a explicação. Mesmo assim, foi Lindsay quem respondeu.
— No começo, todo mundo era humano que nem eu — Lindsay começou a recitar, como se fosse uma história que ela tivesse ouvido muitas vezes. — Aí as Almas vieram morar na Terra também, mas elas são muito pequenininhas, então precisavam pegar carona.  Só que não deu. Elas não queriam machucar ninguém, mas machucaram. Os humanos que sobreviveram ficaram muito tristes e se esconderam. As Almas ficaram com medo, porque achavam que a gente tinha raiva deles. Mas agora vai ficar tudo bem.
— Isso — Céu de Inverno concordou, impressionada. — Quando Melanie e Jamie ficaram tristes com nossa chegada, eles se esconderam e nós não os vimos mais. Então é como se não nos conhecêssemos. Mas agora que está ficando tudo bem, eles querem nos ver, porque somos parentes de sangue. Foi isso que eu quis dizer.
Senti uma ponta de orgulho de Céu de Inverno. Claramente, era difícil para ela lidar com as concepções de uma criança sui generis [1] como Lindsay. Tudo era inédito demais e minha amiga não era boa com mudanças de paradigma. Mesmo assim, a menininha a tinha sensibilizado o bastante para que ela desse seu melhor e tentasse conciliar a situação, aprendendo com o novo.
— Somos parentes de sangue por causa dos nossos hospedeiros, mas podemos tentar ser uma família com o tempo — completei, dando a Céu de Inverno um olhar que pedia que confirmasse o que eu dizia, independente de suas pretensões reais, e assim ela o fez. — Porque como seus pais nos explicaram, tem a ver com estarmos juntos, certo?
Lindsay assentiu e percebi que estava pondo em palavras uma coisa que eu mesmo tinha acabado de aprender.  
— Então você vai ser papai dos meus tios, igual o vovô Jeb do meu pai?
— Bem, eu não sei — respondi honestamente.
— Eu queria. Vovô Paddy ficou com a gente e ele é legal.
— Paddy é o pai biológico de dois de nossos amigos — explicou Estrela. — Ele se mudou para cá.
— Entendo — falei, notando que a semelhança das situações exercia sobre nós uma pressão incômoda, por isso Paddy não tinha sido mencionado antes em nossas conversas.
— Eles vieram conhecer nossa família, bebê. Apenas isso — Logan interferiu, esclarecendo a filha. — Não sabemos o que vai acontecer, mas, no mínimo, seremos muito amigos.
— Isso nós já somos — ela falou com meiga indignação. E foi minha vez de sorrir como se a garotinha tivesse dito algo genial.
— Melanie, Jamie, meu pai, todos vão recebê-los de braços abertos. Almas são familiares para eles. O campo já foi aberto há muitos anos.
— O que quer dizer? — perguntou Céu de Inverno.
— Que nós cortamos o mato para vocês colherem os frutos — Logan completou. — Construímos relações de confiança e amizade com esses humanos, de modo que eles fazem mais do que nos aceitar. Eles nos amam. Receber vocês só vai requerer abrir um pouco mais os braços.
— Você anda falando como Jeb — disse Estrela, rindo. E Logan a acompanhou.
— Ele parece um homem sábio — observei. — Excêntrico, segundo me lembro. Mas muito inteligente e bondoso.
— Jeb me recebeu como filho muito antes de alguém ter qualquer razão para confiar em mim. Ele acolheu Estrela sem preconceitos e, antes disso, Peg e Sunny, nossas irmãs.
— Você disse que ele não quis fazer o teste genético para confirmar que era seu pai.
— Ele disse que não tem importância — Logan deu de ombros.
— Essas relações são fascinantes — disse Céu de Inverno. — Mas confesso que não as entendo muito bem.
— Bem, você se acostuma — disse ele. — Para mim também foi confuso no começo. Mas é minha lógica agora.
— Percebo — ela confirmou, reflexiva. — Vocês se referem à outra criança, John, como se fosse seu filho também. Estrela disse “nossas crianças” e que Jamie era o garotinho protegido de todos...
— Eles são criados por todos. Nossas crianças são filhos de uma comunidade — declarou Estrela.
— Interessante. Não somos tão diferentes assim.
— Não, não somos — concordei com Céu de Inverno.
E esse pensamento me animou quando atravessamos a velha porteira da qual eu começava a me lembrar.
— Chegamos — disse Logan.
Olhei para Céu de Inverno, confiante de que tínhamos tomado a decisão certa, afinal. Mas a verdade é que desde o momento em que os caminhos se apresentaram, jamais cogitei tomar outro que não fosse o que me traria até aqui.




[1] Expressão latina que significa “única de seu gênero”.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

CD2 Cap 40


Capítulo 40
Família

There were times I didn't understand
And there were times I wouldn't hold your hand
But now baby now I'm here for you
'Cause baby I am so in love with you

I'm gonna stand by my woman now
I'm gonna stand by my woman now
'Cause I can't live my life alone
Without a home
(Stand By My Woman – Lenny Kravitz)

Jared

— Acho que nunca vou me acostumar com isso de novo! — disse Lily, acionando a torneira da pia da cozinha planejada. — É impressionante como a gente não dava valor para coisas assim antes...
— Olha pra isso — comentou Brandt, entrando na brincadeira e ligando e desligando o interruptor da luminária sobre o balcão que dividia a cozinha. — E o chuveiro, então! Meu. Deus. Do céu.
Ao meu lado, Melanie riu e deu uma batidinha no ombro de Paddy, que pareceu feliz com a satisfação dos outros diante de sua obra.
Aparentemente, Lily estava encantada demais com os eletrodomésticos e a acolhedora mesa de jantar, mas o resto de nós seguiu Paddy de volta para a sala de estar, onde Kate ainda estava estatelada no imenso e confortável sofá que formava um arco em torno da tela grande que era um misto de TV, computador, celular, videogame e projetor.
— O que é mesmo que esse troço faz? — perguntei, apontando para a tela. Só porque eu queria ouvir de novo a descrição de como ela era fantástica.
— Você pode ver programas 3D, conversar por videoconferência, brincar com jogos interativos para várias pessoas e ler. A SmartCombo dá acesso a todas as bibliotecas do mundo, livros de antes e depois da nossa chegada. Todo e qualquer conhecimento já produzido, é só escolher.
— Fico com a parte dos jogos — disse Mel , mas Peg vai adorar as bibliotecas.
— Sim — ele concordou. — Dá para usar a tela grande, pedir uma projeção para uma tela portátil ou acionar o áudio que o computador lê as obras para você.
— Caramba — Kate exclamou, ainda esparramada. — E esse sofá é demais, quase que não dá vontade de sair daqui. Acho que vou querer um igual. Provavelmente minha mãe também vai gostar de um destes pra casa de vocês, não acha, Bran?
Meio atordoado, Brandt confirmou, mal conseguindo disfarçar os ciúmes quando a enteada deixava implícito que teria sua própria casa com Jamie. Melanie também se sentia assim e fui obrigado a rir quando percebi a troca de olhares e pigarros entre os dois superprotetores.
— Posso levar vocês até a loja — comentou Paddy, alheio ao clima estranho.
— Eu ia adorar! — disse Kate. — Ficou bem legal o que você escolheu pra cá. Você tem muito bom gosto.
— Obrigado, mas o pessoal da loja de móveis ajudou bastante, então acabou sendo fácil acertar.
— Não é só isso, Paddy. A decoração ficou ótima mesmo, mas a casa em si está muito bonita — Mel comentou.
— Eu gostei de trabalhar nela — respondeu ele, dando de ombros. Depois lançou a ela um sorriso discreto de cumplicidade. — O propósito é muito nobre.
Estávamos na futura Casa dos Visitantes — a única totalmente montada naquele ponto — e o propósito a que Paddy se referia era acolher nossos amigos quando viessem visitar, mas, principalmente, hospedar nossos familiares biológicos quando — e se — viessem nos conhecer. A ideia tinha sido de Melanie, depois de uma conversa com Kyle e, a pedido dela, tinha sido a primeira casa a ser terminada. As demais estavam em fase de pintura e outros acabamentos, mas logo já poderiam receber os móveis que seus futuros moradores escolheriam nos próximos dias.
— Nós vamos passar a noite aqui, não é? — perguntou Lily, vinda do corredor dos quartos. — Eu posso dividir um quarto com Kate, Paddy e Brandt dividem outro e vocês dois ficam com a suíte, que tal?
— Se estiver legal para vocês, acho mais confortável para todo mundo — concordei.
Estávamos fazendo a mudança em etapas e tínhamos vindo hoje para trazer várias coisas no caminhão e começar a fazer umas faxinas. Mas a ideia inicial de dormirmos em colchões no chão da casa que estivesse mais limpa ao fim do dia tinha perdido força rapidamente, assim que Paddy veio nos encontrar dizendo que esta casa já estava habitável.
— Amanhã vem mais gente para ajudar — disse Mel, animada.
— Nesse ritmo, em uma semana já podemos nos mudar de vez — observou Paddy, parecendo aliviado. Por causa da construção, ele passava várias noites em um trailer na entrada da vila, e claramente queria voltar a ficar o tempo todo perto da família que tinha adotado.
— Vai ser bom — disse Lily. — Mas agridoce, né? — completou e todos concordamos em silêncio, sem ter muito a acrescentar.
Não era algo que qualquer um de nós saberia definir, mas a sensação era provavelmente a mesma para todos. Por trás dos planos de deixar tudo habitável para que pudéssemos correr para lá quando sentíssemos falta, havia uma imensa dificuldade em nos despedir de uma parte da nossa vida. É claro que as plantações não seriam abandonadas até o fim da colheita, então nos revezaríamos entre o trabalho aqui e lá, mas não era exatamente a mesma coisa.
— É preciso abrir mão de coisas para se dar lugar ao novo — Paddy aconselhou, entendendo nossa relutância. — Vocês serão felizes aqui.
— É uma nova fase — Mel complementou. — E só tem como melhorar, certo?
Kate assentiu, espantando o olhar saudosista do rosto.
— Não é como se não tivéssemos passado por uma mudança total antes. Só que agora é, com certeza, para melhor — argumentou.
— Acho que a gente devia deixar pra pensar nisso diante de um bom prato de comida — disse Brandt. — E depois de um bom banho!
— Certo, Bran. Já sabemos que você sentiu falta de chuveiros — provocou Lily, explodindo numa risada que todos acompanharam.
— Bom, ainda bem, né? Queriam que eu gostasse de ficar sujo? — ele respondeu com indignação fingida.
Acompanhei os risos, tentando adiar o instante em que teria de lembrá-los de que ainda tínhamos muito a fazer, então olhei para Melanie, que parecia leve depois de ter andado preocupada por muito tempo, e decidi que não valia a pena acabar com o momento.
Depois de tantos anos carregando boa parte da responsabilidade pelo bem-estar dos outros, às vezes eu sentia que não sabia mais como me divertir, mas Mel me fazia lembrar que eu não precisava planejar cada mínimo detalhe do dia. Muito menos arrastar os outros para o redemoinho da minha própria e rígida logística interna.
Sempre foi ela.
Melanie. Minha prioridade, minha preocupação, mas também o meu descanso. Minha mulher.
— Está nervosa? — perguntei em seu ouvido, descendo a mão de leve por sua coluna enquanto a observava apreendendo os detalhes da casa. — Ficou do jeito que você queria, não ficou?
— Ficou até melhor. — Ela sorriu. — Paddy fez um ótimo trabalho, mas você sabe que isso não garante nada. — Deu de ombros.
No dia anterior, Logan e Estrela tinham partido em busca de Trevor e Linda Styder. O objetivo era, assim que se sentissem seguros e confiantes, trazê-los para cá para uma visita. Nesta casa, esperávamos, eles teriam o espaço necessário para lidar com a sobrecarga de emoções que um reencontro significaria, especialmente para Trevor, ou como quer que ele se chamasse agora. Era quase certo que lidar ao mesmo tempo com todos os remanescentes da família Stryder seria tão necessário quanto difícil para a Alma no corpo do pai de Melanie.
Por isso ela tinha canalizado toda sua angústia em forma de expectativas para a Casa dos Visitantes, para que fosse um escudo que os protegesse, ao menos um pouco, do medo do contato direto. Pelo tempo que ficassem aqui, Trevor e Linda teriam onde se refugiar quando a situação fosse demais para eles. Assim como Mel e Jamie poderiam aceitar que a porta se fechasse, sabendo que poderiam bater de novo quando estivessem prontos.
Era como uma estranha apólice de seguros para os sentimentos de todos, uma que Mel não tinha certeza se cumpriria seu propósito, mas ao menos até aqui parecia ter funcionado bem para ela.
— Se eles não quiserem vir — completou —, pelo menos vou saber que fiz o melhor que pude.
— Sim, você fez. Você sempre faz — assegurei, abraçando-a e sentindo seu corpo se aninhar no abrigo dos meus braços.

********

A previsão de Paddy estava correta. Em menos de uma semana, as casas já estavam terminadas e, com tudo previamente organizado para a mudança, tínhamos nos instalado de forma rápida e permanente na vila da Fazenda Stryder. Tão rapidamente, aliás, que ainda parecia mais com estar passando férias em um hotel.
A única constante era a presença das pessoas. Para mim, especificamente, a coisa que me fazia sentir verdadeiramente em casa era Melanie. Por isso acordei sobressaltado quando, na manhã do terceiro dia, me virei na cama e percebi o lado dela vazio.
Andei pela casa, meio trôpego de sono, até encontrá-la no sofá, olhando para o celular deixado sobre a mesa de centro como se fosse algum animal perigoso observado à distância.
— Mel — chamei. — O que foi?
— Logan me ligou. Eles estão voltando.
Por si só, essa informação não dizia muita coisa, já que eu não sabia se Logan e Estrela estavam voltando com ou sem os pais de Mel, mas ela não disse mais nada.
Contando apenas com esse silêncio, tentei avaliar a situação, perceber se sua expressão parecia decepcionada ou ansiosa, mas desisti de fazer suposições. Então sentei-me ao lado dela e esperei.
Assim como fazia sempre, minha garota chegou mais perto e se aninhou a mim, que a recebi como se ela nunca devesse ter saído.
— O nome dela é Céu de Inverno. É Confortadora em San Diego — disse enquanto eu alisava seu cabelo. Ela respirou fundo, esfregando o nariz em meu pescoço e me causando um arrepio. Depois continuou baixinho. — Eles não vivem como companheiros, se separaram logo depois que Jamie e eu fugimos. Então Rio Entre Montanhas... esse é o nome dele... — Ela riu baixinho. — Tio Jeb vai dizer que parecem nomes de hippies.
— Ou de índios naquelas histórias de cowboy — acrescentei e rimos juntos, baixinho, deixando um pouco da tensão de lado. — Mas você estava falando sobre Rio Entre Vales.
— Rio Entre as Montanhas — corrigiu, aceitando minha deixa para não permitir que o assunto caísse em banalidades. — Ele foi para Albuquerque, trabalhar no Instituto de Criações Avançadas que as Almas fundaram lá. A profissão dele é o que chamam de Criadores. Acho que é tipo um cientista.
— Parece interessante. Doc vai gostar dele — arrisquei e ela apenas assentiu, dando a entender que o tal Rio das Montanhas viria mesmo para cá. Pelo menos ele. Soltei um pouco do ar que estava prendendo, aliviado.
— Isso explica por que demorou tanto. Primeiro Logan e Estrela tiveram que ir pra Califórnia, depois pra minha cidade natal. Esse tempo todo Rio Entre as Montanhas estava tão perto... Eu podia tê-lo encontrado antes. Estivemos tantas vezes em Albuquerque nos últimos anos.
— Tem hora pra tudo, amor.
— É, acho que sim.
— E o que mais você já sabe sobre eles?
Mel endireitou o corpo para me olhar e um sorriso sutil, o primeiro do dia, apareceu em seus lábios.
— Rio é bastante progressista, segundo Logan me disse. O nome dele constava nas atas de várias reuniões do Conselho de Albuquerque. Apenas como ouvinte, ou seja, ele não era Conselheiro como David, mas era participante ativo. Tem interesse em se juntar às Forças de Paz.
Sorri em resposta. O prognóstico era bom, ao que tudo indicava.
— Céu é menos ativa nesse sentido — ela continuou. — Parece que se dedica apenas ao trabalho de Confortadora. E ao novo companheiro. Mas não tem filhos. Aliás, Rio também não.
“Bem, uma complicação a menos”, pensei, mas não disse nada, porque sabia que, de certa forma, irmãos biológicos balançariam as estruturas de Melanie tanto quando a deixariam confusa.
— Você está feliz? — perguntei, segurando o rosto dela em minhas mãos.
Mel apenas deu de ombros, mas sorriu de novo, a expressão carregada de expectativas.
— Eles estão a caminho. Vão chegar daqui umas horas — contou finalmente, e o olhar que acompanhou a frase me deu a resposta que eu precisava.
— Jamie já sabe?
— Estrela deve estar no telefone com ele neste momento.
E como se o nome fosse uma invocação, Jamie abriu a porta de nossa casa e entrou sem cerimônias, o celular apertado contra a orelha, trazendo uma Kate confusa e de pijamas a reboque.
— E você acha que eles vão ter problemas em ficar juntos na Casa dos Visitantes? — questionou, mas não deu tempo de resposta à pessoa do outro lado da linha. — Porque um deles pode ficar na minha casa... Aham... Certo. Entendi.
— Diz pra Estrela que a casa dela está arrumada com tudo o que ela escolheu — cochichou Kate, mas Jamie não deu ouvidos, animado enquanto combinava detalhes e se sentava num dos bancos altos da bancada da cozinha.
— O que está acontecendo, hein? — Kate perguntou, acomodando-se ao lado de Mel no sofá. — Jamie me acordou e me trouxe pra cá, mas não desgrudou desse telefone. Só sei que é Estrela porque reconheci uns gritinhos da Lindsay.
— Nossos “pais” estão vindo — Mel simplificou e a garota arregalou os olhos, em choque.
— Hoje!? Ai, meu Deus! Isso é o máximo! — ela exclamou, atirando-se sobre Mel num abraço tão animado quanto alguém poderia estar às 7 da manhã. — Caramba! Eu tenho falado com Estrela todos esses dias, porque me ofereci para ajudar Peg a preparar a casa deles enquanto estavam longe, mas ela não me disse nada.
— Logan só tinha me dito que encontrou as localizações deles — Mel explicou. — Mas ele não quis entrar em detalhes antes de conhecê-los pessoalmente. Eu meio que pedi isso a ele. Não quis que a gente ficasse recebendo informações aos pedaços. Preferi saber tudo de uma vez.
— Foi bom vocês terem combinado isso. Seria impossível lidar com Jamie.
— Não ter notícias é boa notícia, como Tio Jeb costuma dizer.
— Estou tão feliz por vocês — Kate suspirou, apertando as mãos de Melanie. — Você também vai procurar sua família, Jared?
— Minha família são vocês — respondi, sorrindo para a menina. — Estou concentrado em Mel e Jamie agora. Eles precisam de mim. Mas no futuro... talvez. Não sei.
— Eu entendo bem — ela disse, seu rosto jovem ganhando subitamente ares daquela maturidade forjada entre sobreviventes. — Mas acho que você devia, sim.
Então ela me beijou no rosto e foi ao encontro de Jamie, que ainda prendia Estrela a um telefonema inesgotável, abraçando-o por trás e cochichando algo no ouvido dele. Pela primeira vez desde que entrou aqui, meu filho postiço ficou em silêncio, olhou para a namorada e lhe ofereceu exatamente o mesmo sorriso que Mel tinha me dado minutos atrás.
É, estava começando. E eu estaria aqui para passar por tudo com eles. Com a minha família.


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