quarta-feira, 3 de abril de 2019

Cap 39 CD2


Capítulo 39
O Futuro à Espera

If you told me
Nothing's perfect
Hearts are broken
Nothing's free

I could show you
Why it's worth it
That's the way that it's meant to be

It's too strange
How your life's changed
You know nothing
About the people that you've touched
(Possibilities - Michael Hutchence)

Melanie

— Como estão as coisas? — perguntei a Kyle quando ele deixou Paddy anotando coisas numa prancheta junto com Tio Jeb e veio para o meu lado.
— Eles estão pensando em fazer uma grande rua em formato de U, com as casas ocupando todo este terreno aqui, até o pomar. — Apontou.
Segui a mão dele, tentando fazer cálculos mentais. O terreno parecia bom o bastante, com suas lavouras variadas ladeando um pequeno lago onde se podia pescar. A área reservada para o futuro condomínio continha alguns armazéns e galpões com máquinas que teriam que mudar de lugar, mas Paddy achava que era o melhor local, porque havia espaço para expandir, caso necessário.
Estávamos na antiga Fazenda Stryder, onde meu pai e meus tios foram criados. Eu tinha vindo aqui poucas vezes na infância, e mal me lembrava de alguma coisa, mas Tio Jeb ficou em êxtase quando Logan localizou a propriedade nos registros dos Buscadores e descobriu que ainda havia espaço para nós aqui, desde que não nos importássemos com alguns poucos vizinhos Almas que vinham cuidando das plantações ao redor.
A decisão ainda não estava formalmente tomada por todos os moradores remanescentes das cavernas, mas me parecia bem óbvio que se conseguíssemos ficar juntos seria bom para todo mundo. Então alguns de nós viemos para estudar o terreno e fazer planos que pudéssemos mostrar aos demais. Paddy, que estava passando uns dias conosco, veio com Kyle para oferecer seus serviços de construtor, profissão do Senhor O’Shea que ele também seguiu. Logan, Jared e eu viemos para fazer companhia para meu tio e, enquanto os dois rapazes tinham ido se apresentar aos futuros vizinhos, fiquei para lidar com a animação do velho Stryder.
Cedo demais, porém, o papo sobre inclinação do terreno e coisas assim me entediou um pouco e vim apreciar as árvores mais antigas, tentando me lembrar de alguma coisa de antes. No galho mais grosso de uma delas, havia as marcas de uma corda para balanço, mas assim como minhas memórias eram só traços desvanecidos de um passado em família.
— Paddy disse que hoje em dia dá pra fazer tudo muito rápido. Em dois meses, no máximo, a gente pode vir pra cá — Kyle explicou, orgulhoso da aparente experiência e animação do novo membro da família que planejaria sua própria casa aqui também, ao lado das pessoas com quem sempre desejou estar.
— Parece legal — murmurei de forma meio mecânica e Kyle concordou.
— Seu tio disse que não quer aquelas construções “modernosas” das Almas, mas Paddy acha que consegue adaptar um estilo mais rústico aos confortos da civilização. — Riu. — Saí de lá quando eles começaram a falar sobre mobília. Design de interiores é onde eu traço meu limite — concluiu, fazendo uma careta.
Tentei imaginar a ideia de uma rua comum, com casas dos dois lados separadas umas das outras por pequenos jardins, mais ou menos como era antigamente nos subúrbios como aquele em que morei. Só que a nossa seria como uma rua sem saída, o que deve ter sido ideia do Tio Jeb. Certamente, a casa dele e de Candy ficaria bem no meio, na curva do U, de onde ele poderia ver todas as outras da pequena varanda que construiria à frente.
Não sei se teríamos muros. Quando se passa tanto tempo dividindo todos os espaços e aprendendo a respeitar a privacidade dos outros de forma quase intuitiva, soa estranho traçar limites de concreto. Mas se tivéssemos, eu pediria para morar na casa ao lado da do Tio Jeb, com um portão contíguo que me desse acesso direto. Assim eu poderia ajudar Logan a ficar de olho no nosso velho quando finalmente chegasse o ponto em que a gente precisasse prestar mais atenção.
Tudo bem que Tio Jeb teria como esposa uma Curandeira que, ainda por cima, era uns bons quinze anos mais nova que ele. E que Logan e Estrela provavelmente estariam na casa do outro lado. Mas na Nova Terra todos tínhamos tarefas, às vezes a gente viajava muito... E também tinha a Tia Maggie. Agora que Sharon estava planejando ter os próprios filhos, haveria momentos em que ela estaria ocupada. Tia Magnólia talvez precisasse de companhia...
Passei as unhas sobre o tronco da árvore, pensando no futuro enquanto arrancava algumas cascas meio soltas. A ponta de um dos meus dedos ficou arranhada no processo e tive que parar e encarar os fatos enquanto sugava a gotícula de sangue que tinha se formado.
Ah, merda!
Quem eu estava querendo enganar? Isso era mais por mim do que por qualquer outra coisa. Porque nos últimos tempos eu tinha me dado conta de que não importava que eu tivesse o mundo inteiro para correr fora das nossas cavernas, só queria estar perto da minha família e aproveitar a sorte de conviver com os Stryder que tinham me sobrado. Só para compensar os que eu tinha perdido.
— Como estão as coisas com Paddy? — decidi perguntar, chegando mais perto do ponto que estava me incomodando. — A convivência com você e com Ian e tudo mais?
A intimidade da pergunta não pareceu surpreender, era quase como se Kyle já estivesse esperando por ela. O que era estranho, considerando que minha afinidade era com Ian, que era meu melhor amigo. Mas não estranho de todo.
Meu começo com Kyle tinha sido desconfortável, para dizer o mínimo. Nos primeiros tempos, era difícil falar com ele sem lembrar do peso de sua mão na minha cara, de quando ele espancou Peg. Ao contrário dela, eu não conseguia perdoar e considerar os atenuantes. Mas depois percebi que sua mudança era verdadeira e, não é que tenhamos nos tornado amigos, mas eu adorava Sunny e ele era amigo de Jared, então tornou-se suportável. Depois, com o passar dos anos, a coisa foi se tornando um pouco fácil e agradável do que simples tolerância mútua. E agora estávamos aqui, quase amigos, reconhecendo um no outro a necessidade de proteger nossos familiares. Em especial, nossos irmãos mais novos.
Por isso a pergunta era para ele. Se eu perguntasse a Ian, ia receber o mesmo tipo de resposta que receberia de Jamie.
— Ele quer fazer as retiradas. Acha que é o que queremos, o motivo oculto e real para ele estar aqui.
— Mas vocês já disseram que não querem isso.
— É mais do que não querer. Eu não vou deixar que ele faça isso com a gente. Não vou cometer o mesmo erro duas vezes.
Dava para ver o maxilar dele se movendo por baixo da pele, os dentes trincando naquela expressão séria e raivosa que Kyle fazia quando estava decidido a mandar em todo mundo.
— A Alma no corpo do meu pai ligou para os Buscadores — expliquei. — Tenho certeza de que Trevor Stryder não estava mais ali quando ele nos denunciou. Ou minha mãe, porque ela teria tentado impedir se estivesse, de alguma forma, consciente. Eu tenho certeza de que meus pais nos amavam e mais ainda de que não sobreviveram. Ou não teriam feito isso comigo e com Jamie. Mas Paddy amou vocês desde o primeiro instante. Talvez seja por causa do seu pai — concluí.
Eu sabia que estava em território complicado. E, pior, estava pensando só em mim quando cutucava a ferida de Kyle, sugerindo que o pai dele tivesse sobrevivido à inserção. Mas apesar de saber que o irritaria, eu precisava falar disso com alguém que tivesse a experiência recente de um reencontro. Precisava esmiuçar a questão. E se eu tinha que ferir os sentimentos de alguém, preferia que fosse os de Kyle aos de meu irmão, porque o homem diante de mim tinha sido moldado nesta vida à base do tranco, como eu. Por isso eu achava que ele podia aguentar.
Quando digeriu de fato o que eu disse, ele negou com a cabeça, teimoso, me lançando um olhar quase hostil.
— Eu não sei o que fez algumas pessoas sobreviverem à inserção enquanto a maioria não teve nem chance. A Estrelinha andou pesquisando e veio com uma teoria sobre equiparar os casos de resistência com gente que não consegue ser hipnotizada. Ela diz que a mente de alguns simplesmente não é sugestionável o bastante. Sei lá, mas também não me interessa mais. Porque sei que Paddy não é meu pai. Mesmo depois de tanto tempo, eu reconheceria meu velho debaixo de toneladas de gentilezas de Paddy. Eu não sei por que ele nos ama, ou por que Sunny era apaixonada por mim através das lembranças de Jodi, ou por que Peg se deixou levar pelas suas lembranças... Só sei que eu já passei por isso uma vez. Fiz Sunny sofrer, arrisquei o corpo humano dela e feri os sentimentos que ela já tinha, tudo por causa de uma esperança que não deu em nada, a não ser em uma segunda morte de Jodi pra mim. Eu gosto de Paddy. Não vou deixar que ele passe por isso, porque o corpo é dele agora. Além disso, ele precisa entender que não vou perder meu pai outra vez. Fim de papo.
— Ian concorda com você... — falei, mas não era bem uma afirmação, muito menos uma pergunta.
— Sim, ele concorda. Mas Ian respeita Paddy demais para impedi-lo de fazer alguma coisa. Já eu, se precisar injetar uns anestésicos nele, colocar o cara em coma e depois mentir que fizemos as retiradas para Paddy sossegar, eu faço isso. Embora prefira não ter que chegar a esse ponto.
Eu entendia completamente. Mais fácil do que entendia a posição de Ian.
Pensei no que eu tinha ouvido de Jamie.
“Se nossos pais não quiserem fazer as retiradas por nós, não podemos fazer nada a respeito. Se quiserem, vamos respeitar a vontade deles também. Não é tão complicado, Mel.”
Só que era.
Primeiro, que eles não eram “nossos pais”. Eram só dois estranhos sobre cujos sentimentos não sabíamos nada. Até na linguagem, Jamie demonstrava que tinha dificuldade em fazer a distinção. Por isso eu não era capaz de prever o que um encontro com essas pessoas podia fazer com os sentimentos do meu irmão. Nem mesmo com os meus, para falar a verdade. E embora Jamie já fosse um adulto, eu ainda sentia necessidade de defendê-lo, porque, nesse aspecto, ele ainda era aquele menininho que tinha perdido os pais.
— Você acha que Ian pode estar certo? — arrisquei. — Quer dizer, se Paddy está disposto, que mal há dar essa chance ao seu pai? Com Logan não deu certo, mas... Cada pessoa é tão diferente da outra. Sei lá.
Kyle deu uma risada que mais parecia um grunhido. Depois chacoalhou a cabeça e respirou fundo, como se estivesse se preparando para explicar algo difícil a uma criança.
— Ian já passou por muita merda nesta vida. E ele precisa da ilusão de que se mantém justo apesar de tudo. Então tudo bem, eu sujo as mãos por ele, até porque todo mundo já espera isso mesmo. Mas se ele não está preparado para contrariar a vontade de Paddy, todo preocupado em agir em nome do respeito, também não está preparado pra passar pelo que eu passei com Sunny. Mesmo se estiver, eu posso e quero protegê-lo disso e estou aqui para evitar que ele e Paddy sofram. Além do mais, John já está apegado ao novo avô. Alguém tem que pensar nisso, e Peg e meu irmão são gentis demais para esfregar essa verdade na cara do Paddy. Eu não sou.
— Entendo — falei vagamente. — Acho que você tem razão em muita coisa.
— Acha!? Pode apostar que sim!
— Aham. — Tentei sorrir, o que deve ter sido um tremendo de um fiasco, porque Kyle me sondou sério, inclinando a cabeça como se estivesse estudando um enigma.
— O que está realmente te incomodando, Mel? Não é a vida da minha família, disso eu sei.
Expirei, já meio vencida. Não adiantava mentir, adiantava? Arranquei uma folha da árvore, torcendo-a entre os dedos para ganhar um segundo antes de ser sincera.
— Jamie quer procurar “nossos pais”.
— Certo — ele respondeu, paciente e impassível. — E você não acha uma boa ideia.
— Dã! Você acha?
— Não tenho muita moral para opinar. — Deu de ombros.
— Essas pessoas... Nem todas as Almas serão como Paddy. Talvez eles nem queiram vê-lo. E ele pode dizer o que quiser, pode bancar o tolerante e maduro o quanto for, mas vai ficar decepcionado.
— E você também.
Lancei-lhe um olhar mal-humorado. É claro que eu ficaria. Meu coração não era de pedra, pelo amor de Deus! Mas aquilo não era da conta de ninguém.
— Não importa, eu me viro com isso. Só estou pensando no meu irmão.
— Jamie é adulto, Mel.
— Ian também! Paddy também! Jamie é um bebê perto deles —explodi. — Mas não faz nem dois minutos você estava aí discursando sobre controlar a vida deles, porque só você sabe o que é bom para os dois. Aí quando é a minha família você me vem com essa? Pimenta no dos outros é refresco agora?
— Calma — ele pediu, erguendo as duas mãos em rendição e gargalhando. O filho da mãe teve a ousadia de gargalhar. — Eu não disse que discordava de você. Só estou dizendo que não acho que você vai conseguir impedir o Jamie por muito tempo, se ele estiver mesmo resolvido.
— Ah, tá. Ajudou muito — bufei.
— Não sabia que você estava pedindo ajuda pra alguma coisa.
— Não estou.
Aquela conversa já tinha dado o que tinha que dar. Mas então Kyle riu outra vez e eu percebi que ainda tinha como eu ficar mais nervosa.
— Nessas horas parece mesmo que você e Logan são mesmo primos. Aposto que você está aí se segurando pra socar alguma coisa, não está? — ele provocou, se pendurando num galho alto e fazendo um punhado de flexões exibicionistas antes de soltar o próprio peso no chão e se sentar sob a árvore. — Senta aqui, vamos conversar de verdade.
— A gente estava brincando até agora? — Para a sorte dele, não respondi à pergunta sobre querer socar alguma coisa.
— Senta logo.
Revirei os olhos irritada, descrente e, ao mesmo tempo, curiosa. Por causa dessa última parte — e também porque não tinha nada melhor para fazer — acabei me sentando.
— Eu ajudaria você com os efeitos colaterais. Jared também, claro. Caramba, vocês são praticamente os pais do Jamie! É claro que têm que cuidar dele. Mas, sinceramente, não sei se dá pra evitar a bomba. Nas duas vezes em que fiz o que fiz, eu precisava ter feito, tanto com Sunny quanto com Paddy.
— Sua teoria então é que Jamie precisa sofrer? — A pergunta soava cínica, eu sabia, mas não era completamente. Naquele ponto, já que eu não estava dando conta do assunto sozinha, eu não tinha muita saída a não ser deixar minha teimosia se curvar à lógica de outra pessoa.
— Minha teoria é de que você escolheu uma certeza muito desconfortável, mas segura de que não existe chance de haver uma relação entre você e aquelas Almas. Só que Jamie era criança demais para concluir qualquer coisa sozinho. Agora que ele tem maturidade para fazer isso, vai precisar de respostas.
— E se eles realmente não quiserem saber de nós?
— Alguns sofrimentos a gente consegue evitar, outros não.
— Pimenta no dos outros... — comecei, mas não estava mais brava.
Kyle riu outra vez.
— Não é assim, não, Melanie. Vai por mim. A verdade é que você nunca sabe realmente o que vai acontecer. Não tem como. Eu sei que você não quer ter esperanças, mas se tudo der errado, todo mundo vai estar aqui pra vocês. E se der pra tirar alguma coisa boa da experiência... Bom, é lucro, não é? Ou você realmente acha que tem como ficar pior do que já foi?
Com uma sobrancelha erguida, Kyle me desafiava à razão. Encarei-o com o cenho franzido, meio angustiada, meio surpresa por ele estar tão certo. Depois de um momento, desviei os olhos e voltei a olhar a imensidão da antiga fazenda Stryder.
— Como foi quando você conheceu Paddy? — perguntei, voltando a olhá-lo brevemente.
— Esquisito.
— Posso perguntar como?
Ele soltou um suspiro alto, mas não era exasperação, era mais como o esforço de articular ideias.
— Eu já tinha passado por aquilo antes, conhecia as armadilhas. Mesmo assim, quando cheguei, ele estava abraçado com Ian e eu não consegui evitar a ilusão, sabe? Era meu pai. A imagem, a sensação quando eu o abracei também, o som da voz dele. Só por uns segundos, eu me permiti isso. Depois você vai notando as coisas pequenas. Uma palavra ou uma frase que a pessoa não usaria, um gesto... Então eu me forcei a não ficar bravo com essas coisas, porque quando era com Sunny, eu detestava! Estava sorrindo e brincando com ela, quando de repente me dava conta de que não era daquele jeito que Jodi reagiria e ficava com raiva, me fechava, deixava Sunny confusa por besteira. Com Paddy, eu prometi a mim mesmo que não faria isso, que se tivesse que perder a paciência, que fosse com alguma coisa que ele fizesse, e que se tivesse que apreciar alguma coisa, que não fosse o quanto ele parecido com meu pai.
— E você conseguiu?
— Bom, você conheceu o cara? É bem difícil não gostar dele.
Sorri. De fato, Paddy era adorável. A mesma mansidão de Sunny e o comedimento de Peg, mas filtradas por aquele jeito paternal de acolher todo mundo que quase me fazia lembrar do tio Jeb.
— E a parte esquisita? — perguntei.
— Paddy tinha que trabalhar na limpeza da cidade naquele dia. A gente foi junto, até o John. Varremos umas folhas com ele e mais nada. Os caras nem sujam a rua! — Kyle brincou e nós rimos, sabendo que era verdade. — Em pouco tempo, a gente estava na casa dele... Na nossa casa. E estava tudo diferente, tecnológico, as paredes pintadas de outra cor, outros móveis em arranjos diferentes... Foi até fácil estar ali e separar as coisas na minha cabeça. Era a casa do Paddy, ponto. Um esforcinho e eu conseguia ignorar o fato de que era a casa da minha infância. Então Ian começou a explicar a John que Paddy era seu avô, aí foi quando a coisa complicou.
— Como?
— Não por John, é claro. Você sabe que o conceito dele sobre família e parentesco tem mais a ver com afeto do que com genética. O moleque está acostumado a chamar todo mundo de tio, tia, avô... Paddy também se comportou da melhor maneira possível. Tipo, dava pra ver que ele queria esclarecer que ele mesmo não era o avô, e sim meu pai, mas deixou Ian e Peg conduzirem a conversa e entendeu rápido que era cedo para uma explicação tão complicada. Ele se emocionou quando John o abraçou, foi aquela cena linda do menino fazendo carinho no rosto dele e eles se reconhecendo... Caramba, até eu quase desmontei tudo de novo! Mas aí o John me veio com essa de “Ah, papai, então você e o tio Kyle moravam aqui? Paddy é seu papai? Posso olhar onde vocês dormiam?” E pronto. A droga do quarto estava exatamente igual. Exatamente! As fotos, as flâmulas ridículas de times de beisebol, o troféu de basquete do Ian no Ensino Médio, meu capacete de futebol, tudo! O quarto era uma porra de um santuário!
—Ai, droga.
— É. Droga.
— Entendi agora a parte esquisita.
—Paddy reformulou a casa inteira. Ele tinha uma autêntica vida de Alma, com amigos, passatempos idiotas e obrigações. Mas tinha aquela parte da gente guardada numa bolha. Esse tempo todo, ele nunca nos deixou ir embora de verdade.
— Hum, ele deve ter ficado constrangido... — murmurei solidária e com um pouquinho de inveja. — E eu entendo que não pensar nele como seu pai deve ter sido difícil depois disso.
Kyle não respondeu. Só deu uma risada estranha que parecia mais como se ele estivesse engolindo uma lufada de ar.
— A gente foi pro hotel logo depois — continuou contando. — Quer dizer, ninguém disse explicitamente, mas ficou meio óbvio que nós três precisávamos respirar, embora Paddy tenha ficado inseguro. Acho que mesmo deixando endereço, números de telefone e tudo o mais, ele ficou com medo de que a gente não voltasse, mas não perguntou nada, só deixou a gente ir naquela hora. Ficou quietinho, sem fazer pressão nenhuma, sem perguntas. Só que aí no dia seguinte, eu acordei cedo com o telefone tocando. Era ele me perguntando se eu me incomodava que ele viesse passar uns tempos aqui. Que já tinha falado com Ian, mas queria saber o que eu achava.
— E o que você respondeu?
— O que eu podia responder? “Arrume as malas, te pego em duas horas.” E aqui estamos.
— Você se arrepende?
Kyle olhou direto nos meus olhos, sério e definitivo como um ataque do coração.
— Nunca.
— Hum.
— Sério!? “Hum”é o que você tem a concluir?
— Não vai ser assim comigo e com Jamie.
— Certo. E você sabe disso por causa das inúmeras vezes em que passou pela experiência antes.
Olhei para ele com olhos estreitos e uma careta disfarçada de sorriso cínico.
— Haha.
— Acho que você está com medo de encarar os riscos.
— Ah, não brinca! — retruquei e Kyle riu da minha cara de novo. Ficar irritada com ele parecia que só piorava as coisas. — Tá, eu estou com medo de encarar os riscos. Dá pra me censurar?
— Não, não dá. Mas uma coisa que todos nós aprendemos quase que na marra é que o medo nunca impediu Melanie Stryder de fazer o que era preciso.
Dei um meio sorriso, sem querer admitir totalmente o quanto ouvir aquilo me fazia bem. De todas as pessoas, era uma verdadeira maluquice que eu tivesse procurado justamente Kyle. Mas mais impressionante ainda era o quanto essa parecia ter sido uma decisão acertada.
— Vou fazer o que for preciso — admiti, encarando o horizonte à nossa frente.
— Eu sei — ele disse, dirigindo o olhar para a mesma imensidão.
— Só preciso de um tempo, eu acho. Um tempo para me preparar.
— É, também sei disso.
Não nos preocupamos em dizer mais nada depois. Apenas ficamos ali, contemplando aquele lugar onde passado e futuro pareciam unir suas pontas.




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