sábado, 22 de agosto de 2015

ELS - Cap 28

Capítulo 28 - Prisma

I let it fall, my heart,
And as it fell, you rose to claim it,
It was dark and I was over,
Until you kissed my lips and you saved me,
My hands, they're strong, but my knees were far too weak,
To stand in your arms without falling to your feet,

(Set Fire To The Rain – Adele)

            Eric segura minha mão quando saímos do backstage. Eu não tinha me dado conta disso enquanto estávamos em nossa “bolha”, separados do resto do mundo, mas aqui fora o gesto me torna plenamente consciente de que as coisas mudaram. Ao menos dentro de mim. Tanto que chego a me surpreender como tudo o mais parece igual, imperturbável.
            É uma sensação estranha, quase como se não fizesse sentido que a felicidade não esteja escrita em todas as minhas linhas, que eu possa sair por aí e falar com as pessoas sem que elas tenham a menor ideia de que há fogos de artifício em meus pensamentos. E é paradoxal também, porque ao mesmo tempo em que acho impossível que todos não saibam o que estou sentindo, não quero que isso pertença a mais ninguém, a não ser a nós dois.
            Na medida em que Eric e eu cruzamos a pista em direção ao bar, voltamos ao mundo real, às nossas obrigações, e o enlace de nossas mãos vai, lentamente, se abrandando, até que o último contato entre minha pele e a dele se desfaz. Sinto-me momentaneamente desprotegida, frágil até, como se seu toque fosse agora para mim como a necessidade de estar vestida, uma barreira necessária entre meus sentimentos expostos somente para ele e o resto do mundo.
            Eric contorna o balcão do bar e reassume seu posto, ignorando deliberada e solenemente os olhares furiosos de Samuel, que está no caixa, recebendo a conta de um cliente. Embora seu comportamento às vezes faça parecer que ele ainda se sente dono do bar, Samuel não é tolo o suficiente para cobrar alguma coisa de Eric, por mais que esteja, provavelmente, morto de vontade de fazê-lo. A relação deles é apenas de empregado e patrão, e Eric deixa isso absolutamente claro em cada uma de suas ações, em cada uma das palavras que contêm um aviso muito específico e evidente de que há uma distância a ser mantida.
            Eu, por outro lado, sou o elo fraco da corrente, porque nunca consegui deixar de tratar Samuel como chefe e ele sabe disso. O que me dá a certeza de que meus momentos de garçonete relapsa vão cobrar seu preço. É o que acontece quando vou à cozinha levar alguns copos que acabei de recolher. Samuel entra discretamente e para à minha frente quando me viro para voltar ao salão.             

            — Esteve ocupada, Clara?
Ele é alto e parece ainda maior quando está assim tão perto de mim. Está com os braços cruzados e uma expressão carrancuda no rosto, e é quase como uma parede de brios feridos me impedindo de passar. Há frustração e rancor emanando dele e essa energia me intimida um pouco. Não quero brigar e nem posso, porque agi errado por ter desaparecido, então o que me resta é apenas o óbvio: reconhecer o erro e me desculpar. Afinal, ele é o gerente e eu realmente devo satisfações a ele.
            — Me desculpe, Samuel. Sei que dei mancada. Mas Eric queria conversar comigo... — Entre outras coisas que fizemos, penso, o que é uma péssima ideia, porque sei que devo estar ficando vermelha. Além disso, me lembrar de nós dois faz minha capacidade argumentativa ir para o espaço sem data de retorno. — Eu não tive como negar — completo, porque isso é fácil. Supondo que não se tratassem de motivos tão pessoais, eu não poderia simplesmente me negar a falar com meu chefe.
            — Sei. E quando você saiu para conversar com Eric pela segunda vez nesta semana, será que se esqueceu de que alguém teria que trabalhar dobrado para cobrir sua ausência?
            Ouço os sons da cozinha ficarem mais acentuados. De repente, D. Maria parece ter tornado o ato de lavar louças algo extremamente barulhento, batendo uma peça na outra e deixando o fluxo de água mais intenso enquanto cantarola uma música qualquer. Agradeço mentalmente pela solidariedade dela ao me dar um pouco de privacidade para ter meu couro arrancado.
            O tom da voz de Samuel é especialmente hostil e destila veneno quando se detém na palavra “conversar”. Não posso culpá-lo por estar bravo e ele não está me acusando de nada que eu de fato não tenha feito, mas ainda assim me sinto desconfortável com a animosidade dele. Quase chateada. Comigo mesma, principalmente. Eu não gosto de falhar com as pessoas, e é justamente isso que venho fazendo no meu trabalho ultimamente. Isso porque ninguém, com exceção de Eric, sabe que menti quanto a estar passando mal no domingo.
            — Eu realmente sinto muito, Samuel. Não tenho como me explicar ou me desculpar pelas minhas mancadas de ultimamente. Vou cuidar para que nada disso se repita.
            Alguma coisa na minha compunção sincera ameniza o estresse dele, porque, quando fala, meu antigo chefe já não parece mais tão bravo. Reconhecer que ele tem razão sempre parece dobrá-lo um pouco.
            — Olha, Clara — ele começa, numa voz mais baixa e conciliatória —, eu sei que o cara é rico e impressiona, mas ele não é pra você, entende?
            — Espera aí. O quê? — Eu entendi certo ou ele está dizendo que estou interessada no dinheiro de Eric? — Não, Samuel. Acho que não entendo.
            — Melhor dizendo, você não é pra ele. Você era séria, trabalhava direito e não dava bola pra ninguém. Agora está aí, toda mudada, agindo como uma deslumbrada! Cá entre nós, esse cara é um playboy, vai se cansar deste lugar e de você, porque isso tudo é só um passatempo pra ele. Roubar a porra do meu bar e da minha vida é só um jeito dele combater o tédio.
            — Sem querer te ofender, Samuel, mas Eric não roubou o bar de você. — Quer dizer, corre por aí que foi uma “aquisição agressiva”, que Samuel tinha muitas dívidas de jogo e o On The Rocks foi o preço para saldá-las, mas, de qualquer jeito, ele perdeu o bar, ninguém o roubou. Além disso, qualquer um pode ver que o lugar está muito melhor agora e que foi Eric quem fez isso. — Ele é um bom chefe e tem feito um bom trabalho aqui.
            Ele sorri afetadamente, soltando o ar em deboche.
            — E aparentemente tem feito um bom trabalho com você também, não é?
            É sério isso!? Acho que perdi o trecho da conversa onde você disse a ele que podia te insultar.  Sei que você não gosta de encrencas, mas depois dessa vai precisar reagir.
            — Por quê? Porque estou sendo justa ou porque você acha que tenho algum interesse em defendê-lo? Sinceramente, não estou entendendo por que você se importa, embora seja até grata pela preocupação. Mas, com todo respeito, você não sabe dos meus sentimentos, dos meus interesses ou dos de Eric. Como pode presumir as coisas assim?
            — Só estou tentando avisar você...
            — Obrigada pelo aviso. Mas, se você me der licença, esta conversa está me deixando desconfortável e eu já fiquei tempo demais ausente, como você mesmo apontou.
            — Tudo bem — ele concorda, ficando de lado para que eu possa passar, enquanto joga as mãos para o alto num gesto de suposta rendição. — Você é quem sabe. Só estava tentando ajudar.
            Não respondo. Entendo que ele tenha suas razões para não gostar de Eric, mas não pode esperar que os outros compartilhem delas. Especialmente quando ele não é exatamente uma vítima inocente dos fatos. E, acima de tudo, ele não tem nenhum direito de me ofender, por mais que tenha motivos para me chamar a atenção por meu comportamento no trabalho.
            Samuel sai logo atrás de mim, mas não insiste em prolongar a conversa. Os últimos clientes estão saindo e ele vai fechar as portas, enquanto Paty recolhe o que sobrou nas mesas e Eric se afasta para fazer a contabilidade da noite. Ela passa apressada em direção à cozinha, mas me aponta o dedo indicador e me lança um olhar que deixa tão claro como se dito em alto e bom som, que devo ficar onde estou e me preparar para “abrir o bico sem chiar”.
            Continuo meu trabalho, limpando a superfície das mesas e começando a colocar as cadeiras sobre elas para preparar o lugar para a faxineira que vem de manhã. Embora não esteja aguardando ansiosamente pelo interrogatório que me espera, pelo menos sei que conversar com Paty não será, nem de perto, tão penoso quanto encarar Samuel na cozinha. Ao contrário, acho que vai ser até divertido. Sei que ela vai me espremer por cada detalhe como se eu fosse um limão, mas não me importo.
            — Certo, conte tudo — diz ela, aproximando-se por trás.
            Tudo bem, talvez eu me importe um pouco. Por mais que eu ame Paty, ela sabe ser realmente impositiva e eu não estou acostumada com isso. Não faço ideia de por onde começar e... Como assim, contar tudo? Será que ela quer saber tudo mesmo? Como será que funciona esta coisa de melhores amigas?
            — Está tudo bem agora — afirmo, apenas porque preciso dizer alguma coisa, mas isso parece mais com o fim de uma conversa, a conclusão de um assunto, do que com o começo do que ela deve querer dizer com “conte tudo”.
            Não que eu realmente tenha a intenção de satisfazer toda a curiosidade dela. Acabei percebendo nos últimos minutos que tenho um pouco de ciúmes de meus momentos com Eric. Algo um tanto curioso, mas também muito coerente com o jeito como passei minha vida inteira: guardando minhas lembranças felizes como tesouros inestimáveis.
— Aham. — Paty revira os olhos e faz um gesto desdenhoso com a mão. Em seguida, ela começa a trabalhar junto comigo, empilhando as cadeiras sobre as mesas correspondentes. Mesmo assim, mantém o foco na conversa. — Que está tudo bem eu percebi, porque, né? Até vi o Eric sorrir na hora em que passou por mim. Achei que veria o Samuel dançando balé de collant rosa antes de ver o chefinho me cumprimentar com um sorriso na cara!
            Dançando... O quê!?
            Paty e as imagens que põe em minha cabeça! Começo a rir imediatamente quando imagino a cena, e minha amiga me acompanha. Ajuda o fato de que estou propensa a risos fáceis e a aceitar qualquer coisa que me ajude a me “vingar” das palavras maliciosas de nosso ex-chefe. Logo estou me sentindo mais à vontade na conversa. Nada estabelece cumplicidade mais rápido do que boas risadas.
            — Não acho que seja tão difícil assim ver Eric sorrindo — digo, voltando à realidade. — Sei que ele não é o cara mais simpático do mundo e às vezes é meio fechado, mas... vê-lo sorrir não é um evento tão raro assim.
            É?
            — Isso é porque ele sempre sorri pra você. E... — ela segura meu queixo entre o indicador e o polegar, rindo de mim — desfaça esse sorriso! Eu sei que é bonitinho, mas você não precisa esfregar essa hiperglicemia toda na minha cara.
            Rimos mais um pouco. É bom estar com ela. Eu não devia, mas acho que posso me acostumar a ter uma amiga. Acho que é tarde demais para voltar atrás, de qualquer maneira.
            — Não estou dizendo que ele seja antipático — ela continua. — É só que desde o começo ele não deixou ninguém se aproximar, exceto você. Para o resto de nós, e ao que parece do mundo, dizer que o cara é fechado é eufemismo. Tem espaços entre os meus dentes mais abertos do que ele!
            Não digo nada em resposta. Eu sabia que Eric era assim, mas nunca tinha pensado em como parecia pior para os outros. De qualquer forma, eu não sou tão diferente dele. Ambos nos protegemos do mundo. Guardamos nossas verdades e não damos aos outros formas de nos ferir. Pelo menos é o que achamos que estamos fazendo. Fugindo da dor.
            Para mim acontece quando me apego demais a alguém sabendo que, cedo ou tarde, vou ter que me afastar. Muita gente sabe viver com isso, eu acho. Só que eu nunca aprendi, por isso me protejo mantendo uma distância relativa quando sinto que o amor em mim pode machucar. Quanto a Eric, não sei ainda seus motivos, mas posso entender a atitude. De certa forma, apesar de me frustrar às vezes, sempre me pareceu extremamente natural. Isso faz eu me perguntar que tipo de impressão meu comportamento passa para as pessoas à minha volta.
            — Mas você ainda não me contou — Paty reclama, atraindo de volta minha atenção. — Como foram as coisas lá dentro? Não se faça de difícil pra mim, Branquinha. Você sabe que esta curiosidade está me matando, vai!
            — Bem, não há muito o que contar. — Não estou fazendo jogo duro com ela, é só que não sei como colocar os fatos numa sequência razoável.
            Estávamos bravos um com o outro, mas nos beijamos mesmo assim. Ou talvez por isso. Aí eu parei de pensar. Depois pensei de novo. Nós conversamos e nos beijamos mais um pouco. Achei que tivesse descoberto a razão de meus sentidos existirem e que o mundo tivesse acabado em calor e pele, e braços e lábios, e língua e dentes. Mas então fui obrigada a perceber que não acabou e agora estou aqui, tentando conciliar a ideia de que é possível pensar nisso sem enlouquecer um pouquinho por segundo.
            É. Acho que foi mais ou menos assim.
            — Nós nos entendemos — resumo.
            — Pelo. Amor. De Deus! — ela responde, tampando o rosto com as mãos, claramente frustrada. Depois para e me encara com olhos pacientes de quem está para dar uma explicação complicada para alguma criança teimosa.
            — Clara, “nós nos entendemos” é só uma outra versão de “está tudo bem agora”. E isso eu pude perceber sozinha. O que eu quero saber é como aconteceu. O que vocês conversaram. O que resolveram. Essas coisas. Não precisa me contar tudo, porque eu conheço você e estou começando a desconfiar que seria mais fácil pedir um rim. Mas me dê um resumo bom. Vamos, lá — ela diz, movendo as mãos espalmadas para cima e para baixo num gesto de incentivo. — Força na peruca! Você consegue. É só começar do começo.
            — Certo. Um resumo. Do começo. Acho que posso fazer isso. Bom, nós estávamos meio bravos um com o outro, porque eu o acusei de estar me usando como passatempo... — Paty arregala os olhos e parece já estar se divertindo com a história, mas não faz nenhum comentário. Então, eu continuo. — Aí ele me levou pro backstage e eu pensei que... Sei lá o que eu pensei. Só achei que fôssemos continuar brigando, mas então ele me beijou.
            — Bem, não se pode dizer que o chefinho não saiba terminar uma briga — ela diz, vibrando. — Mas ele ainda tinha que te explicar qual é a daquela vadia. Você perguntou, né? Diz que não parou de pensar e deixou tudo pra lá!
            Er... Mais ou menos?
            — Eu não perguntei naquela hora, porque... — Meu cérebro parou de funcionar? — Eric achou que eu estava sendo incoerente com tanto ciúme. Ele me perguntou o que eu queria dele, afinal.
            — Como assim? Mas que abusado! O que você quer dele. Precisa desenhar?
            — Hum, eu meio que posso ter dito a ele no domingo que devíamos ir com calma. Que eu não estava certa do que queria — falo cautelosamente, sabendo que estou soando como o tipo de mulher que se faz de difícil desnecessariamente.
            — Ah, tá. Nesse caso, acho que ele tinha até um pouco de razão em achar que você estava exagerando. Não que eu seja contra você ir devagar, mas, amiga, você me disse que ama o cara. Isso pra mim é estar no meio da corrida, prontinha pra linha de chegada. Não é meio tarde pra querer pisar no freio?
            — Percebi — admito. — Não dava mais pra negar isso nem pra mim mesma, então eu tive que dizer a ele. Disse que queria ficar com ele... Tipo, você sabe... Ter um relacionamento. Se ele quisesse.
            — E? — Paty incentiva. O olhar curioso, apesar de claramente saber a resposta.
            — Bom, foi aí que nós nos entendemos.
            — Awn! — Ela me abraça e sei que estou sorrindo feito idiota. — Minha maninha está crescendo, fazendo declarações, pedindo os caras em namoro e tal! E eu aqui, mais jogada que moletom de adolescente. Nem estou com inveja.
            Tenho que rir.
            — Eu pensei que Patrícia Moraes não se apaixonasse! — digo, lembrando sua máxima.
            — Digamos que a Paty aqui curte a ideia de amassos contextualizados — ela contra-ataca, revirando os olhos.
            — Amassos contextualizados!?
            — É, né? Com sentimento e tal. Porque estou querendo crer que se tivesse acontecido algo mais você me diria... — Uma sobrancelha perfeitamente esculpida se arqueia para mim.
            — Não, nada a mais. Só amassos contextualizados mesmo. Bons. Amassos. Contextualizados — brinco.
            — Estou vendo. Ah, que bonitinho como você está feliz! Mas, vem cá, e a mulherzinha? Vai ser problema?
            — Talvez. Eu acredito quando ele diz que não quer mais nada com ela, mas acho que ela não pensa assim.
            — Hum — Paty resmunga, pensativa. — E o que você acha?
            — Acho que ela não vai desistir fácil. Mas prefiro não me preocupar com isso agora. Não hoje.
            — Ah, sim. Aposto que você tem coisas muito mais interessantes pra pensar.
            — Eu tenho. Se tenho!
            Conversamos mais um pouco enquanto terminamos de acertar todas as pequenas coisinhas que temos que acertar antes de fechar. Depois de um tempo, Samuel vem até nós se oferecer para nos acompanhar até o carro. Não contei a Paty sobre a pequena discussão na cozinha, e ela parece cansada demais para perceber minha aversão, mas o caso é que não quero ir a lugar nenhum com ele.
            De qualquer forma, não tenho intenção de ir embora antes de me despedir de Eric, então digo isso a eles. Não é surpresa para nenhum dos dois, obviamente, mas Paty arregala os olhos, admirada por eu não me importar com Samuel ou com o olhar atravessado que ele me lança. “Já te avisei”, é o que ele parece dizer. De minha parte, a resposta silenciosa é: “Eu não ligo.” Porque eis que estou me sentindo rebelde esta noite. Pelo menos em pensamento, e isso já é mais do que suficiente para me divertir.
            Estou sorrindo para essa ideia quando finalmente vejo Samuel pelas costas, depois que me despeço de Paty com um beijo na bochecha. Há algo de muito libertador em estar aqui e não me importar com mais nada a não ser com o homem prestes a sair daquele escritório. Por um momento, chego a pensar mesmo que não preciso esperar até que ele termine seu trabalho. Que eu deveria ir até lá e simplesmente bater na porta. Como se a primeira vez que cedi a esse impulso esta noite não tivesse sido um desastre.
            Mas mesmo sabendo o quanto seria diferente desta vez, não faço isso. Não vou agir como se não soubesse, como se não pudesse esperar por ele. Ainda acho incrível como as coisas mudaram entre nós nos últimos dias, e mais ainda nas últimas horas, mas o fato é que não é difícil lidar com essas mudanças.
            Era de se esperar que fosse. Era de se imaginar que eu enlouquecesse. Mas não. A sensação é diferente.
            É como se as respostas que não tenho tivessem deixado de ter importância, porque já não há mais perguntas. Eu sei. Simplesmente sei que estou onde deveria estar. Com quem deveria estar. O resto eu posso descobrir aos poucos.
            — Em que você está pensando?
            Um sussurro acaricia meus ouvidos e braços enlaçam meu corpo. Ele me puxa para si e sinto sua barba por fazer roçar de leve a parte de trás de meu pescoço. Quase que por reflexo, tombo a cabeça para o lado, deixando o toque dos lábios dele mandar um arrepio bom por toda minha pele.
            — Eric. Não ouvi você chegar.
            — Assustei você, baby?
            — Não. Claro que não. Eu estava te esperando.
            — Bom — diz ele, inspirando meu cheiro, parecendo ao mesmo tempo saber o que está fazendo e deixar-se perder nas sensações. É estranho como isso parece tão novo para ele quanto para mim. — Você estava tão distraída. 
            O aperto de seus braços se afrouxa um pouco e eu me viro para ele, abraçando-o e apoiando minha cabeça em seu peito, a curva de seu ombro acolhendo meu rosto como se tivesse sido esculpida para isso.
            — Só estou feliz — respondo. — Estava pensando em como estou em paz. Havia uma urgência em mim que eu nem sabia que existia, mas agora ela se foi. — Solto um suspiro estrangulado, assaltada pelo alívio de perceber, de repente, que não tenho medo de parecer boba quando digo essas coisas para ele. — Isso faz algum sentido para você?
            Eric me abraça mais forte por um segundo, assegurando-me de que sua presença não é um sonho, assegurando-me de que entende.
            — Faz todo sentido — ele diz, pousando um beijo sobre minha testa.
            Ficamos assim por alguns segundos, perdidos um no outro. E a noite é tão bonita quanto eu queria que fosse eterna.
            — Pronta para ir? — ele pergunta, enfim. Porque o dia sempre precisa nascer.
            — Sim. Só vou pegar minhas coisas no armário. Ah, falando nisso, ainda não tive a oportunidade de agradecer — lembro, referindo-me à rosa que encontrei em meu armário quando cheguei. Isso foi no fim da tarde, mas depois de tudo o que aconteceu hoje, parece que faz tempo demais.
            Eric arqueia uma sobrancelha pra mim, confuso, uma interrogação genuinamente charmosa se formando em sua expressão. Agora sim parece que faz um milhão de anos!
            — A rosa — respondo, rindo um pouco. — Você deixou para mim hoje. Esqueceu?
            — Não, não esqueci. Mas... eu não estava pensando mais nisso.
            Há alguma coisa na atitude dele que, a princípio, identifico como desdém. Tento não dar atenção à ideia, mas acaba sendo mais difícil do que imaginei. O ressentimento, se é que posso chamar assim, que essas palavras me causam é como uma gota de água. Parece insignificante e sem potencial, mas escorre para dentro com a maleabilidade dos líquidos e fica ali, pronta a secar ou a ser o começo de alguma coisa. Eric parece notar.
            — É só que você não precisa me agradecer por nada, muito menos por algo assim — ele diz, e isso faz com que eu me sinta tola por me importar com uma coisa tão pequena.
            Não posso esperar que ele atribua aos próprios galanteios o mesmo valor que eu. No entanto, quero que ele saiba que suas demonstrações de afeto não são exatamente algo pequeno para mim.
            — Eu sei que é uma besteira — explico —, mas eu gostei muito.
            Ele para e olha para mim, a expressão indecifrável. Como sempre.
            — Você se importa, não é? Tudo o que eu faço tem significado para você. —Não sei muito bem como responder a isso, porque, na verdade, nunca me ocorreu que ele não soubesse. — Você vai ter que me ensinar como lidar com sua delicadeza, Luz. Posso ser meio vulgar às vezes.
            Não acredito nisso nem por um segundo sequer, mas então percebo que todas as vezes em que tentei agradecê-lo por alguma coisa ele agiu assim: como se não fizesse sentido.
            — Você não acha importante? As coisas gentis que faz por mim não têm nenhum significado para você?
            — Não perto de como você me faz sentir. — Ele balança a cabeça enfaticamente e repete: — Não. Porque não é nada de mais, na realidade. As flores foram apenas meu jeito de agradecer a você, mas eu não esperava nada com isso. Não faz sentido esperar quando sou eu que estou agradecendo por você ser maravilhosa.
            Uau.
            O impacto das palavras dele é imediato. Como uma espécie de golpe indolor, mas que me joga para trás de qualquer jeito. Sempre que conheço alguém de quem gosto muito, tenho estes pequenos momentos em que vou descobrindo o porquê. Com Eric a sensação é ainda mais avassaladora.
            Há esta coisa com o amor: ele não para de crescer. E às vezes a gente flagra o momento exato em que ele se estica para além de onde você achou que ele pudesse ir. Abro a boca para articular uma resposta, mas essa foi uma ordem que meu cérebro deu a meus lábios antes de eu realmente perceber que, na verdade, não há nada bom o suficiente para dizer.
            Aqui estava eu remoendo a ideia de que tudo não passava de uma coisa simples cuja importância eu devia provar, quando se trata de algo exatamente oposto a isso.
            Só não estou mortificada agora porque isso exigiria um cérebro funcional, e o meu parece cair em algum lugar fora do espectro de normalidade quando se trata das coisas que Eric diz. Estou apenas encantada. Sem fala.
            Ele ainda está olhando para mim e me sinto como se seus olhos fossem as faces de um prisma. Conforme a luz se lança sobre eles, consigo ver algo diferente. Alguma coisa que eu não tinha visto antes e que se junta a outras que aprendi a conhecer. Pergunto-me se um dia terei tempo de decifrá-las. Uma vida inteira parece não ser o suficiente para isso, mas a ideia de tentar enche meu coração de esperança e alívio.
            O pensamento é suficiente para me fazer sorrir. O conforto da sensação é tão inesperado que o que Eric vê é mais como um riso que interrompe uma crise de choro.
            — O que foi? — ele pergunta. — Por que esse sorriso? Em que está pensando?
            — Que nada em você é banal.
            Ele sorri também. De um jeito mais discreto que o meu, mas ainda assim espontâneo o suficiente para que ele não consiga disfarçar. Faz com que eu me lembre do que Paty disse, sobre ele agir assim apenas comigo. Meu coração é inteiro uma batida forte, uma canção que toca só para nós.
            — Banal seria mais seguro — ele diz. Sua mão se estende para aconchegar um lado do meu rosto e eu me inclino em direção ao carinho. — Mas eu não vou mais dizer que não sou bom para você. Não acho que conseguiria lidar com o que eu sentiria se você finalmente acreditasse. Então — ele se aproxima e de repente estamos tão perto um do outro que seus olhos são a única coisa que vejo —, como você pode ver...
            Ele me beija e penso se um dia vou conseguir controlar a maneira como isso me aquece por dentro e me faz perder o prumo. Mas a verdade é que acho que não quero estar sob controle.
            — ...também sou bem egoísta. E quero você para mim.
            De repente, suas duas mãos seguram meu rosto e seus olhos estão abertos, olhando para os meus enquanto seus lábios me procuram. Minha boca se entreabre e deixo a ponta de minha língua roçar delicadamente a boca dele. Não é preciso mais para que ele entenda isso como o convite que é.
            Nosso beijo se aprofunda e minhas mãos sobem por seu peito e pescoço e agarram de leve seu cabelo. Ele se mexe sob meu toque, como se gostasse disso tanto quanto eu. Um som baixo e rouco escapa por seus lábios enquanto ele segura minha nuca com uma das mãos e espalma a outra em minhas costas. Gosto quando ele me toca assim. Quero mais. Quero que tudo o que exista seja apenas este lugar e nós dois, o avançado das horas e nossos corpos que se precisam. Mas então ele para.
            De repente, sua boca não está mais na minha e sua pele parece distante demais. Apenas as mãos dele se fecham de leve em torno de meus pulsos, impedindo minhas mãos de se movimentarem, ainda que, no entanto, elas permaneçam onde estão, sobre seu coração, sentindo suas batidas descompassadas sob minha palma.
            — O que estou fazendo é quase fisicamente impossível, Luz. Toda vez que me obrigo a tirar minhas mãos de você parece a coisa mais difícil que já fiz.
            — Então não faça isso. Eu não quero que você pare.
            — Eu sei. E sou extremamente propenso a ceder às suas vontades.
            Ele suspira, fechando os olhos. Suas mãos soltam meus pulsos e sobem e descem pelas minhas costas enquanto ele tenta controlar a própria respiração, o que não ajuda em nada controlar a minha. Concentro-me no sobe e desce de seu peito sob meus dedos até que ele abre os olhos de novo e me encara, sua expressão se tornando lentamente resoluta à medida que ele parece conseguir se dominar.
            — E é por isso que vou levar você até seu carro. Porque eu fiz uma promessa a mim mesmo hoje, mas estou longe de ser bom em resistir a tanta tentação. Você... — Ele balança a cabeça de um lado para o outro, engolindo em seco. — Você me tira do sério. Mas eu quero fazer o certo ao menos uma vez. Não suportaria ver você se arrepender do que seria a melhor coisa da minha vida. Não posso lidar com essa ideia agora, Clara.
            Ainda estamos próximos demais, nossas mãos se tocando como se ao interromper o contato quando estamos assim tão perto pudéssemos nos perder. Não sei se isso é normal. Não faço ideia de por quanto tempo vai ser assim. Mas o que acontece cada vez que chegamos perto um do outro é inexplicavelmente poderoso. É quase impossível de parar e a pequena distância que nos forçamos a estabelecer entre nós requer todo nosso esforço.
            Quero voltar para os braços dele, desfazer com meus dedos, com meus lábios, a expressão ligeiramente atormentada que franze seu cenho. É só então, diante da necessidade estranha que parecemos sentir um do outro, que tenho consciência da importância que isso tem para ele. Essa promessa, seja lá o que ela signifique exatamente, é muito. E não posso ignorá-la.
            — Eu não entendo por que é tão mais difícil do que imaginei me separar de você. Talvez tenha ficado pior no momento em que decidimos que havia um limite. 
            A simplicidade possivelmente certeira do comentário pega Eric de surpresa. Ele arregala os olhos por um momento e depois ri alto, como se a obviedade estranha da atração pelo “proibido” fosse a coisa mais engraçada do mundo. E é contagiante e bonito, porque, embora eu já o tenha visto rir, é a primeira vez que ouço sua gargalhada. É o som mais gostoso que me lembro de já ter ouvido na vida.
            — Você é impagável, Luz. Faz os comentários mais espontâneos e inocentes do mundo e ainda consegue ter razão — ele diz, acariciando minha bochecha com os dedos. Os restos do riso ainda brincando em sua voz e um sorrisinho esquecido nos lábios, os olhos brilhando de um jeito que me faz querer fazê-lo rir o tempo todo.
            — Como eu disse outro dia, estamos aqui de terça a domingo, exceto folgas programadas. E eu não sou impagável, quem paga pelo show é você, lembra?
            Ele ri de novo, bem-humorado. Faz com que eu me sinta bem.
            — Engraçadinha. Vá pegar suas coisas, comediante. Antes que eu desista de deixar você ir pra casa. Os tais limites que você mencionou não são exatamente rígidos.
            Limites. Quando ele diz isso me lembro do pensamento que tinha se insinuado em minha mente minutos atrás, antes de Eric ter caído na risada com meu comentário e eu me transformar subitamente na “engraçadinha” que posso ser às vezes. Há poucos dias, eu pedi a ele que me esperasse entender o que eu sentia. Ainda não entendo exatamente. Quer dizer, eu sei que o amo, mas não sei bem o que fazer com isso, com todas essas emoções novas. Só que não estamos mais esperando. Estamos indo rápido o suficiente para assustar a nós dois.
            — Eric, o que você falou antes... Sobre querer fazer as coisas do jeito certo. Eu entendo. Também não quero errar. Não vou me arrepender do que quer que seja com você, mas não quero ir tão rápido assim. O que quer que você tenha querido dizer quando resolveu que não devíamos ir longe antes que eu soubesse a verdade... Bom, eu concordo. Por mais que eu queira... ahn... ir longe.
            — Escute... — ele diz, me puxando para si mais uma vez, envolvendo meu corpo num abraço que mais parece querer nos fundir. Receio perder o foco novamente com ele tão perto assim, mas o gesto não tem nada de lascivo. É protetor e confortável. Faz eu me sentir segura. Amada. A sensação é inebriante. — Está sentindo isto aqui? O jeito como nos sentimos um com o outro? Vou manter isso o quanto puder. Não vou estragar tudo. Eu prometo.
            — Sem pressa, então?
            — Sem pressa. Só espero que meu corpo tenha recebido o memorando — ele brinca, depois nos dirigimos à saída.
            Recolho minhas coisas no armário e caminhamos juntos até meu carro. Estou pensando em como, apesar de nossa conversa, não estou com a mínima vontade de me separar de Eric quando algo no Fusca me chama a atenção. Mesmo na pouca claridade, dá para perceber que tem alguma coisa diferente.
            — Tem algo estranho com meu carro — digo, e em questão de segundos percebo o que é. Ele está mais baixo. Os quatro pneus estão rasgados com cortes profundos. Murchos, como se não fossem mais do que balões de criança esvaziados. — Mas... O quê...?
            Não percebo que Eric sacou o telefone e o está segurando com toda força entre os dedos até que ouço sua voz.
            — Mas que porra é essa, Esther? Você perdeu a noção? Que merda você está tentando provar?
            Ele está furioso. Nunca o vi assim antes. Há raiva emanando dele em todas as direções e é a primeira vez que consigo fazer uma leitura tão clara de suas emoções. Suas mãos tremem e seu rosto está vermelho, contraído numa carranca que faz eu me perguntar como é possível manter uma expressão dessas por mais de um segundo.
            — Você sabe o que fez, maluca! O que acha que vai conseguir provocando a Clara deste jeito? Você... — Ele para um segundo, escutando o que quer que seja que ela esteja respondendo. Obviamente, não faço ideia do que ela fala do outro lado da linha. Para ser franca, estou mais perdida do que nunca. — Os pneus, porra! Os quatro pneus cortados. Pra quê? Me diz!
            Ele esfrega a testa com a mão, exasperado. Mas enquanto escuta o que ela diz, parece se acalmar um pouco. Só um pouco.
            — Só fique longe, ok? Não tente nenhuma gracinha. Você não quer ficar no meu caminho. — Então ele desliga. Assim. Com essas palavras “amigáveis”.
            — O que foi isso? — pergunto, me referindo ao que aconteceu com meu carro, à conversa entre eles e a nem sei mais o quê. Sou só uma massa amorfa de pura confusão.
            Eric fica me olhando por um tempo sem dizer nada. Sentimentos que sou incapaz de discernir passam por sua expressão enquanto ele pensa em coisas sobre as quais não faço ideia. Ele parece com raiva demais até para falar comigo. Depois de um tempo, não curto suficiente, ele se acalma e me diz:
            — Esther alega que não foi ela.
            — E por que você achou que tinha sido?
            — Ora, Clara! — ele bufa, impaciente.
            Pensando bem, quem mais poderia ser? É uma pergunta tola mesmo. Mas por que ela diria que não foi?
            — Você acredita nela? — questiono.
            — Não sei. Não acreditar naquela cretina devia ser meu lema de vida, mas não faz sentido ela negar. Ela só faria uma merda estúpida dessas se fosse para esfregar na minha cara. “Coisa de amador”, segundo ela. E é verdade. Se ela quisesse mesmo me provocar faria coisa pior.
            Aham, porque andar por aí com uma faca rasgando pneus alheios é mesmo uma coisa bem suave!
            Tento me convencer de que o que ele quer dizer com “pior” seria riscar a lataria ou quebrar os vidros com um tijolo ou algo assim. Mas não estou tendo muito sucesso em tranquilizar minha cabeça. Por razões óbvias, imaginar Esther com uma faca na mão — ou mesmo com um tijolo — não está ajudando em nada.
            — Pior? — testo.
            — Não o que você está pensando, Luz — ele diz, tentando me acalmar. Mas mesmo com o braço dele à minha volta enquanto me conduz sutilmente para longe de meu Fusca mutilado, minha mente está inquieta. — Venha, vou levá-la para sua casa. Amanhã cuido disso para você.
            — Quê? — Ele está falando em consertar meu carro!? — Não. De jeito nenhum.
            — Não seja orgulhosa, Clara. Não combina com você.
            — Não é isso. É só que não é culpa sua.
            — E é sua então?
            — Não, mas...
            — Me deixe fazer isso. Por favor.
            Há tanta sinceridade e angústia no pedido que não ouso discutir. Amanhã talvez eu tente, mas esta noite ele já está chateado o suficiente.
            — Vou buscar meu capacete extra. Entre comigo, vai levar só um minuto. Não quero deixar você sozinha aqui fora.
            Sigo-o sem dizer nada. A coisa toda é demais para mim. E no topo de tudo tem o fato de que vou ter que subir em uma moto. Arg! Você riria se soubesse quantas coisas simples eu nunca fiz na vida. Andar de moto é uma delas. Minha mãe tinha um medo instintivo de motocicletas e nunca quis que eu chegasse perto de nenhuma. Aí então, mesmo quando não precisava mais, procurei respeitar o desejo dela.
            Estamos de volta ao escritório de Eric, onde há poucas horas tive o desprazer de vê-lo com Esther. Meus pensamentos ficam oscilando entre a imagem dele resistindo aos avanços dela, uma faca brilhante e dezenas de possibilidades que minha mente constrói sobre a frase “ela faria algo pior”. O curso desses pensamentos definitivamente não vai bem.
            — Não fique tão assustada, Luz. Eu sei lidar com Esther. Isso foi só uma gracinha sem sentido. Já disse que vou mantê-la longe de você. Não precisa se preocupar.
            Eric dá um beijo em minha testa e o gesto soa tão familiar que pela primeira vez noto que ele faz isso com frequência. Dá a ele um adorável ar protetor e a mim a sensação de conforto no momento exato em que preciso. É como se ele lesse meus pensamentos às vezes.
            Como quando me convence a deixar a rosa num copo com água sobre a mesa dele para que o vento não a destrua, quando eu estava mesmo me perguntando como evitar que ela desfolhasse quando estivéssemos na moto. Gosto da atenção. E de tudo o que ele faz. De um jeito que torna impossível não aceitar a sensação de tranquilidade que ele me oferece. Aceito e deixo Esther escapulir de meus pensamentos, até porque não há muito mais o que eu possa fazer neste momento a não ser acreditar nas palavras de Eric.
            Quando finalmente pareço mais composta, ele vai buscar o capacete acomodado num armário extraordinariamente organizado. Ênfase em extraordinariamente. A meticulosidade com que uns poucos itens particulares se misturam a pastas etiquetadas e materiais de escritório faz parecer que o armário foi construído em volta das coisas. Por algum maníaco por limpeza com um senso de proporções quase alienígena.
            Desvio o olhar tentando não parecer tão surpresa. Não sou exatamente uma bagunceira, mas um armário cujo interior parece mais um quadro de cores equilibradas e que, ainda por cima, cheira bem, faz meu apartamento parecer uma sala de aula de jardim da infância depois da sessão de pintura a dedo. Olho para a mesa e percebo o que não tinha reparado antes: ela também é anormalmente organizada.
            Não sei bem por que estou observando essas coisas, mas me dou conta de que Eric sempre demonstrou prestar atenção aos meus hábitos e eu sequer tinha notado essa particularidade sobre ele. Prometo a mim mesma que ficarei mais atenta, porque a ideia de conhecê-lo melhor, seus hábitos, suas manias, parece uma responsabilidade inédita e particularmente interessante. Ele faz parte de minha vida agora. Simples assim.
            Bem, é simples e não é.
            — Coloque isso, faz frio na moto — diz ele me estendendo uma malha preta que tira do armário-quadro.
            A blusa fica grande em mim, mas me sinto imediatamente aquecida. Gosto de como o tecido macio parece me abraçar. E gosto mais ainda que tenha o cheiro dele. Impossível não registrar que parece de extremo bom gosto e que deve ter um caimento perfeito no corpo para o qual foi comprada.
            Mania de limpeza, organização extraterrestre e bom gosto.
            Nota mental feita. Outra face do prisma acaba de se revelar. Acho que conheço um pouco mais sobre meu namorado.
            Namorado. Namorado. Namorado.
            Testo a palavra em minha cabeça, rolando-a de um lado para outro. Parece estranha. Inédita. Pouco familiar demais. Mas procuro não me preocupar com essa falta de familiaridade, porque o sentimento que acompanha a ideia é bom o suficiente pra não me assustar. Muito.
            Aperto meus braços em torno dele quando estamos indo para casa, mas o passeio de moto já não me causa medo. Sei que ele está indo mais devagar em meu benefício e fico grata. Sinto o vento em minha pele e a sensação de liberdade faz minhas preocupações serem abandonadas no asfalto que fica para trás.
            Só fecho os olhos e deixo o amor me guiar para casa.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

CD2 - cap 17

Capítulo 17 - Continuidade

This is a state of emergency
Held down for an eternity
Victims, tell me are you listening?
Let's break out of this prison cell
Create stories that world will tell their children
In time we'll be forgiven
(…)
This fight fell at our footsteps
and I swear that the further we get, the closer we are
To finding love in these scars
(Criminals – David Cook)

Jeb

Kyle estava sentado na carroceria do furgão, levantando um pouco de poeira ao empurrar o chão com os calcanhares enquanto esticava as pernas compridas.
                — Tudo bem, amiguinhos. Contem tudo para o Kyle — disse com sua empáfia característica, e Logan olhou de um para o outro como se fosse uma lebre pega numa armadilha.
                — Não tem nada para contar, Kyle. Está tudo bem comigo. Mesmo. Aliás, eu nem sei o porquê disto aqui.
                — “Isto aqui” — Kyle fez um gesto circular com as mãos — é claramente uma intervenção. Está na cara que Jeb acha que tem alguma coisa errada que eu posso ajudar a resolver, não é?
                Eu não sabia bem. Quer dizer, ninguém dava nada pelo garoto, mas a verdade é que Kyle era muito perspicaz e tinha uma mente centrada numa única coisa: o bem do grupo. Eu sempre soube disso. Às vezes ele podia agir com tremenda imaturidade e egoísmo, ou pelo menos era o que parecia para os outros, mas no fundo era só o jeito equivocado dele de enfrentar o desconhecido. Quase sempre. Mas o real motivo de eu ter orquestrado aquela conversa era outro. Claro que eu me preocupava com o estresse pelo qual Logan estava passando, e a amizade inusitada dele com uma pessoa como Kyle, alguém que tinha o poder de trazer à tona um lado mais juvenil no meu amigo de alma pesada, era útil num momento como aquele. No entanto, era na sua praticidade intrínseca e no seu instinto de liderança que eu estava mais interessado. Apesar de todas as crenças em contrário, Kyle podia ser um bom aliado quando se tratava de esclarecer as coisas pelo bem comum.
No grupo único que formávamos agora, havia muito a ser aprendido e ensinado. Diferenças fundamentais entre as duas espécies que o compunham que não poderiam continuar sem ser compreendidas, não quando tínhamos pais potencialmente imortais e filhos humanos, por exemplo. Sem falar em todas as relações que estavam em jogo. Peg, apesar de já conhecer a experiência de perder alguém, tinha agora marido e filho mortais. Sunny tinha Kyle e adotara Trudy e Geoffrey como seus pais; e Estrela, além o amor pela filha e por John, via a todos como seus irmãos. Além delas e de Logan, ainda havia Cal, que não era exatamente “problema” meu, mas era meu amigo também, um amigo com muito a perder.
Para nós humanos a morte é a única certeza, uma em torno da qual moldamos toda a nossa vida. Nosso tempo é finito, por isso precisa contar. É uma espécie de conhecimento inerente que nem o mais jovem dos tolos pode negar por muito tempo. Mas não é assim para eles. Meus novos amigos podiam entender de muitas coisas e podiam caminhar em direção à finitude de seus dias por opção, ou pelo menos podiam acreditar que fariam isso, no entanto eles não sabiam realmente o que significava não ter essa alternativa. Logan fez tudo o que fez para me salvar porque não conseguia se conformar com o que havia de definitivo na minha morte. Sua própria condição deu a ele a ilusão de que podia mudar o imutável.
Tanto para a minha sorte quanto para a dele, o “imutável” daquela vez pôde ser impedido, mas não seria assim para sempre. E o que ele faria se fosse alguém ainda mais importante para ele, como Estrela ou até mesmo Lindsay? Como essas crianças milenares com quem passei a me importar tanto lidariam com as perdas que ainda sofreriam?
Mais perguntas que eu não sabia responder. Havia muitas dessas ultimamente. Mas eu podia adivinhar que todo o seu conhecimento dos mundos além não os prepararia para a mais humana das experiências. E eu iria para o inferno se não tentasse aparar a queda, ao menos um pouco. Por isso a presença de Kyle. Não só porque ele podia ajudar, mas porque ele tinha o direito de se antecipar a uma possível crise. Não era o único, claro, mas não achei mal começar pelo mais improvável aliado. Como eu disse, ele podia ser muito sensato quando queria.  
Quando queria.
— Minha nossa! — protestou Logan. — Não tem nada de errado. E se eu estivesse maluco não ia precisar do Kyle para me deixar mais.
— Há controvérsias...
— Sobre eu não estar maluco ou sobre não precisar de você?
— Sobre não precisar de mim, é óbvio. Não garanto que você não esteja maluco.
— Se o parâmetro for você, estou muito são.  
Que ótimo começo! Eu sei que disse que achava isso bom para Logan, esse tipo de insolência leve e juvenil que Kyle despertava nele, mas essa dancinha duraria o dia todo se eu deixasse e, francamente, estava me faltando paciência.
— Ninguém disse nada sobre maluquice — interferi, antes que a criancice deles me tirasse de vez do sério. — E ninguém precisa estar maluco para precisar de ajuda. Essa sua fala parece um clichê de filme policial.
— É, tipo o Riggs do Máquina Mortífera. Ou o John McClane[1] quando... — Kyle ia prosseguir, mas alguma coisa o parou. Às vezes ele simplesmente sabia quando já era demais. — Tá legal, falando sério agora. Você sabe que eu me importo, não sei por que, mas me importo. E eu não vou te deixar em paz agora que vocês jogaram a isca de que tem alguma coisa mesmo errada. Portanto, desembucha!
— Logan está com estresse pós-traumático — disparei.
— Como é que é? — o próprio Logan perguntou, enquanto os dois me olhavam surpresos.
— É o que Estrela acha, mesmo não tendo certeza, porque não é como se ela pudesse procurar um Confortador, ou sei lá como vocês chamam os médicos de cuca de vocês, mas os pesadelos, a insônia... Ela disse que andou lendo sobre isso em um dos livros do Doc...
— Espera aí, meu pai tinha um amigo que sofreu disso — disse Kyle. — Ele tinha cumprido um turno no Afeganistão há muito tempo, logo quando as coisas estavam piores, e a gente sabia que ele tinha passado por muita coisa lá. Aí, quando veio pra casa, ele tentou voltar para a construção civil, mas os barulhos faziam o cara ter umas reações estranhas. Meu pai disse que ele saía do ar e parecia que ficava revivendo as sensações, como se as coisas ruins estivessem acontecendo de novo.
— Não é isso o que acontece comigo — Logan retrucou. — Eu já disse que são lembranças. Toda vez que alguma coisa importante acontece na minha vida é como um gatilho. Eu sonho com o passado do Logan humano, com memórias que eu não costumava acessar. Algumas são ruins. Mas isso acontece apenas por uns dias, depois passa. Fim.
— A questão não é fato de que vai passar — argumentei —, ou se isso vai acontecer logo ou não. A questão é o que motivou desta vez. Não é possível que você não perceba a diferença.
Todas as coisas que ele mencionou outro dia: a chegada de Estrela em sua vida, a vinda para cá, tornar-se pai... Todos esses eventos foram marcantes o suficiente para despertar lados esquecidos de sua humanidade, mas nenhum deles era traumático. Nenhum trazia com tanta força a lembrança do acontecimento que destruiu o Logan humano e marcou sua personalidade o bastante para moldar o Logan que eu conheço. Ele viu a garotinha morrer e nunca conseguiu lidar com isso de fato. Agora que isso esteve em vias de se repetir comigo, acho que o estrago foi maior do que ele admite. E coisas assim não passam logo e muito menos de vez. Coisas assim voltam para te morder o traseiro quando você acha que elas ficaram para trás. Como relações que você destruiu e que te voltam nas palavras de uma música que esse garoto não poderia conhecer.
— Vocês vão ter que me explicar isso melhor — Kyle se manifestou. — Acho que entendi que você não está dormindo bem porque tem sonhos sobre a vida do seu hospedeiro, mas o que o lance do estresse pós-traumático tem a ver com tudo?
— Não são sonhos, propriamente ditos. São lembranças vívidas — expliquei. — Eu tive algumas enquanto estava me recuperando.
Logan me olhou surpreso. Nunca contei a ele, porque sempre pude adivinhar aquela expressão de ultraje e mortificação em seu rosto. Vulnerabilidade não é algo que um homem goste de ver nos olhos de um amigo e eu teria evitado por muito mais tempo se pudesse, mas não achava mais prudente fazer isso. A gente pode se acostumar a desviar da verdade sempre que ela for incômoda, e então quando ela precisa ser dita tudo parece bem mais difícil.
— A menina — esclareci, me referindo à Lindsay de sua infância. — E o garotinho morto na casa do traficante... Sonhei com essas coisas enquanto estava apagado e sei que você revive tudo como se estivesse acontecendo de novo, porque foi assim comigo. Isso porque eram apenas memórias de segunda mão, por assim dizer. Resquícios de quando sua mente esteve misturada à minha. Então não me venha dizer que não é nada.
— Eu nunca disse que não doía — ele me respondeu em um tom que pareceu ríspido a princípio, mas depois, quando desviou os olhos, percebi que estava apenas desarmado. — Só disse que posso aguentar, que quero me lembrar.
— Quer se lembrar do quê? Vocês vão me dizer do que tudo isso se trata? — exigiu Kyle, e Logan pareceu se resignar.
— O Logan humano não foi uma pessoa feliz. Ele foi uma dessas crianças de lares provisórios e alguns deles foram... Bem, menos do que lares, com certeza. Quando ele era criança tinha uma outra garotinha que ele considerava como irmã, a única pessoa que ele realmente amou na vida. O nome dela era Lindsay.
— Caraca... — Foi o que Kyle conseguiu dizer. Ele ainda não sabia o que tudo isso significava, mas dava para ver que ele estava adivinhando que era algo importante. Então, quando ele não disse mais nada, Logan continuou.
— Eles moravam com pessoas ruins, gente que só estava interessada na pensão que o governo pagava por cada criança e não se importava com elas. O homem era alcoólatra e a mulher estava mais preocupada em fugir dele do que em nos proteger. Um dia, Lindsay ficou doente, mas ninguém fez nada a respeito. Ele tentou cuidar dela, mas era só uma criança, não sabia o que fazer para ajudar de verdade, e a doença piorou até que ele a viu morrer. Perdeu sua irmã porque não pôde contar com as pessoas que deviam zelar por eles. Então ele cresceu sufocando essa dor e nunca mais se permitiu confiar ou se apegar a nenhuma pessoa por muito tempo. Quando sofreu a inserção, eu pude senti-lo ainda por uns momentos, o bastante para entender o que ele sentia em relação aos outros ao seu redor, como não confiava em ninguém. Então, diferente do que aconteceu com alguns que não foram suprimidos de imediato, ele não resistiu. Apenas se deixou ir porque não queria mais viver, não tinha por quê. Eu sabia disso. Senti quando ele se foi e eu fiquei com seus sentimentos hostis e sua dificuldade de apego. Não me lembrei de Lindsay no início. Por muitos anos, na verdade. Até que Estrela apareceu. Depois disso, toda vez que acontece alguma coisa importante é como se alguém acionasse um interruptor em minha cabeça e eu pudesse conhecer um pouco mais dele. E eu quero fazer isso. Quero entender quem ele foi porque eu sinto que me tornei o Logan. Não a Alma, mas alguma coisa entre quem ele era e quem eu passei a ser.
— Merda — Kyle disse. E isso resumiu tudo. Que ótima hora ele escolheu para começar a ser lacônico! Mas justo quando eu estava começando a questionar seriamente minha escolha de envolvê-lo nisso tudo, ele me fez lembrar por que eu tinha apostado em sua capacidade de entender as coisas. — Agora eu sei por que você teve que arriscar todos nós pelo Jeb. Sem ofensa — afirmou olhando para mim. Só balancei a cabeça, garantindo de volta que não eram necessários melindres quando se falava a verdade.
— Sim, eu me lembro. Porque você fez o mesmo por Jodi — Logan respondeu, na sua santa inocência de quem demora a perceber as coisas às vezes. Ultimamente, com ele totalmente fora de órbita, isso se repetia muito.
— Não, idiota! Porque você é aquele moleque. Caramba, você até se referiu a ele e Lindsay como “nós”.
— Bom, de certa forma foi o que eu acabei de dizer, não foi? Eu só não sei como é que isso é importante o suficiente para estarmos tendo esta conversa.
— E como é que não é? Eu não estou falando do presente... Posso apostar que... Cacete! Você tinha que bancar o burro logo agora? Me ajude aqui, Jeb! Antes que eu tenha que quebrar a cabeça dele.
— Você não é como Peg, Logan — tentei explicar. — Ou as outras Almas. Sua natureza é mais... inconformada. Enquanto não conseguir lidar com as questões do passado, corre o risco de sair dos trilhos de novo. Das outras vezes, as coisas que motivaram as ondas de lembranças foram boas. Mas desta vez foi a possibilidade de perder alguém, que é algo que pode acontecer a qualquer momento. Você se nega a entender...
— Isso é um tremendo exagero. Vocês estão me pondo contra a parede pelo que, exatamente? Porque eu me arrisquei para salvar sua vida menos do que Kyle se arriscou quando decidiu buscar a namorada? Menos do que ele já me confessou que se arriscaria de novo?
Não esbocei surpresa. Sempre suspeitei que Kyle fosse impulsivo o bastante para repetir sua imprudência, caso estivesse devidamente motivado. Felizmente, a única pessoa por quem ele faria isso era o pai, e eu tinha certeza de que Ian se encarregara de dissuadi-lo.
— Eu sei exatamente pelo que eu me arriscaria. Se fosse mais burro. Mas você deve ter reparado que eu tenho controle sobre esse impulso específico.
— E eu não tenho?
— Não, não tem. Eu achei que você tinha feito o que fez apenas porque Jeb era importante para você, mas esse não é o único motivo. Você é outra pessoa, outro Logan, mas é tão incapaz de aceitar que não pode salvar o mundo quanto o cara de antes. Como é que você vai perder mais alguém? Como vai passar por aquilo com o que nem nós, humanos de nascença, conseguimos lidar direito? O que vai acontecer da próxima vez em que for a segurança do grupo versus a vida de quem te importa?
—Não vou pôr ninguém em risco. Vou achar um jeito.
— Exatamente. Você vai achar a porra de um jeito. Como eu faria. E aí é que mora o perigo.
— O que vocês sugerem, então? Que se alguma coisa acontecer com Lindsay, com John ou com qualquer outra pessoa que amamos, a gente se sente e espere o fim sem lutar?
— Não, nós sempre vamos lutar. Está no nosso instinto tanto quanto no seu — esclareci. — Sempre achei que o desejo de sobrevivência é comum a todos que vivem, e o de conservação a qualquer um que julgue possuir alguma coisa. Só que nem sempre será possível vencer. Ou sequer espernear. Às vezes, simplesmente não dá. E o que eu estou sugerindo é que quando não houver nada a fazer, a não ser sentar e esperar, você esteja preparado para fazer somente isso.
— Tudo bem — disse Logan, depois de pensar um pouco. — Como é que alguém se prepara para algo assim?
Não era uma provocação, ele não estava retrucando, deu para perceber. Era só uma pergunta honesta que, pensando bem, eu não sabia como responder. Foi quando entendi que a discussão tinha sido cíclica e infértil. E eu que me achava tão esperto, acabei me lembrando que o esperto é sempre o último a perceber o quanto pode ser burro. Eu estava preparado para mostrar a ele o que havia de errado, fazê-lo admitir qual era o problema, mas não como resolvê-lo. Também não era como se nós humanos fôssemos muito capazes de lidar com a questão, não sem dar de cara com esta parede que se estendia diante de nós quando alguém fazia essa pergunta. Foi Kyle quem se saiu com algo parecido com uma resposta:
— Acho que ninguém se prepara. Não faz sentido quando tudo o que se quer é viver ao lado de quem gostamos. Mas eventualmente é preciso aceitar. Talvez seja isso o que a gente estava tentando te dizer.
— E eu ouvi. Cada palavra.
Isso foi tudo o que Logan disse antes de inventar uma desculpa descabida para enfiar a cabeça sob o capô de um dos carros e esquecer-se ali por uns minutos, fingindo que estava trabalhando. A mensagem era clara: ele precisava pensar. Então Kyle e eu fizemos o mesmo, achando maneiras de ocupar nossas mãos enquanto o barulho em nossas cabeças clamava pelo silêncio fora delas.
Para qualquer um que não estivesse ali minutos antes, a conversa pareceria encerrada, não fosse pelas malditas reticências no ar. Já estávamos indo embora quando Logan finalmente as transformou em palavras.
— Eu já pensei muito nisso, na verdade. Sobre Lindsay ficar sozinha.
— Ela não vai ficar sozinha. Não é como se todos nós fôssemos morrer ao mesmo tempo. E nem tão já — ponderou Kyle com a objetividade crua que sempre me fez gostar dele.
— Não foi isso que eu quis dizer. Não exatamente. Você nunca pensou... Nosso mundo é muito pequeno, no final das contas. O nosso mundo mesmo, quero dizer. As cavernas, o deserto, as poucas outras células que conhecemos... Um dia, isso tudo vai acabar com eles, com os mais jovens. De tudo o que construímos, só eles vão sobrar até todos nós termos morrido. E aí tudo vai acabar.
— É cedo para pensar nisso, garoto — afirmei, embora a verdade fosse que quando Lindsay e John nasceram, senti uma esperança insana de que a humanidade pudesse sobreviver à invasão por mais tempo, que talvez, só talvez, eles pudessem arrastar por outra e mais outra geração a herança de quem fomos um dia. Tempo, entretanto, era algo inconsequente de se almejar. O fim é, afinal, o destino de todas as coisas.
— Talvez eles pudessem... Talvez o mundo deles pudesse ser maior que o nosso — disse ele como se não tivesse me ouvido.
Logan falava muito sobre isso, sobre como achava possível que um dia nossas crianças pudessem ser parte da sociedade lá fora. Eu, no entanto, não encorajava essas ideias. Este não era mais um mundo de humanos, essa era outra coisa que ele precisava aceitar.
— Talvez — falei vagamente, na esperança de encerrar o assunto. E fiquei aliviado quando isso pareceu acontecer, embora ainda restassem pensamentos irritantes para pipocar em minha cabeça ao longo do dia.
                Continuidade. Aquele era um tópico que me perturbava, especialmente agora. Nunca achei que eu fosse algo que valesse a pena ser perpetuado. Meus genes, meus valores, minha maneira de ver o mundo. Eu valorizava e tinha orgulho de tudo isso, mas sempre achei arrogância querer distinguir minhas maneiras em outra pessoa. Logan, porém... Às vezes ele me parecia um espelho onde eu me refletia e enxergava mais coisas do que estava preparado para ver. E durante o jantar, horas mais tarde, vi que a obstinação da qual sempre me orgulhei em mim mesmo — e que nele eu gostava de chamar de teimosia — era uma delas.
                — Vou ficar um tempo a mais lá fora — disse, enquanto a atenção dos outros estava dispersa o bastante para nos dar um pouco de privacidade. — Depois que os outros voltarem com os mantimentos que eu reunir para vocês, vou me encontrar com Estrela e Lindsay e nós três... Nós vamos ficar fora. Talvez um mês seja suficiente para o que eu quero fazer.
                — Um mês? Suficiente para quê?
                Eu estava alarmado. Odiava o jeito que Logan tinha de resolver as coisas e depois me comunicar com ar de quem estava pedindo permissão, quando eu sabia perfeitamente que ele já tinha tudo arquitetado e não estava disposto a ser convencido do contrário. Restava saber que droga ele estava planejando agora. Senti a raiva brotando quando comecei a adivinhar que meu sossego estaria definitivamente comprometido depois que ele dissesse o que pretendia, afinal.
                — Vou descobrir como estão as coisas para os humanos lá fora. Quero saber se temos chance de dar a Lindsay e John uma parte de seu mundo de volta.
                Ele só podia estar maluco. Minha garotinha, Estrela e... Ele! Indo embora? Não. Aquilo que eu estava lutando para não admitir, as dúvidas que há semanas começaram a nascer em mim feito ervas daninhas, tudo se juntou para formar em minha mente uma única resolução que não hesitei em comunicar ao meu garoto:
                — Você não está indo a lugar nenhum.



[1] Martin Riggs é o personagem de Mel Gibson nos filmes Máquina Mortífera; e John McClane é interpretado por Bruce Willis nas diversas (e eletrizantes) sequências de Duro de Matar. Ambos têm o hábito de bancar os durões e rejeitar ajuda profissional, mesmo quando muito necessária. Obviamente, eles estão muito bem acompanhados por outros personagens da mesma linha, por isso Jeb diz que é um clichê.

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