terça-feira, 1 de março de 2016

CD2 - Cap 21

Capítulo 21 – Flores de Plástico

A green plastic watering can
For a fake chinese rubber plant
In the fake plastic earth
(...)

But I can't help the feeling
I could blow through the ceiling
If I just turn and run

And it wears me out, it wears me out
It wears me out, it wears me out

And if I could be who you wanted
If I could be who you wanted
All the time, all the time

(Fake Plastic Trees – Radiohead)

Logan

            Eu não os culpava, era uma conclusão difícil de se chegar. E ao mesmo tempo também não era. Difícil e complicada, porque exigia um nível de abnegação de que talvez nem mesmo Almas fossem capazes, no entanto tornava-se cada vez mais óbvia.
            Não podíamos mais requisitar hospedeiros novos, era muito difícil agora. Os Buscadores tinham desistido de capturar sobreviventes, já que sua consciência do que aconteceria os tornava hospedeiros resistentes e praticamente inviáveis. E Almas em corpos de crianças eram cada vez mais raras, porque no processo de esperar que seus filhos crescessem o mínimo para uma inserção, a maioria dos pais desistia do intento, apaixonando-se pelo pequeno humano que dependia de sua proteção e cuidados. As poucas que existiam tinham, ao lado das crianças normais, uma existência que beirava o artificialismo de flores de plástico. Para mim, particularmente, pareciam aberrações, embora não fosse exatamente justo pensar nesses termos. Ainda assim, eu não devia ser o único a julgá-las estranhas.  
            Simplesmente porque acompanhar o crescimento de uma criança humana é algo único e surpreendente que ocupa todos os demais aspectos da vida de uma pessoa. E com as Almas não existia isso. Havia descobertas, sim, um aprendizado concomitante ao amadurecimento do corpo, mas sem aquela pureza poética de quem via tudo pela primeira vez. E única. Era amedrontador e ao mesmo tempo perfeito saber que aqueles seres e suas vidas eram únicas, tornava-os ainda mais especiais. Por isso escolhíamos para nossos filhos a finitude iminente de mantê-los humanos. Por isso nossas vidas potencialmente imortais não pareciam fazer sentido se nossos anos ao lado deles fossem substituídos por flores de plástico. Não valia a pena se fôssemos lembrados o tempo todo de nossa própria artificialidade, que, para mim, só desvanecia diante da consciência de que estávamos deixando um mundo limpo e melhor para as novas gerações.
            Para eles. Os herdeiros biológicos daqueles cujas vidas tomamos. Para nossa sobrevivência e perpetuação, sim, por isso não podia haver arrependimentos. Mas também para salvar o futuro da Terra. E agora esse trabalho estava feito.
            Nunca pensei nessas coisas antes — nem tinha razões para isso —, mas nós não podíamos ficar aqui. Não para sempre. Este mundo pertencia aos nossos filhos, e aos filhos deles no futuro. Este mundo pertencia aos humanos.
            É claro que eu não esperava que fosse fácil provar esse ponto. Não, isso não aconteceria durante o tempo de Lindsay e John na Terra. Nem um dos humanos que eu conhecia e amava veria o dia em que seu mundo seria restituído aos seus donos por direito. Eu também não veria. Mas se eu estava convencido de que era a coisa certa a fazer, passaria o resto da minha vida convencendo outros também.
            — Você mesmo viu, Green. Os novos humanos são pacíficos. Suas personalidades são altamente... — hesitei diante do que ia dizer, não gostava nem um pouco da palavra quando aplicada a pessoas, já que não parecia certo falar delas como produtos dos nossos méritos. Mas a verdade é que eu conhecia o impacto daquela ideia nos discursos que se propagavam no conselho, e ele era muito favorável, então dei um jeito de empurrar aquela espécie de ultraje para fora. — Moldáveis. As crianças podem ser influenciadas por nós. São nossos filhos, não dos humanos de antes, por isso não é surpresa que se pareçam conosco, que sejam adaptáveis à nossa sociedade e maneira de pensar.
            Green retorceu os lábios, em dúvida. Seu hospedeiro tinha certa idade e nenhum filho, biológico ou adotivo, o que de certa forma explicava a pouca familiaridade da Alma com crianças. Naquela manhã, no entanto, ele tinha se encantado com a espontaneidade delas, em especial de uma.
            A garotinha de traços orientais tinha se aproximado dele, curiosa.
            “Você não é verde”, ela comentou inocentemente.
            Green se surpreendeu. A cor era a tradução para o nome que tinha adotado, ou melhor, para o sobrenome que tinha mantido e transformado em primeiro nome, simplesmente porque seu amor pela natureza terrestre o fez parecer adequado. Obviamente, ele nunca o tinha encarado literalmente, como só uma criança era capaz de fazer.
            “Bem, você também não é uma flor para se chamar Pétalas ao Vento”, rebateu ele, entrando no jogo. A garotinha arregalou os olhos puxados e, por um momento, me encolhi achando que ela ia chorar e deixar o velho sem saber o que fazer. Em vez disso, ela riu. E começou a falar por uns cinco minutos ininterruptos sobre como ela achava que se ele queria ser verde, devia comprar umas tintas, porque todos gostavam de árvores e de passar as tardes no parque, onde havia flores como as que ela tinha pintado com batom na parede do quarto, antes de sua mãe perceber, mas ela não ficou brava, porque, depois de conversarem sobre o assunto, as duas decidiram que ficava mais bonito daquela maneira, embora a mulher tivesse tido que comprar outra maquiagem...
            Por fim, o que eu tinha na minha frente era um velho homem que provavelmente não sabia a diferença entre maquiagem e tinta de parede, rindo de uma história sobre batons e flores desenhadas junto com sua nova melhor amiga de cinco anos.
Em toda parte, membros do conselho se viam enredados em pequenos dedos habilidosos que, generosamente, ofereciam bolos, carinhos e desenhos de animais de estimação. Pelo menos até um garotinho, que estava começando a aprender a andar, ralar o joelho ao cair e todas as outras crianças partirem imediatamente em seu socorro, sem que nenhum monitor precisasse dizer uma só palavra.  
Para as famílias com crianças, era só mais um dia. Para o Conselho, foi certamente um dia revelador. Ainda assim, cachorrinhos e band-aids não faziam os medos desaparecem.
— São crianças, Tempestade Solar — colocou Green, que, apesar de tudo, continuava cético. — Certamente são maleáveis e carinhosas, nunca duvidamos disso. Mas a criação não é suficiente como garantia, há também que ser considerado que não pertencemos à mesma espécie e que, como humanos, sua essência é a imprevisibilidade. Nós mesmos nos vimos transformados por ela. Este mundo nos afeta de maneiras que jamais pudemos supor. E se já é assim conosco, como prever o que acontecerá quando esses humanos de natureza volúvel se tornarem adultos?
O argumento era válido. Mais do que válido, era imbatível, mas a sociedade mista era, àquela altura, uma realidade irreversível. Qualquer possibilidade de controlarmos o desenrolar das coisas não passava de ilusão. Um raciocínio desses vindo de mim significava muito, por isso eu não conseguia entender como eles ainda podiam se portar com tanta ingenuidade.
— E o que você sugere, Green? — perguntou Flora, torcendo um de seus cachos negros nos dedos da mesma cor.  A garota era o membro mais jovem do Conselho, mas sua extraordinária perspicácia a fazia parecer bem mais do que alguém mal saída da adolescência. — Que dopemos nossos filhos e irmãos humanos enquanto estiverem dormindo e coloquemos Almas em seus lugares?
— E você, Flora? Sugere que os pais não tenham mais o direito de escolher se seus filhos serão hospedeiros ou não? — Green rebateu. — Claro que todas as suas ideias são dignas de respeito e análise, mas talvez você tenha se precipitado em seu julgamento em relação ao que eu disse.
— Talvez. Já que não entendi aonde você quer chegar, afinal. Tempestade Solar nos levou até lá com o intuito de provar a cada um daqui o que ele e eu já sabemos. Que as crianças humanas não precisam ser vigiadas de perto, que toda a propaganda criada pelos conselhos passados incentivando famílias a cederem seus filhos como hospedeiros não pode mais ser sustentada. Entendo a nobreza de sua intenção quando diz que precisamos zelar pela superioridade numérica de nossa espécie, mas isso se mostra cada vez mais inviável à medida que esses humanos crescem. Eles terão que ser incorporados à nossa sociedade, até mesmo aos nossos Conselhos pelo mundo. E com direitos iguais. Até quando podemos adiar a conversa sobre a quem realmente pertence este mundo?
— Estamos conversando, querida Flora. Mas ainda somos fortes o bastante para não acelerar nossa decadência.
— Não vejo dessa maneira, caro colega. Mas certamente vou analisar sua opinião sem me precipitar desta vez.
Eu sabia que ela estava sendo irônica enquanto provavelmente estava ganhando tempo. Fazia parte de seu estilo preparar contra-ataques silenciosos, como Jeb, por exemplo, que sempre ouvia mais do que falava, no entanto sempre tinha a última palavra. Eu estava acostumado com isso, mas nossos outros colegas, em geral, não tinham essa espécie de “malícia”, por isso ninguém mais notou. Quanto a mim, eu tinha certeza de que a discussão entre os dois não se encerrara ali.
— Peço desculpas se dei a entender que suas palavras foram completamente impensadas — disse Green. — Entendo sua preocupação. Porém eu peço que adotem um olhar mais clemente para as necessidades de nossa própria espécie. É preciso sugerir às famílias a geração de novos hospedeiros.
Flora e Green seriam adversários declarados se a boa educação das Almas e as regras do Conselho assim o permitissem, mas contentavam-se com as farpas disfarçadas de frases polidas e constantes pedidos de desculpas. Esse que tratávamos, no entanto, era um assunto delicado para Flora, que tinha um casal de irmãos gêmeos humanos que tinha aprendido a defender com vigor e a amar incondicionalmente. Isso tirava muito de sua disposição para ser amistosa.
— Já eu prefiro sugerir que não engravidem se forem matar os humanos que gerarem — soltou por fim, e houve uma comoção geral pela dureza das palavras.
— Somos simbiontes, não usurpadores da vida humana — protestou uma Conselheira. — Os corpos não morrem, nem a essência de nossos hospedeiros. O que fazemos não é...
Matar. A palavra era praticamente um tabu. Nós não víamos dessa maneira no começo, apenas fazíamos o que era preciso para a sobrevivência de nossa espécie. Como leões sendo acusados e julgados por serem carnívoros, o conceito não parecia caber em nossas concepções. E era melhor que não coubesse. A espécie humana trouxe para nossas vidas algo nunca antes experimentado: culpa. E esse não era um sentimento a que nossa civilização resistiria, portanto era consenso geral que não o cultivássemos. Os crescentes murmúrios de indignação e dor que aquela fala tinha engendrado me fizeram correr em socorro de minha aliada.
— O que Flora quer dizer é que é diferente com as crianças. Convivemos com elas, aprendemos a amá-las, porque somos movidos por uma necessidade instintiva de cuidar delas. Suprimir sua personalidade original sem ao menos dar a chance para que ela se desenvolva plenamente soa, para alguns de nós, como se fizéssemos aquela criatura deixar de existir. A sociedade mista é uma realidade irreversível, e não podemos mais adiar que nossa convivência e nossas regras sejam repensadas quando a proporção de humanos só tende a aumentar com o tempo. Pelas próprias leis da natureza, inclusive. Em alguns anos, eles terão seus próprios filhos. E não creio que sequer cogitarão transformá-los em Almas.
— Não podemos deixar de considerar, entretanto, o perigo que isso representa, amigos — a mesma mulher que tinha se ressentido com as palavras de Flora se manifestou novamente. — Uma segunda geração de humanos já não terá laços fortes conosco. Então eles entrarão em guerra contra nós, e em desvantagem numérica não teremos chances de reação.
— Mas a qual reação você se refere? — rebati. — Violência?
— É claro que não! — ela se sobressaltou. — Eles talvez se tornem capazes disso, mas nós... Não! Isso é contra tudo o que acreditamos.
— Inserções forçadas, então? Não há mais o elemento surpresa que favoreceu nossa chegada...
Obviamente, não era uma sugestão. Eu só queria fazê-los perceber que uma guerra poderia apenas ser evitada, jamais combatida. O Conselho era um think tank[1], era nossa obrigação analisar todas as possibilidades.
— Não. Nas atuais circunstâncias, isso seria outra forma de violência — ponderou minha colega. — O que a superioridade numérica nos permitiria, entretanto, seria uma maior influência e melhores possibilidades de diálogo. Eles são herdeiros do planeta, mas se formos a espécie dominante eles terão que levar em consideração o impacto de devastar a civilização causando nossas mortes.
— Pois eu acho que, sem querer, chegamos num consenso. Porque eu também considero o diálogo fundamental, e certamente reconheço as vantagens de estarmos em superioridade numérica. Porém o momento de nos aproveitarmos dessa prerrogativa é agora, meus amigos. Ou vocês acham que se houver uma guerra no futuro, o diálogo será suficiente depois de o termos adiado por anos?
— Presumo que teremos que partir se chegar a esse ponto — concluiu outro Conselheiro. — Não podemos enfrentar uma guerra. E já cumprimos nossa missão de curar o planeta, não nos cabe também morrer por ele.
— É no que também acredito — afirmei, e muitos outros aquiesceram em concordância. Mesmo os mais resistentes não cogitavam permanecer aqui se o preço fosse a completa destruição de nossa essência através de uma guerra.
Nesse ponto, então, nosso Conselheiro Principal, um homem pequeno de vastos cabelos brancos, que usava o nome de David, decidiu se pronunciar pela primeira vez.
— De fato — sua voz segura e calma articulou —, desde que uma nova população humana se tornou uma promessa, esse é o consenso entre os Representantes. Infelizmente, considerando a imprevisibilidade dos temperamentos dos terráqueos e a instabilidade prévia de suas sociedades, a guerra sempre foi uma possibilidade. Por isso, o plano para uma retirada gradual e em massa vem sendo estudado e está pronto para ser posto em prática a qualquer momento, caso necessário.
Os Representantes eram Conselheiros de todo o mundo que se comunicavam regularmente, informando uns aos outros sobre os progressos, decisões e anseios de cada comunidade. Aparentemente, a progressão da população humana era previsível o bastante para sempre ter estado em suas considerações.
— Nunca trouxemos essa discussão para as pautas, porque acreditamos que devem surgir naturalmente em cada Conselho, como sabíamos que surgiria — continuou David. —  É uma decisão séria, e nem mesmo o momento de falarmos sobre ela deveria ser imposto. Mas é preciso que saibam que temos pensado na segurança de todos, inclusive na de nossos descendentes humanos. Se o tempo chegar em que eles não nos queiram mais aqui, partiremos em paz.
— Como se eles fossem simplesmente nos dizer, em vez de um dia darem vazão à violência com que sempre conseguiram as coisas? — pontuou Green, duvidando outra vez que humanos pudessem permanecer bons.
— Não é como antes — Flora apressou-se em argumentar. — Somos família, não mais uma espécie inimiga. Nossas crianças jamais serão abandonadas por nós, maltratadas ou privadas de seus direitos. Elas nos amam tanto quanto nós a elas e não têm motivo para chegarem a nos odiar.
— Concordamos com você. Não há entre nós pais negligentes ou injustiça social, nada que lhes cause dor ou desperte revolta — disse David. — Ainda assim, seu poder de decisão permanece limitado, sujeito ao que nós acreditamos que seja o bem comum. Por isso quando a primeira geração atingir a idade adulta, dentro de poucos anos, serão comunicados sobre nossa oferta de partir. Nós nos certificaremos de que, pelo menos desta vez, a escolha final seja deles.
A surpresa me tomou por completo. E conseguia imaginar que os outros estivessem se sentindo ainda mais perplexos. Sobrecarregados até. Tanta informação... Pensei nas implicações do que ele nos havia dito, nos humanos que conhecia e, obviamente, em minha filha e em John. Eu os deixaria se quisessem. Faria o que fosse melhor. Qualquer coisa. Era o que eu queria, afinal. O plano que vinha traçando em minha cabeça e que me parecia tão lógico quanto surreal momentos atrás.
— Talvez não precisemos partir — peguei-me dizendo mesmo assim. — Se pararmos por completo de requisitar hospedeiros, como Flora insinuou. Se deixarmos com que as gerações humanas se renovem naturalmente até não existirmos mais... Não representaremos ameaça alguma. Completaremos nosso ciclo de vida e partiremos.
Ou morreremos aqui, ao lado daqueles que amamos, porque a duração da vida de Lindsay, e somente um dia a menos, é a medida exata do que eu gostaria de viver.
— Quero ficar com meus irmãos. E, quem sabe, ter um filho um dia. Depois não me importo de morrer — disse Flora, como se lesse meus pensamentos.
— Muito bem — aquiesceu David. — Temos muito a conversar sobre isso também. Sugiro que se sentem.
Todos obedecemos sem hesitar, atônitos demais para levantar qualquer hipótese, a não ser a de que nossas concepções seriam novamente reviradas. Aparentemente, as surpresas não acabariam por ali.



[1] Think tanks são organizações ou instituições que atuam produzindo e difundindo conhecimento sobre assuntos estratégicos, com vistas a influenciar transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas, sobretudo em assuntos sobre os quais pessoas comuns não encontram facilmente base para análises de forma objetiva.

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