sábado, 21 de março de 2015

ELS - Capítulo 18

Capítulo 18 – Encontros

Completely colorblind, these red lights are going unseen
Fall behind with words unsaid you know they're always obscene
'cause my ears, they bled before; I need to let them heal
She fell out; her broken legs won't let her walk away
From this town that couldn't give a single shit either way
And her fears, they bled before she's convinced that they're real

(Makeover – David Cook)


Ela é bonita, apesar do ar de cansaço. Tem a pele morena, formas arredondadas e olhos gentis por trás do jeito estressado. À primeira vista parece uma mulher comum, mas depois de um tempo você percebe que ela tem traços inconfundíveis, um rosto marcadamente quadrado e um maxilar forte e anguloso que contrasta com o nariz pequeno e com a boca delicada e feminina. Já faz alguns minutos que eu a estou observando, desde que cheguei aqui, mas ainda não sei o que tenho que fazer. Só sei que é ela.
Eu soube que era ela no minuto em que a vi, sentada no ponto de ônibus, com ondas de melancolia cinza emanando do seu corpo e fazendo com que as pessoas que vão e vêm se mantenham instintivamente distantes dela. Há alguma angústia no coração dessa mulher e é meu dever consertar, por isso estou aqui, ainda que esteja, eu própria, morta de cansaço.
É sábado de manhã e eu trabalhei até altas horas da madrugada ontem, mas mal encostei a cabeça no travesseiro e já acordei com a sensação de que tinha que estar aqui hoje, então eu vim.
Quando vê o ônibus se aproximando ao longe, ela se levanta. Não há mais nenhum passageiro por perto e imediatamente percebo o que tenho que fazer: não posso deixar que ela embarque. Tenho só uns milésimos de segundo para decidir como vou fazer isso e estou andando apressada na direção dela, tentando pensar em alguma coisa a tempo, mas então eu percebo que é meu corpo que tem que agir.
Ao invés de parar ou me desviar dela quando me aproximo, eu continuo andando e me choco contra a moça com força, bem quando ela está levantando o braço para dar o sinal. Sou pequena e não tenho muita força e, como ela é maior do que eu, é meu corpo quem leva o prejuízo no impacto e eu caio sentada no chão. Dói um pouco e eu aproveito para fazer uma ceninha para distraí-la mais uns segundos.
— Aaiiii! — choramingo.
O corpo da moça oscila ligeiramente com o impacto, mas ela se equilibra facilmente, massageando o braço que bateu em mim como se estivesse dolorido, entretanto o sinal mais evidente dos efeitos de nosso “encontrão” está no rosto dela: verdadeiramente possesso quando olha para o ônibus que passou rápido por nós se afastando. Nem tenho tempo de pensar no tamanho da minha sorte porque nenhum passageiro tinha que desembarcar aqui. A moça, contudo, continua furiosa e me chama de uma coisa que eu não vou dizer, porque, bem, você sabe, eu sou um anjo e tal.
— Você não olha por onde anda, não?
— Desculpe — respondo, apoiando as mãos no chão para poder me levantar e depois batendo uma na outra para tirar a poeira. — Eu estava distraída. Estou tão cansada que mal sei o que estou fazendo. Acabei de sair do trabalho faz pouco tempo. Sabe como é, garçonete de balada, noite de sexta-feira... Foi mal mesmo, eu só estava tentando ir para casa.
Isso parece deixá-la menos brava. Ela olha sutilmente para o uniforme que está vestindo, o de um salão de beleza, e provavelmente pensa no dia árduo de trabalho que tem pela frente.
— Tudo bem — ela diz, a raiva em seu rosto e em sua voz já suavizada. — Mas agora por sua culpa eu vou chegar atrasada no meu trabalho. De sábado o intervalo entre os ônibus é maior e vai demorar no mínimo uns vinte minutos até passar outro.
— Ah, meu Deus. Sinto muito. Mas me deixe corrigir isso, vou pagar um táxi para você.
Eu tinha acabado de ver o carro que encostou na parada de táxis e soube que ela tinha que estar dentro dele em vez de em um ônibus. E tinha que ser naquele táxi.
— Não, não. Imagina! — ela responde, surpresa e assustada. — Você não precisa fazer isso. Táxi é muito caro. Também não é tão ruim assim eu me atrasar. Vão castigar meus ouvidos, mas até aí... Já fui garçonete e sei que a ninguém está pra ficar jogando dinheiro fora.
— Por favor, me deixe fazer isso. Vou me sentir melhor. Além do mais, ontem foi dia de pagamento e eu trabalho num lugar legal, meio chique, sabe? — Pisquei para ela dando a entender que eu ganhava um salário razoável. Não queria que ela se sentisse culpada pelo dinheiro que eu ia gastar. — Não vai me fazer tanta falta — completei.
Ela suspirou e pensou um pouco. Em seguida olhou no relógio e percebeu que não tinha muito tempo para discutir. Suspirou de novo e me seguiu quando eu comecei a caminhar em direção ao ponto de táxi.
— Você se machucou? Acabei de me dar conta de que você está sendo tão gentil comigo e eu nem isso perguntei.
— Não — menti. Eu estava um pouco dolorida, mas nada que valesse a pena mencionar. Qual seria o propósito de qualquer forma? — Estou bem. E você?
— Tudo bem também. Meu nome é Flávia. E o seu?
— Clara.
— Bom, obrigada, Clara. Pelo favor que você está me fazendo. Passe lá no salão onde eu trabalho qualquer dia. Eu te dou um desconto pra compensar o gasto que você está tendo comigo.
Flávia estende um cartão de visitas para mim e eu sorrio para ela quando o pego. Em seguida me abaixo para olhar através da janela do carro e, quando o taxista atrás do volante me olha de volta, eu entendo.
— Er... É... Quanto o senhor cobra para ir até este endereço?
Estendo o cartão para ele e espero que faça os cálculos mentalmente, tentando prever mais ou menos quanto o taxímetro marcará de acordo com a distância. A pele dele é um pouco mais escura e a boca, obviamente, não tem o mesmo contorno delicado e feminino dos lábios de Flávia, mas o rosto quadrado e o queixo anguloso são inconfundíveis.
Aquele homem é pai dela e eu estou prestes a promover o reencontro dos dois.
Ele me passa o preço aproximado e eu entrego o dinheiro a ele, deixando um pouco a mais caso tenha errado nos cálculos. Flávia sorri de novo para mim antes de entrar no carro e agradece outra vez.
— Não foi nada — digo. — Apenas acertando algo que deu errado. — E ela não faz ideia de que eu não estou falando do ônibus perdido.
Quando o carro se afasta, eu ainda consigo ver a expressão no rosto dela quando finalmente se foca na imagem dele no retrovisor. Intrigada e indagadora. O rosto de alguém que está a um segundo de encontrar aquela peça que desvendará todo o enigma. E eu fico tão feliz por saber disso que nem as minhas pálpebras pesadas me incomodam.
Começo a caminhar de volta para minha casa, feliz por estar só a uns poucos minutos da cama que me espera. Em outros tempos, eu morava bem mais longe daqui, numa parte diferente da cidade, mas parece que este lugar vez ou outra me atrai de volta. Vinte anos atrás, foi neste mesmo lugar que encontrei Marina desmaiada. Então acho que há uma energia boa para mim aqui, a possibilidade de belos encontros.
Fico imaginando a história de Flávia e do taxista que é seu pai. Onde foi que tudo deu errado? Em que ponto a história dos dois se separou? Será que ele a abandonou ou sequer sabia da existência dela? Será que ela o procurou, quis saber quem ele era? Ou o odiou por tê-la deixado para trás?
A única coisa que sei é que seja o que for que os separou, o que quer que tenha dado errado, precisava ser corrigido. Talvez um dia eu vá mesmo até aquele salão. Só para descobrir o que aconteceu.
Acompanhar o que se passa depois que fazemos nossas pequenas intervenções não é parte da missão. Como aconteceu com Marina, ficar por perto pode realmente complicar as coisas. Nosso dever é simplesmente seguir adiante e nos concentrar na próxima, mas, bem, às vezes eu fico curiosa.
— Eu vi quando você saiu correndo e esbarrou nela de propósito.
Uma voz desconhecida e rouca me puxa de volta à realidade. Olho na direção de onde ela vem e fico com o coração apertado imediatamente. Na calçada oposta a onde caminho agora, há um homem velho e esfarrapado, sentado à porta de uma loja. Eu não o tinha visto antes porque estava concentrada em Flávia, mas me estapeio mentalmente por tê-lo ignorado. Ainda que ele pareça tão pequeno e frágil enrolado em seu cobertor sujo, ou talvez especialmente por isso. Parece que minha missão ainda não acabou.
Atravesso a rua e me agacho em frente a ele. Um cheiro nauseabundo de sujeira, suor e bebida invade minhas narinas, mesmo assim eu seguro sua mão com ambas as minhas. Ele tenta tirar a mão e se afastar de mim, surpreso e arredio por causa da atenção inesperada, mas focaliza meus olhos e para de se mover, como se tivesse visto alguma coisa que muda tudo.
— Você não vai dizer a ela, vai? — peço suavemente.
— Não, Anjo, não vou — ele diz, e eu me surpreendo com sua resposta.
De alguma forma, ele entendeu mais do que os outros. Simplesmente olhou para mim e me viu, como se seu olhar estivesse livre dos pré-julgamentos e do ceticismo que impede os outros de enxergarem o sobrenatural. Lentamente, lágrimas grossas começam a brotar de seus olhos e a escorrer por suas bochechas, cortando a poeira de sua pele malcuidada. Poso uma de minhas mãos sobre seu rosto, mas ele a segura com força entre as suas, e seu choro fica um pouco mais desesperado.
— Eu desperdicei minha vida, Anjo. Você pode pedir a Ele por mim, pedir que me perdoe por ter desistido?
— Qual o seu nome?
— Enoque.
— É bonito — sorrio para ele e isso lhe faz bem, faz com que se acalme um pouco. Fico me perguntando há quanto tempo ninguém lhe dirige um sorriso. — Sabe, Enoque, você pode falar com Ele tanto quanto eu posso. E se você quiser saber minha opinião, acho que ele acredita em você. Eu não sei o que você fez, mas, seja o que for, ainda tem conserto se você realmente quiser. Sei disso porque é o que faço. Tento consertar as coisas.
— Eu quero, Anjo. Quero consertar.
— Então vamos pedir ajuda a um amigo, tudo bem? Você conhece o restaurante vegetariano, aquele que tem lá na praça do centro?
— Sim, já vi qual é.
Tiro um pequeno caderno de dentro da bolsa e escrevo um bilhete, depois arranco a folha, dobro e entrego a Enoque.
— O dono de lá se chama Pablo. Eu já o ajudei antes e sei que ele vai te ajudar agora. Entregue isso a ele, mas não abra, certo? Diga que a Clara te mandou e que disse que você pode comer lá quantas vezes quiser por minha conta. Eu explico isso a ele no bilhete e ele não vai negar. Ele chega por volta das dez. Tem uns 30 anos e o cabelo preto bem curtinho, quase raspado. Você vai até lá?
— Vou estar lá antes mesmo de ele chegar. Vou ficar esperando na praça — ele se levanta e começa a recolher suas poucas coisas, mas deixa um saco de papel pardo de lado.
— Você está se esquecendo daquela sacola.
— Não preciso mais dela. Não quero mais. Você pode levá-la para longe de mim, Anjo Clara?
Quando ele se levanta, parece um homem mais forte. Há um brilho diferente em seu olhar e qualquer um pode ver, se quiser. Eu espero que Pablo possa. Pego a sacola do chão e não preciso olhar dentro para saber o que é, o contorno e o peso me indicam que aquilo é parte de um passado ruim sendo deixado para trás naquele exato instante.
— Enoque, você pode me fazer um favor?
— Eu viro o mundo do avesso por você, menina.
— É mais simples do que isso — respondo rindo, e Enoque ri também. — Só quero que você não diga a ninguém o que eu sou.
— Se é isso o que você quer, pode contar comigo. Ninguém acredita em velhos malucos como eu mesmo!
— Você é um velho maluco adorável. Preciso ir agora. Boa sorte com tudo.
— Agradecido, Anjo.
Vou embora, satisfeita com minhas missões, levando comigo a garrafa de pinga que pesa em minhas mãos tanto quanto os erros de uma vida podem pesar. Vou jogar aquilo na privada assim que chegar em casa, como um gesto simbólico do meu desejo de que o futuro de Enoque seja diferente. Às vezes, num breve momento de vulnerabilidade, a luz penetra em você a então só é preciso uma mão amiga. Ou duas.
Acho que vou ligar para Pablo mais tarde, mas vou esperar que ele decida por si mesmo. Sei, daquele jeito que você conhece, que isso vai dar certo. Há alguns meses, quando conheci Pablo, eu fiz com que ele conhecesse o amor de sua vida. Marcos o ajudou a perceber que há muitas formas de amar e que estava tudo bem, que ele não precisava mais lutar contra si mesmo.
No bilhete, eu pedi que alimentasse meu amigo e que lhe emprestasse os cômodos dos fundos do restaurante por um tempo. Sei que é muito a se pedir, mas conheço Pablo, ou a pessoa que Marcos o ajudou a se tornar, e sei que ele se compadecerá de Enoque.
Não estou cobrando um favor prestado a Pablo ou comprando o silêncio de Enoque, por isso não quis pedir diretamente, mas sei que os meninos estão precisando de alguém que os ajude na limpeza e a tomar conta do lugar. Outra coisa que eu também sei é que coisas boas acontecem.

********

Durmo o resto do dia todo e só acordo no meio da tarde com um telefonema de Alberto, com quem compartilho as alegrias deste dia. Ele tem me ligado muitas vezes, já que não pode vir até aqui para me ver ainda. Como ele acabou de tirar uns dias de folga para viajar, não dá para se ausentar novamente em tão pouco tempo. Não é nenhuma surpresa para mim, que sei que ele leva seu trabalho terreno tão a sério quanto o “outro”. Na verdade, as duas coisas praticamente se tornaram uma só, um só jeito de ele se pôr a serviço dos homens e de sua missão “extra”.
Cada um de nós encontra a melhor maneira de aplicar seus dons e, diferente de mim, que prefiro trabalhos onde posso permanecer no anonimato com mais facilidade, Beto se arrisca numa profissão tão nobre quanto marcante para os que cruzam seu caminho: ele é bombeiro.
Sim, eu sei. Clichê. E incrivelmente imprudente se pensarmos que a cada 15 ou 20 anos precisamos “renovar” nossos documentos e reinventar nossa identidade. Mas é o que ele sempre amou fazer, onde encontrou seu lugar. Como eu disse antes, cada um de nós descobre por si onde seu dom é mais útil e, então, determinados por essa escolha, alguns talentos extras aparecem.
Eu, por exemplo, vejo a energia das pessoas e percebo suas propensões. Isso às vezes me ajuda a, digamos, prever suas intenções. E eis que quando se trabalha em um ambiente onde tentações como bebidas e drogas estão tão presentes, essa acaba sendo uma habilidade muito útil. Para Alberto, a força física acima da média dos humanos, que é o dom extra que lhe foi dado, também vem muito a calhar durante os salvamentos.
Nenhum de nós pode interferir no sagrado livre-arbítrio ou nas consequências das escolhas dos outros, por piores que elas sejam às vezes. Mas certas coisas podem ser evitadas e as pessoas podem ser auxiliadas a tomar certas decisões, caso estejam abertas a isso. Muitas vezes, a diferença entre uma má decisão, daquelas que desencadeará um desastroso processo em cadeia que vai afetar muitas vidas, e uma escolha inofensiva ou benéfica é um segundo de generosidade de um estranho ou uma simples palavra amiga. É aí que nós entramos.
O destino de todas as pessoas está magnificamente entrelaçado e a nossa missão é espiar por entre as brechas e puxar aquela linha específica da trama, aquela que não vai desmanchar o desenho intrincado, mas apenas dar nós que não estavam ali antes, formando novos padrões. É um trabalho delicado, posso garantir.
Sorte nossa que Alguém — você sabe Quem — sempre “sopra” para nós as respostas. E claro que quando você tem o privilégio de entender o quadro geral percebe o quanto ele é magnífico. Pena que não é sempre que nós vemos. Nem sempre ficamos tempo o suficiente para entender o tamanho da mudança que ajudamos a engendrar. Não faz parte da tarefa. Mas quando você é tão velho quanto Beto, essas coisas acabam se tornando mais claras com o tempo.
E se você pudesse vê-lo! Se pudesse ver Alberto “trabalhar”, entenderia a beleza de que estou falando! Por isso é tão importante para mim me manter em contato com ele. Embora há muito tempo eu não precise mais de um mentor, continuo aprendendo com ele e nunca quero parar. Alberto é como minha família e tê-lo por perto, mesmo que seja apenas em conversas telefônicas, faz com que eu me sinta melhor em todos os sentidos possíveis.
Conversamos sobre tudo e ele me ajuda a pôr as coisas em foco novamente, entender meus sentimentos e voltar a ser eu mesma. Não é a mesma coisa que se ele estivesse aqui, mas eu entendo. Ele não pode abandonar sua própria vida e vir correndo, tanto quanto eu não posso abandonar a minha e ir correndo até ele. Não sempre, pelo menos. Além disso, eu posso me virar sozinha, sessenta anos já é bem grandinha para uma irmã caçula!

Não que eu esteja fazendo lá um grande trabalho, para ser sincera.
Eric, por exemplo, parece ter como missão na vida me deixar confusa. Ele é como uma daquelas músicas que não saem da cabeça. Uma bela canção que eu não quero esquecer. Mas, meu Deus, como é difícil entendê-lo!
Sonho com ele quase todas as noites, cenas incoerentes e bobas, apenas recortes de cotidiano onde ele sempre está. Ou então somos nós dois, andando juntos enquanto o sol se põe e conversando como se sempre tivéssemos feito isso. E nesses sonhos ele faz todas essas coisas que eu gostaria que fizesse na realidade. Sorri o tempo todo e fala sobre si, segura minha mão e me conduz para onde quer ir. Ele se deixa conduzir também, às vezes. Eu confio nele e ele em mim.
Aí eu acordo com esses fragmentos incrustados em minha memória e volto para a realidade em que ele age como se fosse um príncipe de gelo. Sim, é isso. Às vezes ele age como um príncipe gentil, encantador e misterioso. Em outras ele é frio e distante. Apenas o meu chefe e mais nada. É como se ele tivesse dupla personalidade. Ou múltipla, até onde deu para saber.
Talvez você ria quando eu disser que só se passaram pouco mais de duas semanas desde aquele primeiro e turbulento dia. E talvez você ache que eu estou sendo pretensiosa e apressada em chamar Eric de frio quando nos conhecemos há tão pouco tempo. Que direito eu tenho de me incomodar por ser tratada por ele como todas as outras mulheres, com cordialidade distante permeada por flertes ocasionais? Nenhum. Eu acho.
Flertes. Algumas vezes sua idade escapa pelas palavras, não é?E, bem, talvez ele trate você como qualquer outra porque é isso que você é para ele! Pronto. As coisas podem ser bem simples assim.
E faz sentido. Claro. Mas nem mesmo minha mente malcriada e incomodamente realista acredita nisso quando lembro como ele me olha quando se mostra através do gelo. Vez ou outra eu vislumbro alguma coisa, uma palavra a mais que lhe escapa, um sorriso não calculado, um toque mais gentil que os outros... São breves segundos em que eu vejo o que ele vê quando me olha: uma coisa rara que pode facilmente ser quebrada, uma vulnerabilidade que eu não gosto de admitir que existe.
Não, não é minha imaginação! Não estou tendo delírios de paixonite adolescente (bem) tardia, como minha mente se apressa em jogar na minha cara a toda hora. Eu tenho esse sentido extra, afinal. E ele pode não ser de todo confiável quando estou tomada por sentimentos humanos, mas por que outra razão Eric teria tamanho impacto sobre mim se não fosse porque, de alguma forma, precisamos fazer parte do futuro um do outro?
Nem Beto consegue me ajudar nessa. Ele diz que há muitas coisas acontecendo em minha vida ao mesmo tempo e que ele precisa ver isso tudo ao vivo para entender melhor. Enquanto isso eu vou trabalhar todos os dias com esse homem que age como se houvesse algo terrivelmente contagioso que pudéssemos transmitir um ao outro, mas só ele soubesse onde estão as doses do antídoto. Aí, enquanto ele decide se eu ganho minha dose ou não, eu fico aqui tentando me equilibrar no gelo.
Sabe aquela sensação que se tem quando se está no ponto mais alto da montanha russa? Aquele segundo imediatamente anterior à descida, quando você sabe que seu estômago vai subir para a garganta, mas mesmo assim você vai adorar o frio na barriga? É. Pois é.
Em compensação, as coisas com Caio têm sido... Ah! Como é que eu posso explicar? Estar com ele é tudo o que eu sempre quis. É como uma necessidade básica. Tomar um copo d’água depois de estar sedenta por horas ou finalmente cair no sono depois de passar muito tempo acordada. É basal e poderoso, uma dessas coisas que se precisa para continuar vivendo.
Nós almoçamos juntos ou saímos para caminhar, programas inocentes no território neutro do dia. Tenho me esforçado para evitar encontros noturnos, porque ele ainda permanece firme em suas intenções e eu preciso dissuadi-lo devagar. Tenho que mantê-lo afastado, mas próximo o suficiente para que ele confie em mim quando estiver pronto para a verdade. Então tudo o que fazemos é conversar o tempo todo. Ele me conta sobre si, faz perguntas das quais me esquivo discretamente e conta piadas bobas das quais eu finjo achar graça. E eu me deleito em tê-lo por perto e poder rir junto com ele de coisas tolas, como os amigos fazem ou como as mães fazem por seus filhos.
Em minhas conversas com Caio, tento saber tudo o quanto posso sobre Marina sem parecer estranho, e me encanto com a mulher forte e independente que ela se tornou. Ela é agora aquela mulher que já morava dentro da menininha assustada, mas resiliente, que tanto amei e de quem tanto sinto falta. Anseio desesperadamente por conhecer a Marina mulher, mas como eu queria achar minha menina guardada em algum lugar dentro dela!
Espero poder fazer isso logo, mas se Caio ainda não está preparado, Marina muito menos. E eu preciso pensar bem na maneira certa de fazer isso, de me aproximar e contar toda a verdade. Talvez se eu não tivesse tantos sentimentos humanos borbulhando dentro de mim agora, pudesse pensar com mais clareza. Mas não consigo me lamentar por isso. Pelas emoções envoltas em neblina e arrepios que Eric me traz ou pela delicadeza de me sentir mãe novamente. Estou tão feliz que acho que posso ficar mais um tempo me deixando levar por tudo isso.
Especialmente esta noite. É sábado e Caio vai tocar no On the Rocks com sua banda mais uma vez. Hoje é um dia de casa cheia em que eu mal terei tempo de matar a saudade da voz dele, mas não significa que eu não vá ter que lutar o tempo todo para evitar que a música se aposse de mim e eu me esqueça de trabalhar. É difícil conter o orgulho e o enlevo que sinto quando me lembro do quanto ele é talentoso, por isso tenho que manter minha guarda alta.
Não ajuda muito quando ele interrompe a passagem de som para me dar um abraço e ficar conversando comigo. Estamos jogando conversa fora quando vejo Eric se aproximar pelo meu campo de visão. Hoje ele está em um de seus dias de príncipe de gelo.
— Clara, D. Maria está precisando de ajuda lá no depósito. Eu não posso ir, porque já tem gente consumindo e eu tenho que ficar no bar. Samuel está no caixa.
— A Paty não está ocupada — Caio reclama com ar atrevido.
Oh-oh.
Eric , que estivera agindo como se Caio fizesse parte do mobiliário do bar, move os olhos na direção dele depois do comentário. O pescoço se vira um segundo depois e é um movimento tão robótico e calculado que chega a assustar. Os olhos dele atiram flechas geladas na direção de meu bebê, mas sou eu que me arrepio com o frio.
— Teo, não é? Ou Caio? Afinal, qual é o seu nome?
— Me chame Teo — resmunga ele, mal-humorado.
— Tanto faz. Escute, Teo, Patrícia tem clientes que acabaram de se sentar na área dela e, ao que me consta, Clara não está ocupada, está? — Balanço a cabeça em negação mecanicamente, mas Caio apenas o encara em silêncio. — Então acho que posso pedir à minha funcionária que vá fazer algo, mesmo que ela esteja ocupada em conversar com você. E, caso tenha esquecido, você também está ao meu serviço esta noite e tudo o que estou vendo no palco é sua banda sem vocalista. Que tal irmos todos trabalhar?
Eric não diz mais nada, apenas se afasta, para meu alívio, mas o recado está dado.
— Clarraa! — diz Caio, tentando, sem muito sucesso, imitar o sotaque que Eric deixa escapar quando está bravo. – Idiota.
— Não fale assim — corrijo. — Ele tem razão. Precisamos trabalhar. Vá ajudar seus amigos a prepararem os instrumentos. Nós nos falamos depois.
Dou um beijo na bochecha dele e saio em disparada para o depósito. Caio sorri meio contrariado, mas não diz nada, nem tem tempo para isso. Ajudo D. Maria e Jefferson a transportar para a cozinha algumas mercadorias, que nem eram tantas assim, e quando volto vejo que Caio está nos bastidores e que já tenho alguns clientes no meu setor. Um casal está sentado se abraçando e eu espero um pouco para ir até lá, pois não quero atrapalhar.
Não são os clientes típicos que vêm aqui, não no modo de vestir, pelo menos. O pessoal que vem aqui usa muita roupa preta e camisetas de banda, mas não esses dois. Ele está vestido de um jeito que não combina nada com esse lugar, com uma camisa branca de botões e tecido fino, o esforço em se misturar fica nítido apenas no jeans escuro, que deve estar sendo usado pela primeira vez. Ela usa um vestido longo de alguma cor escura também, azul marinho parece, mas a sandália delicada e o cabelo bem penteado a denunciam. São clientes de primeira noite.
Estou observando os dois quando o homem, que está de costas para mim, se levanta e se inclina sobre ela, talvez dando um beijo ou dizendo alguma coisa em seu ouvido. Não consigo ver bem, porque ela está de lado e ele está tampando minha visão. Quando ele sai em direção ao banheiro, ela se vira para onde estou, pretendendo acompanhá-lo com os olhos. Mas então são os meus olhos que ela encontra.
Estive ignorando o sinal vermelho por tempo demais e agora é tarde. Estou no caminho de um carro em movimento e não posso fugir do impacto. Tudo que eu devia ter dito antes... Nem tive tempo para me preparar.
O ar indiferente com que ela me olha não dura nem um segundo. Uma expressão de reconhecimento e perplexidade toma conta de seu rosto antes mesmo que eu possa processar o choque.
Um pavor paralisante se apodera de mim, ao mesmo tempo que meu coração fica pesado de amor.
É ela.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Não Confunda 50 Tons de Cinza com 50 Tons de Roxo



(ATENÇÃO: Como, para variar, o texto ficou gigantesco, se estiver com preguiça pode ler apenas o destacado em rosa. Claro que você perde meu sarcasmo encantador, mas talvez você tenha coisas mais importantes para fazer, como ser o rei/ a rainha do mundo, ou sei lá.)

É, você não aguenta mais falar/ouvir/ler sobre o assunto, eu sei. Mas há uma explicação pra eu vir escrever sobre isso umas três semanas depois da estreia do filme.
A verdade é que eu nunca pretendi escrever sobre 50 Tons de Cinza, mesmo quando me pediram, porque eu tenho alunos adolescentes que leem meus textos e... Tá, vou fazer a puritana aqui, mas eu não acho que seja uma história adequada a pessoas jovens demais. Pronto. Falei.
Mas, aí, quem disse que eles concordam comigo? E por causa de toda a propaganda e de toda a expectativa criada pela estreia do filme, de repente eles estavam lá, planejando formas de burlar a classificação etária e/ou assistir às cenas mais tórridas pela internet. A curiosidade sobre os livros (já meio esquecidos nos últimos tempos) se acendeu novamente e eu via exemplares passando para lá e para cá, de uma bolsa para outra na escola. 
Eu só podia estar enchendo a cara de uma doce negação se achava que não ia acontecer. Afinal, sexo vende e a curiosidade é esperada e natural, não adianta fugir do assunto. No fim da contas, eu não decido classificação etária de nada e o que me resta é tentar tomar uma posição no falatório, para ver se surge o diálogo. Porque o que mais teve nas últimas semanas, ao menos antes do aparecimento do tal vestido enfeitiçado, foi gente dando sua opinião, geralmente negativa e muitas vezes distorcida, sobre a história e outros tentando defender o que, para mim, não precisa de defesa. Aí, né? Se todo mundo pode falar o que pensa, eu também posso. Afinal, não importa que cor o maldito vestido é, o interessante é saber por que cada um vê de um jeito.

Portanto, vamos ao Sr. Grey e seus paranauês, mas, antes de qualquer coisa, deixa eu tirar algo do caminho. Que é para ficar bem claro que qualquer crítica ou qualquer elogio que eu fizer aqui não são absolutamente neutros. Ao contrário, derivam da minha opinião, que pode muito bem ser contestada por qualquer um que achar que deve. Então, ei-la:

Eu li os livros e assisti ao filme. E gostei. Sim, eu gostei. Não a ponto de ficar cega para os defeitos, mas gostei.

~um minuto inteiro em que o julgamento é livre, depois você supera isso e vamos em frente~

Pois é. Eu me diverti com os livros e esperei pelo filme, com o qual também me diverti. E não tinha gastado mais do que dois minutos pensando no porquê disso, até ser bombardeada com 78237576 críticas sobre o filme e me ver, subitamente, tentando arrumar para mim mesma justificativas para ter gostado. Disfarçados de minhocas, vermes comedores de carne se alojaram no meu cérebro e eu fiquei achando que só podia ter alguma coisa de muito errada comigo, até que... Eu caí na real e parei com esta palhaçada de duvidar do meu próprio senso crítico para dar crédito à opinião de pessoas que ou não conheciam a história direito (nem falo nada desses), ou começavam assim: "Eu li os três livros só para saber do que estavam falando, mas odiei cada minuto." É sério isso, gente? Com tanto livro bom por aí, você gastou quase mil páginas de leitura com uma história que você detestou? Só para poder criticar? Acho que não é comigo que tem coisa errada. 
Mas não é de se espantar que a polêmica tenha me incomodado tanto antes de eu voltar à razão, Foi cada uma que mais parecia o julgamento da Bruxas de Salém. Teve até uma notícia, obviamente,  fake (because the zuera never ends) sobre um casal que foi tentar reproduzir as peripécias sexuais dos protagonistas e parou no pronto-socorro. Me. Poupe.
Aí, imaginando o que aquela minha aluninha que não devia ter lido, mas leu pode ter ficado achando sobre si mesma, já que eu fiquei meio coisada com as críticas, decidi pegar as principais e explicar por que, na minha opinião, elas não procedem.
Vamos a elas, uma a uma:

"Mulher que curte esses livros está com fogo no rabo."
Chama-se sexualidade, não "fogo no rabo" (vlw, flw). As mulheres têm direito à sua cota de erotismo (clique aqui para saber por que eu não chamo de pornografia). Eu não vejo ninguém ficar enchendo o saco dos homens quando eles assistem a programas estúpidos, com mulheres se expondo a situações ridículas e degradantes, só porque elas estão praticamente peladas e têm silicone saindo até pelos ouvidos. Todo mundo acha normal. Gostar de sexo (ou da ideia de que um dia vai praticá-lo) é normal e não torna ninguém imoral.

"Tudo bem gostar de umas putarias, mas por que a história de amor? Mania besta de romantizar tudo!"
O que é sexy para as mulheres é diferente do que é para os homens. Na maioria das vezes, a mulherada gosta mesmo é de uma boa história de amor com pimenta. Sem sentimento, para muita gente soa banalizado. E do mesmo jeito que as mulheres têm direito à sua cota de erotismo, também têm de romantizar o sexo. Para quem discorda, tem muitas opções de pornografia por aí. É só parar de falar mal do que não te diz respeito e ir procurar o que te agrada mais.

"É uma história pervertida que influencia as pessoas a acharem que BDSM é algo romântico."
O que é pervertido e o que é romântico para os outros não te pertence e não te cabe decidir ou julgar. Se você não quer que sua filhinha saiba que existem pessoas que curtem umas coisas diferentes coloque ela para morar em Marte, oriente-a a esse respeito e eduque-a à sua maneira. Ter gostado do filme não me fez sair por aí em busca de um dominador para chamar de meu. Se fosse o caso, seria uma preferência pré-existente, não influência de 50 Tons. Games de guerra não fazem soldados, a menos que o cara goste mesmo da ideia e vá se alistar. Caso contrário, é só fantasia. Fim.

"Os livros são mal escritos e é um absurdo terem vendido tanto!"
Não dá para discordar. Eu mesma conheço pelo menos uma meia dúzia de ficwriters que escrevem melhor do que a E. L. James, mas o que adianta ficar descendo o cacete (kkkkkk, desculpa, eu não aguentei!) nela? Existem leitores para todo tipo de livro e eu espero, sinceramente, que existam livros para todo tipo de leitor. Se vende tanto, é porque as pessoas encontram algo ali de que podem gostar. Escrita impecável não é tão importante para todo mundo, mas uma história que agrade, sim. E se você for ver, é até fácil de entender o apelo, já que a história é um mosaico de clichês que funcionaram satisfatoriamente bem juntos: 

  • Tem o cara extraordinário (leia-se diferente do comum) que se interessa pela moça normalzinha. Assim, que nem a leitora, que gosta de achar que pode acontecer com ela também. Não dá para subestimar o poder dessa fantasia. 
  • Tem o homem lindo, mas emocionalmente destruído que a mocinha salva com seu amor. Quem nunca sonhou em redimir um príncipe bad boy não teve adolescência. 
  • Tem o macho-alfa poderoso, respeitado e ligeiramente intimidador que quer possuir a mocinha, e somente a mocinha, porque ele não consegue viver sem ela. É disfuncional e meio inverossímil, mas atire a primeira pedra quem prefere seus protagonistas franzinos, bananas e só meio apaixonados. 
  • Aí, por fim, tem o homem protetor que diz à namorada que vai cuidar de todas as necessidades dela (financeiras, emocionais, sexuais etc) e que ela só precisa se preocupar com o que escolher. "Ah, não! Não gostei disso. Sou uma mulher independente e dona do meu próprio nariz." Bom, eu também sou, mas não ligaria de saber que eu só precisaria trabalhar se quisesse. E eu também gosto de ser protegida e cuidada. Isso faz de mim uma pessoa (note a neutralidade) normal, não uma mulher fraca.
Então, assim, os livros podem até não ser um primor, mas clichês funcionam. Não tem o que discutir. É por isso que os livros meia boca da James vendem e o seu maravilhoso está num site de fanfics assombrado. Choremos ali no cantinho um pouco, depois sigamos adiante, porque o mundo é dos fortes e inveja é para os fracos.

"Mulheres que se encantam por Christian Grey estão em relacionamentos insatisfatórios com parceiros insatisfatórios e financeiramente comprometidos."
Na verdade, o que eu li, depois de uma amiga ser insultada por "greyzetes" simplórias e enfurecidas, foi: mulher que gosta do Grey é mal comida por marido pobre e de p**to pequeno.
Então quer dizer que se um homem tiver uma quedinha por, digamos lá, uma atriz pornô, significa que ele está insatisfeito com a parceira ou com a relação dos dois? Porque, sei lá, mas gente feliz também tem fantasias, sabe? 
Quanto à questão financeira eu não vou nem falar nada. Sinceramente. Porque se as pessoas podem dizer criancices eu posso ficar de mal delas, haha. Mentira, eu não fico de mal. E entendo o calor das discussões também. Só acho que é uma generalização raivosa e reducionista e as pessoas sabem disso. Não é preciso dizer.

"Christian sente prazer em fazer Anastacia sentir dor."
Seguinte, quando era muito pequeno, bem naquela fase da vida em desenvolvemos os vínculos afetivos e de confiança, Christian foi agredido e negligenciado. As pessoas só tocavam nele para fazer mal. Então, ele cresceu sem conseguir confiar em ninguém o suficiente para desenvolver um relacionamento amoroso, porque quando isso acontece, ficamos vulneráveis. A pessoa que amamos, se mal intencionada, pode nos causar muito sofrimento, por isso é tão importante ser forte para escolher bem e confiar no outro. Mas por causa do que aconteceu, Christian relaciona toque (não o sexual, mas o toque carinhoso, que provém de uma intimidade emocional) com algo ameaçador. Um cara assim precisa de terapia ter controle sobre as relações, para não correr o risco de se machucar. Traduzindo em miúdos, o lance dele é poder. Ele gosta de "dominar e disciplinar". A dor já vai do gosto da submissa, porque, para ele, meio que tanto faz. Não que não tenha, entre os adeptos de BDSM, pessoas que sintam prazer em causar uma dor consentida. Sadismo faz parte da sigla, afinal. Mas esse não é, especificamente, o lance do personagem.

"Ana é uma banana (haha), que aceita fazer coisas para as quais não está preparada só para agradar ao namorado."
Só se você partir do princípio de que ela não gosta do que está fazendo. O problema para você é que fica bem claro que ela gosta, e muito. Ana pode ser uma sonsa em alguns aspectos, mas quanto a isso ela me parece bem espertinha e dona da situação. Desde o começo, ela parece bem disposta a experimentar, apesar de sua inexperiência. Sendo assim, Anastacia Steele só tem a si mesma para culpar pelas coisinhas exóticas que CONSENTE em fazer. Isso de ficar insinuando que o homem é quem direciona e decide tudo, só porque você não consegue admitir que uma moça inexperiente e boazinha possa gostar de um chicotinho, já está ficando irritante.

"Christian é violento e o namoro/casamento dos dois é uma apologia de relacionamentos abusivos."
Vixe, gente. Calma. Em nenhum momento ele a agride fisicamente. Fora dos "joguinhos" de dominação, ele não faz nada contra ela, e fica claro que jamais faria. Tudo bem, ele é meio agressivo verbalmente, mas até aí... Quem nunca disse, no calor de uma discussão, coisas das quais se arrependeu depois? Claro que não é um comportamento que alguém possa permitir que se torne comum, mas também não é o caso de achar que algumas discussões constituem comportamento abusivo. 

"O que existe entre eles não é amor, é codependência."
Diz a pessoa que só conhece relacionamentos perfeitos. É claro que, na vida real, alguém como Christian precisaria de anos de ajuda profissional. Acho que não deixar isso claro é uma das maiores falhas da autora. Mas daí a dizer que eles não se amam... Pode me chamar de romântica, de boba, ou sei lá, mas eu acho que o amor salva. No caso do Christian, a única coisa que o incentivaria a procurar ajuda seria seu amor pela Ana. Posso até estar sendo ingênua, mas é o que eu acho.

"É uma história boba e machista, escrita para gente que não tem capacidade para ler algo melhor."
Quanto amargor, minha gente! Pode ser que, com meu intelecto limitado, eu não tenha percebido quando aconteceu, mas acho que até agora nenhum fantasma de escritor clássico veio me pedir de volta o diploma de Letras. Nem tampouco sugerir uma detox à base de Sylvia Plath. Só porque curto um clichezinho, não me transformei numa leitora emburrecida ou numa mulher menos segura de mim mesma ou do meu papel em meu relacionamento amoroso. Não acho que a história de E. L. James tenha todo esse poder, mesmo em mentes mais influenciáveis. Pelo contrário.
Acho que muita gente aprendeu a ver a sexualidade e o tesão feminino com mais naturalidade, inclusive - e principalmente - as próprias mulheres. E dizer a elas que o seu direito a uma perversãozinha romântica, se for de seu gosto, é um retrocesso nos ideais feministas é... Bom, um retrocesso nos ideais feministas. Além de uma p**a hipocrisia. Afinal, cada um tem o direito de escolher como vai viver, mesmo que essa escolha consista em se submeter, de comum acordo, a um dominador de sua preferência.

As cenas nem são tão fortes assim, no final das contas. Nos anos 50, já andava pela literatura uma moça conhecida por "O", disposta a se submeter a umas paradas bem mais fortes e nem teve este "forfé" todo. Porque, né? Década de 50. BDSM e talz. Era de se pensar que seria uma polêmica inigualável. Mas não foi. O choque é livre. 
Em 50 Tons, tudo o que acontece entre a Ana e seu amante lindo e emocionalmente zuado é consensual, como em todas as relações envolvendo essa prática tão "monstruosa". E fica claro para leitor/espectador mais aberto atento que é ela quem tem o controle da situação, na medida em que pode pedir para sair a qualquer momento, coisa que ela até faz algumas vezes. Então, sei lá, o choque aqui também é livre, mas de verdade não é para tanto.
Se você gostou, fique de boa. Você não é uma pessoa pervertida nem nada do que possam te acusar. Se você não gostou, ou nem tem vontade de descobrir, faz muito bem também. Afinal, ninguém é obrigado. Isso não te torna reprimido, recalcado ou sei lá mais o que andam dizendo as "greyzetes" mais raivosas. O importante é ser fiel a si mesmo, aos seus valores e aos seus gostos (reais, não o que as outras pessoas dizem que devia ser). A internet e a vida estão cheias de donos da verdade, então se aposse da sua e cuide bem dela, antes que um aventureiro o faça por você.

domingo, 8 de março de 2015

ELS - Cap 17

Capítulo 17 – Revoluções

A revolution has begun today for me inside
The ultimate defense is to pretend
Revolve around yourself just like an ordinary man
The only other option to forget
(…)
Does it feel like we've never been alive?
Does it seem like it's only just begun?
Does it feel like we've never been alive inside?
Does it seem like it's only just begun?
It's only just begun

The evolution is coming!
A revolution has begun!
(R-Evolve – 30 Seconds to Mars)


Assim que piso no salão do On The Rocks, os rapazes que instalam os equipamentos de som começam a gritar meu nome com uma entonação falsamente aborrecida, batendo enfaticamente nos relógios de pulso para zombar do meu atraso. João e Matheus não são funcionários regulares do bar, trabalham apenas quando temos algum show. No resto do tempo, sua tarefa é apenas manter os telões e o sistema de áudio funcionando bem. Mesmo assim eles foram convidados a estar aqui hoje e, ainda que já tivessem deixado claro que ficariam de qualquer maneira, eles aceitaram vir. Se me perguntarem por que, eu diria que nenhum dos dois perderia uma oportunidade de estar ao lado de Paty.
E lá está ela, dividindo a mesa com os dois, mas depois que eles se levantam para me cumprimentar, ela se levanta também, as mãos na cintura e sua melhor expressão de você-já-foi-melhor-do-que-isso estampada no rosto. Quando vou cumprimentá-la, reparo em Samuel e Lara sentados juntos em uma mesa de canto, ambos me olhando com uma cara furiosa e, antes que Paty tenha a oportunidade de dizer qualquer coisa, Lara se antecipa e me alfineta:
— Está com a vida ganha, princesa?
O rosto de Paty se retorce em uma carranca e eu quase posso ver a raiva instantânea que emana de seu corpo, as ondas de energia vermelha que Lara desperta nela brotando como flores na primavera.  Seguro seu pulso para pedir a ela que não diga nada, que não me defenda, porque, embora ela não dê a mínima para a presença de Samuel, ou ele para as discussões entre elas, sei que Eric entrará logo e não quero que ele encontre Paty brigando. Quero ficar aqui e quero que minha amiga esteja ao meu lado.
— Desculpe, Samuel — digo ao me aproximar dos dois. Opto por ignorar Lara completamente e me dirigir somente a ele. — Você sabe que não é do meu feitio me atrasar, mas hoje eu realmente acabei pegando no sono e perdendo a hora. Prometo que não vai acontecer de novo.
O rosto de Samuel se suaviza imediatamente, o que é impossível não notar, porque ele é um daqueles homens de aparência dura e expressão quase sempre zangada. Ele é alto e grande, não corpulento, mas forte o suficiente, e tem um rosto quadrado que seus cabelos loiros e compridos parecem destacar. Uma barba de um tom mais escuro cobre seu maxilar largo e o queixo meio curto que lhe dá um aspecto ainda mais leonino. Mas ele tem um sorriso bonito, largo como o do gato da Alice. Pena que quase não sorri.
— Eu sei, Clara. Você não é mesmo de se atrasar. E eu também sei que vocês aceitarem estar aqui antes de seu horário de trabalho é uma cortesia. — Lara parece irritada com o fato de ele ter se acalmado tão rapidamente, e mais ainda por ter sido excluída da conversa, mas ele continua sem se importar com as lufadas de ar que ela solta para expressar seu aborrecimento. — O problema é que isso depõe contra os funcionários e contra a minha administração, e eu agora também sou funcionário dele.
Samuel já tinha nos dito que continuaria trabalhando aqui como gerente, parte do seu sermão de convencimento de que tudo ficaria igual era antes – a não ser para ele – e que deveríamos ficar. Meu ex-chefe não era exatamente uma pessoa agradável na maioria do tempo, mas eu podia ver que ele se esforçava para ser legal comigo e, de qualquer jeito, eu estava feliz que, apesar de ter perdido o bar, as coisas não estivessem tão ruins para ele.
— Tem razão. Desculpe mais uma vez, Samuel.
— Você tem sorte que o Morgan tinha uns negócios para resolver e também se atrasou.
— Morgan!? Que nome esquisito é esse? De onde ele é? — pergunta Paty, já recomposta de sua “Fúria AntiLara”.
— Daqui mesmo – responde Samuel. — A mãe é irlandesa ou algo assim e ele tem dupla cidadania. Vive entre aqui e lá, mas é brasileiro.
— Ai, que alívio, filho! — diz D. Maria, a senhora que trabalha na cozinha. Ela está com seu ajudante, Jefferson, na mesa em frente à de Samuel e escuta a conversa com ar apreensivo. — Eu já estava aqui preocupada de não entender nada que esse homem falasse!
— Pode ficar tranquila quanto a isso — Samuel responde.
— E por que foi que ele resolveu se estabelecer aqui, afinal? — insiste Paty, aparentemente ligada no modo “obtenção de informação”. Não que eu também não estivesse curiosa.
— E como é que eu vou saber, Patrícia? — esbraveja Samuel, cansado da conversa.
— Bem, como vocês são amiguinhos...
— Eu não sou amigo dele! — ele responde, parecendo absolutamente furioso.
Nossa, o que foi isso?
— Aham, estou vendo — responde Paty sem se abalar. — Não sei por quê. Ele deve ser um cara legal, pelo visto. Do tipo que deve estar fugindo de algum irlandês “simpático” em quem deu o calote.
— Legal mesmo seria se ele entrasse agora e te escutasse falando assim — provoca Lara.
E como se lhe tivesse sido dada a deixa, ouvimos a porta dos fundos sendo fechada com estardalhaço. Ainda ouço Paty murmurar uma ameaça a Lara, mas não dou atenção. Meus olhos estão voltados para a porta por onde ele entra em seguida.
E lá está. Minha canção. Faz pouco menos de dez minutos e é como se fosse a primeira vez tudo de novo.
— Boa noite a todos — ele diz, e eu me pergunto se é possível um dia me cansar de ouvir essa voz.
A ala feminina do On the Rocks está momentaneamente muda. Até mesmo D. Maria, que tem sempre aquele ar de quem não se impressiona com nada, parece encantada. Acho que, independentemente de minha própria fascinação por ele, Eric é uma presença difícil de ser ignorada, como podem atestar os queixos de Paty e Lara sendo recolhidos do chão.
Samuel só revira os olhos para a cena e se levanta para ir em direção a Eric. No caminho, ele esbarra de leve em meu ombro e posso sentir uma energia estranha vindo dele. Não preciso ser muito esperta para saber por quê. É claro que ele não gosta da situação em que está e, claramente, não gosta do homem que veio aqui tomar o seu lugar. Mesmo assim, no instante seguinte, ele veste sua expressão amistosa e começa as apresentações.
— Bem, pessoal, esse é Eric Morgan, novo dono do bar. Eric, esses são seus funcionários.
Samuel segue dizendo os nomes e funções de cada um de nós, e depois que João e Matheus se levantam para cumprimentar o recém chegado com um aperto de mão cordial, todos fazem o mesmo. Eric parece incomodado com alguma coisa, mas eu não sei dizer o que é. Por alguma razão desconhecida não consigo captar nenhuma energia vinda dele.
Não é como se eu visse auras ou pudesse ler os pensamentos das pessoas, mas eu sinto seu humor geral, às vezes até mesmo alguma intenção mais forte, mas não com Eric. Ele me cega. Quer dizer, não completamente, mas é como se eu precisasse de óculos grossos para ler suas letras miúdas. Talvez tenha alguma coisa a ver com este enlevo que sinto quando estou perto dele, com a minha incapacidade de ser indiferente à sua presença. Quando sentimentos humanos me tomam, costumam nublar meu outro lado.
Eric é cavalheiro o suficiente para fingir que não nos conhecemos e eu, claro, faço seu jogo. Mesmo quando Paty vem nos “lembrar” que nós já tínhamos nos visto na outra noite em que ele esteve aqui, nós dois fingimos estar percebendo isso apenas naquele momento. É uma besteira, na verdade, mas isso só me faz ficar mais grata à sutileza dele, já que Paty teria começado um interrogatório interminável sobre nosso encontro lá fora e eu não quero que ela, com sua perspicácia irritante, perceba o efeito que ele tem sobre mim. Não quando nem eu mesma entendo ainda.
E quando é que você entende alguma coisa ultimamente?
Nós todos nos sentamos uns minutos para que as pessoas possam tirar suas dúvidas, e tanto Eric quanto Samuel nos asseguram mais uma vez que tudo continuará funcionando normalmente, com exceção de pequenas alterações, como a contratação de mais uma ajudante para D. Maria aos fins de semana, assim ela e Jefferson podem tirar um sábado ou uma sexta de folga com mais frequência.
O bar não abre às segundas-feiras, o que significa que todos nós temos um dia por semana para descansar. Fora isso, nós que somos funcionários regulares temos mais um dia de folga, de acordo com o que combinarmos previamente. Lara cobre duas folgas por semana, uma minha e outra da Paty, e D. Maria e Jefferson se revezam para a cozinha nunca ficar sem ninguém. Entretanto, as folgas em fim de semana são complicadas, porque são dias de muito movimento. Mesmo assim, combinamos uma nova escala com Lara para que as folgas de fins de semana sejam mais frequentes para nós também.
Paty pergunta sobre a segurança do estacionamento e Eric diz que vai atender ao pedido de uma nova iluminação, mas não vê necessidade de um segurança só para isso, há apenas uma equipe terceirizada que fica aqui dentro nos dias de show, mas no resto do tempo esse não é, segundo ele, o tipo de lugar que precisa de vigilância num estacionamento para poucos carros.
— Eu diria que uma tentativa de estupro desmente isso! — ela retruca.
— Tentativa de estupro? — pergunta Eric, inclinando um pouco a cabeça, claramente confuso.
Apesar de eu não querer tocar no assunto e ter certeza, por razões que não poderia comentar com ela, que meu agressor misterioso tinha outros planos, Paty me estimula a contar toda a história do ataque, acrescentando seus próprios contornos de filme de terror à narrativa.
— Ok — ele responde cuidadosamente, seus olhos contendo uma estranha seriedade impossível de desvendar. — Acho que devemos ficar gratos que nada de muito grave aconteceu, mas daqui para frente vocês não ficarão mais sozinhas para fechar o bar. Samuel e eu vamos nos revezar para sermos os últimos a sair, assim podemos acompanhá-las na saída. E vamos reforçar a iluminação o quanto antes.
— Tudo bem, acho que está bom assim — Paty responde.
O impasse está resolvido de um jeito que, para mim, parece satisfatório. Não deixo de notar, no entanto, pelo jeito como Eric olha para ela com desinteresse, sem dar a menor atenção à resposta, que ele não está realmente interessado em saber se os outros aprovam ou não sua decisão. Ele a tomou em um segundo e a anunciou simplesmente, sem um único pestanejar, como se estivesse acostumado a não ser questionado.
A conversa continua sobre pequenas coisas, a maior parte das quais não me interessa, mas eu ouço cada palavra, bebendo a imagem e a voz dele, os gestos... Tudo. Porque aparentemente não tenho saída. Estar ao lado dele me faz sentir como se eu estivesse em mar aberto e não pudesse olhar para outro lugar, a não ser para a imensidão azul de seus olhos de oceano.
Ah, os olhos. Eu mencionei que ele tem olhos tão azuis que mal parecem reais? Quando ele olha para mim é como se me prendesse, como se me obrigasse a mergulhar nesse mar de águas escuras e profundas. E eu não tenho para onde ir, tudo o que posso fazer é lutar para manter a cabeça fora d’água. Exceto que não quero. Não quero respirar. Quero estar mergulhada nele, em seus olhos, em sua beleza.
Nunca me importei com essas coisas e sempre olhei para as pessoas como quem olha para flores, cada uma bonita à sua maneira, criaturas divinas que devem ser apreciadas pelo que têm de único tanto quanto pelo que têm de semelhante. Mas nenhuma dessas criaturas divinas jamais fez meu coração bater com tanta força somente por poder apreciá-las exteriormente.  
Com Eric tudo é diferente. Tudo é tão... novo!
Eu simplesmente não me canso de apreender cada detalhe a respeito de sua aparência: a testa larga, o queixo bem definido, a curva arrogante do nariz, os lábios finos que lembram a metade superior de um coração, os grandes olhos redondos que parecem ainda mais intensos sob as sobrancelhas grossas... Cada linha desse desenho intrincado que ele é me encanta. Até mesmo as coisas que me fazem lembrar que ele não é perfeito: as pequenas veias sob a pele excessivamente pálida de seus olhos, o jeito como ele às vezes mexe sutilmente o maxilar de um lado para o outro enquanto fala, ou como é capaz de ficar tão imperturbavelmente imóvel que poderia ser confundido com uma estátua.
 Passo e repasso tudo isso em minha mente como se ele fosse um poema que eu quisesse decorar. E quanto mais eu olho, mais desejo ser capaz de olhá-lo por dentro. Quero saber como ele é, o que sente... Eu quero saber. Quero saber tudo.
Tudo bem, eu mal o conheço, sei o quanto parece infantil e prematuro me sentir assim, mas não posso evitar. E desta vez, diferente do que aconteceu com Teo, as coisas não me parecem tão confusas e difíceis de entender. Não sou tão tola a ponto de ignorar os sinais, é só que tenho medo deles.
O mundo não é para mim como é para o resto das pessoas, e as sensações que tenho tido desde aquele dia em que o conheci, quando ele ainda era apenas um estranho que eu não sabia se veria novamente, não têm nada de normal para mim. Eu nunca, nunca fiquei tão impressionada com uma pessoa, especialmente sem razão nenhuma.  Senti algo parecido com Teo, todo este deslumbramento e este encanto cego, mas agora sei que é porque meu coração o reconhecia e, de algum jeito, sabia o quanto ele era importante para mim. Mas, novamente, com Eric é tudo tão incomum!
Tenho sonhado com ele, tenho imaginado uma vida diferente. Oh, Deus! Eu cheguei a desejar ser uma pessoa diferente. Alguém que pudesse se encantar por um homem sem ter nada a abrir mão por isso. Alguém que pudesse sonhar com coisas que nunca fizeram parte de meus desejos.
É tudo tão estranho! Quer dizer, eu li um milhão de vezes sobre isso, entendo os sentimentos. Além do mais, vivo no mundo real, vejo a vida acontecendo ao meu redor a todo instante. Mas entender os sentimentos e reconhecê-los são coisas distintas, especialmente quando nunca se experimentou nada assim antes.
Há uma parte enorme de mim que quer negar que eu esteja sentindo qualquer coisa de diferente. É assustador demais para assumir. Você pode achar que sou uma tola, mas para mim não há nada de normal em sentir meu estômago se encher de borboletas por causa de um homem, ainda mais por um que mal conheço.
Ser quem eu sou sempre significou que a maioria dos meus sentimentos tem a ver com compaixão e empatia. Então isso, seja lá o que isso for, é totalmente novo para mim. Humano demais. Diferente demais.
Eu sei o que é o amor. O amor calmo e devoto que tive e tenho por meus pais, por Marina, por Caio, por Alberto e até por Paty. Eu conheço esse sentimento muito bem. Mas a voracidade egoísta das paixões humanas é algo de que eu apenas tinha ouvido falar.
Deus do céu! A mulher já está falando em amor e paixões humanas! Quem você pensa que é? Uma personagem de literatura Young Adult?
Ok, talvez eu devesse mesmo ir com mais calma. Posso estar exagerando. Tudo bem, estou dolorosamente desperta para essas sensações agora. E estou ciente dos efeitos da presença de um homem bonito como Eric sobre uma mulher normal. Ele é um homem atraente, eu sou uma mulher, sou humana — ou quase — portanto, posso estar suscetível aos seus encantos. É normal, como diria Paty. Não quer dizer nada.
Certo?
— Qual é a desse sorriso bobo? — uma voz conhecida me desperta de meus devaneios. A estas alturas já estamos em pleno expediente. Sorte que hoje, quarta-feira, não é um dia de muito movimento.
— Ahn!? Ah, oi, Paty. Sorriso? Que sorriso?
— Esse aí que está estampado na sua cara desde que o cara novo entrou pela porta.
Oh-oh! Você não podia ter disfarçado um pouco melhor?
— Nada a ver. Nem estou sorrindo... Estou? Eu nem percebi.
Apresento-lhes a Mestre dos Disfarces.
— Ou isso ou você está querendo que o chefinho novo conte quantos dentes você tem na boca. Mas tudo bem, vai. Eu admito. Ele é bem bonito. Não é meu tipo, mas parece que é o seu.
— Não. Eu não tenho um tipo.
Penso em negar que ele me impressiona, tento inventar alguma maneira de fazê-la acreditar que sou indiferente a ele, mas sei que esse é um projeto natimorto. Ao que parece, está tudo estampado em minha cara e Paty sabe ler muito bem. Então resolvo usar esta conversa para comprovar a teoria de que, como mulher, minha reação a um cara que seria... bem... “meu tipo” é perfeitamente normal e não tem nada de mais nisso.
— Tudo bem — admito. — Acho que ele é meu tipo.
— Até que enfim! Achei que você ia fazer a linha nenhum-homem-me-abala pro resto da vida. Mas, vem cá, você não está pensando em investir nisso, né? Porque, tipo, ele parece legal e tudo, mas vindo de onde veio, dos antros que o Samuel frequenta, eu tenho certeza de que esse aí é chave de cadeia. Além do mais, é nosso chefe e você não está tentando ser a próxima Lara. Vai por mim.
— Não, claro que não. Eu só... Ahn...
— Só o que?
— Ele é bonito mesmo, não é? Do tipo que as outras mulheres também achariam?
— Mas que pergunta estranha é essa, Clara? Às vezes você é tão esquisita! — Paty ri de mim e eu rio com ela, mas meu sorriso diminui quando ela, sem querer, desmascara minhas verdadeiras intenções. — Parece até que você quer saber se é normal ficar babando no cara!
— Não. É que eu...
— Relaxa, Branquinha! Não precisa explicar, eu já estou acostumada com as suas doidices. Então vou morder esta isca só porque estou gostando de ver você admitir que ficou balançada. Essa sua pose de certinha que não liga pra ninguém é bonitinha até, mas faz eu me sentir anormal por reparar nos caras. Então vamos lá: eu, particularmente, gosto dos meus homens com passados menos obscuros e com um pouco mais de sustança, mas não há como negar que o chefinho é bonito. E se você quiser saber se as outras mulheres também acham é só olhar em volta.
“Viu só? Normal. Ele é um homem atraente e eu sou uma mulher que sente o mesmo que as outras!”, penso triunfante, mas então algo novo aparece. Pelo jeito, este é o Dia Nacional das Novidades e Surpresas. Legal, podemos instituir um feriado. Logo depois de eu decidir se gosto ou não que as outras mulheres sintam o mesmo que eu a respeito de Eric.
Olho ao redor e meu olhar para em uma mesa cheia de moças. Elas soltam risadinhas estridentes enquanto olham para Eric que, alheio a tudo isso, prepara um drinque que estende sobre o balcão enquanto faz um gesto com os dedos para me chamar.
— Falando em gente que faz meu tipo — diz Paty —, você já resolveu as coisas com o Teo?
— Sim. Almocei com ele hoje.
— E?
— E aí que eu disse a ele que seremos só amigos.
— E como ele reagiu?
— Ele aceitou bem. — Mas é claro que isso é só uma meia-verdade, não pretendo contar a Paty que ele me disse que não desistiria. Esse é um “problema” no qual tenho que pensar melhor mais tarde.
— Que bom — ela diz, e tenho a nítida impressão de que seu rosto se ilumina. — Agora vai lá ver o que o seu chefinho quer.
Apresso-me a cruzar o salão para ir ao encontro de Eric, que já está ocupado com o próximo drinque.
— Não sabia que você era bartender — digo.
— Bem, Luz, há um monte de coisas que você não sabe a meu respeito — ele responde, dando um sorrisinho provocador. — Digamos que esse não é o primeiro bar em que eu passo meu tempo. Acho que se minha adorável mãe não tivesse se enroscado com um brasileiro e vindo para cá, eu teria nascido dentro de um pub. — Há algo de amargo na maneira como ele fala, uma nota estranha de cinismo que desaparece rápido o suficiente, mas eu percebo. Só não consigo entender.
— Esses drinques não estão no cardápio — observo quando reparo na mistura inusitada que não tem nada a ver com as cervejas que nossos clientes costumam pedir.
— De fato. Talvez eu faça umas mudanças e acrescente algumas coisas novas – ele responde, estendendo o segundo drinque para mim. — Esses foram pedidos especiais da mesa seis. Leve até lá, por favor.
É a mesa onde estão as moças e, por algum motivo, eu gostaria muito de não ter que ir lá, mas afasto esse pensamento bobo de minha mente, coloco as bebidas sobre minha bandeja e me dirijo até elas.
Eric não presta dois segundos de atenção aos olhares insistentes que elas lhe dirigem, mas eu não tenho o mesmo desdém. A maneira como elas olham para mim faz com que eu me sinta pequena, insignificante.
“Um pedido especial”. As palavras dele ecoam em minha mente pelo resto da noite. Aquela era minha mesa e não fui eu que anotei aqueles pedidos, então eles conversaram. E elas fizeram um pedido especial.
Sinto-me estúpida, com raiva, magoada e estúpida de novo. E eu não sei por quê. E a droga do mundo está girando rápido demais. E eu estou chamando o mundo de “droga”.
Huh.
Quando Eric me acompanha até o carro na hora de ir embora, eu continuo pensando nisso. Em como em um só dia meus sentimentos deram mais cambalhotas que uma pequena ginasta russa. As últimas horas pesam sobre mim como meses, anos até, e eu tenho dificuldade em aceitar a ideia de que quando acordei hoje Caio era apenas Teo e Eric era apenas um sonho. Mas agora estou aqui, com meu “filho” de volta em minha vida, minha doce Marina mais perto do que nunca... e Eric. Não que eu saiba o que essa última parte realmente significa.
Rápido demais. Tudo está indo rápido demais. Meu pobre coração nunca tinha visto tanta ação em todos os seus anos.
É o seu equivalente a um dia na vida de Jack Bauer, diz minha mente brincalhona, lembrando da série[1] de TV que acompanhava 24 horas na vida de um agente norte-americano. Bom que pelo menos um lado meu ainda está disposto a fazer piada.
— E então, como me saí? — Eric pergunta. E eu sei que ele está falando sobre o pessoal do bar, o trabalho e tudo o mais, mas o que sai de minha boca me dá vontade de bater a cabeça na parede.
— Você se sai bem com as mulheres.
O quê!? Mas que diabos você está fazendo?
Eric olha para mim com os olhos apertados e inclina a cabeça me analisando com o semblante confuso, mas no instante seguinte parece estar se divertindo.
— Eu me saio bem com você?
Viu? Eu tentei avisar! Você devia ter antecipado essa.
— Desculpe. — Subitamente, eu caio na real e tento me recompor, esperando que não seja tarde demais para minha dignidade. — Esta conversa é extremamente inapropriada.
— Ah, baby! Você não tem ideia do que seja uma conversa inapropriada.
Ele está rindo de mim de novo. Odeio isso. Mas o jeito que ele ri...
Gah!
— Você se saiu bem. Acho que o pessoal gostou de você. Preciso ir agora, estou cansada. Boa noite.
É só o que eu consigo fazer para não parecer uma destas pessoas que têm conversas enigmáticas com todo mundo, porque não conseguem se desligar de um intenso e entrecortado diálogo interior.
Espere um minuto. Você acha mesmo que consegue não parecer uma dessas?
Ok, agora estou rindo de mim mesma. Deslizo rapidamente para dentro do carro antes que os parafusos de meu cérebro comecem a pular para fora. E antes que eu comece a imaginar como seria receber um beijo de boa noite.
Ele se despede de mim também e fica ali, com as mãos nos bolsos e uma expressão intrigada no rosto. E está tão adorável que... Que nada! Dou partida no carro e vou para casa, tentando não pensar em nenhuma dessas revoluções em minha cabeça.
Há um recado telefônico esperando por mim quando chego. Por um momento, considero deixar para lá e me jogar na cama para tentar descansar, mas sei que deve ser importante, eu não recebo muitos recados. E também não é como se eu fosse conseguir dormir tão já, então eu escuto o som que me traz de volta a imagem de meus olhos sonolentos preferidos.
“Olá, minha menina, sou eu. Desculpe minha ausência, não quis preocupar você, mas estive viajando e só cheguei hoje. Tenho... bom, novidades. Mas primeiro quero saber como você está. Ligue quando chegar, não me importo que seja madrugada, acho que estou com jet lag[2] por causa da mudança de fuso-horário. Ligue quando chegar em casa.”
Ah, Beto, finalmente! Penso em seu rosto pacífico de expressões lânguidas e traços italianos, no cabelo preto como breu e em seu jeito preguiçoso, porém certeiro de falar. Tudo o que eu queria é que ele estivesse aqui agora. Ligo imediatamente.
— Boa noite, querida! Ou será bom dia? Como você está, Estrela Clara? — ele pergunta, fazendo-me voltar no tempo ao usar esse apelido antigo.
“Não é charmoso como a Estrela d’alva parece se destacar das outras?”, ele disse uma vez, apontando para o céu ao entardecer. “Ela brilha mais na aurora ou no crepúsculo. É como você, Clarinha, gosta do encontro da luz com as sombras.”
Sinto-me apaziguada só de ouvir a voz dele. Eu tinha até me esquecido do quanto é bom conversar com alguém que sabe tudo sobre mim e, por um segundo, tenho vontade de chorar.
— Não sei, Beto. Foi um dia longo — respondo, porque nunca consegui mentir para ele nem disfarçar nada. Ele me conhece melhor do que minhas patéticas mentiras, que os outros não desmascaram apenas porque a verdade é absurda para eles. Ouço-o suspirar do outro lado da linha.
— Fale comigo, Estrela Clara.
Então eu falo.


[1] 24 Horas (24, no original) foi exibida no Brasil pela Fox e pela Globo.
[2] Descompensação horária que ocorre devido a uma viagem através de vários fusos horários. A pessoa sente como se seu “relógio interno” não estivesse no mesmo horário do local.

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