Capítulo 17 – Revoluções
A revolution
has begun today for me inside
The ultimate
defense is to pretend
Revolve
around yourself just like an ordinary man
The only
other option to forget
(…)
Does it feel
like we've never been alive?
Does it seem
like it's only just begun?
Does it feel
like we've never been alive inside?
Does it seem
like it's only just begun?
It's only
just begun
The evolution
is coming!
A revolution
has begun!
(R-Evolve – 30 Seconds to Mars)
Assim que piso no salão do On The Rocks, os rapazes que instalam os
equipamentos de som começam a gritar meu nome com uma entonação falsamente
aborrecida, batendo enfaticamente nos relógios de pulso para zombar do meu
atraso. João e Matheus não são funcionários regulares do bar, trabalham apenas
quando temos algum show. No resto do tempo, sua tarefa é apenas manter os
telões e o sistema de áudio funcionando bem. Mesmo assim eles foram convidados
a estar aqui hoje e, ainda que já tivessem deixado claro que ficariam de
qualquer maneira, eles aceitaram vir. Se me perguntarem por que, eu diria que
nenhum dos dois perderia uma oportunidade de estar ao lado de Paty.
E lá está ela, dividindo a mesa com os dois, mas depois que eles se
levantam para me cumprimentar, ela se levanta também, as mãos na cintura e sua
melhor expressão de você-já-foi-melhor-do-que-isso estampada no rosto. Quando
vou cumprimentá-la, reparo em Samuel e Lara sentados juntos em uma mesa de
canto, ambos me olhando com uma cara furiosa e, antes que Paty tenha a
oportunidade de dizer qualquer coisa, Lara se antecipa e me alfineta:
— Está com a vida ganha, princesa?
O rosto de Paty se retorce em uma carranca e eu quase posso ver a raiva
instantânea que emana de seu corpo, as ondas de energia vermelha que Lara
desperta nela brotando como flores na primavera. Seguro seu pulso para pedir a ela que não
diga nada, que não me defenda, porque, embora ela não dê a mínima para a
presença de Samuel, ou ele para as discussões entre elas, sei que Eric entrará
logo e não quero que ele encontre Paty brigando. Quero ficar aqui e quero que
minha amiga esteja ao meu lado.
— Desculpe, Samuel — digo ao me aproximar dos dois. Opto por ignorar Lara
completamente e me dirigir somente a ele. — Você sabe que não é do meu feitio
me atrasar, mas hoje eu realmente acabei pegando no sono e perdendo a hora. Prometo
que não vai acontecer de novo.
O rosto de Samuel se suaviza imediatamente, o que é impossível não notar,
porque ele é um daqueles homens de aparência dura e expressão quase sempre
zangada. Ele é alto e grande, não corpulento, mas forte o suficiente, e tem um
rosto quadrado que seus cabelos loiros e compridos parecem destacar. Uma barba
de um tom mais escuro cobre seu maxilar largo e o queixo meio curto que lhe dá
um aspecto ainda mais leonino. Mas ele tem um sorriso bonito, largo como o do
gato da Alice. Pena que quase não sorri.
— Eu sei, Clara. Você não é mesmo de se atrasar. E eu também sei que
vocês aceitarem estar aqui antes de seu horário de trabalho é uma cortesia. —
Lara parece irritada com o fato de ele ter se acalmado tão rapidamente, e mais
ainda por ter sido excluída da conversa, mas ele continua sem se importar com
as lufadas de ar que ela solta para expressar seu aborrecimento. — O problema é
que isso depõe contra os funcionários e contra a minha administração, e eu
agora também sou funcionário dele.
Samuel já tinha nos dito que continuaria trabalhando aqui como gerente,
parte do seu sermão de convencimento de que tudo ficaria igual era antes – a
não ser para ele – e que deveríamos ficar. Meu ex-chefe não era exatamente uma
pessoa agradável na maioria do tempo, mas eu podia ver que ele se esforçava
para ser legal comigo e, de qualquer jeito, eu estava feliz que, apesar de ter
perdido o bar, as coisas não estivessem tão ruins para ele.
— Tem razão. Desculpe mais uma vez, Samuel.
— Você tem sorte que o Morgan tinha uns negócios para resolver e também
se atrasou.
— Morgan!? Que nome esquisito é esse? De onde ele é? — pergunta Paty, já
recomposta de sua “Fúria AntiLara”.
— Daqui mesmo – responde Samuel. — A mãe é irlandesa ou algo assim e ele
tem dupla cidadania. Vive entre aqui e lá, mas é brasileiro.
— Ai, que alívio, filho! — diz D. Maria, a senhora que trabalha na
cozinha. Ela está com seu ajudante, Jefferson, na mesa em frente à de Samuel e
escuta a conversa com ar apreensivo. — Eu já estava aqui preocupada de não
entender nada que esse homem falasse!
— Pode ficar tranquila quanto a isso — Samuel responde.
— E por que foi que ele resolveu se estabelecer aqui, afinal? — insiste
Paty, aparentemente ligada no modo “obtenção de informação”. Não que eu também
não estivesse curiosa.
— E como é que eu vou saber, Patrícia? — esbraveja Samuel, cansado da
conversa.
— Bem, como vocês são amiguinhos...
— Eu não sou amigo dele! — ele responde, parecendo absolutamente furioso.
Nossa, o que foi isso?
— Aham, estou vendo — responde Paty sem se abalar. — Não sei por quê. Ele
deve ser um cara legal, pelo visto. Do tipo que deve estar fugindo de algum
irlandês “simpático” em quem deu o calote.
— Legal mesmo seria se ele entrasse agora e te escutasse falando assim —
provoca Lara.
E como se lhe tivesse sido dada a deixa, ouvimos a porta dos fundos sendo
fechada com estardalhaço. Ainda ouço Paty murmurar uma ameaça a Lara, mas não
dou atenção. Meus olhos estão voltados para a porta por onde ele entra em
seguida.
E lá está. Minha canção. Faz pouco menos de dez minutos e é como se fosse
a primeira vez tudo de novo.
— Boa noite a todos — ele diz, e eu me pergunto se é possível um dia me
cansar de ouvir essa voz.
A ala feminina do On the Rocks está momentaneamente muda. Até mesmo D. Maria,
que tem sempre aquele ar de quem não se impressiona com nada, parece encantada.
Acho que, independentemente de minha própria fascinação por ele, Eric é uma
presença difícil de ser ignorada, como podem atestar os queixos de Paty e Lara
sendo recolhidos do chão.
Samuel só revira os olhos para a cena e se levanta para ir em direção a
Eric. No caminho, ele esbarra de leve em meu ombro e posso sentir uma energia
estranha vindo dele. Não preciso ser muito esperta para saber por quê. É claro
que ele não gosta da situação em que está e, claramente, não gosta do homem que
veio aqui tomar o seu lugar. Mesmo assim, no instante seguinte, ele veste sua
expressão amistosa e começa as apresentações.
— Bem, pessoal, esse é Eric Morgan, novo dono do bar. Eric, esses são
seus funcionários.
Samuel segue dizendo os nomes e funções de cada um de nós, e depois que
João e Matheus se levantam para cumprimentar o recém chegado com um aperto de
mão cordial, todos fazem o mesmo. Eric parece incomodado com alguma coisa, mas
eu não sei dizer o que é. Por alguma razão desconhecida não consigo captar
nenhuma energia vinda dele.
Não é como se eu visse auras ou pudesse ler os pensamentos das pessoas,
mas eu sinto seu humor geral, às vezes até mesmo alguma intenção mais forte,
mas não com Eric. Ele me cega. Quer dizer, não completamente, mas é como se eu
precisasse de óculos grossos para ler suas letras miúdas. Talvez tenha alguma
coisa a ver com este enlevo que sinto quando estou perto dele, com a minha
incapacidade de ser indiferente à sua presença. Quando sentimentos humanos me
tomam, costumam nublar meu outro lado.
Eric é cavalheiro o suficiente para fingir que não nos conhecemos e eu,
claro, faço seu jogo. Mesmo quando Paty vem nos “lembrar” que nós já tínhamos
nos visto na outra noite em que ele esteve aqui, nós dois fingimos estar
percebendo isso apenas naquele momento. É uma besteira, na verdade, mas isso só
me faz ficar mais grata à sutileza dele, já que Paty teria começado um
interrogatório interminável sobre nosso encontro lá fora e eu não quero que
ela, com sua perspicácia irritante, perceba o efeito que ele tem sobre mim. Não
quando nem eu mesma entendo ainda.
E quando é que você entende alguma
coisa ultimamente?
Nós todos nos sentamos uns minutos para que as pessoas possam tirar suas
dúvidas, e tanto Eric quanto Samuel nos asseguram mais uma vez que tudo continuará
funcionando normalmente, com exceção de pequenas alterações, como a contratação
de mais uma ajudante para D. Maria aos fins de semana, assim ela e Jefferson
podem tirar um sábado ou uma sexta de folga com mais frequência.
O bar não abre às segundas-feiras, o que significa que todos nós temos um
dia por semana para descansar. Fora isso, nós que somos funcionários regulares
temos mais um dia de folga, de acordo com o que combinarmos previamente. Lara
cobre duas folgas por semana, uma minha e outra da Paty, e D. Maria e Jefferson
se revezam para a cozinha nunca ficar sem ninguém. Entretanto, as folgas em fim
de semana são complicadas, porque são dias de muito movimento. Mesmo assim,
combinamos uma nova escala com Lara para que as folgas de fins de semana sejam
mais frequentes para nós também.
Paty pergunta sobre a segurança do estacionamento e Eric diz que vai
atender ao pedido de uma nova iluminação, mas não vê necessidade de um
segurança só para isso, há apenas uma equipe terceirizada que fica aqui dentro nos
dias de show, mas no resto do tempo esse não é, segundo ele, o tipo de lugar
que precisa de vigilância num estacionamento para poucos carros.
— Eu diria que uma tentativa de estupro desmente isso! — ela retruca.
— Tentativa de estupro? — pergunta Eric, inclinando um pouco a cabeça,
claramente confuso.
Apesar de eu não querer tocar no assunto e ter certeza, por razões que
não poderia comentar com ela, que meu agressor misterioso tinha outros planos,
Paty me estimula a contar toda a história do ataque, acrescentando seus
próprios contornos de filme de terror à narrativa.
— Ok — ele responde cuidadosamente, seus olhos contendo uma estranha seriedade
impossível de desvendar. — Acho que devemos ficar gratos que nada de muito
grave aconteceu, mas daqui para frente vocês não ficarão mais sozinhas para
fechar o bar. Samuel e eu vamos nos revezar para sermos os últimos a sair, assim
podemos acompanhá-las na saída. E vamos reforçar a iluminação o quanto antes.
— Tudo bem, acho que está bom assim — Paty responde.
O impasse está resolvido de um jeito que, para mim, parece satisfatório.
Não deixo de notar, no entanto, pelo jeito como Eric olha para ela com
desinteresse, sem dar a menor atenção à resposta, que ele não está realmente
interessado em saber se os outros aprovam ou não sua decisão. Ele a tomou em um
segundo e a anunciou simplesmente, sem um único pestanejar, como se estivesse
acostumado a não ser questionado.
A conversa continua sobre pequenas coisas, a maior parte das quais não me
interessa, mas eu ouço cada palavra, bebendo a imagem e a voz dele, os gestos...
Tudo. Porque aparentemente não tenho saída. Estar ao lado dele me faz sentir
como se eu estivesse em mar aberto e não pudesse olhar para outro lugar, a não
ser para a imensidão azul de seus olhos de oceano.
Ah, os olhos. Eu mencionei que ele tem olhos tão azuis que mal parecem
reais? Quando ele olha para mim é como se me prendesse, como se me obrigasse a
mergulhar nesse mar de águas escuras e profundas. E eu não tenho para onde ir,
tudo o que posso fazer é lutar para manter a cabeça fora d’água. Exceto que não
quero. Não quero respirar. Quero estar mergulhada nele, em seus olhos, em sua
beleza.
Nunca me importei com essas coisas e sempre olhei para as pessoas como
quem olha para flores, cada uma bonita à sua maneira, criaturas divinas que
devem ser apreciadas pelo que têm de único tanto quanto pelo que têm de
semelhante. Mas nenhuma dessas criaturas divinas jamais fez meu coração bater
com tanta força somente por poder apreciá-las exteriormente.
Com Eric tudo é diferente. Tudo é tão... novo!
Eu simplesmente não me canso de apreender cada detalhe a respeito de sua
aparência: a testa larga, o queixo bem definido, a curva arrogante do nariz, os
lábios finos que lembram a metade superior de um coração, os grandes olhos
redondos que parecem ainda mais intensos sob as sobrancelhas grossas... Cada
linha desse desenho intrincado que ele é me encanta. Até mesmo as coisas que me
fazem lembrar que ele não é perfeito: as pequenas veias sob a pele
excessivamente pálida de seus olhos, o jeito como ele às vezes mexe sutilmente o
maxilar de um lado para o outro enquanto fala, ou como é capaz de ficar tão
imperturbavelmente imóvel que poderia ser confundido com uma estátua.
Passo e repasso tudo isso em minha
mente como se ele fosse um poema que eu quisesse decorar. E quanto mais eu
olho, mais desejo ser capaz de olhá-lo por dentro. Quero saber como ele é, o
que sente... Eu quero saber. Quero saber tudo.
Tudo bem, eu mal o conheço, sei o quanto parece infantil e prematuro me
sentir assim, mas não posso evitar. E desta vez, diferente do que aconteceu com
Teo, as coisas não me parecem tão confusas e difíceis de entender. Não sou tão
tola a ponto de ignorar os sinais, é só que tenho medo deles.
O mundo não é para mim como é para o resto das pessoas, e as sensações
que tenho tido desde aquele dia em que o conheci, quando ele ainda era apenas
um estranho que eu não sabia se veria novamente, não têm nada de normal para
mim. Eu nunca, nunca fiquei tão impressionada com uma pessoa, especialmente sem
razão nenhuma. Senti algo parecido com
Teo, todo este deslumbramento e este encanto cego, mas agora sei que é porque
meu coração o reconhecia e, de algum jeito, sabia o quanto ele era importante
para mim. Mas, novamente, com Eric é tudo tão incomum!
Tenho sonhado com ele, tenho imaginado uma vida diferente. Oh, Deus! Eu
cheguei a desejar ser uma pessoa diferente. Alguém que pudesse se encantar por
um homem sem ter nada a abrir mão por isso. Alguém que pudesse sonhar com
coisas que nunca fizeram parte de meus desejos.
É tudo tão estranho! Quer dizer, eu li um milhão de vezes sobre isso,
entendo os sentimentos. Além do mais, vivo no mundo real, vejo a vida
acontecendo ao meu redor a todo instante. Mas entender os sentimentos e
reconhecê-los são coisas distintas, especialmente quando nunca se experimentou
nada assim antes.
Há uma parte enorme de mim que quer negar que eu esteja sentindo qualquer
coisa de diferente. É assustador demais para assumir. Você pode achar que sou
uma tola, mas para mim não há nada de normal em sentir meu estômago se encher
de borboletas por causa de um homem, ainda mais por um que mal conheço.
Ser quem eu sou sempre significou que a maioria dos meus sentimentos tem
a ver com compaixão e empatia. Então isso, seja lá o que isso for, é totalmente
novo para mim. Humano demais. Diferente demais.
Eu sei o que é o amor. O amor calmo e devoto que tive e tenho por meus
pais, por Marina, por Caio, por Alberto e até por Paty. Eu conheço esse
sentimento muito bem. Mas a voracidade egoísta das paixões humanas é algo de
que eu apenas tinha ouvido falar.
Deus do céu! A mulher já está
falando em amor e paixões humanas! Quem você pensa que é? Uma personagem de
literatura Young Adult?
Ok, talvez eu devesse mesmo ir com mais calma. Posso estar exagerando.
Tudo bem, estou dolorosamente desperta para essas sensações agora. E estou
ciente dos efeitos da presença de um homem bonito como Eric sobre uma mulher
normal. Ele é um homem atraente, eu sou uma mulher, sou humana — ou quase —
portanto, posso estar suscetível aos seus encantos. É normal, como diria Paty.
Não quer dizer nada.
Certo?
— Qual é a desse sorriso bobo? — uma voz conhecida me desperta de meus
devaneios. A estas alturas já estamos em pleno expediente. Sorte que hoje,
quarta-feira, não é um dia de muito movimento.
— Ahn!? Ah, oi, Paty. Sorriso? Que sorriso?
— Esse aí que está estampado na sua cara desde que o cara novo entrou
pela porta.
Oh-oh! Você não podia ter
disfarçado um pouco melhor?
— Nada a ver. Nem estou sorrindo... Estou? Eu nem percebi.
Apresento-lhes a Mestre dos Disfarces.
— Ou isso ou você está querendo que o chefinho novo conte quantos dentes
você tem na boca. Mas tudo bem, vai. Eu admito. Ele é bem bonito. Não é meu
tipo, mas parece que é o seu.
— Não. Eu não tenho um tipo.
Penso em negar que ele me impressiona, tento inventar alguma maneira de
fazê-la acreditar que sou indiferente a ele, mas sei que esse é um projeto
natimorto. Ao que parece, está tudo estampado em minha cara e Paty sabe ler
muito bem. Então resolvo usar esta conversa para comprovar a teoria de que,
como mulher, minha reação a um cara que seria... bem... “meu tipo” é
perfeitamente normal e não tem nada de mais nisso.
— Tudo bem — admito. — Acho que ele é meu tipo.
— Até que enfim! Achei que você ia fazer a linha nenhum-homem-me-abala
pro resto da vida. Mas, vem cá, você não está pensando em investir nisso, né?
Porque, tipo, ele parece legal e tudo, mas vindo de onde veio, dos antros que o
Samuel frequenta, eu tenho certeza de que esse aí é chave de cadeia. Além do
mais, é nosso chefe e você não está tentando ser a próxima Lara. Vai por mim.
— Não, claro que não. Eu só... Ahn...
— Só o que?
— Ele é bonito mesmo, não é? Do tipo que as outras mulheres também
achariam?
— Mas que pergunta estranha é essa, Clara? Às vezes você é tão esquisita!
— Paty ri de mim e eu rio com ela, mas meu sorriso diminui quando ela, sem
querer, desmascara minhas verdadeiras intenções. — Parece até que você quer
saber se é normal ficar babando no cara!
— Não. É que eu...
— Relaxa, Branquinha! Não precisa explicar, eu já estou acostumada com as
suas doidices. Então vou morder esta isca só porque estou gostando de ver você
admitir que ficou balançada. Essa sua pose de certinha que não liga pra ninguém
é bonitinha até, mas faz eu me sentir anormal por reparar nos caras. Então
vamos lá: eu, particularmente, gosto dos meus homens com passados menos
obscuros e com um pouco mais de sustança, mas não há como negar que o chefinho
é bonito. E se você quiser saber se as outras mulheres também acham é só olhar
em volta.
“Viu só? Normal. Ele é um homem atraente e eu sou uma mulher que sente o
mesmo que as outras!”, penso triunfante, mas então algo novo aparece. Pelo
jeito, este é o Dia Nacional das Novidades e Surpresas. Legal, podemos
instituir um feriado. Logo depois de eu decidir se gosto ou não que as outras
mulheres sintam o mesmo que eu a respeito de Eric.
Olho ao redor e meu olhar para em uma mesa cheia de moças. Elas soltam
risadinhas estridentes enquanto olham para Eric que, alheio a tudo isso,
prepara um drinque que estende sobre o balcão enquanto faz um gesto com os
dedos para me chamar.
— Falando em gente que faz meu tipo — diz Paty —, você já resolveu as
coisas com o Teo?
— Sim. Almocei com ele hoje.
— E?
— E aí que eu disse a ele que seremos só amigos.
— E como ele reagiu?
— Ele aceitou bem. — Mas é claro que isso é só uma meia-verdade, não
pretendo contar a Paty que ele me disse que não desistiria. Esse é um
“problema” no qual tenho que pensar melhor mais tarde.
— Que bom — ela diz, e tenho a nítida impressão de que seu rosto se ilumina.
— Agora vai lá ver o que o seu chefinho quer.
Apresso-me a cruzar o salão para ir ao encontro de Eric, que já está
ocupado com o próximo drinque.
— Não sabia que você era bartender
— digo.
— Bem, Luz, há um monte de coisas que você não sabe a meu respeito — ele
responde, dando um sorrisinho provocador. — Digamos que esse não é o primeiro
bar em que eu passo meu tempo. Acho que se minha adorável mãe não tivesse se
enroscado com um brasileiro e vindo para cá, eu teria nascido dentro de um pub. — Há algo de amargo na maneira como
ele fala, uma nota estranha de cinismo que desaparece rápido o suficiente, mas
eu percebo. Só não consigo entender.
— Esses drinques não estão no cardápio — observo quando reparo na mistura
inusitada que não tem nada a ver com as cervejas que nossos clientes costumam
pedir.
— De fato. Talvez eu faça umas mudanças e acrescente algumas coisas novas
– ele responde, estendendo o segundo drinque para mim. — Esses foram pedidos
especiais da mesa seis. Leve até lá, por favor.
É a mesa onde estão as moças e, por algum motivo, eu gostaria muito de
não ter que ir lá, mas afasto esse pensamento bobo de minha mente, coloco as
bebidas sobre minha bandeja e me dirijo até elas.
Eric não presta dois segundos de atenção aos olhares insistentes que elas
lhe dirigem, mas eu não tenho o mesmo desdém. A maneira como elas olham para
mim faz com que eu me sinta pequena, insignificante.
“Um pedido especial”. As palavras dele ecoam em minha mente pelo resto da
noite. Aquela era minha mesa e não fui eu que anotei aqueles pedidos, então
eles conversaram. E elas fizeram um pedido especial.
Sinto-me estúpida, com raiva, magoada e estúpida de novo. E eu não sei
por quê. E a droga do mundo está girando rápido demais. E eu estou chamando o
mundo de “droga”.
Huh.
Quando Eric me acompanha até o carro na hora de ir embora, eu continuo
pensando nisso. Em como em um só dia meus sentimentos deram mais cambalhotas
que uma pequena ginasta russa. As últimas horas pesam sobre mim como meses,
anos até, e eu tenho dificuldade em aceitar a ideia de que quando acordei hoje
Caio era apenas Teo e Eric era apenas um sonho. Mas agora estou aqui, com meu “filho”
de volta em minha vida, minha doce Marina mais perto do que nunca... e Eric.
Não que eu saiba o que essa última parte realmente significa.
Rápido demais. Tudo está indo rápido demais. Meu pobre coração nunca
tinha visto tanta ação em todos os seus anos.
É o seu equivalente a um dia na
vida de Jack Bauer, diz minha mente brincalhona, lembrando da série[1] de
TV que acompanhava 24 horas na vida de um agente norte-americano. Bom que pelo
menos um lado meu ainda está disposto a fazer piada.
— E então, como me saí? — Eric pergunta. E eu sei que ele está falando
sobre o pessoal do bar, o trabalho e tudo o mais, mas o que sai de minha boca
me dá vontade de bater a cabeça na parede.
— Você se sai bem com as mulheres.
O quê!? Mas que diabos você está
fazendo?
Eric olha para mim com os olhos apertados e inclina a cabeça me
analisando com o semblante confuso, mas no instante seguinte parece estar se
divertindo.
— Eu me saio bem com você?
Viu? Eu tentei avisar! Você devia
ter antecipado essa.
— Desculpe. — Subitamente, eu caio na real e tento me recompor, esperando
que não seja tarde demais para minha dignidade. — Esta conversa é extremamente
inapropriada.
— Ah, baby! Você não tem ideia do que seja uma conversa inapropriada.
Ele está rindo de mim de novo. Odeio isso. Mas o jeito que ele ri...
Gah!
— Você se saiu bem. Acho que o pessoal gostou de você. Preciso ir agora,
estou cansada. Boa noite.
É só o que eu consigo fazer para não parecer uma destas pessoas que têm
conversas enigmáticas com todo mundo, porque não conseguem se desligar de um
intenso e entrecortado diálogo interior.
Espere um minuto. Você acha mesmo
que consegue não parecer uma dessas?
Ok, agora estou rindo de mim mesma. Deslizo rapidamente para dentro do
carro antes que os parafusos de meu cérebro comecem a pular para fora. E antes
que eu comece a imaginar como seria receber um beijo de boa noite.
Ele se despede de mim também e fica ali, com as mãos nos bolsos e uma
expressão intrigada no rosto. E está tão adorável que... Que nada! Dou partida
no carro e vou para casa, tentando não pensar em nenhuma dessas revoluções em
minha cabeça.
Há um recado telefônico esperando por mim quando chego. Por um momento,
considero deixar para lá e me jogar na cama para tentar descansar, mas sei que
deve ser importante, eu não recebo muitos recados. E também não é como se eu
fosse conseguir dormir tão já, então eu escuto o som que me traz de volta a
imagem de meus olhos sonolentos preferidos.
“Olá, minha menina, sou eu. Desculpe minha ausência, não quis preocupar
você, mas estive viajando e só cheguei hoje. Tenho... bom, novidades. Mas
primeiro quero saber como você está. Ligue quando chegar, não me importo que
seja madrugada, acho que estou com jet lag[2]
por causa da mudança de fuso-horário. Ligue quando chegar em casa.”
Ah, Beto, finalmente! Penso em seu rosto pacífico de expressões lânguidas
e traços italianos, no cabelo preto como breu e em seu jeito preguiçoso, porém
certeiro de falar. Tudo o que eu queria é que ele estivesse aqui agora. Ligo
imediatamente.
— Boa noite, querida! Ou será bom dia? Como você está, Estrela Clara? —
ele pergunta, fazendo-me voltar no tempo ao usar esse apelido antigo.
“Não é charmoso como a Estrela d’alva parece se destacar das outras?”,
ele disse uma vez, apontando para o céu ao entardecer. “Ela brilha mais na
aurora ou no crepúsculo. É como você, Clarinha, gosta do encontro da luz com as
sombras.”
Sinto-me apaziguada só de ouvir a voz dele. Eu tinha até me esquecido do
quanto é bom conversar com alguém que sabe tudo sobre mim e, por um segundo,
tenho vontade de chorar.
— Não sei, Beto. Foi um dia longo — respondo, porque nunca consegui
mentir para ele nem disfarçar nada. Ele me conhece melhor do que minhas
patéticas mentiras, que os outros não desmascaram apenas porque a verdade é
absurda para eles. Ouço-o suspirar do outro lado da linha.
— Fale comigo, Estrela Clara.
Então eu falo.
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