Capítulo 24
A Dúvida, o Conhecimento e o Preço de
Tudo Isso
So let it out and let it in
Hey, Jude, begin
You're waiting for someone to perform with
And don't you know that is just you?
Hey, Jude, you'll do
The movement you need
Is on your shoulder
Na na na na na na na na na
Hey, Jude, don't make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her under your skin
Then you begin to make it better
(Hey, Jude – The Beatles)
Jeb
Entrei no hospital e encontrei Candy
concentrada em um livro, por isso tive alguns segundos para observar os cachos
de seu cabelo escuro caídos sobre o rosto.
— Candace — chamei.
Ela
levantou os olhos para mim e sorriu.
—
Jebediah.
—
Soube que você estava aqui sozinha.
Já
de pé, ela contornou a mesa, passou os braços por meu pescoço e me beijou os
lábios suavemente.
—
Então você veio me fazer companhia. Que conveniente! — exclamou, brincalhona. —
Parece até que estamos nos escondendo.
—
Bem, não estamos exatamente nos mostrando! — Ri, enlaçando a cintura de Candy e
puxando-a para mais perto. — Achei melhor não perder a oportunidade de ficarmos
sozinhos. Você pediu para sermos discretos.
—
Apenas por enquanto. — Suspirou, apoiando o rosto em meu peito. — Quero descobrir sozinha o que estou sentindo,
sem os olhares dos outros sobre nós. Além do mais, há muita coisa acontecendo
por aqui ultimamente. As pessoas vão precisar de sua atenção.
—
Posso ser multitarefa, mas não vou reclamar. Ninguém tem nada a ver com nossa
vida, mas é mesmo mais prudente assim. Não estou com paciência para lidar com
perguntas e brincadeirinhas neste momento. Então, vamos tentar do seu jeito, ao
menos pelo tempo que for possível.
O
que não seria muito.
Um
dos vários desafios de se viver há tanto tempo com um grupo pequeno de pessoas:
você não escapa do olhar delas. Mas para ser justo com meu pessoal, nem eu
mesmo me imaginaria nesta posição de novo.
Imagine.
O velho Jeb Stryder tendo um romance. Meu Jesus. Quem diria!
Tudo
começou com uma conversa franca.
Um
dia, Candy e eu falamos sobre seu período como hospedeira e ela me contou
coisas que nunca tinha dito a ninguém. Sobre seus rígidos valores religiosos de
antes e sua aversão ao divórcio. Sobre o marido abusivo que por anos tentou
quebrar seu espírito, mas que tinha se tornado passado depois da invasão das
Almas, porque o amor que ela achava que sentia era apenas uma conveniência que
não fazia mais sentido, uma dependência que, felizmente, não sobrevivera ao
novo estado das coisas.
Então,
por uma razão qualquer, de repente eu era a única pessoa com quem ela já tinha
dividido essas histórias, e nos dias que se seguiram continuamos a conversar a
respeito de tudo o que tinha mudado em sua vida depois de ter sido hospedeira
da curandeira Verana.
A
experiência tinha, como era de se esperar, enchido sua cabeça de dúvidas. A fé
inabalável e a rigidez de ideias de antes se tornaram questionamentos. E Candy
quase afundou em silêncio, bem aqui, debaixo do meu próprio teto. Bem lá no
começo, quando ela não se abria com ninguém. Contudo, assim como eu mesmo
sempre preferi fazer, ela ainda escutava.
Ouvia
as histórias de Peg sobre outros planetas e sabia que não podia ignorar a
mudança que se dava em seu coração enquanto entendia mais sobre o que sobrara do
nosso mundo. Ou enquanto percebia que ínfima parte do universo infinito nós
éramos. Porque, bem, é o tipo da coisa que te faz humilde e Candy não ignorava
isso.
—
Eu não tinha medo de Peg, como ela pensava — me explicou certa vez. — No
começo, eu temia o que ela era, sim. Seria impossível não temer tendo passado pelo
que passei, mas depois minha relutância não era com ela, e sim com o que as
Almas representavam. Peg, Sunny e, por fim, Logan e Estrela eram impossíveis de
odiar. Eles eram bons demais para isso e representavam com toda força minha
obrigação de abrir os olhos e lembrar, porque saber eu já sabia, que Verana
tinha me deixado melhor. O corpo é meu, mas ela merecia esta vida e fez mais
coisas boas com ela em seus poucos anos aqui do que eu jamais fiz nos meus 50
anos antes disso. Admitir isso me custou, mas também me fez entender o que
significava humanidade de verdade. Acho que nunca me senti tão sozinha como
enquanto percorria esse caminho, mas descobri que a dúvida é uma bênção
disfarçada. Questionar, mesmo as coisas mais essenciais e difíceis sobre nós
mesmos, é o que nos faz pensar, investigar, concluir... Não há caminho para a
paz que não passe pelo conhecimento e é assim que se chega lá. Com sacrifício.
Desde então tenho me construído aos poucos.
Dúvida é uma benção
disfarçada. Não há paz sem conhecimento e para isso é preciso esforço.
Eram
sábias palavras e não pude deixar de pensar em minhas próprias dúvidas quando
ela as disse. E em como paz e entendimento pareciam coisas simples quando discutíamos
a respeito, mas ainda estavam, na prática, bem mais longe de mim do que daquela
mulher tão sensata à minha frente.
Um
mundo sem certezas podia ser um lugar muito assustador, agora eu sabia, mas
Candy foi se tornando mais corajosa e eu a admirava por isso. Com o tempo, a
admiração passou a ser outra coisa.
Percebi
quando me peguei preocupado em fazê-la sorrir.
Parecia
apenas uma daquelas necessidades tolas que todo homem sente diante de uma
mulher que lhe agrada os olhos, mas eu sabia que não era só isso. Porque meus
olhos só se agradaram dela quando meu coração e minha mente tinham se agradado
também. Antes disso, ela era apenas bonita para mim. De um jeito que não tinha
lá muito significado além do óbvio.
Mas
então, de repente, ser cuidadoso com Candy se transformou em ocupação bem-vinda
em meio à minha confusão interior e não havia nada de óbvio na maneira como me
sentia ao lado dela. Eu queria estar por perto. Ela gostava que eu estivesse. Uma
coisa levou à outra, então. E enquanto eu me descobria envolvido nos dilemas
dela, foi inevitável me abrir também.
—
Como ele está? — ela perguntou cuidadosamente, e eu sabia o que queria dizer.
Mesmo assim, preferi desviar-me da pergunta real.
—
Empenhado. Repassando com Doc e Sharon todas as coisas que gostariam de dizer
ao tal David, que é o líder do Conselho de Nova Orleans e membro da
Representação Geral. Antes disso, Logan e Estrela vão falar com Flora, a amiga
que ele fez lá também. Estão pensando em levar Jamie para isso, porque eles
regulam mais ou menos de idade. E os filhos de Lucina, porque Flora gosta de
crianças. Se ela topar, é mais um reforço para convencer David, mas esses dois
parecem fáceis de lidar. O coringa, no caso, seria o Curandeiro que Peg
conheceu em Chicago, Fords Águas Claras. Ela disse que o achou razoável e
acredita que se contar o que aconteceu com ela e Mel, ele pode aceitar
colaborar. Então a comitiva nesse caso seriam Peg, Mel, Ian, Jared e, claro,
John. Mas eu não sei quanto a isso. Já faz muito tempo. Só Deus sabe se esse
sujeito se tornou mais duro ou mais receptivo com o tempo.
—
Pensei que você tinha dito que eles iam sondar a disposição das Almas antes de
revelar qualquer coisa ou apresentar humanos.
—
Sim, eles vão, é claro. Eu não colaboraria com essa maluquice, caso contrário.
—
Mas você continua relutante...
—
E alguém pode me culpar?
Ainda
me arrepiava até os ossos a possibilidade de algo dar errado, e Candy sabia
disso. Acho que todo mundo sabia e sentia a mesma coisa, embora uns estivessem
mais vendidos à ideia do que outros.
—
Você sabe que durante um tempo guardei rancor das Almas, como todos nós, mas eu
sei como pensam — ela argumentou. — Não há mentira ou dissimulação entre eles.
É fácil saber se estão dispostos a ouvir ou se apresentam alguma ameaça.
—
Eu acredito. E também confio em Logan e nos outros. Mas se eu pudesse ser
egoísta, escolheria outro momento para ele bancar o diplomata em missão.
—
Porque você precisa de mais tempo, não é? — Tínhamos nos sentado, cada um de um
lado da mesa de estudos, e Candy estendeu a mão para mim por cima dos livros
abertos, fixando meus olhos de um jeito que eu não podia desviar. — Você tem
que contar a ele, Jeb. Logan tem o direito de saber. Agora a história do humano
é a história dele também.
—
Sim. E é exatamente por isso que não posso. Você sabe o que ele faria. Sabe que
daria um jeito de ser extraído do corpo.
—
Já foi feito antes, é perfeitamente seguro...
—
Não dessa maneira. Não com tanto a perder. Esse é o rosto que a filha dele conhece,
que Estrela ama, o rosto em quem as pessoas confiam. Não posso pedir isso a ele
com base em uma suspeita.
—
A suspeita de que ele é seu filho? Ah, pode sim! Ele ama você, Jeb. E também é
pai.
—
Eu é que não sei se sou! — me exaltei. Não com Candy, embora a insistência dela
me apoquentasse, mas com toda a situação.
Eu
até poderia explicar a Logan, meu amigo, como me envolvi com uma drogada
irresponsável que pode ou não ter escondido uma gravidez de mim. Mas como
poderia explicar a um filho que a vida de merda que ele levou poderia ter sido
outra se eu não fosse tão estúpido e orgulhoso?
Se
eu tivesse ido atrás de Norah, como tantas vezes quis fazer, ele nunca teria
ficado nas mãos de uma mãe negligente ou parado no sistema. Mas não! Eu tinha
que dar mais importância a ter sido traído do que ao fato de que ainda a amava.
De
todo jeito, tudo o que eu tinha eram suspeitas e semelhanças inventadas. Os
olhos de minha mãe, a voz de meu pai, o sorriso de meu irmão Trevor, o jeito
intempestivo de Norah... E aquela maldita canção esquecida que eu costumava
cantar para ela.
Era
pouco demais para que eu arrastasse o garoto para minha paranoia. E seria muito
mais fácil se eu pudesse descobrir que estava errado.
— Ele precisa se lembrar, Candy. Logan precisa
se lembrar da verdadeira história do humano, para livrar a nós dois do fardo
que seria eu ser seu pai.
Os
olhos de Candy, antes fitos em nossas mãos entrelaçadas, subiram para os meus e
se arregalaram enquanto ela empalidecia. Por uma fração de segundo, procurei em
minhas palavras o que poderia tê-la deixado assim, mas ela apontou para a
porta. Não era nada que ela tivesse ouvido, e sim o que viu. E agora eu também
estava vendo.
Ali,
parado feito uma estátua, estava o garoto que eu faria qualquer coisa para não
magoar. Exceto calar minha maldita boca.
—
Lily se machucou — ele disse mecanicamente, com uma voz que eu não reconhecia.
— Ela tropeçou nas pedras e fez um corte no braço. Eu vim...
—
Logan — chamei, levantando-me e indo ao encontro dele.
Como
que entorpecido, o garoto me deu as costas, dirigindo-se ao armário de
remédios.
—
Logan, por favor, escute — pedi, mas era como se eu não estivesse mais ali. Ou
pior, era como se eu fosse o próprio demônio do qual ele precisava fugir.
—
Preciso levar o Curar para ela.
—
Filho — insisti, tentando segurá-lo pelo braço, mas ele se livrou com um puxão.
E o olhar que me lançou antes de sair fez com que eu preferisse mil vezes ter tido
meus dentes quebrados por um soco. Para nunca mais repetir as palavras que ele
não poderia ter ouvido. Não assim.
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