quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

CD2 Cap 25


Capítulo 25 – O Último Grão da Balança

I know that there's no turning back
If we put too much light on this we'll see through all the cracks
Let's stay in the dark one more night
Don't want to know
I'm ok with the silence
It's truth that I don't want to hear
(Lie – David Cook)

Logan

Há muito tempo eu não sabia mais como era isto. Não sentir nada.
Antes de Estrela, vivi todos os meus anos na Terra me mantendo apartado da realidade, distanciando-me ao máximo das emoções humanas, porque eu é que tinha que ter o controle sobre elas, não o contrário.
Então Estrela chegou e eu entrei neste redemoinho que ela trouxe consigo. De repente, quando passei a me importar com ela, era como se o antes não tivesse existido. Fiquei vulnerável. Toda minha experiência não valia de nada sem a indiferença que eu julgava ser minha fortaleza. E sem isso eu não sabia mais como me proteger.
Assim, como se sempre tivessem estado à espreita, os sentimentos me invadiam, me enlaçavam em teias imensas de prazer e dor e eu me deixei levar. Pela primeira vez nesta vida, me deixei levar.
Sem hesitação ou arrependimentos, eu tinha chegado até aqui. A este lugar onde tinha descoberto o que era amor e família. Onde tinha amigos que me dedicavam uma confiança que tornava a dor inevitável apenas parte da vida, não de mim. Onde eu tinha encontrado quem era e aprendido a gostar disso.
Mas estas paredes guardavam segredos estranhos também. O passado das outras pessoas. E, aparentemente, um pouco mais do meu.
“Agora a história do humano é a história dele também.”
...extraído do corpo.
“A suspeita de que ele é seu filho...”
“Ele precisa se lembrar, Candy. Logan precisa se lembrar da verdadeira história do humano...”
Sim, eu também tinha querido me lembrar.
Mas no instante em que as palavras me atingiram, elas me transformaram. Porque eu soube que, quer as lembranças viessem ou não, e fosse o que fosse que me trouxessem se chegassem, nada nunca mais seria igual. Eu seria culpado por ser quem Jeb esperava. Seria culpado por não ser também.
Então como enxergar a mim mesmo depois disso?
Lutei incansavelmente para chegar até aqui e ser alguém novo. Tinha me permitido ficar em carne viva para poder construir algo sobre os escombros e, de repente, isso não valia mais nada, porque eu tinha que voltar ao princípio para poder suportar, ao Logan anestesiado de antes.
Não. Logan não. Canção Noturna.
Canção Noturna era uma Alma. Apenas isso. E Logan era mais do que podia ser. Logan era também o outro, mas sua história não estava mais no passado para ser lembrada, estava?
Não. Estava aqui agora. Mais presente do que nunca quando eu não poderia estar mais cansado de trazê-la comigo.
De repente, um novo e último grão foi depositado na balança e ela pendeu. Desequilibrou-se. Todo peso que eu não podia aguentar caiu sobre meus ombros e eu soube que era demais para mim, não importava o quanto eu já tivesse acreditado que podia carregar.
O passado. As memórias. A dor. Eu simplesmente não queria mais.
Não queria essa humanidade, não queria os sentimentos e lembranças do outro. Não queria nada. Porque sentir era muito difícil e eu estava me afogando.  
Minha mente se convenceu, então, de que eu precisava parar de me debater e boiar. Apenas esperar o torpor e nadar até chegar àquela ilha dentro de mim onde pudesse ficar seco. E seguro.
Porque há segurança no entorpecimento.
Dor alguma poderia me afetar se eu deixasse de me importar com tudo.
— Logan — às minhas costas, a voz de Jeb me paralisou, provando que era cedo para me anestesiar. Ou talvez tarde demais para mim, de qualquer jeito. — Você pode, por favor, me escutar? Eu não sei o que você ouviu, mas não tire conclusões precipitadas, me deixe explicar...
Havia preocupação em sua expressão quando me virei para encará-lo. A voz estranhamente amena trazia um tom de súplica que eu não reconhecia e odiei isso.
Aquele não era o Jeb a que me acostumei, não era o meu amigo. Toda aquela preocupação não era para mim. Talvez nada do que havíamos passado já tivesse sido, aliás. E esse pensamento só provava que eu não estava pronto para aquela conversa. Ainda doía como o inferno. Por isso eu precisava esperar enquanto a dor fazia seu trabalho de se tornar parte de mim outra vez. Até que eu não sentisse mais nada.
— Não posso. Tenho que levar isto para Lily — respondi secamente, empunhando o frasco de Curar. — E continuar os treinos.
— Pare com isso, eu sei que não é nada grave. Porque se fosse você teria trazido a garota aqui para dentro imediatamente — ele disse sem hesitar, porque sabia que era verdade. Eu a teria mesmo trazido imediatamente. Jeb me conhecia bem, era inegável. Talvez por isso mesmo devesse saber que não adiantaria falar comigo naquela hora, mesmo assim ele insistiu. — São só alguns minutos, Logan. Lily não vai se importar em esperar um pouco. Aqui todos estamos acostumados a viver sem remédios. Era assim antes de vocês...
— Fale por si — interrompi. — Já que está claro que você nunca precisou dos parasitas para nada.
Não sei ao certo por que disse isso, mas a palavra pejorativa saiu como uma bola de espinhos de minha garganta, ferindo a mim também enquanto eu a cuspia para machucá-lo. Ainda assim, ela nunca tinha me parecido tão verdadeira e poderosa, o que me fez sentir como o nada dentro de uma casca.
— Eu não preciso mesmo de parasitas — Jeb me corrigiu —, apenas dos meus amigos. E o nome certo é Alma. — Suspirou como quem se prepara para lidar com o impossível. — Foi o que me ensinaram. Meus amigos são chamados assim.
Almas. Esse era o nome que minha espécie tinha assumido aqui e Jeb sempre o tinha respeitado, ao menos em minha presença. Quanto a precisar de nós, eu sabia que não estava sendo justo. De todas as pessoas, ele havia sido sempre o primeiro a se tornar necessário em nossas vidas antes que tivéssemos a possibilidade de retribuir. Então, não. Jeb não precisava de mim ou de qualquer outra alma — humana ou não — que tenha acolhido, nós é que precisávamos dele. E talvez fosse essa, em grande parte, a razão por eu me sentir desta maneira agora que sabia de suas suspeitas. Como um maldito parasita.
“Ele precisa se lembrar, Candy. Logan precisa se lembrar da verdadeira história do humano, para livrar a nós dois do fardo que seria eu ser seu pai.”
Fardo, sim. Porque não seria justo eu ter roubado a vida do filho dele. E era por isso que ele queria tanto que eu enfrentasse as memórias difíceis. Não por elas me atormentarem ou porque eu sairia melhor do enfrentamento dessas aflições quando elas se tornassem velhas conhecidas. Mas porque ele não podia lidar com a realidade do que eu representava. Um parasita. Um ladrão. Um...
— Ouça, filho... — ele começou, mas aquela palavra também era uma facada em mim agora, por isso não deixei que continuasse.
— Você pode não me chamar assim? Eu não sou seu filho.
— Disso você não sabe — Jeb me respondeu sério, tentando aparentar que não tinha sentido o baque.
E outra vez a maldita bola de espinhos machucava minha garganta, mas eu não conseguia parar. Simplesmente queria feri-lo e, ao mesmo tempo, sentia que merecia toda dor que isso me causava.
— Então me diga o que você sabe — cedi, porque agora eu tinha chegado em um ponto de onde não conseguia voltar. — Se quer tanto conversar, vamos livrar a nós dois desse fardo.
— Vou pedir um favor a Jared — disse, pegando o frasco de Curar de minha mão e fingindo ignorar o amargor que eu tentava destilar. — Ele vai levar o remédio para Lily e assumir seu lugar no treino de hoje. Direi que preciso tirar umas dúvidas com você ou algo assim. Me espere no hospital enquanto isso. Candy não vai estar mais lá e Doc está com Sharon e Estrela levantando hipóteses sobre o que David pode querer saber. Não vamos ser perturbados e eu preciso de mais do que alguns minutos.
Jeb disse tudo isso com a praticidade fria de sempre, mas não se moveu por longos segundos depois de terminar. Apenas ficou parado ali como se esperasse alguma coisa que nenhum de nós dois sabia o que era.
— Você sempre foi meu garoto, Logan — falou, por fim. —  Se quiser, posso não usar a palavra. Mas não tem jeito de você me fazer esquecê-la agora que eu disse. E sei que você também não vai.
Então ele se foi e eu fiquei com a dor de saber que tudo o que eu mais queria era que isso fosse verdade. E que esse desejo me tornava absolutamente desprezível.
Uma coisa era sobreviver. Eu nunca tinha me permitido sentir culpa por estar neste corpo de que tanto precisava. Sem ele, não haveria vida para mim. Mas outra coisa completamente diferente era viver um laço ao qual minha contraparte humana tinha direito absoluto.
Estrela era minha mulher, meu amor. Lindsay era minha filha. Sunny, Peg e John eram a família que eu tinha escolhido. Kyle, Ian, Jared, Melanie, Jamie, Lily... Meus amigos eram meus amigos. Meus.
Jeb era meu amigo.
Mas por mais que eu quisesse, não era justo que ele também fosse meu pai. Isso era somente dele. Do Logan humano. E eu não podia viver com a culpa de ter lhe tirado algo tão precioso.



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