quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

CD2 Cap 26


Capítulo 26 – Sobre Decidir Quando Sair do Paraíso

Oh, think twice
Cuz it's another day for you and me in paradise
Oh, think twice
Cuz it's another day for you
You and me in Paradise

Think about it
(Another Day In Paradise – Phill Collins)

Jeb

— Como você está? — perguntei, assim que voltei para o hospital de Doc e encontrei Logan sentado na mesma cadeira onde estive antes.
Era uma pergunta idiota, porque eu sabia. Ele estava confuso e com raiva. De um jeito que fazia com que não conseguisse se proteger atrás da indiferença, como era seu costume quando se sentia ameaçado. Mesmo assim, eu tinha que dizer alguma coisa, mas ele não me respondeu.
Estava sentado com as costas eretas, olhando para um ponto à frente de si, os punhos cerrados sobre as pernas. Contornei a mesa para me sentar no lugar oposto e poder ver seu rosto enquanto falássemos. Os olhos pareciam vazios quando os fixou em mim.
— Há quanto tempo? — perguntou, e sua voz estava tão diferente que mal pude reconhecer. Quase deu para ouvir seu maxilar trincando. A decepção e a fúria mal contida estavam evidentes em seu rosto.
Tentei me manter impassível, mostrar que não tinha vergonha de ter escondido minhas suspeitas. Afinal, eu o estava protegendo, pelo amor de Deus! Era muito mais complicado do que sinceridade e confiança entre amigos. Porque eu simplesmente não podia virar o mundo dele de cabeça para baixo por causa de uma pulga atrás da minha orelha, podia?
Agora, por exemplo, eu seria muito melhor amigo se inventasse uma história para despistar, negasse o que ele ouviu e deixasse tudo voltar a ser como horas atrás. Com certeza seria muito mais fácil.
Mais fácil dizer do que fazer.
— Desde o dia em que fiquei doente, quando você cantou aquela música para Lindsay — confessei, porque eu seria um bom amigo, mas um péssimo pai se optasse pelo caminho sem complicações. E não importava se tudo isso fosse loucura da minha cabeça ou que o garoto diante de mim fosse uma Alma. Eu me sentia pai dele. Não podia mais me comportar como se as coisas fossem simples.
Tinha chegado a hora. Logan e eu precisaríamos lidar com isso.
— Era uma música antiga que meu pai cantava — continuei. —  Nunca a ouvi em lugar algum, por isso não sei de onde ele tirou. Só me lembrava dela e costumava cantar para Norah, tocando violão quando acampávamos. Maggie é a única outra pessoa que se lembra da letra, mas eu sei que ela nunca a ensinou a ninguém.
Logan balançou a cabeça para mim, indignado, finalmente me vendo como quase todo mundo me via. Como um maluco.
— Isso não prova nada! É só uma música!
Ele se levantou com violência, a cadeira arrastando-se com um barulho alto e quase tombando a seus pés. Parecia um tigre enjaulado, andando de um lado para o outro, afundando o rosto nas duas mãos exatamente como Norah fazia quando estava nervosa.
Quanto a mim, sentia como se a barragem de uma represa tivesse se partido. Todas as comparações que eu tinha evitado fazer me vinham à mente agora, todos os traços em comum que eu tinha me convencido de que eram apenas coincidências absurdas me pareciam mais evidentes do que nunca.
Logan chutou o suporte de um dos catres num gesto de pura frustração. O objeto se chocou contra a parede com um estrondo e ficou ali, torto e fora de lugar, como uma prova incontestável da inutilidade da raiva que ele sentia.
— Às vezes, quando vocês jogam futebol, Melanie abre um sorriso traiçoeiro quando está planejando uma jogada — falei, imerso em minhas próprias razões. Logan me olhou com indecisão, provavelmente analisando se eu estava delirando ou se ia chegar a algum lugar com aquilo. Mas de qualquer jeito, ele esperou. E eu continuei. — Eu sempre sei o que ela vai fazer depois disso, para onde vai direcionar o olhar, para que lado jogará o corpo... São os movimentos do pai dela. Trevor sempre sorria para mim daquela maneira. Você sabe, eu era o irmão mais velho dele. Ninguém conhece nossos truques como nossos irmãos. — Sorri com a lembrança de nossa antiga cumplicidade, algo que agora eu tinha com meu filho. — No dia em que te conheci, quando saímos naquela viagem apressada para conseguir medicamentos para Estrela, você sorriu para mim do mesmo jeito antes de sair do carro e entrar no hospital. Achei que estava vendo um fantasma...
— Chega — Logan tentou me interromper, mas eu continuei como se não o tivesse escutado.
— Mas os olhos eram diferentes. Trevor tinha olhos escuros como nosso pai. Os seus são idênticos aos de minha mãe.
— Pare com isso...
— E a sua voz... No dia em que você cantou pra Lindy, não foi apenas a canção que me lembrou do meu pai. Então eu percebi, você fala como ele também. A mesma entonação áspera, a mesma cadência...
— Pelo amor de Deus, Jeb — Logan implorou, sentando-se à minha frente outra vez e apoiando a testa nas mãos, os dedos enterrados nos cabelos. — Pare com isso. Não prova nada. Não prova porcaria nenhuma, entendeu? Você tem que parar com essa loucura! Que diabos você está fazendo? Mas que droga!
Minha resposta foi um riso seco. Eu sabia como ele estava se sentindo. Sabia que estava sobrecarregado. Mas eu também estava. Estava cansado demais de fazer aquilo sozinho por tanto tempo.
         — É improvável até para uma porcaria de novela, mas não me sai da cabeça mesmo assim, porque vamos falar em improbabilidades, Logan. Você me disse uma vez que não se lembrava do nome da mãe dele, porque era uma daquelas informações desnecessárias que você não se preocupou em reter, mas o sobrenome que ele usava é o mesmo dela. Você contou que a mãe dele foi presa por tráfico e depois morreu na prisão, e as drogas foram o motivo principal para Norah e eu termos terminado, lembra? Depois disso ela sumiu e nunca mais tive notícias dela. Norah desapareceu da minha vida por completo. Pensando agora, podia ser porque ela estivesse presa ou morta. Então eu sei que Smith é um sobrenome comum e que essa podia ser a história de quase todo órfão, mas estive esperando pela derradeira coincidência para ter certeza. Porque por mais que você me diga que as lembranças não existem, porque ele tinha só uns 3 ou 4 anos quando foi separado da mãe e você deixou o pouco que ele devia guardar enterrado aí no fundo, ao menos o nome dela ele tinha que saber. E é improvável mergulhar nas lembranças de um homem e não trazer algo assim à tona. Ao menos quando você sabe o que procurar.
         — Para ter certeza e nos livrar do fardo. Era por isso que você queria que eu me focasse na infância dele.
         E ali estava. A porção de Logan que mais se parecia comigo. Ardiloso, orgulhoso e cabeça dura. Apenas esperando para jogar na minha cara as únicas palavras que pegou para si do que ouviu. Seria muito esperar que o garoto tivesse herdado de mim alguma coisa mais fácil de lidar, como o gosto por jogos de carta, a cor dos olhos ou até o jeito que os outros chamavam de excêntrico. Mas ele tinha logo era que ser a criatura mais teimosa da face da Terra!
         — Você pode me acusar de tudo, menos de não me importar com você, garoto. Você é meu amigo. Você é o Logan que conheço. E isso significa alguma coisa. Ou será que você não se perguntou por que eu não disse nada dessas coisas antes? Se eu tivesse te explicado o que estava acontecendo, você poderia ter se lembrado de algo ou ido atrás de algum documento antigo que desfizesse ou confirmasse minhas suspeitas. Mas eu guardei tudo para mim, porque não tenho nada. Não podia correr o risco de estragar o que você tem.
         Tive medo de ser claro. Medo de que ele não tivesse pensado naquilo e que, ao mencionar, eu estivesse sugerindo. Mas o que eu queria dizer era que não podia me arriscar que ele decidisse ser retirado do próprio corpo e, no fim, tudo não passasse de loucura minha e qualquer consequência ruim fosse por nada.
Afinal, e se o humano acordasse? E se ele fosse alguém detestável que tentasse roubar a vida do Logan que eu conhecia e atrapalhar tudo o que este tentava construir entre Almas e humanos? E se ele não fosse mesmo meu filho?
E se fosse?
— Você não entende, Logan. Quando disse isso pra Candy... — Esfreguei o rosto com as mãos, frustrado por não conseguir explicar, quase sentindo raiva dele por ter ouvido o que não devia. Mas a verdade era que eu é que não deveria ter dito aquilo. Aquela maldita frase devia assombrar só a mim. — Você precisa saber que não tinha a ver com você! Eu me orgulho de você desde o dia em que nos conhecemos e isso é tudo menos um fardo. Essa história toda... Não é sobre o que eu penso de você, entende? Porque, sim, você é como se fosse meu filho e nada do que descobrirmos poderia mudar isso. Mas uma coisa como essa... Saber que tive um filho biológico que nunca conheci... Não é uma coisa fácil de lidar. Como é que eu posso viver com o conhecimento de que meu filho teve uma vida miserável porque eu não estive por perto pra protegê-lo?
A expressão de desafio no rosto de Logan se desfez enquanto eu falava. Em seu lugar, surgiram outras coisas, muitas que eu não saberia identificar. Mas sobre uma pelo menos não havia engano.
Tristeza.
Aquele garoto estava tomado por uma tristeza que fazia meu fígado se retorcer como se lidasse com a pior bebedeira de uma vida. Eu só não sabia por qual de nós ele se sentia pior.
— Mas você não teve culpa — ele disse, parecendo quase surpreso que eu mesmo não estivesse me justificando. — Você não sabia de nada. Se for mesmo verdade, a mãe dele escondeu tudo de você.
Tirei um momento para apreciar o fato de que, nem por um segundo, mesmo enquanto estava com raiva, Logan achou que eu tivesse abandonado meu filho de propósito. Mas a questão era que, no fim, que diferença fazia?
— Isso não muda o resultado. Eu não estava lá para ele. E nem tenho o consolo de saber que alguém esteve em meu lugar.
De tudo, isso era o pior. Diante de como as coisas se desenrolaram, eu me contentaria se algum dos amantes de Norah tivesse proporcionado ao garoto alguma noção do que era um pai, mas nem mesmo essa esmola o destino nos deu.
— Existe uma forma de sabermos — Logan decretou sério, determinado, afastando a dor e a revolta de minutos atrás por um momento de sanidade para ambos. — Mais de uma, na verdade, porque os documentos dos hospedeiros foram todos digitalizados e guardados nos escritórios dos Buscadores de cada cidade. Preservamos o máximo que pudemos da história de cada um porque nunca se sabe quando alguma informação pode ser necessária. O nome da mãe dele seria fácil de conseguir, portanto. Mas acho que não bastaria descobrirmos se ele era filho de Norah. Pelo que entendi, ela não era fiel a você...
— É uma forma gentil de colocar — respondi, tentando esboçar um mínimo de bom-humor, mesmo em uma situação impossível. Obviamente, não era um ponto que eu achava agradável de tocar. — Mas já seria uma pista. A coincidência derradeira, como eu disse. Sei que não basta, mas...
— Podemos fazer um exame — ele me interrompeu. — Colho seu sangue, invento uma história e tiramos a dúvida.
A simplicidade óbvia da coisa me deixou sem ação. Quer dizer, eu não era ignorante, sabia que existiam testes de DNA, mas o mundo estava tão diferente agora que não pensei que ainda existisse utilidade para eles. Aparentemente, porém, do jeito que Logan falava, parecia até bem comum.
— Almas fazem testes de paternidade? — perguntei.
— Há muitas utilidades para um exame genético. Mas eu não preciso propriamente mentir sobre nosso objetivo. Posso dizer que encontrei outra Alma que acredita ter um parentesco comigo e que gostaríamos de confirmar a teoria.
— Não estranhariam que eu simplesmente fornecesse a amostra para você e não fosse até lá?
— Provavelmente, mas qualquer história que eu inventasse para explicar sua ausência seria aceita. Não há motivo para desconfiarem de algo suspeito em meu comportamento, portanto também não há razão para questionamentos.
— Se você acha que é possível... — falei sem muito entusiasmo, até para minha própria admiração.
Parecia tão simples. Meses de angústia torturante resolvidos com umas gotas de sangue e uma historinha qualquer. Fácil demais.
Mas a vida não é assim. Burros velhos como eu sabem disso e por essa razão eu me sentia no direito de desconfiar da sorte, que já não era pouca por ele estar tão disposto a me ajudar.
No fim, as coisas não tinham sido tão terríveis entre nós. Dava para ver que Logan estava magoado, que algo na maneira singela e admirada com que ele me via tinha se quebrado, mas ele ainda estava ao meu lado. Havia esperança para nós. As pontes não estavam queimadas e podíamos chegar um até o outro novamente.
A questão era que, àquela altura, o que me preocupava era a resposta. O não era tão ou mais difícil do que o sim. Porque se tudo não passasse de uma fantasia da minha cabeça desparafusada e Logan não fosse meu filho, o coração velho e seco que ele tinha resgatado do deserto em que nos metemos se partiria. Mas se ele fosse, o que isso faria com nossas vidas?
— Talvez devêssemos deixar o teste para depois — sugeri. — O trabalho que você está fazendo agora é muito importante. E sua cabeça precisa estar inteiramente nisso.
Logan estreitou os olhos e me analisou com aquela expressão irritante de policial buscador jogador de pôquer. É claro que ele já tinha percebido que havia algo de errado na minha reação pouco entusiasmada. Só esperava que não soubesse exatamente o quê. Afinal, era preciso ganhar tempo para nos preparar para o que viria se a resposta fosse positiva. E Logan era do tipo que se apressava para enfrentar o fogo.
Assim, embora eu soubesse que era impossível evitar que um de nós sofresse, conhecia Logan o suficiente para saber também que ele se colocaria na linha de frente, tentando impedir que fosse eu. E, como Peg havia feito por Melanie, o garoto faria por mim o sacrifício supremo de abrir mão de si mesmo.
A grande questão é que eu não teria ânimo de impedi-lo.
Depois de tantos anos e das experiências com Jodi e Pet, havíamos concordado que a chance de um hospedeiro acordar era remota. Quanto maior o tempo de supressão, mais o corpo sofreria em risco depois da retirada da Alma, à espera de que o humano acordasse. E se caso isso acontecesse por um milagre, havia uma série de complicações com que lidar. Mas como, em sã consciência, eu poderia impedir que essa chance fosse dada ao meu filho? Se havia uma possibilidade de ele acordar, por mínima que fosse, eu devia isso a ele. Só não podia agir como se a culpa pelo que aconteceria com este Logan não me afetasse.
— Não sei bem o que você está esperando de mim, Jeb, mas acho que está querendo, de alguma forma, me proteger das consequências. Só que isso não é mais possível. Saber das coisas é um caminho sem volta e eu já estou envolvido. Não há mais como deixar de ir até onde for preciso.
Sim, como eu disse... Irritante!
— Eu já esperei muito, Logan. Posso esperar mais um pouco. Você é o rosto que David e Flora conhecem. Como eles reagiriam se te vissem em outro corpo e tivéssemos que explicar o que fizemos aqui? Com Peg, Estrela, Candy, Lacey...? Pode estragar tudo o que você está tentando construir.
— Se Peg encontrar Fords, ele vai saber o que aconteceu com ela. E não é algo que possamos esconder para sempre, de qualquer maneira — ele disse como se não estivesse sentindo nada a respeito. Como se não estivesse pensando.
— Pense no que isso significaria para sua família, garoto. Não seria como foi com Peg. As coisas são diferentes agora. Se o Logan humano acordasse, como ele se sentiria em relação a Estrela e Lindsay? — A pergunta parecia tê-lo atingido como um tijolo e eu quase me arrependi, mas precisava dizer. Ele precisava encarar tudo o que podia perder tentando ser o herói abnegado. Isso eu devia a ele. — E você? Que tipo de sentimentos seu novo hospedeiro traria da antiga vida? Nós não temos como saber ao certo. Então entenda que não sou prioridade aqui, por mais que eu queira dar uma chance ao meu filho... Ter uma chance com ele. Só estou tentando proteger o filho que já tenho.
Os olhos de Logan ficaram vermelhos enquanto ele me encarava. Os meus ardiam como o inferno. Eu só queria levantar daquela cadeira e abraçar meu menino. Mas não o fiz. Nem ele. Ficamos apenas ali. Dois corações desertos lidando com todas as emoções que não deveríamos ter.
— Eu vou esperar — Logan quebrou o silêncio, por fim. — Preciso preparar Estrela e Lindsay. Principalmente Lindsay — ele esfregou o nariz, a expressão resignada e os ombros tombados de quem carregava o peso do mundo. — Você está certo quanto a David e Flora. É cedo para pôr em risco alianças que ainda nem temos. Até falarmos com eles... Bem, é isso. Vamos dar um tempo a nós mesmos para nos acostumarmos com a ideia. Quanto ao exame...
— Pode esperar também.
— Você não quer saber? Não quer ter certeza?
— Você quer?
Uma risada breve e amarga escapou pelos lábios dele, mas exceto por isso, não houve resposta. Por um único momento, admitimos em silêncio um para o outro — e entendemos — que nossa coragem habitual tinha temporariamente se recolhido à terra dos covardes.
— Conte-me, Jeb — Logan pediu, a voz melancólica de meu pai tão presente na dele que era como se eu a ouvisse de novo. — Me fale sobre sua história com Norah.
Então eu respirei fundo. E passei as próximas horas falando sobre mágoas há tanto tempo esquecidas que pareciam pertencer a outra vida. Exceto que agora eram parte desta aqui também.



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