Capítulo 16 – Salto de
Fé
Like a moth into a flame
I'm
hypnotized
And like a
stone
I'm paralyzed
cause I can't look away
You found
your way under my skin
(…)
How am I
supposed to break this spell you got me under?
I'm so
addicted to the pain
Got your
poison running through my veins
(Break the Spell – Daughtry)
Um barulho baixo e contínuo se insinua por meus pensamentos
semiconscientes. Estou alerta o suficiente para me lembrar que tenho algo a
fazer, mas não o bastante para me obrigar a fazê-lo. O sono tem dessas coisas.
E o que sei é que quero permanecer aqui por mais tempo, neste lugar da minha
mente em que as coisas têm sua própria lógica onírica e nada me parece confuso.
Mas o barulho insistente continua. Ele puxa meus sentidos até que me
lembro do nome disso. Telefone. Começo a abrir meus olhos, ficando vagamente
ciente de que dormi mais do que devia e que preciso levantar rápido para ver
quem quer falar comigo, porém o telefone para de tocar nesse momento.
Ao meu lado, a tela do celular se acende furiosamente no criado mudo, mas
nenhum som acompanha a luz invasiva. Lembro-me vagamente de ter tirado o som
antes de dormir, então vejo que há nove ligações pendentes de Paty na tela.
Nove. Conclusão: é melhor eu atender à décima rapidinho!
— Alô.
— Levanta já dessa cama e vem pra cá!
Por um momento olho em volta, ainda muito sonolenta para perceber o
quanto é ridícula a perspectiva de que Paty esteja no meu quarto. Mas, claro,
se fosse assim ela não estaria me ligando pela décima vez, e sim me sacudindo
como um tornado furioso.
— Como você sabe que eu estou... estava
dormindo?
— Bom, acho que nove ligações perdidas me deram um pista, né?
— Hum...
— Dois, três, quatro! Anda, garota! Você vai se atrasar!
— Atrasar para quê? Ainda falta muito tempo para nosso horário de
entrada, Paty!
— Ai, caramba. Eu sabia. Tinha certeza de que você tinha esquecido. Você
não prestou a menor atenção quando o Samuel pediu para a gente estar aqui uma
hora mais cedo, não é?
— Nossa! A reunião! — disse eu pulando da cama, já perfeitamente desperta
pelo peso da minha irresponsabilidade.
— É, Branquinha, a reunião! O que está acontecendo com você esses dias,
hein? Anda com a cabeça na lua!
A “reunião” era o jeito como estávamos nos referindo ao dia de hoje,
aquele que sabíamos que ia chegar desde que as suspeitas de Paty se concretizaram
e Samuel teve mesmo que vender o bar.
E pelo que Samuel chamava de “vender”, sabíamos que era para entender
“entregar como pagamento pela dívida de jogo”, já que todas as informações
sobre nosso novo chefe — que não estávamos nem um pouco animadas para conhecer
— nos levavam a crer que ele era o tal para quem Samuel devia, o gringo que
ficaria com tudo de “porteira fechada”.
Samuel tinha nos convocado uma hora antes do nosso expediente começar
para nos apresentar a ele. E disse a todos para ficarmos tranquilos, porque o
novo dono queria manter tudo exatamente como era. Restava apenas decidirmos se
íamos querer ficar, claro.
Meus colegas, a senhora que trabalha na cozinha e seu assistente, além
também dos rapazes que instalam os equipamentos de som, estão contentes de
poder continuar. Lara também, eu acho. Mas eu e Paty temos nossas dúvidas,
porque não sabemos até que ponto as coisas continuarão na mesma. Amamos aquele
bar. Demais. E por isso mesmo não sabemos se vamos conseguir aguentar ver as
coisas mudarem de um jeito que o descaracterize. Samuel pode ter seus defeitos,
mas ele construiu um lugar onde nos sentimos acolhidas, e a mudança nos deixa
com medo.
De qualquer forma, mesmo sem a certeza de que irei ficar, e ainda que não
esteja a fim de conhecer esse homem que vem perturbar meu refúgio – sim, agora,
pensando bem, refúgio é uma boa palavra para definir o que esse trabalho é para
mim –, não quero que ele tenha razões para achar que sou uma funcionária ruim.
— Ai, que droga, Paty! Dormi demais e me esqueci da vida! Acho que estou
na lua mesmo, como você disse. Quanto tempo eu tenho? – pergunto, olhando em
volta em busca de algum relógio.
— Hmmm, acho que uns vinte minutos. O cara já deveria ter chegado, mas
ligou há pouco dizendo que ia se atrasar uma meia hora. Viu? No fim das contas,
acho que vocês podem se dar bem! Nenhum dos dois respeita horário — diz ela,
dando uma risadinha provocadora para descontar o resto de sua irritação.
— Certo! Eu chego logo aí — respondo, ignorando a brincadeira e desligando
o telefone.
Preciso correr. O caminho de carro até o bar demora de 10 a 15 minutos, dependendo do
trânsito. Isso significa que tenho cerca de cinco minutos para pular dentro de
meu uniforme e me fazer minimamente apresentável para conhecer esse homem.
Claro que eu acabo demorando um pouco mais que isso, e quando chego no
hall vejo que o elevador está no último andar e vai demorar um tempão para
chegar no meu. Calculo mentalmente se indo pelas escadas chego mais rápido, mas
os saltos de minhas botas me fazem mudar de ideia rapidinho. Normalmente, eu
vou para o trabalho usando tênis e só os troco pelas botas quando chego lá, mas
hoje não há tempo, então decido esperar pelo elevador mesmo. Fico ali desejando
ter apenas uns minutinhos para parar e pensar em tudo o que me aconteceu hoje,
mas o elevador chega e me apresso para dentro dele, empurrando os pensamentos
para um canto de minha mente.
Isso é o que você ganha por
esquecer o despertador, dorminhoca!
“Pois é. O caso é que isso é tão atípico de mim!”
Bem, descobrir um quase-namorado-afilhado-quase-filho
também pode ser chamado de atípico.
Começo a rir, não apenas pelo absurdo da situação, mas pela naturalidade
bizarra com que mantenho diálogos com uma versão mais espontânea de mim mesma.
Aham, você é excêntrica. E daí?
Sim, excêntrica o suficiente para reencontrar minha zona de conforto em
meio a essa maluquice toda e sentir-me quase normal novamente, com as minhas
pequenas-grandes esquisitices. Essa constatação me liberta e esse senso de
libertação traz de volta os pensamentos que eu tentei guardar para mais tarde.
Bem, estava na cara que não ia funcionar. Não hoje. A minha técnica de
não pensar nas coisas que me aborrecem ou preocupam tem seus limites, no final
da contas. Principalmente quando tudo em mim recende ao prazer de ter olhado
nos olhos de meu menino, de tê-lo tido em meus braços mais uma vez, e é
impossível me concentrar em qualquer sentimento menor do que esse.
Percebo finalmente — enquanto traço meu caminho pelo estacionamento e
ponho meu carro em movimento, rumo ao que quer que me espere essa noite — que a
felicidade e o alívio que sinto ao pensar em Caio se sobrepõem a tudo o mais.
Culpa, confusão e medo são sentimentos pequenos e, de certa forma, mesquinhos
perto do que significa para mim saber que ele e Marina ficaram bem, que foram
felizes por todos esses anos e encontraram todo o amparo que eu gostaria de ter
podido dar a eles.
Mas é ao mesmo tempo doce e amargo saber que não fiz falta. Há uma
pontada de humanidade egoísta em mim que sempre se compraz quando me sinto
necessária. Aquela inebriante e inevitável sensação de se sentir amada quando
se é essencial a alguém. Talvez seja apenas uma ilusão, mas não importa
realmente. É só a minha mais estimada fraqueza. E o que pode ser mais intrínseco
à experiência humana do que nossas fragilidades?
De qualquer modo, esse é só mais um sentimento tolo que empalidece diante
do alívio de saber que tudo ficou bem para eles. E para mim também, de certa
forma. De algum jeito, as coisas sempre se acertam e talvez não seja imprudente
ter esperança. Talvez não seja demais acreditar que tudo pode dar certo.
E como que para confirmar isso, o trânsito hoje está mais rápido do que
de costume, e eu paro meu carro no estacionamento de funcionários do On the Rocks
um segundo antes de ver uma imensa moto negra se aproximar pelo retrovisor. O
ronco sutil de seu motor, elegante e discreto como meu velho Fusca jamais
seria, combina perfeitamente com os movimentos felinos do motorista que manobra
com precisão até estacionar bem ao meu lado.
Nem seria preciso ver sob o capacete negro para ter certeza de quem ele é,
também não preciso olhar em volta para ver se os carros de meus colegas estão
todos aqui. Nenhum de nós teria dinheiro para uma moto como aquela, e a naturalidade
com que ele chegou, como se fosse dono do lugar, me diz que é exatamente isso o
que ele é: o dono do lugar. Meu novo chefe.
Cogito por apenas um segundo ficar aqui dentro do carro até ele entrar,
só para não ter que enfrentá-lo aqui fora sozinha e, já no primeiro “olá”,
arriscar uma má impressão por estar tão atrasada. Mas tenho poucas esperanças
de que ele não tenha me visto, e menos ainda de que eu consiga entrar
sorrateiramente e fingir que já estava lá. Então acho que vou ter que sair e
parar de fingir que ele não está parado ali, com o corpo meio apoiado na moto,
provavelmente esperando para ver quem é a maluca que está usando o próprio
carro como sala de espera.
Sai logo, tonta! É só um cara e não
o palhaço do filme “It”. Além disso, não é como se ele também não estivesse
atrasado.
“Ah, tá. Valeu por me lembrar daquele filme apavorante. Agora me sinto
muito mais segura.”
Tanto faz. Só vá de uma vez. Eu já
disse que é só um cara.
Então eu vou. Respiro fundo e saio do carro. E não. Definitivamente não é
só um cara. Por Deus!
Acho que andei sonhando com este dia, porque é como se eu já tivesse
vivido isso muitas e muitas vezes. Minha pele toda arde com a lembrança dele,
de como ele ficou tatuado em mim e de como eu o imaginei infinitas vezes em todos
os lugares por onde tenho andado.
Ele está um pouco diferente da última vez. Os cabelos estão mais curtos e
cuidadosamente bagunçados e a sombra de uma barba por fazer lhe dá um ar
mais... realista, talvez. Mas lá está ele, o homem misterioso daquela noite. E
visto assim de perto, sob a luz desvanecida do crepúsculo, ele parece ainda
mais bonito.
Como da última vez, ele está vestido de preto, uma camiseta simples,
jaqueta de couro, jeans escuros e botas de motoqueiro. Ele parece descontraído
com os pés cruzados enquanto seu corpo se apoia graciosamente na moto, e há um
meio sorriso insistente em seus lábios. Mas há algo na maneira como ele me
analisa, com os olhos meio cerrados e a cabeça inclinada em dúvida, que faz seu
olhar parecer ligeiramente invasivo. Há algo doloroso na maneira como ele cruza
os braços de um jeito tenso em frente ao peito, como se estivesse se protegendo,
como se estivesse em guarda. De certa forma, isso o faz parecer um pouco mais
inatingível. E enquanto ele também me observa, eu me dou conta de que seus
olhos quase impenetráveis se parecem muito com os de um animal ferido.
Isso faz com que eu fique triste. Faz com que eu queira abraçá-lo.
Bem...
Minha mente maliciosa tenta me provocar, mas eu a calo a tempo.
Estou hipnotizada demais para perceber que o tempo não parou, mas acho
que o silêncio entre nós começa a ficar desconfortável para ele.
— Clara, não é mesmo? Eu me lembro de você. Como está? — pergunta ele,
dando um passo à frente e rompendo alguns centímetros da já pequena distância
entre nós.
Eu tinha pensado que só ficar olhando para ele já seria o suficiente, mas
quando sua voz calma toca meus ouvidos, desta vez livres do barulho do bar,
percebo que me enganei. Quando ele fala é como o calor de um abraço no inverno.
“Por Deus, fale comigo. Fale comigo para sempre.”
Bem, gênio, para que alguém fale
precisa haver um diálogo. Sabe como é... É tipo quando a outra pessoa diz
alguma coisa também ao invés de ficar só olhando com cara de besta.
É uma constatação impertinente, mas verdadeira, então forço as palavras
para fora de meu universo interior, porque percebo que não posso ficar aqui o
contemplando como se ele fosse um quadro na parede.
— Sim, é verdade. Nós nos conhecemos na outra noite, não é? — E aqui eu
devo ter soado beeem convincente ao
fingir que só estava me lembrando dele agora. Tipo um passarinho tentando
latir. — Tudo bem. E você?
— Melhor agora.
“Melhor agora. Sério? O que você está tentando fazer comigo? Porque se
for qualquer coisa que envolva me deixar morta de vergonha está funcionando.”
Acho que ele percebe meu embaraço, porque sorri. Não, ele ri. Ri do fato
de eu estar envergonhada. E eu me sinto um pouquinho magoada e muito, muito
tola. Mas, bem, se ele vai fazer isso comigo, se vai fazer eu me sentir como se
fosse uma menininha boba, pelo menos eu mereço saber seu nome.
— Você não me disse seu nome naquela noite. Acho que estou em desvantagem
aqui. Você já sabe mais de mim do que eu de você.
— Tem razão. Vamos resolver isso então. Eric Morgan – ele diz, estendendo
a mão para mim.
Eric. Eu gosto. Soa como... ele.
— Clara Felix – respondo, segurando a mão que ele me oferece. — Agora
estamos devidamente apresentados.
Ele sorri de novo, só um discreto sorriso de canto, e continua segurando
minha mão. Acho que o prazo socialmente aceito para cumprimentos já expirou há
tempos, mas nossas mãos continuam juntas e eu não quero que ele solte, mesmo
que esse simples contato deixe meu mundo de pernas para o ar.
— Vamos? — ele diz, finalmente quebrando o adorável silêncio em que permaneci
trancada por seu toque. — Acho que estamos muito atrasados.
Eric se vira em direção à entrada de funcionários e me puxa atrás de si,
nossos dedos ainda entrelaçados, mas eu não me movo. Ele se volta novamente
para mim e nossos olhos se encontram, seguindo juntos para nossas mãos unidas.
O que está acontecendo comigo, afinal? Por que me sinto como se ele
estivesse me puxando para o meio de um furacão? E a parte realmente confusa
para mim é que eu quero ir.
Ele olha para nossas mãos e depois para mim, e então me solta com a mesma
naturalidade com que me reteve. Continuo parada, desta vez me ressentindo pela
quebra do contato entre nós.
É estranho o que ele me faz sentir e não sei ainda como reagir a isso. É
como se eu estivesse ouvindo minha música preferida pela primeira vez e também pela
última, tudo ao mesmo tempo.
Eric deve achar que sou maluca. Céus, eu
acho que não estou bem da cabeça! Uma de suas sobrancelhas se arqueia
ligeiramente, como se ele estivesse tentando me ler. E, bem, aposto que não
consegue, porque, dada a minha confusão, qualquer coisa que meu rosto revele
deve estar “escrito” em farsi ou algum outro idioma insondável para mim.
— Você não vem? — ele pergunta.
“Sim, vou. Para onde?”
Xiiiiiiiii!
Claro que eu sei que ele está me chamando para entrar no bar, mas há
muito mais coisas acontecendo em minha cabeça e em meu coração, e há alguma
coisa em Eric que o faz parecer um outro tipo inteiramente diferente de
convite.
Abro minha boca para dizer que o bar ainda não está aberto e que ele não
pode entrar pela entrada dos funcionários, mas então me lembro da conclusão a
que tinha chegado antes, quando ele ainda não tinha me feito esquecer como é
mesmo que se respira.
— Oh! — digo, surpresa. — Você é o gringo da porteira fechada?
— O quê? — ele pergunta, dessa vez rindo abertamente, nada de seus meio
sorrisos misteriosos. — Sou meio irlandês, então devo ser o gringo. Mas não
estou muito certo do que você quer dizer com a outra parte.
— Desculpe — respondo, morrendo de vergonha de como isso soou esquisito
até para os meus padrões. — É uma expressão que minha amiga usa. Quer dizer que
comprou o bar disposto a manter tudo como está. Pelo menos foi o que nos
disseram. É verdade?
— Absolutamente. É um lugar interessante, não acha?
— Sim. — E acabou de ficar mais.
— Todos nós gostamos muito daqui.
— Ótimo. Então espero que todos
concordem em ficar.
Quando diz isso, Eric me olha incisivamente, enfatizando a palavra
“todos” de um jeito que me faz sentir como se ele estivesse se referindo
especialmente a mim.
— Não vejo por que não.
E estou respondendo pelos outros também, acho. Afinal, ele parece ser um
cara legal.
Legal. Sei. Como se fosse essa a
razão de você querer ficar aqui.
— Acho que isso significa que posso contar com você no staff?
— Claro! — digo, tentando disfarçar a empolgação.
— Bom — ele responde simplesmente.
Ok. “Bom” é bom. Eu acho.
— Então acho que é hora de você conhecer o resto da equipe — lembro a ele,
porque quanto mais tempo eu fico aqui fora ao seu lado, mais difícil é imaginar
que dentro em pouco ele não será mais meu homem misterioso, e sim meu novo
chefe. Melhor fazer isso de uma vez.
Eric assente uma vez, sua expressão cuidadosamente neutra, e encaminha-se
para a porta novamente. Eu já tinha começado a pensar no quão estranho seria eu
chegar junto com ele, na cara de ódio de Lara e no interrogatório infinito de
Paty, quando ele se interrompe depois de destrancar a porta.
— Diga-me uma coisa, Luz — ele pergunta sem olhar para mim, — você
realmente não se lembrava de nosso último encontro?
E só então ele me olha, o irresistível sorriso de lado combinando com a
expressão maldosa em seu rosto. Começo a temer e a amar esse sorriso quase na
mesma medida, apenas pelo efeito que causa em mim. Felizmente, ele não espera
pela resposta, por certo se apiedando da minha expressão torturada que reflete
a sua de torturador. Ele abre a porta e se afasta, fazendo sinal para que eu
passe.
— Pode ir na frente. Eu realmente não me importo de deixá-los esperando
mais um pouco. Já ganhei o dia, de qualquer forma.
Não paro para pensar em como ele sabe que eu estou sem jeito de entrarmos
juntos. Também não me pergunto o que ele quis dizer com já ter ganhado o dia.
Apenas obedeço e entro rápido pela porta que ele segura para mim, meu coração
se acelerando quando passo em frente a ele e capto seu cheiro, uma mistura de
calor e banho tomado. Percebo neste instante, com um tipo de certeza tardia,
mas inabalável, que nunca conseguirei ser indiferente à presença dele como
sempre fui à de outros homens.
Tenho medo disso. Gosto disso.
O corredor de entrada está um pouco escuro, provavelmente porque quando
os outros chegaram ainda podiam contar com a luz do dia, mas nem preciso
acionar o interruptor, conheço bem meus passos. Eu podia andar pelo bar de olhos
fechados se quisesse. Acendo a luz apenas porque sei que Eric virá logo depois
e não conhece o caminho como eu conheço.
Pergunto-me se conseguiria andar por outros caminhos de olhos fechados
também. Eric é um caminho escuro. Um irresistível abismo. E eu não sei como
seria pular sem saber sequer onde eu atingiria o fundo. Ou se o fundo existe.
No começo de minha vida, quando eu ainda era muito jovem e minha mãe
ainda estava muito confusa quanto ao nosso futuro, Alberto nos disse uma coisa
que acabou virando uma espécie de mantra para nós três, uma daquelas frases que
você diz fora de contexto, mas que a outra pessoa entende porque evoca milhares
de conversas anteriores. Naquele dia, ele disse: “Bem, Estrela Clara, às vezes
é preciso dar um salto de fé.”
Então, sim, acho que posso fechar meus olhos e pular.