Capítulo 23 – Deixe-me
entrar
Nobody
knows it but you've got a secret smile
And
you use it only for me
So
use it and prove it
Remove
this whirling sadness
I'm
losing, I'm bluesing
But
you can save me from madness
(…)
So
save me I'm waiting
I'm
needing, hear me pleading
And
soothe me, improve me
I'm
grieving, I'm barely believing now, now
(Secret
Smile – Semisonic)
Sempre
achei que a melhor parte de qualquer dia é poder ver alguém sorrir. Em especial
quando sou, de alguma forma, a razão desse sorriso. É um dos meus muitos
prazeres secretos, ligeiramente egoístas e vaidosos.
Eric está sorrindo pra mim agora e
sinto como se as cores do mundo se despregassem de mim, voando em direção ao
infinito, e depois voltassem. Mais bonitas.
Estamos jantando juntos em um
restaurante japonês, o que deveria incluir, além de comer, conversarmos
enquanto o fazemos, mas já não falamos nada
há vários minutos. Apenas estamos aqui, sentados de frente um para o outro, tão
presos em nosso próprio mundo que é como se conhecêssemos um segredo apenas
nosso.
É estranho o quanto eu acho isso
confortável.
Há algo de violento na necessidade
que as pessoas sentem de enxotar o silêncio e preencher as pausas de quietude
com palavras supérfluas, impensadas. É como se não se sentissem seguras sem
isso, como se o íntimo de suas mentes pudesse ser invadido e precisasse ser
protegido com todo esse ruído branco. E essa é uma perspectiva quase brutal
para mim, pensar que o contato entre as pessoas possa se reduzir a apenas isso.
Palavras são coisas lindas, nascidas
da necessidade de conexão, forjadas no calor do amor. As pessoas as usam para
machucar, para atacar, defender e manipular, mas não foi para isso que elas
nasceram. Elas foram feitas para promover vínculos e entendimento. Não deviam
ser usadas para afogar o silêncio. Especialmente quando ele também é tão
bonito.
Sei que sou uma exceção, mas não
sinto essa necessidade de conversas para passar o tempo. Gosto de ficar quieta
ao lado dos outros. É mais fácil escutar o que não estão dizendo e, na maioria
das vezes, é realmente isso que elas precisam que alguém escute, mesmo que
tentem tão arduamente proteger.
Quando estou com Eric, sinto a
liberdade e o conforto do silêncio. Não tenho medo do que ele possa ler em mim
quando me analisa com seu sorriso cheio de conclusões misteriosas. Nem temo o
que se esconde sob as toneladas de águas profundas do oceano de seus olhos.
Eu anseio por isso, na verdade. E
gostaria que ele também não temesse o mergulho, embora eu saiba que ainda é
muito cedo para ele. Há um longo caminho para nós, e eu nem sei o quanto ele
está disposto a segui-lo.
No entanto, agora ele sorri. E isso
me basta. Não é o sorriso aberto e espontâneo que eu desejo ver um dia. Não é
uma risada, tampouco. É apenas seu sorriso traiçoeiro e malicioso, aquele que
temo e amo na mesma proporção.
— No que você está pensando,
assassina de sushis? — É sempre ele quem interrompe nossos silêncios, e eu sou
bruscamente puxada de meus pensamentos.
Em minha cabeça, há sempre muitas
coisas acontecendo. Barulho e silêncio que se harmonizam e se completam. Então
é difícil explicar a ele o que estou pensando. Não é algo que caiba nas poucas
palavras de que disponho quando a presença dele transforma tudo em canção.
É isso o que ele é para mim. Música.
E tudo o que as palavras não podem dizer.
— Estou pensando que você devia
sorrir mais. Eu gosto disso — consigo articular, porque acho que essa era a
nota mais alta da sinfonia. O quanto gosto do sorriso dele.
Ele parece desarmado por um
instante, pego de surpresa pelas minhas palavras, e o sorriso foge rápida e
timidamente de seu rosto. Ele desvia os olhos de mim, mas não é o tipo de
pessoa que se deixa tomar facilmente por emoções como essas. Não é surpresa
quando ele veste de volta sua expressão lasciva, escondendo-se atrás dela.
— Talvez você não gostasse tanto do
meu sorriso se soubesse o que estou pensando por trás dele.
E lá vai Eric usar sua técnica
defletora preferida, a de me desconcertar. Estou meio perdida na imagem de
lábios se encontrando e estou olhando para todos os lados menos para ele, porque
essas coisas que ele me diz me fazem... me fazem...
Ahn...
Acho que a palavra que você está procurando é: Gulp!
“Isso
não é bem uma palavra.”
A
menos que você tenha uma ideia melhor para definir seu ar sendo roubado, agora
é. Gulp!
— Bem, não me importo com o motivo.
Apenas gosto de ver você sorrir.
Boa
recuperação, Srta. Tímida.
— Você me faz sorrir. Só você — ele diz simplesmente.
Ok,
tem uma palavra pra isso também, mas não estou encontrando.
Então
eu sou meio que deixada lá, sem ter o que dizer, porque aquela outra parte da
minha mente, aquela que sabe lidar com o frio em minha barriga e com o
congelamento de meus neurônios, está temporariamente ocupada vomitando um
arco-íris.
Não é que eu não saiba lidar com um
homem demonstrando interesse por mim. Sou inexperiente, mas não sou idiota.
Tampouco nasci ontem, portanto, essa não é a primeira vez que algo assim
acontece. Não tenho tão pouca prática em ignorar galanteios ou me fingir de
boba. É só que essa é a primeira vez que eu quero
ouvir as coisas, ao invés de ignorá-las. É a primeira vez que desejo, mais que
tudo no mundo, que elas sejam verdadeiras. Eu quero que ele me deseje, apesar
de todo medo que sinto disso. E quero que ele me ame.
É isso. A verdade cai sobre mim como
um piano que estava pairando a poucos centímetros da minha cabeça. É claro que
eu sabia disso. Eu soube desde o momento em que o vi. É estúpido, irresponsável
e impulsivo, mas eu me apaixonei à primeira vista. Eu não sei nada sobre ele, nada, e o conheço por um tempo ridiculamente
pequeno. Tudo que é racional em mim protesta quanto à falta de lógica nisso,
mas eu o amo. Percebê-lo foi como subitamente notar o desenho de uma
constelação onde antes eu só enxergava um bando de estrelas. Sempre esteve ali,
existiria mesmo que eu nunca notasse, e continuará existindo muito depois do
fim.
Eu o amo e já não me basta apenas
isso, como em minha ingenuidade cheguei a pensar que bastaria. Eu quero que ele
me ame também, porque sinto que posso enfrentar todas as minhas dúvidas se
tiver essa certeza
Meu Deus. Onde estou com a cabeça? O
que estou fazendo?
Não é como se eu pudesse perguntar a
ele o que sente, é? Eu nem sei se ele
sente alguma coisa, para começar. Quer dizer, ele certamente não é indiferente
a mim, mas, até onde eu sei, pode estar apenas querendo se divertir. E eu não
posso ser o divertimento do homem que amo. Não esse tipo de divertimento. Não quando cada segundo ao lado dele
significa tanto para mim.
— Eric, olha... Eu... Eu não sei o
que você está esperando, mas... Eu não sou esse tipo de pessoa...
— Opa, calma! — ele rebate, uma
expressão meio ultrajada no rosto e as mãos ligeiramente levantadas em um gesto
de surpresa e rendição. — Espere aí, de onde saiu isso?
Oh,
céus! Você não achou de novo que ele estava acompanhando toda essa conversa na
sua cabeça, não é? Porque você faz isso às vezes.
O pior é que é verdade. Eu fiquei
tão imersa nessas constatações, tão encantada com o conforto do silêncio entre
nós, que acabei me esquecendo de consultar a outra parte da “conversa”.
— É que eu gosto muito da sua
companhia. E o que você falou sobre se sentir em paz comigo, sobre eu te fazer
sorrir... É assim que eu me sinto com você, essas coisas são verdade para mim
e...
— Você está insinuando que não são
verdade para mim? — ele me interrompe parecendo irritado, do jeito que costuma
ficar antes de se isolar em sua fortaleza de frieza. — Acha que tenho o hábito
de ficar atrás de garçonetes metidas a misteriosas que sequer aceitam me
beijar?
Tudo
bem, você podia dormir sem essa, porque bem que doeu. Será que dá pra você ir
direto ao ponto? Ou pelo menos passar perto do ponto, se possível?
E eis que eu chego a um nível nunca
antes visitado de autoboicote: consegui deixar Eric irritado, eu mesma nada
feliz e aquela outra parte de mim ainda mais sardônica.
Talvez eu devesse parar de chamá-la
de cínica, malcriada e racional e inventar um nome para ela. Um vocativo que
pudesse vir acompanhado da pergunta “De que lado você está, afinal?”
E
quando você fizer isso não precisará mais de mim, porque ficou louca e cínica
de vez, então não vai mais precisar disfarçar com essa bobagem de amiga
imaginária.
“Gah!!!
Cale a boca! Eu tenho um mal-entendido para resolver aqui.”
Então eu respiro fundo e me foco no
diálogo real em vez do imaginário. Mas acho que vou tentar seguir o que ela
falou: ir direto ao ponto.
— Não, é claro que não. Não foi isso
que eu quis dizer. Não estou tentando me fazer de difícil e nem dizendo que
você mentiu. É só que eu gosto muito de você e isso é novo para mim. Você não
faz ideia do quanto. E eu sei que é cedo pra dizer, e que estou me arriscando a
você achar que eu sou uma louca vendo coisas onde não existem, mas eu queria
saber em que página você está desse livro.
Tudo isso sai num jorro de coragem,
de uma vez, sem reticências, e agora estou quase hiperventilando, porque estou
imaginando como essas palavras estão soando malucas e precipitadas aos ouvidos
dele. Tento conter minha ansiedade e parecer centrada, algo em que devo estar
falhando miseravelmente. No entanto, vale a pena o esforço de tentar, porque
ele não precisa que eu acentue meu discurso estranho com uma expressão de louca
no rosto. Ele já deve estar analisando o ambiente para rotas de fuga sem isso.
Depois de alguns segundos, ele ainda
não fugiu, o que eu acho que é uma coisa boa, e sua irritação parece ter sido
substituída por ponderação, o que eu acho que é uma coisa maravilhosa. Ele
aperta os olhos me observando e posso perceber que ele está analisando tudo:
meu rosto, os instantes anteriores, cada palavra que eu disse. Sinto-me como um
inseto visto por uma lente de aumento, porém, ao contrário do que eu esperava,
não estou com medo da resposta dele, eu realmente quero saber, e gosto do fato
de ele estar pensando cuidadosamente no que vai dizer a seguir.
— Gostar de alguém não é um conceito
familiar para mim, Luz.
E aqui está ele de novo, com seu
jeito de responder sem responder, a fala pausada e os olhos perdidos de quem
está se esforçando para escolher apenas um dos caminhos que se abrem em sua
mente. Ele sempre parece assim quando fala sério. Sempre perdido em meio às
milhares de coisas que acontecem ao mesmo tempo em sua cabeça. Barulho e
silêncio que se harmonizam de uma forma que só ele entende.
— Eu não gosto disso — ele continua.
— Não gosto de ser confrontado com coisas que não pretendia enfrentar. E não
gosto que você esteja me forçando a admitir isso.
Isso está começando a se parecer
demais com um discurso que precede uma despedida brusca, e meus olhos já estão
começando a arder. Um constrangimento brutal começa a me pinicar os ossos,
ameaçando sair em forma de palavras desconexas, quando ele retoma sua fala.
Assim, como se não tivesse parado.
— No entanto, é isso que você faz,
não é? Você consegue o que quer. Então, embora eu também não saiba onde vamos
chegar com isso, não menti pra você, Clara. Eu me sinto bem como nunca achei
possível quando estou com você. Você me faz querer me acostumar a essa sensação
e eu acho isso perigoso demais pra nós dois, porque eu não sou homem para você.
Mas seria ridículo se eu continuasse dizendo a mim mesmo que não sinto nada.
Solto
a respiração que nem percebi que estava prendendo. Eric tem esse jeito de dizer
as coisas de uma forma que parece que ele não disse nada, quando, na verdade,
disse bem mais do que havia sido perguntado. E, a menos que eu tenha
enlouquecido de vez, acho que ele acabou de admitir que sente alguma coisa por
mim também.
Quero permanecer focada e conversar
sobre isso como uma pessoa normal, ou quase — mesmo que fosse apenas quase —,
mas não consigo evitar o sorriso que começa a se espalhar em mim, vestindo meu
rosto, transformando meus olhos em vitrines tão óbvias de minha alegria, que me
sinto quase vulnerável demais.
Algo em Eric também muda quando
reajo dessa maneira. Subitamente, o peso de sua seriedade se foi e ele parece
bem-humorado novamente.
— Eu tenho uma pergunta — ele começa,
e eu sei, pelo jeito como me olha, que ele vai vir com mais uma de suas frases
atrevidas. — Existe alguma chance de esta conversa anular a anterior? Você
sabe, sobre eu precisar esperar você entender o que está sentindo. Porque eu
acho que nós meio que já estabelecemos isso.
— Bom, eu... ahn... — Acho que ele
tem razão, mas... mas... Céus! Eu não faço ideia do que vem agora. Não é como
se tudo isso fizesse algum sentido pra mim, afinal. — Acho que não pensei sobre
isso. Esta conversa saiu meio de repente, quer dizer, não era nem para estarmos
aqui hoje, eu... Até ontem, eu nem imaginava que você...
— Tudo bem, tudo bem! — Eric ri, obviamente
se divertindo com minha falta de jeito. — Só achei que não custava perguntar.
Eu tento rir também, mas estou
constrangida demais para isso e o que sai é um riso nervoso e meio estranho.
Então Eric fica sério de novo e segura minha mão, apertando de leve meus dedos.
Ele não me encara quando fala, apenas olha para nossas mãos juntas, o que, na
verdade, acaba tornando tudo um pouco mais fácil.
— Você é realmente especial, Luz. Eu
não a culpo por pensar bem no que está fazendo, porque, mais cedo ou mais
tarde, você vai acreditar quando eu digo que não sou bom o bastante pra você.
Eu só não consigo evitar estar perto quando você deseja que eu esteja.
— Por quê? — pergunto, levantando
seu rosto com os dedos para que ele olhe para mim. — Por que você quer estar
junto de mim, sabe que eu preciso disso, mas não consegue entender que eu
nunca, nunca serei capaz de achar que
você não é bom o bastante?
Um riso amargo escapa de seus lábios
e ele meneia a cabeça devagar, num misto de negação e incredulidade. É então
que finalmente percebo. Sua frieza, suas palavras tantas vezes duras e sempre
dúbias, o jeito como ele afasta as pessoas, se escondendo atrás dessa pose de
quem não precisa de ninguém. O jeito como ele tenta me afastar cada vez que
chego um pouco mais perto... Todos esses avisos de que não é bom o bastante...
Ele realmente acredita nisso.
Simplesmente não consegue enxergar o que vejo. Não consegue ouvir a canção que
se esconde em seus olhos, em seu coração que canta para o meu. Ele parece odiar
a si mesmo e parte meu coração finalmente perceber essa dor.
Como isso é possível? Quem o
machucou tanto que cegou seus olhos para a luz em sua própria alma? Como ele
não é capaz de ouvir aquilo que é tão alto para mim, apesar da confusão dos
sons? Do meu desejo? Do meu amor? Da minha própria humanidade constantemente
equivocada?
Apenas não há equívoco nenhum aqui.
Posso estar confusa sobre muitas coisas, mas eu sei de outras tantas. E confio
nos sopros de minha intuição.
Ele é especial. Ele é maravilhoso. E
agora eu sei que sou eu que devo mostrar isso a ele.
— Você pode me deixar entrar, Eric?
Pode me deixar te mostrar quem você é através de meus olhos?
— Você não sabe quem eu sou, Clara.
E não vai querer saber também. Só está sendo ingênua. Você é apenas doce
demais.
— Você diz que eu sou especial, mas
isso é algo que você enxerga, não eu. Para mim, eu sou todos os meus defeitos,
todas as minhas fraquezas, tanto quanto o que me faz forte. Sou boa e ruim
também. Às vezes um pouquinho mais ruim do que boa, em outras, sou as duas
coisas ao mesmo tempo. Mas eu quero acreditar que na maior parte das vezes eu
sou o que você vê. Você entende o quanto isso me faz bem?
— Mas você deve acreditar. Você pode. É diferente.
— Por favor, Eric. Deixe-me
retribuir seu olhar. Deixe-me entrar. Por favor. Seria apenas gentil de sua
parte.
— Você vai tentar de qualquer forma,
não vai? Ninguém pode impedi-la de ser você mesma.
— Não realmente — respondo. — Então,
sim, eu vou tentar de qualquer maneira.
— Então talvez eu deva pensar com
clareza por nós dois. — Ele tenta puxar a mão da minha e se levantar quando diz
isso, mas eu não permito. Seguro-a firmemente numa espécie de ato reflexo,
porque a mera possibilidade de que ele vá embora neste momento me parte a alma
em duas.
— Fique.
Não estou implorando, sequer é um
pedido. É mais como uma força inarticulada que sai de dentro de mim e projeta
minha vontade numa única palavra. É tão intenso que um ligeiro tremor abala meu
corpo quando o som daquele apelo escapa por meus lábios. Eu simplesmente
preciso que ele fique.
Eric para no meio do impulso de se
levantar e seu corpo pousa de novo na cadeira, uma de suas mãos ainda entre as
minhas e o semblante preocupado.
— Tudo bem — ele diz simplesmente, e
ficamos alguns segundos parados até que ele sorri, levando minhas mãos até os
lábios e me olhando por cima de nossos dedos entrelaçados. — Mas só pra você
saber, eu só ia chamar o garçom. Posso pensar com clareza amanhã.
Explodo numa risada aliviada e meio
sem graça. Se for verdade, acabei de fazer uma cena totalmente desnecessária.
Outra. Mas estamos rindo e eu acabo de perceber que é uma expressão nova a que
ele tem no rosto. E é para mim. Inteiramente para mim.
— Você está rindo. — Pareço uma boba
dizendo isso, mas meu filtro está de licença, aparentemente. Provavelmente de
luto por meu bom senso.
— Bem, você é engraçada.
— Acho que sou — respondo,
saboreando a palavra que em outras circunstâncias eu tomaria como código para
“ridícula”, mas não hoje, porque ele não me faz sentir assim. — Disponha. Se
minha recompensa for essa, estamos em cartaz cinco dias por semana no On The
Rocks.
— Hum, não sei, conheço o dono de lá
e soube que ele não está contratando. É um sujeito meio antipático, sabe? Mas
se você quiser, tem outro cara que não ligaria de te recompensar por coisa
alguma.
— Oh, você poderia me apresentar a
esse cara, então?
— Prontamente, senhorita. Mas eu
meio que preciso dessa mão para a piada funcionar — Eric brinca, apontando com
o queixo para a mão que ainda seguro como se ele fosse me escapar. Dou uma
risadinha boba e solto a mão dele, me endireitando na cadeira. — Eric Morgan,
como só você tem direito a ver. É um prazer conhecê-la, Srta. Luz na Escuridão.
Ele estende a mão para mim, como se
estivéssemos mesmo nos apresentando, mas eu não a pego. Apenas olho para ele,
sem saber como dizer que isso não é uma piada, e sim a coisa mais bonita que já
ouvi.
Aquele sorriso novo de agora há
pouco brinca novamente em seu rosto e, quando não reajo, ele olha para mim também,
me convidando a “entrar”. Aceito o desafio e seguro a mão que ele me oferece,
porque Eric precisa saber que eu não vou partir se ele me deixar ficar e sinto
como se eu estivesse prometendo isso com esse gesto.
Nossos olhos se encontram e nos
trancamos um no outro, selando nosso pacto.
******
— Tudo bem, me diga de novo como
você me convenceu a isso — resmunga Eric, mal-humorado.
“Isso” é um cachorro pequeno e
magricela com que nos deparamos na saída do restaurante. Há um pelo branco
malhado de marrom por baixo do barro sob o qual ele está escondido, acho. Mas
neste exato momento, ele é só um monte de ossinhos frágeis coberto por uma
sujeira fedorenta que eu embrulhei na jaqueta e estou carregando para dentro do
carro de Eric.
— Eu pedi “por favor” — respondo,
rindo da cara que ele faz, os lindos olhos azuis estreitando-se num misto de
raiva e indignação.
— Sim, você pediu. E eu estou
desenvolvendo o péssimo hábito de atender a seus pedidos absurdos — ele me
responde com um sorrisinho provocador.
E é por causa desse sorriso que
percebo que ele não está falando sério. Não totalmente. Pelo menos é disso que
tento me convencer enquanto a última palavra rola em minha cabeça.
Absurdos.
Lembro-me da última coisa que pedi a
ele, algumas horas atrás, quando estávamos juntos no meu apartamento.
“Você pode me esperar? Pode esperar
que eu entenda o que está acontecendo comigo?”
Eu sei como isso soa. Sei que cada
palavra transparece minha extrema inexperiência e me deixa incrivelmente
vulnerável. E também sei que Eric nunca deve ter ouvido um pedido como esse e
que, especialmente depois da noite de hoje, parece um apelo estranhamente fora
de lugar. Mas o que posso dizer?
Este não é um relacionamento normal.
Eu não sou uma pessoa normal. Há muitas coisas a serem ditas, pensadas e
vividas, então é melhor tentar ir devagar. E neste momento eu tenho esta
vidinha em minhas mãos precisando de minha ajuda.
— Você não queria que eu o tivesse
deixado na chuva, tremendo de frio como estava, queria?
Eric não responde. Apenas olha para
mim, claramente pensando em alguma coisa espertinha para me dizer, mas não
encontra. Em vez disso, ele apenas abre a porta do carro e bufa, fazendo uma
careta de puro desgosto quando coloco o cão no tapete de seu carro
imaculadamente limpo.
Ele tem um desses SUVs gigantescos e
desajeitados, bem diferente da moto elegante e silenciosa que costuma usar
quando não está chovendo. Mas há coisas em comum o suficiente entre os dois
veículos: ambos são potentes, pretos e absurdamente caros, pelo menos para os
meus padrões. Acho que dinheiro não é problema para ele, ao que parece.
— Eu compro uma nova pra você, mas
mantenha-o enrolado na jaqueta, ok? Pelo menos disfarça um pouco o mau cheiro.
— Tudo bem, ele está com frio mesmo.
Coitadinho!
O cachorrinho, que não é um filhote,
mas é pequeno e parece ser novinho, se aconchega em meus pés enquanto Eric nos
leva para casa em total silêncio. Quando estávamos saindo do restaurante,
paramos um pouco para nos proteger da chuva sob a marquise da entrada e eu o
vi.
Fechei meus olhos quando ele começou
a correr em direção à calçada e um carro freou bruscamente para não
atropelá-lo. Em seguida, ele veio diretamente se encostar em minha perna, todo
molhado e trêmulo de frio. Eu me abaixei e afaguei sua cabeça. Ele olhou para
mim, abanou o rabo e deixou claro que não sairia dali.
E isso basicamente resume a
história, porque acho que não preciso de outra razão para resolver que, daquele
momento em diante, ele seria meu cachorro. De quando em quando, um deles me
escolhe, e dessa vez foi esse.
— Você tem certeza de que vai ficar
com esse bicho? — Eric pergunta quando estacionamos em frente ao meu prédio. —
Quer dizer, eu sei que você ficou com pena dele, mas tenho certeza de que deve
ter algum lugar que o recolha, não?
Ele não faz ideia. Deve ser uma
daquelas pessoas que nunca teve cachorro na vida, e que acha que cachorrinhos
de rua sujos e fedorentos têm algum lar possível em algum lugar onde eles não
incomodem a sociedade.
— Não, Eric. Não tem outro lugar pra
onde ele possa ir — respondo tentando ter paciência. — E ele me escolheu,
precisa de mim. Não posso simplesmente virar as costas.
— Por que não?
Olho para ele surpresa, constatando
pela sua expressão e tom de voz que ele não está sendo cínico, é uma pergunta
genuína. Cada vez que tenho um vislumbre do que se passa dentro dele de
verdade, fico mais surpresa e entristecida, porque esse é um homem mais infeliz
e ferido do que eu podia imaginar. Subitamente, ele parece tão frágil que tudo
o que quero fazer é abraçá-lo.
— Porque quando o amor nos escolhe
não se pode dar as costas a ele, Eric. Não farei isso em nenhuma circunstância.
Quero que ele saiba que essas
palavras são para ele. São minha profissão de fé de que quero ajudá-lo, de que
estarei aqui para ele. Mas não é o tipo de coisa em que ele acreditaria se eu
simplesmente dissesse. Preciso de tempo para que ele perceba através de meus
atos.
Ele franze as sobrancelhas e olha
para frente, encarando a rua através do parabrisa. Depois volta ao seu costumeiro
ar blasé, tentando fingir que minhas palavras não significaram grande coisa, e
olha para o cachorro aos meus pés distraidamente.
— E que nome você vai dar a ele?
— Hum, não sei. Alguma ideia?
— Sei lá. Talvez alguma coisa com
que ele se pareça... — Ele fecha um dos olhos e faz uma careta. — Ele é bem
feio, na verdade.
— Não diga isso! — bronqueio de
forma brincalhona, enquanto tapo as orelhas do cachorro.
— Clara! Nem você pode ignorar que
esse coitado é puro osso, sujeira e pelos falhados.
— Eu não vejo essas coisas. Só vejo
esses olhos. São puros, leais e cheios de amor, apenas esperando alguém com
quem dividi-lo. E se você der a ele um pouco de si, ele vai amá-lo mesmo que
você não mereça. Quanto ao resto, não há nada realmente mais importante que
isso, e não há nada que não possa ser consertado.
— Carinha de sorte — ele diz,
pensativo. — Quem dera fosse tão simples assim com as pessoas.
— Poderia ser. Se as pessoas
realmente tentassem. Se elas dessem uma chance a si mesmas e umas às outras.
Eric olha para mim como se eu fosse
uma aberração ingênua, mas eu não sou. Sei que as coisas não são simples, mas
também sei que poderiam ser. Realmente acredito nisso. Acredito na
possibilidade de mudança e perseguir isso é a essência do que eu sou. Então
como eu poderia não ter esperanças?
— Você realmente acha que pode
consertar tudo? — ele pergunta com uma expressão de desdém.
— Não. Eu só sei que vou sempre
tentar.
O cachorrinho continua dormindo
encolhido sob minha jaqueta — acho que ele não esteve minimamente confortável
por muito tempo, então agora conseguiu relaxar — e eu olho para ele por um
instante, tentando desviar minha atenção do sentimento de amargor e
desesperança que toma conta de Eric. Ele está sofrendo, lutando contra uma
ideia que pode fazer tudo ser diferente, apenas porque deve sempre ter
acreditado no oposto.
— Mesmo quando o que é feio não pode
ser visto com os olhos? Você acha que as coisas podem ser consertadas mesmo
quando já nasceram sujas e quebradas?
O significado profundo dessas
palavras rasga um buraco dentro de mim. Ele está falando de si mesmo. Essa é a
maneira como ele se vê. E qualquer que seja a razão para isso é tão dolorosa
quanto irreal. O que quer que ele veja, eu sei que pode ser visto de forma
diferente, porque, embora esteja quebrado, já foi perfeito. E ainda é perfeito
para mim.
— Talvez seja apenas a maneira de
vê-las, Eric. Nada nasce sujo e quebrado. Nada nem ninguém. E se você me
escolher, eu não vou te dar as costas.
Ele parece com raiva por um instante,
sua luta interior confundindo suas reações, mas, pela primeira vez, ele está
fragilizado o bastante para que eu sinta um pouco de sua energia. Ele não está
com raiva de mim. Está confuso e triste. E um pouco esperançoso também.
Ele apoia a testa sobre o volante
por um segundo e o esmurra de leve quando se levanta novamente. Então ele sai
do carro e o contorna correndo, abrindo a porta do passageiro e me puxando para
fora com as mãos em volta de minha cintura. Ele me abraça, prensando meu corpo
contra o carro, e uma de suas mãos sobe pela minha nuca, os dedos
entrelaçando-se em meus cabelos.
— Me desculpe, Luz, mas se você não
passar de um sonho bom, pelo menos desta vez eu tenho que fazer isso.
Então os lábios dele se encostam nos
meus e não há sequer tempo para que meu coração possa ameaçar abrir um buraco
em meu peito. Talvez ele tenha parado, deixando o resto de meu corpo dormente,
porque não sinto nada a não ser a boca de Eric abraçando a minha, seus lábios
úmidos deslizando leve e gentilmente enquanto meus olhos se fecham por um
instante que não poderia nunca ser longo o suficiente. No entanto, logo os abro
de novo, porque quero vê-lo. Quero olhar para ele e para seus olhos fechados
com firmeza, antes de eles se abrirem para mim quando Eric morde de leve meu
lábio inferior.
Deve haver no mundo um momento mais
lindo que esse, mas eu não preciso conhecê-lo. Posso viver para sempre se a
única lembrança que eu tiver for a desses olhos.
— Blue — eu digo sem pensar.
— O quê? — Eric pergunta numa risada
baixa que sai numa pequena lufada de ar.
— O cachorro. Vou chamá-lo de Blue.
— Porque você acha que ele é triste[1]? —
ele pergunta num tom divertido, o rosto distante do meu apenas o suficiente
para que nossos lábios possam se mover sem se tocar, o que eu nem acho mais que
seja uma coisa boa.
— Não, porque eu gosto da cor.
Eric ri, depois me abraça forte e me
dá um beijo condescendente no topo da cabeça.
— Tudo bem, Luz. Podemos voltar a
pensar com clareza amanhã.
Ficamos ali abraçados por um tempo,
depois ele me acompanha e a Blue até a entrada e vai embora. O sorriso novo, o
meu sorriso, brinca nos lábios dele o tempo inteiro. E depois mais tarde, nos
meus sonhos.
[1] Em
inglês, a palavra “blue” pode designar tanto a cor azul, quanto o sentimento de
melancolia ou tristeza.