sábado, 30 de maio de 2015

ELS Cap23

Capítulo 23 – Deixe-me entrar

Nobody knows it but you've got a secret smile
And you use it only for me

So use it and prove it
Remove this whirling sadness
I'm losing, I'm bluesing
But you can save me from madness

(…)

So save me I'm waiting
I'm needing, hear me pleading
And soothe me, improve me
I'm grieving, I'm barely believing now, now

(Secret Smile – Semisonic)

            Sempre achei que a melhor parte de qualquer dia é poder ver alguém sorrir. Em especial quando sou, de alguma forma, a razão desse sorriso. É um dos meus muitos prazeres secretos, ligeiramente egoístas e vaidosos.
            Eric está sorrindo pra mim agora e sinto como se as cores do mundo se despregassem de mim, voando em direção ao infinito, e depois voltassem. Mais bonitas.
            Estamos jantando juntos em um restaurante japonês, o que deveria incluir, além de comer, conversarmos enquanto o fazemos, mas já não falamos      nada há vários minutos. Apenas estamos aqui, sentados de frente um para o outro, tão presos em nosso próprio mundo que é como se conhecêssemos um segredo apenas nosso.
            É estranho o quanto eu acho isso confortável.
            Há algo de violento na necessidade que as pessoas sentem de enxotar o silêncio e preencher as pausas de quietude com palavras supérfluas, impensadas. É como se não se sentissem seguras sem isso, como se o íntimo de suas mentes pudesse ser invadido e precisasse ser protegido com todo esse ruído branco. E essa é uma perspectiva quase brutal para mim, pensar que o contato entre as pessoas possa se reduzir a apenas isso.
            Palavras são coisas lindas, nascidas da necessidade de conexão, forjadas no calor do amor. As pessoas as usam para machucar, para atacar, defender e manipular, mas não foi para isso que elas nasceram. Elas foram feitas para promover vínculos e entendimento. Não deviam ser usadas para afogar o silêncio. Especialmente quando ele também é tão bonito.
            Sei que sou uma exceção, mas não sinto essa necessidade de conversas para passar o tempo. Gosto de ficar quieta ao lado dos outros. É mais fácil escutar o que não estão dizendo e, na maioria das vezes, é realmente isso que elas precisam que alguém escute, mesmo que tentem tão arduamente proteger.
            Quando estou com Eric, sinto a liberdade e o conforto do silêncio. Não tenho medo do que ele possa ler em mim quando me analisa com seu sorriso cheio de conclusões misteriosas. Nem temo o que se esconde sob as toneladas de águas profundas do oceano de seus olhos.
            Eu anseio por isso, na verdade. E gostaria que ele também não temesse o mergulho, embora eu saiba que ainda é muito cedo para ele. Há um longo caminho para nós, e eu nem sei o quanto ele está disposto a segui-lo.
            No entanto, agora ele sorri. E isso me basta. Não é o sorriso aberto e espontâneo que eu desejo ver um dia. Não é uma risada, tampouco. É apenas seu sorriso traiçoeiro e malicioso, aquele que temo e amo na mesma proporção.
            — No que você está pensando, assassina de sushis? — É sempre ele quem interrompe nossos silêncios, e eu sou bruscamente puxada de meus pensamentos.
            Em minha cabeça, há sempre muitas coisas acontecendo. Barulho e silêncio que se harmonizam e se completam. Então é difícil explicar a ele o que estou pensando. Não é algo que caiba nas poucas palavras de que disponho quando a presença dele transforma tudo em canção.
            É isso o que ele é para mim. Música. E tudo o que as palavras não podem dizer.
            — Estou pensando que você devia sorrir mais. Eu gosto disso — consigo articular, porque acho que essa era a nota mais alta da sinfonia. O quanto gosto do sorriso dele.
            Ele parece desarmado por um instante, pego de surpresa pelas minhas palavras, e o sorriso foge rápida e timidamente de seu rosto. Ele desvia os olhos de mim, mas não é o tipo de pessoa que se deixa tomar facilmente por emoções como essas. Não é surpresa quando ele veste de volta sua expressão lasciva, escondendo-se atrás dela.
            — Talvez você não gostasse tanto do meu sorriso se soubesse o que estou pensando por trás dele.
            E lá vai Eric usar sua técnica defletora preferida, a de me desconcertar. Estou meio perdida na imagem de lábios se encontrando e estou olhando para todos os lados menos para ele, porque essas coisas que ele me diz me fazem... me fazem...
            Ahn... Acho que a palavra que você está procurando é: Gulp!
            “Isso não é bem uma palavra.”
            A menos que você tenha uma ideia melhor para definir seu ar sendo roubado, agora é. Gulp!
            — Bem, não me importo com o motivo. Apenas gosto de ver você sorrir.
            Boa recuperação, Srta. Tímida.
            — Você me faz sorrir. Só você — ele diz simplesmente.
            Ok, tem uma palavra pra isso também, mas não estou encontrando.
            Então eu sou meio que deixada lá, sem ter o que dizer, porque aquela outra parte da minha mente, aquela que sabe lidar com o frio em minha barriga e com o congelamento de meus neurônios, está temporariamente ocupada vomitando um arco-íris.
            Não é que eu não saiba lidar com um homem demonstrando interesse por mim. Sou inexperiente, mas não sou idiota. Tampouco nasci ontem, portanto, essa não é a primeira vez que algo assim acontece. Não tenho tão pouca prática em ignorar galanteios ou me fingir de boba. É só que essa é a primeira vez que eu quero ouvir as coisas, ao invés de ignorá-las. É a primeira vez que desejo, mais que tudo no mundo, que elas sejam verdadeiras. Eu quero que ele me deseje, apesar de todo medo que sinto disso. E quero que ele me ame.
            É isso. A verdade cai sobre mim como um piano que estava pairando a poucos centímetros da minha cabeça. É claro que eu sabia disso. Eu soube desde o momento em que o vi. É estúpido, irresponsável e impulsivo, mas eu me apaixonei à primeira vista.      Eu não sei nada sobre ele, nada, e o conheço por um tempo ridiculamente pequeno. Tudo que é racional em mim protesta quanto à falta de lógica nisso, mas eu o amo. Percebê-lo foi como subitamente notar o desenho de uma constelação onde antes eu só enxergava um bando de estrelas. Sempre esteve ali, existiria mesmo que eu nunca notasse, e continuará existindo muito depois do fim.
            Eu o amo e já não me basta apenas isso, como em minha ingenuidade cheguei a pensar que bastaria. Eu quero que ele me ame também, porque sinto que posso enfrentar todas as minhas dúvidas se tiver essa certeza
            Meu Deus. Onde estou com a cabeça? O que estou fazendo?
            Não é como se eu pudesse perguntar a ele o que sente, é?  Eu nem sei se ele sente alguma coisa, para começar. Quer dizer, ele certamente não é indiferente a mim, mas, até onde eu sei, pode estar apenas querendo se divertir. E eu não posso ser o divertimento do homem que amo. Não esse tipo de divertimento. Não quando cada segundo ao lado dele significa tanto para mim.
            — Eric, olha... Eu... Eu não sei o que você está esperando, mas... Eu não sou esse tipo de pessoa...
            — Opa, calma! — ele rebate, uma expressão meio ultrajada no rosto e as mãos ligeiramente levantadas em um gesto de surpresa e rendição. — Espere aí, de onde saiu isso?
            Oh, céus! Você não achou de novo que ele estava acompanhando toda essa conversa na sua cabeça, não é? Porque você faz isso às vezes.
            O pior é que é verdade. Eu fiquei tão imersa nessas constatações, tão encantada com o conforto do silêncio entre nós, que acabei me esquecendo de consultar a outra parte da “conversa”.
            — É que eu gosto muito da sua companhia. E o que você falou sobre se sentir em paz comigo, sobre eu te fazer sorrir... É assim que eu me sinto com você, essas coisas são verdade para mim e...
            — Você está insinuando que não são verdade para mim? — ele me interrompe parecendo irritado, do jeito que costuma ficar antes de se isolar em sua fortaleza de frieza. — Acha que tenho o hábito de ficar atrás de garçonetes metidas a misteriosas que sequer aceitam me beijar?
            Tudo bem, você podia dormir sem essa, porque bem que doeu. Será que dá pra você ir direto ao ponto? Ou pelo menos passar perto do ponto, se possível?
            E eis que eu chego a um nível nunca antes visitado de autoboicote: consegui deixar Eric irritado, eu mesma nada feliz e aquela outra parte de mim ainda mais sardônica.
            Talvez eu devesse parar de chamá-la de cínica, malcriada e racional e inventar um nome para ela. Um vocativo que pudesse vir acompanhado da pergunta “De que lado você está, afinal?”
            E quando você fizer isso não precisará mais de mim, porque ficou louca e cínica de vez, então não vai mais precisar disfarçar com essa bobagem de amiga imaginária.
            “Gah!!! Cale a boca! Eu tenho um mal-entendido para resolver aqui.”
            Então eu respiro fundo e me foco no diálogo real em vez do imaginário. Mas acho que vou tentar seguir o que ela falou: ir direto ao ponto.
            — Não, é claro que não. Não foi isso que eu quis dizer. Não estou tentando me fazer de difícil e nem dizendo que você mentiu. É só que eu gosto muito de você e isso é novo para mim. Você não faz ideia do quanto. E eu sei que é cedo pra dizer, e que estou me arriscando a você achar que eu sou uma louca vendo coisas onde não existem, mas eu queria saber em que página você está desse livro.
            Tudo isso sai num jorro de coragem, de uma vez, sem reticências, e agora estou quase hiperventilando, porque estou imaginando como essas palavras estão soando malucas e precipitadas aos ouvidos dele. Tento conter minha ansiedade e parecer centrada, algo em que devo estar falhando miseravelmente. No entanto, vale a pena o esforço de tentar, porque ele não precisa que eu acentue meu discurso estranho com uma expressão de louca no rosto. Ele já deve estar analisando o ambiente para rotas de fuga sem isso.
            Depois de alguns segundos, ele ainda não fugiu, o que eu acho que é uma coisa boa, e sua irritação parece ter sido substituída por ponderação, o que eu acho que é uma coisa maravilhosa. Ele aperta os olhos me observando e posso perceber que ele está analisando tudo: meu rosto, os instantes anteriores, cada palavra que eu disse. Sinto-me como um inseto visto por uma lente de aumento, porém, ao contrário do que eu esperava, não estou com medo da resposta dele, eu realmente quero saber, e gosto do fato de ele estar pensando cuidadosamente no que vai dizer a seguir.
            — Gostar de alguém não é um conceito familiar para mim, Luz.
            E aqui está ele de novo, com seu jeito de responder sem responder, a fala pausada e os olhos perdidos de quem está se esforçando para escolher apenas um dos caminhos que se abrem em sua mente. Ele sempre parece assim quando fala sério. Sempre perdido em meio às milhares de coisas que acontecem ao mesmo tempo em sua cabeça. Barulho e silêncio que se harmonizam de uma forma que só ele entende.
            — Eu não gosto disso — ele continua. — Não gosto de ser confrontado com coisas que não pretendia enfrentar. E não gosto que você esteja me forçando a admitir isso.
            Isso está começando a se parecer demais com um discurso que precede uma despedida brusca, e meus olhos já estão começando a arder. Um constrangimento brutal começa a me pinicar os ossos, ameaçando sair em forma de palavras desconexas, quando ele retoma sua fala. Assim, como se não tivesse parado.
            — No entanto, é isso que você faz, não é? Você consegue o que quer. Então, embora eu também não saiba onde vamos chegar com isso, não menti pra você, Clara. Eu me sinto bem como nunca achei possível quando estou com você. Você me faz querer me acostumar a essa sensação e eu acho isso perigoso demais pra nós dois, porque eu não sou homem para você. Mas seria ridículo se eu continuasse dizendo a mim mesmo que não sinto nada.
            Solto a respiração que nem percebi que estava prendendo. Eric tem esse jeito de dizer as coisas de uma forma que parece que ele não disse nada, quando, na verdade, disse bem mais do que havia sido perguntado. E, a menos que eu tenha enlouquecido de vez, acho que ele acabou de admitir que sente alguma coisa por mim também.
            Quero permanecer focada e conversar sobre isso como uma pessoa normal, ou quase — mesmo que fosse apenas quase —, mas não consigo evitar o sorriso que começa a se espalhar em mim, vestindo meu rosto, transformando meus olhos em vitrines tão óbvias de minha alegria, que me sinto quase vulnerável demais.
            Algo em Eric também muda quando reajo dessa maneira. Subitamente, o peso de sua seriedade se foi e ele parece bem-humorado novamente.
            — Eu tenho uma pergunta — ele começa, e eu sei, pelo jeito como me olha, que ele vai vir com mais uma de suas frases atrevidas. — Existe alguma chance de esta conversa anular a anterior? Você sabe, sobre eu precisar esperar você entender o que está sentindo. Porque eu acho que nós meio que já estabelecemos isso.
            — Bom, eu... ahn... — Acho que ele tem razão, mas... mas... Céus! Eu não faço ideia do que vem agora. Não é como se tudo isso fizesse algum sentido pra mim, afinal. — Acho que não pensei sobre isso. Esta conversa saiu meio de repente, quer dizer, não era nem para estarmos aqui hoje, eu... Até ontem, eu nem imaginava que você...
            — Tudo bem, tudo bem! — Eric ri, obviamente se divertindo com minha falta de jeito. — Só achei que não custava perguntar.
            Eu tento rir também, mas estou constrangida demais para isso e o que sai é um riso nervoso e meio estranho. Então Eric fica sério de novo e segura minha mão, apertando de leve meus dedos. Ele não me encara quando fala, apenas olha para nossas mãos juntas, o que, na verdade, acaba tornando tudo um pouco mais fácil.
            — Você é realmente especial, Luz. Eu não a culpo por pensar bem no que está fazendo, porque, mais cedo ou mais tarde, você vai acreditar quando eu digo que não sou bom o bastante pra você. Eu só não consigo evitar estar perto quando você deseja que eu esteja.
            — Por quê? — pergunto, levantando seu rosto com os dedos para que ele olhe para mim. — Por que você quer estar junto de mim, sabe que eu preciso disso, mas não consegue entender que eu nunca, nunca serei capaz de achar que você não é bom o bastante?
            Um riso amargo escapa de seus lábios e ele meneia a cabeça devagar, num misto de negação e incredulidade. É então que finalmente percebo. Sua frieza, suas palavras tantas vezes duras e sempre dúbias, o jeito como ele afasta as pessoas, se escondendo atrás dessa pose de quem não precisa de ninguém. O jeito como ele tenta me afastar cada vez que chego um pouco mais perto... Todos esses avisos de que não é bom o bastante...
            Ele realmente acredita nisso. Simplesmente não consegue enxergar o que vejo. Não consegue ouvir a canção que se esconde em seus olhos, em seu coração que canta para o meu. Ele parece odiar a si mesmo e parte meu coração finalmente perceber essa dor.
            Como isso é possível? Quem o machucou tanto que cegou seus olhos para a luz em sua própria alma? Como ele não é capaz de ouvir aquilo que é tão alto para mim, apesar da confusão dos sons? Do meu desejo? Do meu amor? Da minha própria humanidade constantemente equivocada?
            Apenas não há equívoco nenhum aqui. Posso estar confusa sobre muitas coisas, mas eu sei de outras tantas. E confio nos sopros de minha intuição.
            Ele é especial. Ele é maravilhoso. E agora eu sei que sou eu que devo mostrar isso a ele.
            — Você pode me deixar entrar, Eric? Pode me deixar te mostrar quem você é através de meus olhos?
            — Você não sabe quem eu sou, Clara. E não vai querer saber também. Só está sendo ingênua. Você é apenas doce demais.
            — Você diz que eu sou especial, mas isso é algo que você enxerga, não eu. Para mim, eu sou todos os meus defeitos, todas as minhas fraquezas, tanto quanto o que me faz forte. Sou boa e ruim também. Às vezes um pouquinho mais ruim do que boa, em outras, sou as duas coisas ao mesmo tempo. Mas eu quero acreditar que na maior parte das vezes eu sou o que você vê. Você entende o quanto isso me faz bem?
            — Mas você deve acreditar. Você pode. É diferente.
            — Por favor, Eric. Deixe-me retribuir seu olhar. Deixe-me entrar. Por favor. Seria apenas gentil de sua parte.
            — Você vai tentar de qualquer forma, não vai? Ninguém pode impedi-la de ser você mesma.
            — Não realmente — respondo. — Então, sim, eu vou tentar de qualquer maneira.
            — Então talvez eu deva pensar com clareza por nós dois. — Ele tenta puxar a mão da minha e se levantar quando diz isso, mas eu não permito. Seguro-a firmemente numa espécie de ato reflexo, porque a mera possibilidade de que ele vá embora neste momento me parte a alma em duas.
            — Fique.
            Não estou implorando, sequer é um pedido. É mais como uma força inarticulada que sai de dentro de mim e projeta minha vontade numa única palavra. É tão intenso que um ligeiro tremor abala meu corpo quando o som daquele apelo escapa por meus lábios. Eu simplesmente preciso que ele fique.
            Eric para no meio do impulso de se levantar e seu corpo pousa de novo na cadeira, uma de suas mãos ainda entre as minhas e o semblante preocupado.
            — Tudo bem — ele diz simplesmente, e ficamos alguns segundos parados até que ele sorri, levando minhas mãos até os lábios e me olhando por cima de nossos dedos entrelaçados. — Mas só pra você saber, eu só ia chamar o garçom. Posso pensar com clareza amanhã.
            Explodo numa risada aliviada e meio sem graça. Se for verdade, acabei de fazer uma cena totalmente desnecessária. Outra. Mas estamos rindo e eu acabo de perceber que é uma expressão nova a que ele tem no rosto. E é para mim. Inteiramente para mim.
            — Você está rindo. — Pareço uma boba dizendo isso, mas meu filtro está de licença, aparentemente. Provavelmente de luto por meu bom senso.
            — Bem, você é engraçada.
            — Acho que sou — respondo, saboreando a palavra que em outras circunstâncias eu tomaria como código para “ridícula”, mas não hoje, porque ele não me faz sentir assim. — Disponha. Se minha recompensa for essa, estamos em cartaz cinco dias por semana no On The Rocks.
            — Hum, não sei, conheço o dono de lá e soube que ele não está contratando. É um sujeito meio antipático, sabe? Mas se você quiser, tem outro cara que não ligaria de te recompensar por coisa alguma.
            — Oh, você poderia me apresentar a esse cara, então?
            — Prontamente, senhorita. Mas eu meio que preciso dessa mão para a piada funcionar — Eric brinca, apontando com o queixo para a mão que ainda seguro como se ele fosse me escapar. Dou uma risadinha boba e solto a mão dele, me endireitando na cadeira. — Eric Morgan, como só você tem direito a ver. É um prazer conhecê-la, Srta. Luz na Escuridão.
            Ele estende a mão para mim, como se estivéssemos mesmo nos apresentando, mas eu não a pego. Apenas olho para ele, sem saber como dizer que isso não é uma piada, e sim a coisa mais bonita que já ouvi.
            Aquele sorriso novo de agora há pouco brinca novamente em seu rosto e, quando não reajo, ele olha para mim também, me convidando a “entrar”. Aceito o desafio e seguro a mão que ele me oferece, porque Eric precisa saber que eu não vou partir se ele me deixar ficar e sinto como se eu estivesse prometendo isso com esse gesto.
            Nossos olhos se encontram e nos trancamos um no outro, selando nosso pacto.

******

            — Tudo bem, me diga de novo como você me convenceu a isso — resmunga Eric, mal-humorado.
            “Isso” é um cachorro pequeno e magricela com que nos deparamos na saída do restaurante. Há um pelo branco malhado de marrom por baixo do barro sob o qual ele está escondido, acho. Mas neste exato momento, ele é só um monte de ossinhos frágeis coberto por uma sujeira fedorenta que eu embrulhei na jaqueta e estou carregando para dentro do carro de Eric.
            — Eu pedi “por favor” — respondo, rindo da cara que ele faz, os lindos olhos azuis estreitando-se num misto de raiva e indignação.
            — Sim, você pediu. E eu estou desenvolvendo o péssimo hábito de atender a seus pedidos absurdos — ele me responde com um sorrisinho provocador.
            E é por causa desse sorriso que percebo que ele não está falando sério. Não totalmente. Pelo menos é disso que tento me convencer enquanto a última palavra rola em minha cabeça.
            Absurdos.
            Lembro-me da última coisa que pedi a ele, algumas horas atrás, quando estávamos juntos no meu apartamento.
            “Você pode me esperar? Pode esperar que eu entenda o que está acontecendo comigo?”
            Eu sei como isso soa. Sei que cada palavra transparece minha extrema inexperiência e me deixa incrivelmente vulnerável. E também sei que Eric nunca deve ter ouvido um pedido como esse e que, especialmente depois da noite de hoje, parece um apelo estranhamente fora de lugar. Mas o que posso dizer?
            Este não é um relacionamento normal. Eu não sou uma pessoa normal. Há muitas coisas a serem ditas, pensadas e vividas, então é melhor tentar ir devagar. E neste momento eu tenho esta vidinha em minhas mãos precisando de minha ajuda.
            — Você não queria que eu o tivesse deixado na chuva, tremendo de frio como estava, queria?
            Eric não responde. Apenas olha para mim, claramente pensando em alguma coisa espertinha para me dizer, mas não encontra. Em vez disso, ele apenas abre a porta do carro e bufa, fazendo uma careta de puro desgosto quando coloco o cão no tapete de seu carro imaculadamente limpo.
            Ele tem um desses SUVs gigantescos e desajeitados, bem diferente da moto elegante e silenciosa que costuma usar quando não está chovendo. Mas há coisas em comum o suficiente entre os dois veículos: ambos são potentes, pretos e absurdamente caros, pelo menos para os meus padrões. Acho que dinheiro não é problema para ele, ao que parece.
            — Eu compro uma nova pra você, mas mantenha-o enrolado na jaqueta, ok? Pelo menos disfarça um pouco o mau cheiro.
            — Tudo bem, ele está com frio mesmo. Coitadinho!
            O cachorrinho, que não é um filhote, mas é pequeno e parece ser novinho, se aconchega em meus pés enquanto Eric nos leva para casa em total silêncio. Quando estávamos saindo do restaurante, paramos um pouco para nos proteger da chuva sob a marquise da entrada e eu o vi.
            Fechei meus olhos quando ele começou a correr em direção à calçada e um carro freou bruscamente para não atropelá-lo. Em seguida, ele veio diretamente se encostar em minha perna, todo molhado e trêmulo de frio. Eu me abaixei e afaguei sua cabeça. Ele olhou para mim, abanou o rabo e deixou claro que não sairia dali.
            E isso basicamente resume a história, porque acho que não preciso de outra razão para resolver que, daquele momento em diante, ele seria meu cachorro. De quando em quando, um deles me escolhe, e dessa vez foi esse.
            — Você tem certeza de que vai ficar com esse bicho? — Eric pergunta quando estacionamos em frente ao meu prédio. — Quer dizer, eu sei que você ficou com pena dele, mas tenho certeza de que deve ter algum lugar que o recolha, não?
            Ele não faz ideia. Deve ser uma daquelas pessoas que nunca teve cachorro na vida, e que acha que cachorrinhos de rua sujos e fedorentos têm algum lar possível em algum lugar onde eles não incomodem a sociedade.
            — Não, Eric. Não tem outro lugar pra onde ele possa ir — respondo tentando ter paciência. — E ele me escolheu, precisa de mim. Não posso simplesmente virar as costas.
            — Por que não?
            Olho para ele surpresa, constatando pela sua expressão e tom de voz que ele não está sendo cínico, é uma pergunta genuína. Cada vez que tenho um vislumbre do que se passa dentro dele de verdade, fico mais surpresa e entristecida, porque esse é um homem mais infeliz e ferido do que eu podia imaginar. Subitamente, ele parece tão frágil que tudo o que quero fazer é abraçá-lo.
            — Porque quando o amor nos escolhe não se pode dar as costas a ele, Eric. Não farei isso em nenhuma circunstância.
            Quero que ele saiba que essas palavras são para ele. São minha profissão de fé de que quero ajudá-lo, de que estarei aqui para ele. Mas não é o tipo de coisa em que ele acreditaria se eu simplesmente dissesse. Preciso de tempo para que ele perceba através de meus atos.
            Ele franze as sobrancelhas e olha para frente, encarando a rua através do parabrisa. Depois volta ao seu costumeiro ar blasé, tentando fingir que minhas palavras não significaram grande coisa, e olha para o cachorro aos meus pés distraidamente.
            — E que nome você vai dar a ele?
            — Hum, não sei. Alguma ideia?
            — Sei lá. Talvez alguma coisa com que ele se pareça... — Ele fecha um dos olhos e faz uma careta. — Ele é bem feio, na verdade.
            — Não diga isso! — bronqueio de forma brincalhona, enquanto tapo as orelhas do cachorro.
            — Clara! Nem você pode ignorar que esse coitado é puro osso, sujeira e pelos falhados.
            — Eu não vejo essas coisas. Só vejo esses olhos. São puros, leais e cheios de amor, apenas esperando alguém com quem dividi-lo. E se você der a ele um pouco de si, ele vai amá-lo mesmo que você não mereça. Quanto ao resto, não há nada realmente mais importante que isso, e não há nada que não possa ser consertado.
            — Carinha de sorte — ele diz, pensativo. — Quem dera fosse tão simples assim com as pessoas.
            — Poderia ser. Se as pessoas realmente tentassem. Se elas dessem uma chance a si mesmas e umas às outras.
            Eric olha para mim como se eu fosse uma aberração ingênua, mas eu não sou. Sei que as coisas não são simples, mas também sei que poderiam ser. Realmente acredito nisso. Acredito na possibilidade de mudança e perseguir isso é a essência do que eu sou. Então como eu poderia não ter esperanças?
            — Você realmente acha que pode consertar tudo? — ele pergunta com uma expressão de desdém.
            — Não. Eu só sei que vou sempre tentar.
            O cachorrinho continua dormindo encolhido sob minha jaqueta — acho que ele não esteve minimamente confortável por muito tempo, então agora conseguiu relaxar — e eu olho para ele por um instante, tentando desviar minha atenção do sentimento de amargor e desesperança que toma conta de Eric. Ele está sofrendo, lutando contra uma ideia que pode fazer tudo ser diferente, apenas porque deve sempre ter acreditado no oposto.
            — Mesmo quando o que é feio não pode ser visto com os olhos? Você acha que as coisas podem ser consertadas mesmo quando já nasceram sujas e quebradas?
            O significado profundo dessas palavras rasga um buraco dentro de mim. Ele está falando de si mesmo. Essa é a maneira como ele se vê. E qualquer que seja a razão para isso é tão dolorosa quanto irreal. O que quer que ele veja, eu sei que pode ser visto de forma diferente, porque, embora esteja quebrado, já foi perfeito. E ainda é perfeito para mim.
            — Talvez seja apenas a maneira de vê-las, Eric. Nada nasce sujo e quebrado. Nada nem ninguém. E se você me escolher, eu não vou te dar as costas.
            Ele parece com raiva por um instante, sua luta interior confundindo suas reações, mas, pela primeira vez, ele está fragilizado o bastante para que eu sinta um pouco de sua energia. Ele não está com raiva de mim. Está confuso e triste. E um pouco esperançoso também.
            Ele apoia a testa sobre o volante por um segundo e o esmurra de leve quando se levanta novamente. Então ele sai do carro e o contorna correndo, abrindo a porta do passageiro e me puxando para fora com as mãos em volta de minha cintura. Ele me abraça, prensando meu corpo contra o carro, e uma de suas mãos sobe pela minha nuca, os dedos entrelaçando-se em meus cabelos.
            — Me desculpe, Luz, mas se você não passar de um sonho bom, pelo menos desta vez eu tenho que fazer isso.
            Então os lábios dele se encostam nos meus e não há sequer tempo para que meu coração possa ameaçar abrir um buraco em meu peito. Talvez ele tenha parado, deixando o resto de meu corpo dormente, porque não sinto nada a não ser a boca de Eric abraçando a minha, seus lábios úmidos deslizando leve e gentilmente enquanto meus olhos se fecham por um instante que não poderia nunca ser longo o suficiente. No entanto, logo os abro de novo, porque quero vê-lo. Quero olhar para ele e para seus olhos fechados com firmeza, antes de eles se abrirem para mim quando Eric morde de leve meu lábio inferior.
            Deve haver no mundo um momento mais lindo que esse, mas eu não preciso conhecê-lo. Posso viver para sempre se a única lembrança que eu tiver for a desses olhos.
            — Blue — eu digo sem pensar.
            — O quê? — Eric pergunta numa risada baixa que sai numa pequena lufada de ar.
            — O cachorro. Vou chamá-lo de Blue.
            — Porque você acha que ele é triste[1]? — ele pergunta num tom divertido, o rosto distante do meu apenas o suficiente para que nossos lábios possam se mover sem se tocar, o que eu nem acho mais que seja uma coisa boa.
            — Não, porque eu gosto da cor.
            Eric ri, depois me abraça forte e me dá um beijo condescendente no topo da cabeça.
            — Tudo bem, Luz. Podemos voltar a pensar com clareza amanhã.
            Ficamos ali abraçados por um tempo, depois ele me acompanha e a Blue até a entrada e vai embora. O sorriso novo, o meu sorriso, brinca nos lábios dele o tempo inteiro. E depois mais tarde, nos meus sonhos.



[1] Em inglês, a palavra “blue” pode designar tanto a cor azul, quanto o sentimento de melancolia ou tristeza.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

CD2 - cap 14

 Capítulo 14 – Mão dupla

All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?

(Eleanor Rigby – The Beatles)

Jeb

            Nunca fui um sujeito sentimental.
            Não é nenhum tipo de decisão racional ou princípio antiquado, mas alguma coisa em demonstrar emoções sempre pareceu atípico de mim. E quando você é um velho fazendeiro do sul ninguém se importa muito com isso, simplesmente deixam você ser um cara rústico e fechado e assumem que é natural.
            Eu mesmo nunca pensei muito a respeito, exceto uma vez, com Norah... Mas cheguei à conclusão de que antes de lutar para mudar por ela, devia ter sido aceito como era. Esta coisa toda de amor — ou o que quer que fosse aquilo — devia funcionar em mão dupla, segundo pude concluir mais tarde. Infelizmente, eu não entendi isso quando precisava e depois, quando finalmente entendi, não valia mais de nada. De qualquer jeito, não importava mais. No final das contas, era útil não amolecer com facilidade. O que não queria dizer que eu não ficasse balançado às vezes.
            Na noite em que voltei de minha ausência, por exemplo, algumas coisas me pegaram de surpresa.
            Não estou falando do fato de todos me receberam com entusiasmo e comoção. Era esperado que, diante das circunstâncias, mesmo aqueles que não são meus maiores fãs se importassem com minha saúde. Para o bem ou para o mal, todos ali éramos família, afinal. Então os apertos de mão e tapinhas nas costas eram previstos. Os abraços também.
            Era previsível que Estrela se pendurasse em meu pescoço antes mesmo de que eu conseguisse me erguer do catre, e que depois tentasse cuidar de mim, me impedindo de fazer qualquer esforço, dando ordens às quais sabia que eu não obedeceria. E não era nada estranho que Lindsay imitasse a mãe em seus carinhos arrebatados de criança e saísse dizendo a todos que eu devia ficar de “re-pou-so”, fazendo-os rirem da forma como ela pronunciava a palavra nova com cuidado, fazendo biquinho.
            Também não estranhei quando Peg se emocionou discretamente, desviando os olhos vermelhos e limpando as lágrimas furtivas, porque não gostava que se preocupassem com ela. Assim como fez Magnólia, minha irmã, que sempre quis parecer mais casca grossa do que eu.
            A alegria de Sharon e Doc. O alívio de Jared. O entusiasmo de Jamie. O olhar de triunfo de Melanie quando provei ser tão forte quanto ela esperava. Nada disso foi exatamente surpreendente. O que eu não esperava mesmo é que essas coisas cavassem um buraco tão fecundo dentro deste coração que eu mesmo julgava tão árido.
            Talvez eu não deixe ninguém saber, mas dividir a mente com Logan me mudou. Percebi isso naquela mesma noite, quando observei a expressão dele repetidas vezes, mas não por curiosidade, ou por me divertir ao vê-lo se retrair aos elogios e agradecimentos, como era seu costume, e sim em busca de algo que eu pudesse reconhecer e decifrar. Em busca de algo que me ajudasse a entendê-lo.
            Porque Deus que me perdoe, mas eu precisava. Essa história toda estava me corroendo por dentro.
            — Você não vai parar depois de duas míseras voltas. Pode parar de enrolar — ele decretou e eu tive vontade de matá-lo. Mas só porque eu sentia isso por qualquer um que me desse ordens daquele jeito.
            — Não sou um maldito hamster, Logan. Vê se me deixa em paz. Estou voltando para dentro para trabalhar, que é como os pobres mantêm a forma.
            O suplício das rotinas de exercícios tinha começado poucos dias depois do “susto”, como o pessoal tinha escolhido se referir à minha trombada com a morte. Por mim, eles podiam dar o nome que quisessem, desde que eu não tivesse que aturar todo mundo vigiando o que eu comia e me obrigando a correr no meio do deserto como um camelo que tomou Red Bull.
            — Acontece que você dá mais ordens do que põe a mão na massa. E até a última vez que chequei, delegar tarefas não ajuda a manter a forma.
            — Bom, cheque de novo. Pode ser útil no seu futuro, já que você é tão bom nisso de querer mandar nos outros.
            — Estrela disse que é bom para você — ele rebateu mal-humorado. O moleque tinha aquele tipo irritante de determinação de ferro e, previsivelmente, não gostava de ser contrariado.
            — Vou te dizer o que é bom para mim, garoto. Respirar. Então, se me der licença, vou me sentar ali e passar um tempinho de qualidade com meu amigo oxigênio. Pode até se juntar a nós se quiser.
            Àquela hora da manhã, o sol ainda não tinha tido tempo de ficar implacável, e era-nos até possível fazer uma caminhada ao ar livre sem morrermos torrados. Até aí tudo bem, eu nunca me queixaria de andar, Deus sabe que foi para isso que me deu pernas, mas quando Logan sugeriu que eu parecia bem o suficiente para tentar uma corrida curta cheguei ao limite da minha paciência. Nunca fui do tipo que corre sem ter aonde ir.
            Logan bufou de raiva, mas não protestou. Nem tampouco se juntou a mim também. Ao invés disso, optou por se calar e me deixar em paz enquanto gastava sua raiva correndo sozinho pelo percurso que tinha determinado. Provavelmente só ia parar quando suas pernas não aguentassem mais ou o sol estivesse forte demais para continuar.
            — Hamster! — resmunguei, me lembrando daquele “ratinho” que fica correndo em uma roda dentro da gaiola. Mel tinha um desses quando era criança. O bichinho era tinhoso e cheio de energia. Então já deu para entender a comparação.
            Eu certamente era grato por tudo que Logan tinha feito por mim, mas essa obsessão por cuidar da minha saúde, ironicamente, não estava sendo saudável para ele. Só um idiota não perceberia que ele estava usando isso para evitar pensar nas coisas difíceis, recurso com o qual eu até seria capaz de simpatizar se não me importasse tanto com o garoto. E já que eu me importava, não podia deixar que ele continuasse se fechando.
            Do jeito dele, acho que a experiência também o afetou e nenhum de nós sabia bem como lidar com isso. Em outros tempos, Logan teria ficado ali e me enfrentado, comprado a briga e se divertido com ela, mas ultimamente ele andava arredio.
            — Vamos voltar — ele disse quando, por fim, se cansou e voltou para onde eu estava esperando. — O sol está ficando quente demais, de qualquer jeito.
            — Ainda não. Me faça um pouco de companhia enquanto ainda temos sombra.
            A frase simples teve um efeito imediato. Logan tinha apoiado as mãos sobre os joelhos para descansar um segundo e estava olhando para baixo, mas imediatamente se empertigou, começando a me inspecionar. A expressão em seu rosto assumindo aquele ar de preocupação irritante no mesmo momento.
            — Por quê? — questionou, e juro por Deus que quis lhe dar um safanão. Afinal, estava na cara que ele já tinha a resposta pronta em sua cabeça. E não era a mesma que a minha.
            — Preciso ter uma razão para querer me sentar ao lado de um amigo? Eu só quero jogar um pouco de conversa fora, Logan! Não precisa achar que estou me sentindo mal cada vez que você não consegue mandar na minha vida.
            Isso pareceu tê-lo deixado meio sem graça, mas não o suficiente para parar de argumentar.
            — Desculpe — pediu, finalmente se sentando. — É que eu achei... Bom, fadiga é um dos sintomas. E talvez eu tenha forçado muito com a caminhada, está um dia quente.
            — Estou muito bem disposto, obrigado. E pude descansar bastante das “duas míseras voltas” que dei. Você precisa parar de se preocupar tanto.
            Não recebi nenhuma resposta. Obviamente toquei num ponto complicado. Devo admitir que fui irresponsável da primeira vez, subestimando os sinais que meu corpo dava. O resultado foi aquela situação que nos pegou a todos de surpresa e que levou a medidas extremas. Não creio que depois disso Logan vá confiar em mim para alertá-lo caso não esteja me sentindo bem, embora eu possa garantir que aprendi minha lição. A verdade é que, no lugar dele, eu também não confiaria. Nem tampouco me preocuparia tanto com um velho teimoso que passa o tempo todo implicando com seus cuidados excessivos.
            — Desculpe por ser tão difícil — admiti. — Sei que você só está querendo ajudar. Posso não ser o sujeito mais agradecido do mundo, mas não sou burro o suficiente para ignorar que isso é um defeito meu. É que sempre cuidei de mim mesmo e dos outros. É difícil me acostumar com a situação inversa.
            — Eu sei como é.
            É, ele sabia. Mas não era o mesmo tipo de sensação que a minha. Vinha de um lugar diferente em sua mente e causava um efeito bem diverso também.
            Na noite em que dividimos o corpo, quando tivemos que ser carregados por Jared e Ian porque eu não tinha forças para andar, pude sentir que aquilo significava mais do que um incômodo ou algum tipo de orgulho ferido, era mais complexo do que isso. Era algo que trazia de volta uma insegurança tão impertinente e dolorosa quanto uma ferida infeccionada. Como se relaxar um segundo e depender de ajuda pudesse ser catastrófico, como foi para a menininha que o Logan humano perdeu. Mas agora os tempos eram outros. Era preciso que ele entendesse isso, embora eu achasse que num nível racional ele até entendia.
            — Não é tão ruim assim, sabe? — eu disse depois de um tempo.
            — O quê?
            — Ser cuidado. Deixar as pessoas te ajudarem. Deixá-las à vontade para gostarem de você. Não é ruim.
            — Não, não é ruim — Logan respondeu, mas eu não estava certo de que ele sabia realmente o que eu queria dizer. Talvez estivesse apenas me enrolando com a resposta que achava que eu queria ouvir. Ele era bom nisso. Desenvolveu o talento quando veio para cá e precisou se acostumar com os humanos, mas tenho a impressão de que ele sempre foi do tipo que sabia o que dizer.
            — Então por que você nunca contou sobre as lembranças e pesadelos que te perturbam?
            Achei que não matava ir direto ao ponto. Cedo ou tarde a gente se cansa de jogar xadrez com as palavras.
            — Você também nunca me falou sobre as suas.
            Xeque!
            — Está se referindo a Norah? — Sei que aquela lembrança teve um impacto sobre ele. Talvez porque, de alguma forma, ele tenha intuído o que eu quis esconder. Que mais do que a doença, foi a maldita memória que me assaltou naquele dia.
            — Sim.
            — Por quê? O que importa falar sobre ela?
            — Tem razão, não importa. Não quero ser intrusivo.
            Porque assim também não precisamos falar sobre ele. O garoto sabe ser mais escorregadio do que peixe ensaboado.
            — Não banque o espertinho comigo, Logan. — Ele olhou para mim tentando fingir indignação, mas no fim apenas riu, porque sabia que eu já tinha entendido seu jogo. — Façamos o seguinte: eu digo o que você quer saber e você fala comigo. Sem segredos. Não faz sentido entre nós.
            — É, acho que, no fim das contas, não faz mesmo.
            — Além disso, já estou cheio destes fragmentos fora de contexto que ficaram na minha cabeça. Se eles vão ficar por aqui, pelo menos quero entender a história por trás deles.
            — É estranho, não é? — disse Logan. — Quando voltei para o meu corpo, queria conversar com você sobre isso, mas depois eu não soube como. Eu... Ah... Bom... Não sei muito bem como me abrir com ninguém.
            — Também não é minha especialidade, filho. Mas se você vai ficar tão preocupado comigo o tempo todo, ao menos me deixe retribuir o gesto.
            — Não, você não tem que se preocupar com nada. Estou b...
            — Estrela me disse que você tem tido pesadelos quase diários — interrompi. — Que dorme mal e que não fala com ela sobre isso. Ou com ninguém, até onde sabemos.
            — São só pesadelos, não têm importância alguma.
            — O que houve com “eu digo o que você quer saber e você fala comigo”? — provoquei, embora eu já soubesse o que viria a seguir. Mas tudo bem, eu pagaria o preço.
            — Bem, se vamos fazer nessa ordem, então você tem que me contar sobre Norah antes.
            Aí estava, xeque outra vez, como eu tinha previsto. Parece que nosso xadrez se estenderia por um tempo.
            — Pois bem. O que você quer saber?
            Logan coçou a cabeça, incerto sobre por onde começar.
            — Eu não entendo... Você a amava. Como pôde... Como pôde tê-la deixado partir?
            Claro. Coisas assim não faziam sentido para aquela cabeça irritantemente obstinada que ele tinha. No que dizia respeito a sentimentos, Logan era o cara mais simples que eu conhecia: ou ele amava muito ou não amava. E, sendo assim, provavelmente comparava a situação a quando Estrela fugiu dele em Phoenix, quando ela já o amava, mas achava que tinha coisas a fazer, uma dívida com Ian e Peg. No entanto a minha história com Norah não tinha nada a ver com pessoas tentando fazer o melhor umas para as outras. Pelo contrário.
            — Porque ela não partiu. Não do jeito que você pensa. Quisera eu que ela tivesse me abandonado. Teria sido mais... limpo. Mas ao invés disso, ela ficou comigo pelo tempo que conseguiu me enganar. 
            Logan parecia chocado, e eu entendia o sentimento. Não era que ele não acreditasse em mim, era que não podia. O fragmento de memória que ele tinha dizia respeito a uma ilusão, a uma época anterior à verdade que secou meu coração.
            — A imagem que você tem dela não corresponde a quem ela realmente era — continuei —, e sim à mulher que eu enxergava nela. Aquele dia, no deserto, nós estávamos acampando perto daqui. Não faz muito sentido, mas nós gostávamos disto: pegar um violão, acender uma fogueira e ficarmos juntos até o amanhecer. No começo, pelo menos. Eu estava apaixonado, então tudo parecia bom o bastante.
            — E por que as coisas mudaram?
            — Norah não era a pessoa que eu imaginava. Nem eu era quem ela queria que eu fosse. Quando a conheci, achei que a frieza dela era só fachada, que ela só precisava de um homem que a amasse, que cuidasse dela. Por isso tentei ser assim, mas ela achou que eu a sufocava, que era ciumento demais e que não entendia sua... “Busca por liberdade”, era o que ela dizia. Acontece que ela estava buscando liberdade em drogas e nos braços de outros caras que estavam dispostos a dar isso a ela. Então eu pulei fora o mais rápido que pude. Ela tentou me procurar, mas eu estava com raiva demais, e meu orgulho me manteve longe tempo o suficiente para ela sumir. Quando voltei a procurá-la, algumas semanas depois, ela tinha posto o pé na estrada e ninguém sabia dela.
            — E você nunca mais a viu.
            — Nós nos falamos por telefone uma vez, antes de ela desaparecer. Mas eu tinha meus próprios termos para fazer aquilo funcionar, obviamente. E obviamente não pareceram bons o bastante para ela. Então, não, eu não a vi mais.
            — Sinto muito.
            Eu também sentia. Agora, pensando naquela época. Contemplando as possibilidades, pela primeira vez eu realmente me arrependia por não ter tentado mais. Talvez tivesse me destruído, mas ao menos eu não teria a dúvida na cabeça.
            — Sua vez — decretei, porque eu não tinha a intenção de ficar me lamentando. — Fale comigo.
            Logan me olhou de soslaio, checando se eu ia mesmo insistir naquilo. Por fim, seus ombros cederam e ele adotou uma postura mais resignada, desviando o olhar para o horizonte.
            — Estrela está preocupada à toa. Esses pesadelos... São lembranças, na verdade. Foi assim quando eu a conheci e outras vezes depois, como quando ela ficou grávida, por exemplo. Toda vez que acontece alguma coisa significativa comigo é como se comportas se abrissem e eu me lembro de muitas coisas da vida dele.
            — Do Logan humano?
            Ao longo de nossas conversas, notei que ele raramente utilizava a palavra “hospedeiro” e por isso me habituei a esta diferenciação estranha entre o Logan que eu conhecia e o humano. Quando conversávamos sobre o assunto eram assim que nos referíamos ao outro e eu apreciava isso, porque nunca gostei da maldita palavra “hospedeiro”. Fazia parecer que o outro era só uma casca, uma máscara que este aqui temporariamente usava. Para os outros da espécie dele era bem provável que fosse assim, mas eu me recusava a pensar que Logan encarava da mesma maneira. Não combinava com a identidade amalgamada que tinha desenvolvido. E as lembranças de uma “casca” jamais o afetariam tanto quanto agora eu sei que o afetam.
            Ele assentiu, deixando de contemplar o horizonte e fixando os olhos em mim, provavelmente alheio à importância que eu dava a essa determinada escolha de palavras, que, no entanto, me parecia tão relevante.
            — Coisas que ele sufocava e nas quais não se permitia pensar com frequência, coisas da infância.
            — Como isso é possível? Você não se lembrava dessas coisas antes?
            — Em algum nível, sim — Logan explicou. — Acredito que ficaram guardadas no meu inconsciente, mas eu não pensava nelas. Quando acontece a inserção, algumas coisas sobrevivem por um bom tempo: os traços mais evidentes da personalidade, os hábitos mais recorrentes e as memórias recentes. E mesmo isso vai sendo deixado para trás lentamente, à medida que são substituídas por nossas próprias lembranças e características. Quanto ao resto, os Confortadores ensinam que não devemos acessar memórias desnecessárias. É o único jeito de podermos separar nossas próprias vidas das dos hospedeiros.
            — Mas Logan era mais que um hospedeiro para você, não é? Acho que posso adivinhar que você não conseguiu separar sua mente da dele.
            — Na maioria do tempo, eu conseguia sim. Pelo menos no que diz respeito às memórias. Eu gostava dele, mas não queria suas experiências humanas. Não queria nenhuma experiência humana. Eu só queria ir embora daqui assim que acabasse este ciclo de vida e voltar para o Mundo Cantor, ou quem sabe experimentar a vida entre os Ursos.
            — Isso até Estrela aparecer e “destravar” a humanidade que você herdou dele.
            — Sim, acho que, colocado de maneira simples, é isso. E então aconteceu de novo quando roubei o corpo para ela, quando viemos para cá, quando descobri que ia ser pai...
            — E agora, quando eu quase morri — deduzi.
            Logan não respondeu, em vez disso parou de me encarar mais uma vez, porque era o que ele fazia quando não sabia como lidar com alguma conversa. Mesmo assim, eu assumi que isso era um “sim”, afinal era óbvio, não precisava ser um gênio da matemática para somar dois mais dois. Com meio cérebro apoiado numa bengala daria para perceber que a morte o assustava. A minha morte. E isso me deixava ao mesmo tempo lisonjeado e preocupado.
            Eu podia ter trapaceado dessa vez, quem sabe ganhado mais uns anos até, mas eu não ia durar para sempre. Nenhum de nós iria. E, pelo jeito, cabia a mim ensinar isso ao garoto.
            Tudo bem, uma coisa de cada vez.
            — Então você tem um “surto” de lembranças reprimidas quando está ansioso ou algo assim — concluí. — Entendi. Mas essas lembranças não podem ser todas ruins, certo?
            — Não, não são. Às vezes eu tenho sonhos ao invés de pesadelos, e me lembro de coisas boas, embora isso seja mais raro.
            — Do que, por exemplo?
            — Lindsay. De brincar com ela e bancar o irmão mais velho. — Logan sorriu, um sorriso genuíno que iluminou seu rosto de um jeito que eu só via quando ele brincava com a filha. Um sorriso infantil. — Como quando ele cantava para ela dormir, mesmo quando ele mesmo estava caindo de sono. Ele sempre esperava até que ela fechasse os olhos, e era muito rápido. Ele gostava disso. O mundo parecia fácil de controlar quando tudo o que se precisava era da canção certa.
            — E qual era? — perguntei, já adivinhando a resposta. — Onde ele poderia ter aprendido uma canção de ninar?
            — Ah, não sei. Na escola, talvez? Não consigo me lembrar dessa parte, mas por alguma razão não me esqueço da música. Canto para minha Lindsay todos os dias.
            Talvez eu não devesse fazer isso. Talvez não devesse cutucar dores passadas, mas havia algo aqui. Coisas que precisavam ser lembradas. E no mínimo eu tinha me proposto a fazer Logan se abrir um pouco. Não havia de ser pior do que acordar todas as noites com o tipo de pesadelos que eu sabia que ele tinha. Não havia de ser pior...
            — Como ele foi parar lá, no lar provisório onde conheceu a garotinha? Você não lembra nada da família dele?
            — Eu não me lembro de nada antes da Lindsay e da casa de Joseph e Barbara. Acho que ele era criança demais quando foi para lá. Mas eu sei o que diziam para ele, que a mãe estava presa, por isso ele não foi para adoção de verdade. Depois ela morreu, mas ele já era grande demais para os casais, que geralmente procuravam bebês, então ficou no sistema.
            — E a menina, a Lindsay? Talvez eles fossem irmãos de verdade.
            — Não, acho que não. Ela tinha uma história também, algo sobre o pai ter matado a mãe, ou algo assim, mas ele não quis saber. Era doloroso demais.
            — E por que a mãe dele foi presa?
            — Metanfetamina, parece que cruzou o caminho de um peixe graúdo e serviu de bode expiatório. Depois a silenciaram.
            — Não sei o que dizer. Isso tudo... Parece muito.
            Era muito! Estava difícil até de pensar com alguma coerência.
            — Você acharia estranho se eu te dissesse que não parece muito para mim? Quer dizer, eu não gosto dos pesadelos, mas... Quero saber mais sobre ele. Não quero me esquecer de nada. E se essa é a forma de mantê-lo vivo, estou disposto a suportar.      Acontece que eu também queria. Naquele momento, mais do que nunca, eu entendia a importância do passado e precisava conhecer o desse garoto. Minha cabeça estava a mil.
            — Você não vai fazer isso sozinho, filho. Não precisa suportar a carga das lembranças sem nenhuma ajuda. Sua mulher se preocupa com você e eu também. E não é gentil de sua parte nos deixar sem saber o que se passa em sua cabeça. Precisa conversar comigo e com Estrela, dividir o fardo em vez de tentar guardar toda essa dor dentro de si.
            — Não. — Ele balançou a cabeça. — Não quero perturbá-la. Estrela é muito sensível e fica abalada com as histórias. Essa preocupação é desnecessária.
            — Não me venha com essa! Você é que tem essa mania de ficar protegendo Estrela de tudo e não percebe que é bem pior para ela ficar tentando adivinhar o que você está sentindo. Francamente, moleque, será que eu tenho que te ensinar tudo?
            Logan me olhou com um misto de incerteza e vergonha. Considerando que eu não era exatamente um sucesso com relacionamentos amorosos, devia ser mesmo vergonhoso ter que ouvir o óbvio de mim.
            — Talvez você esteja certo, mas...
            — Sem “mas”! Não faz muito tempo, você tomou uma decisão por nós dois. Salvou a minha vida, mas você não estava muito interessado no que eu pensava a respeito. Agora estou fazendo o mesmo. Para o seu bem. Sei que você não está acostumado a ser ajudado, que não gosta de se sentir vulnerável. Sei disso como ninguém. Mas, francamente, você vai fazer o que eu mando desta vez porque minha casa...
            — “Minhas regras”, eu sei.
            — Isso.
            Então estava resolvido. Eu tinha encontrado um maldito vespeiro e não estava com medo de mexer nele. Ou estava. Mas isso não importava. Medo é um luxo que alguns podem manter, outros não. E eu já tinha me dado esse luxo e guardado meu coração por tempo demais. Estava na hora de colocá-lo de volta na bendita estrada de mão dupla da vida.


           

           


           


            

CD2 - cap 13


Capítulo 13 – Canções Noturnas

There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke
Through the trees
And the voices of those who stand looking

Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder

(Stairway to Heaven – Led Zeppelin)

Jeb

            Não era tão fácil quanto Mel fez parecer. Ou talvez minha sobrinha, minha pequena, fosse simplesmente mais forte do que eu. O fato é que você quer sobreviver, quer lutar com todas as forças pela posse do que sabe que está perdendo. E esse foi o instinto que tomou conta de mim antes que eu tivesse qualquer controle.
            Permanecer eu mesmo.
            Sem que eu previsse, imagens começaram a me povoar, brincar comigo. A criança que eu fui. Os ecos do homem que eu era. Eu. As coisas nas quais não pensava há tanto tempo, porque estavam tão profunda e naturalmente marcadas em mim que não podia mais chamá-las de lembranças. As partes de minha identidade. Nenhum nome era o suficiente para isso. E eu não era tão bom com as palavras. Mas também não precisava delas. As imagens falavam coisas que só eu entenderia.
            Mesmo assim, tentei sufocá-las. Não queria dividi-las com ninguém e sabia que não estava sozinho. Era como ser espreitado na escuridão, embora eu não sentisse medo. Como ser protegido por alguém que não se pode ver. Uma sensação que não sentia há muito tempo. Mas são minhas lembranças. Minhas. Senti que era preciso protegê-las, mas quanto mais eu tentava, mais escorregadias me pareciam.
            “Esqueça seu corpo. Imagine-se cercado de paredes.”
            Sim, eu me lembrava. Esquecer de meus sentidos. Abandonar meus instintos. Deixar tudo escorrer pelos dedos que não podiam ser mais meus.
            Ficarei firme, pequena.
            Mas resistir doía. As paredes se erguiam de mim como músculos arrancados. Desconectados de minha integridade. Era preciso romper o laço entre corpo e alma e tudo o que eu queria era descansar. Parar a dor. Para sempre.
            “Não.”
            Melanie surgiu ao meu lado. Adulta, olhos prateados. Depois se foi e quem voltou para mim foi a menina daquela tarde. Trevor e eu não brigamos naquele dia. Foi uma das raras vezes depois que ele cresceu e deixou de ser meu irmãozinho tão simples de agradar. Mel era simples. Minha pequena. Nós dois assistimos enquanto ela jogava futebol. Eu estava feliz.
            Então quando Trevor me olhou de novo tinha olhos verdes. Verdes e prateados. Parecia confuso. Mas não. Eu é que estava confuso. Aquele não era Trevor.
            Um sentimento estranho me invadiu quando reconheci o garoto. Um misto de familiaridade reconfortante e ansiedade para respirar. Como se a presença dele significasse salvação e desconforto ao mesmo tempo. Como um remédio amargo. Logan. Meu amigo de quem eu tinha que fugir. De certa forma.
            “Imagine-se cercado de paredes”, ela repetiu. “Assim, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.”
            Melanie.
            Finalmente achei minha voz. Usei-a para contar a ele quem ela era. E para lembrá-lo do porquê de estarmos ali. A clareza me invadiu e me senti como eu mesmo de novo. Talvez fosse simples, no final das contas. Ou o mais próximo disso. A ideia de morte não era tão estranha, eu podia lidar com ela, mas queria viver. Esse desejo era imperioso demais e me guiou para longe da escuridão que espreitava.
            Foi esse o momento, eu acho. O instante em que finalmente consegui criar as tais barreiras que tanto exigiram de mim. Pareceu difícil no começo e acho que por isso continuo me lembrando disso, que o momento continua a se repetir em minha cabeça como um filme. Sei que houve mais depois. Lembro-me de me sentir grato e incomodado, tudo ao mesmo tempo. E de, num certo ponto, ter perdido a conexão com meu próprio corpo, de sentir minha vida se dissipando como fumaça no ar. Lembro-me da sensação de morrer. Mas não é disso que me lembro melhor.
            Não estou morto. Sei disso. E estou sozinho de novo, posso sentir. Não dói mais. Meu corpo, as paredes que precisei manter erguidas e que drenavam minhas forças, tudo parece bem agora. Acho que conseguimos. O que quer que estivesse errado com meu coração não está mais. Só que eu não consegui. Por algum motivo, quando a conexão se foi, eu perdi também a consciência de como recuperá-la. E parece que algumas barreiras também. Agora não há limites para as coisas de que consigo me lembrar.
            Sinto-me perdido, desfeito dentro de mim mesmo. E é tão estranhamente agradável que quase não quero voltar à tona.
            Às vezes ouço algumas coisas. Vozes familiares em frases soltas ou trechos de conversas, e essas palavras produzem imagens. Só que eu não consigo discernir se são sonho, realidade ou lembranças, minhas ou dele.  
            O que posso dizer? Parece confuso. E é. E muito embora seja libertador e excitantemente diferente de tudo o que um humano poderia viver, é também doloroso.
            Eu quis tanto proteger minha identidade, minhas memórias, as peças de meu próprio quebra-cabeça, que não me protegi contra a força perturbadora que é carregar o peso de outra pessoa. É como assistir, do prédio vizinho, a uma criança andar tranquilamente pelo peitoril de uma janela no quinto andar. Quero ser os braços que poderiam puxá-la para a segurança, mas não sou. Quero desviar os olhos para não ver a queda, mas não posso. Não posso fingir que a dor não existe. Já estou envolvido.
            Vejo o Logan humano. Acho que é uma memória, mas também pode ser um pesadelo. Ele é o primeiro a chegar à cena de um crime e olha para ela com frieza. Um traficante matou o rival a tiros e fugiu. Ele não se importa. É vazio por dentro e a morte não o impressiona. É sua profissão, quer apenas fazer seu trabalho e dar o fora assim que possível, partir para outra.
            Com a arma em punho, ele checa se não há mais suspeitos no local, se os socorristas podem entrar em segurança, embora não haja o que fazerem pelo pobre diabo caído numa poça escura de sangue. Há um armário velho na casa, está crivado de balas como as paredes ao redor, mas pode ser um esconderijo. É possível notar a umidade escorrendo por baixo da porta. Talvez o suspeito tenha se ferido e não tenha, afinal, conseguido fugir. Então ele faz sinal para parceiro que o acompanha abra a porta do móvel enquanto ele faz a mira, dando cobertura.
            Sem o apoio da porta crivada, um corpo inanimado tomba para o lado, caindo num baque surdo no chão. Está morto também. A criança não tem mais do que uns 7 ou 8 anos e seus olhos ainda estão abertos. É um menino, um garoto que parece com todas as crianças sofridas que já vi. Que parece com o de outras lembranças ou pesadelos que tenho tido. Parece-se com Logan.
            Chego a sentir o gosto de bile na garganta e acho que é assim que tomo consciência de minha própria respiração, atravessando o bolo incômodo que se forma. Talvez eu esteja acordando, afinal. Porque sinto as lágrimas não derramadas arderem nos olhos do Logan humano. Ou talvez seja nos meus. Consigo imaginar o alivio quando, na mesma noite, ele exauriu o próprio corpo no saco de pancadas da academia de polícia. Sinto até mesmo os nós de meus dedos doerem.
            Penso na menininha morta que despertou tudo isso, toda essa fúria que agora sei que ele sempre guardou. Chamava-se Lindsay, como “minha patinha”, como a doce garotinha a quem eu chamo de neta. Não é ela, embora tome seu rosto emprestado às vezes, mas dói como se fosse. A dor dessa memória, das noites de pesadelo relacionadas a ela, parece para mim como a de dezenas de fraturas. Tem o som de uma alma se rompendo, de estilhaços pesados batendo contra as paredes de um quarto fechado e ricocheteando, ferindo e maculando tudo o que ainda esteja inteiro ao redor.
            É parte de quem ele é, mas não é tudo o que ele se tornou. Vejo outras cenas também, algumas de meu próprio ponto de vista, provavelmente, já que estou na maior parte delas. Talvez seja eu mesmo que esteja lembrando.
            Nós dois no deserto, naquele dia em que achei que finalmente ia ser obrigado a matar ou morrer, com Estrela desmaiada aos pés dele. Quando eu soube que Peg estava viva e o que tudo aquilo significava. Depois, o momento em que o vi partir determinado a trazer Estrela de volta em um novo corpo e a tarde em que voltaram de fato. A sensação de estranheza e alívio quando ele entendeu que podia confiar em mim, o prazer até então estranho de não ser temido ou julgado. Minha visão e os sentimentos dele misturados.
            Os nascimentos de Lindsay e John embaralhados a cenas aparentemente banais, mas que tinham cheiro de lar. Uma discussão com Kyle que acabou em risadas, Sunny cozinhando e colocando um prato quente de macarrão e queijo em minha frente na mesa. Um jogo de futebol com Mel ou de damas com Doc, as lições de direção dadas a Jamie, ou uma conversa tola sobre morcegos e super-heróis com Lily. Eu nunca gostei de macarrão com queijo, ou de discutir com Kyle, ou mesmo me importei com HQs ou coisa que o valha, mas posso sentir o extremo prazer que ele tirou de cada uma daquelas experiências simples e perfeitamente humanas.
            Para mim, Logan é agora tão familiar quanto os labirintos de pedra das minhas cavernas. E eu gosto do que vejo. Já gostava antes, mas agora é como gostar de mim mesmo. E não gostar também, porque às vezes posso ser um sujeito difícil de lidar. Assim como ele. Assim como todo mundo em algum momento. Mas eu entendo. Entendo tudo e aceito. Acho que é isso que se chama paz.
            Sei que havia uma coisa que eu queria saber, algo com que eu devia estar preocupado, mas não estou. Em algum lugar de minha mente sem fronteiras, uma ideia qualquer navega no oceano de muitas outras, mas tudo o que não seja entendimento e aceitação não parece chegar perto o suficiente para ser tocado. As sensações e pensamentos é que me escolhem e não o contrário. Gosto da liberdade disso.
            Liberdade. Talvez estar morto seja assim, mas eu sei que não estou morto. Não me pergunte como, mas eu sei. Desconfio que mortos não sintam o cheiro telúrico de pedra bruta que impregna as paredes da minha casa, aquele odor que outros não sentem, mas que eu sei que está lá. Não que eu seja entendido no assunto, mas suponho que só os narizes vivos funcionem. Provavelmente.
            E eu acho que minha audição está melhor também. Semi-acordada, como quando eu cochilava na frente da televisão e juntava partes dos filmes com meus próprios fragmentos de sonho. Agora mesmo ouço Logan falar. Tenho consciência da voz dele há algum tempo, na realidade, mas só há pouco as imagens que ela produz começaram a ficar mais vivas. Quer dizer, acho que faz pouco tempo, mas não tenho mais certeza sobre essas coisas.
            Ele está falando sobre música. Algo sobre arranjar um violão e sobre como as notas de Stairway to Heaven sobem até o céu e deslizam de volta. Imediatamente sinto asas se abrirem e se elevarem por uma força inesperada, ao menos para mim. Não que eu entenda algo sobre voar, mas... Santo Deus! Estou no ar. Ou o que quer que acaricie a matéria de que sou feito e me impulsione para cima. Tenho tido esses sonhos muitas vezes, e de repente começo a entender por quê. Acho que é uma lembrança... De outro planeta!
            Um conjunto de sons que parecem a princípio dissonantes começa a se agrupar. São notas desconhecidas que comunicam coisas, sons metálicos e agudos se juntando a graves tão retumbantes e baixos que é mais fácil sentir sua vibração do que, de fato, ouvi-los. Frequências tão contraditórias e extremas que eu nunca imaginaria juntas, mas que formam uma música desconhecida que me dá a conhecer tudo ao meu redor. O som é onisciência. É ele que me empurra para cima. Toca as coisas e volta para mim com a forma delas. Vivo através do que as canções me confessam. A visão, esse sentido humano tão indispensável, não tem importância aqui. Tudo é noite que faz parte de mim. E o mundo é absoluta, clara e perfeitamente sonoro.
            No entanto, é uma imagem o que me traz de volta. Meu pai e seu violão. As canções suaves e atemporais de que ele gostava. A melancolia dolorida da saudade que sinto sempre que me lembro. Minha mãe e seus olhos tão verdes e ternos. Todo esse passado longínquo que me puxa para minhas raízes, para o solo familiar em que aterrisso calmamente.
            Por algum motivo me lembro de Norah. Acho que tem a ver com a música. Recordo o dia em que a conheci naquele bar de motoqueiros, parecendo a coisa mais encrenqueira que já andou sobre a Terra, jogando sinuca e fazendo pose de má. Achei que ela era perigosa, tentando esconder sua doçura por trás das roupas pretas e da atitude inconsequente. E ela era perigosa mesmo. Até hoje não sei o que eu estava fazendo naquele maldito lugar. Foi mesmo por causa da música. Pois eu devia ter me contentado com o rádio do meu carro.
            Música... Tem alguma coisa sobre isso, mas não quero pensar.
            Tento me focar no que Logan diz, voltar para o momento anterior, com Stairway to Heaven e meu pai na varanda, mas não está mais igual. Aquelas ideias leves se perderam, o tom dele está diferente.
            “Estou com muito medo.
            ... eu fiz isso.”
            Medo.
            A palavra fica ricocheteando em minha cabeça.
            Fez o quê? Do que ele está falando?
            Começo a me sentir incomodado com a conversa, mas me sinto ainda pior com o silêncio que se segue. Estou mais alerta agora, tentando não me perder em divagações, mas o eco daquelas palavras continua a me atormentar. Talvez até por isso. Porque sei que elas não estão no passado. Há algo de opressivo em sentir uma dor que não vem de memórias, mas do presente. E a voz dele está repleta de um sentimento fora de lugar, de uma angústia e de um cansaço que pesam sobre mim também, porque agora me preocupo com ele mais do que antes.
            Percebo a presença de Peg, mas a paz que sua voz de menina sempre me trouxe parece perturbada também, como se ela, em certa medida, compartilhasse da aflição dele. Quero parar isso, porque não faz sentido. Eles falam sobre culpa e medo da morte quando devíamos estar celebrando a vida. Afinal, nós vencemos, não vencemos? Eu não estou morto, estou?
            Não, eu não estou.
            Começo a empurrar a energia que existe dentro de mim para todas as direções certas. Eu acho. Pelo menos é o que eu tento fazer. Tento imaginar meus braços, os dedos que senti doerem há pouco, procuro movimentá-los. A letargia é imensa, no entanto. Qualquer movimento me parece penoso demais, mas... Aí está! Eu consegui. Tomo consciência de que mexi meu indicador e tento mexer os outros também, depois, quem sabe, girar o pulso, o pescoço... Tem que ficar mais fácil.
            No começo é muito difícil, sinto como se cada dedo pesasse uma arroba ou mais, mas depois meus músculos parecem se reacostumar, se reconectando aos movimentos que lhes ordeno. Então minha mão esquerda está de volta. O mesmo acontece com a direita depois de muito esforço, mas ainda assim menos do que precisei antes.
            Ouço a voz de Lindsay.
            Vamos lá, Jebediah! Não seja preguiçoso. Você sempre gostou de mandar, mande no seu próprio corpo!
            Crianças. Lindsay. John. Jamie. A criança que está em minhas memórias agora. Quero vê-las.
            Vamos... lá.
            — Vovô “ta” doente?
            Não, patinha. Alguém diz a ela que estou voltando, que já sinto minhas pernas. E o sangue em minhas veias.
            — Ele não está doente, não, meu amor. Só está dormindo um pouquinho, como você devia estar fazendo. Já está tarde para crianças estarem de pé.
            Estrela está aqui também. Ela disse que está tarde? Quanto tempo se passou?
            — Mas eu “quelia” o papai.
            — Vá, Logan. Cuide de sua filha. Eu fico aqui com ele.
            — Tudo bem, bebê. Papai vai fazer você dormir.
            Reencontro meus olhos justamente quando Logan a toma nos braços e, de costas para mim, começa a niná-la. Estou de volta à última cena que vi antes das coisas começarem a ficar malucas e eu terminar aqui, com todas essas lembranças estranhas e reveladoras em minha cabeça. A ideia que flutuava à deriva finalmente entra em meu campo de visão. Posso contemplá-la à distância, mas ainda não sei o que fazer com isso. Só sei que antes de tudo, preciso voltar definitivamente para casa.
            — Não se esqueça de cantar aquela sua musiquinha desafinada — digo.
            E mais do que nunca, reconheço os olhos que me olham de volta espantados.

           


             
           
           
           
           




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