sábado, 30 de maio de 2015

ELS Cap23

Capítulo 23 – Deixe-me entrar

Nobody knows it but you've got a secret smile
And you use it only for me

So use it and prove it
Remove this whirling sadness
I'm losing, I'm bluesing
But you can save me from madness

(…)

So save me I'm waiting
I'm needing, hear me pleading
And soothe me, improve me
I'm grieving, I'm barely believing now, now

(Secret Smile – Semisonic)

            Sempre achei que a melhor parte de qualquer dia é poder ver alguém sorrir. Em especial quando sou, de alguma forma, a razão desse sorriso. É um dos meus muitos prazeres secretos, ligeiramente egoístas e vaidosos.
            Eric está sorrindo pra mim agora e sinto como se as cores do mundo se despregassem de mim, voando em direção ao infinito, e depois voltassem. Mais bonitas.
            Estamos jantando juntos em um restaurante japonês, o que deveria incluir, além de comer, conversarmos enquanto o fazemos, mas já não falamos      nada há vários minutos. Apenas estamos aqui, sentados de frente um para o outro, tão presos em nosso próprio mundo que é como se conhecêssemos um segredo apenas nosso.
            É estranho o quanto eu acho isso confortável.
            Há algo de violento na necessidade que as pessoas sentem de enxotar o silêncio e preencher as pausas de quietude com palavras supérfluas, impensadas. É como se não se sentissem seguras sem isso, como se o íntimo de suas mentes pudesse ser invadido e precisasse ser protegido com todo esse ruído branco. E essa é uma perspectiva quase brutal para mim, pensar que o contato entre as pessoas possa se reduzir a apenas isso.
            Palavras são coisas lindas, nascidas da necessidade de conexão, forjadas no calor do amor. As pessoas as usam para machucar, para atacar, defender e manipular, mas não foi para isso que elas nasceram. Elas foram feitas para promover vínculos e entendimento. Não deviam ser usadas para afogar o silêncio. Especialmente quando ele também é tão bonito.
            Sei que sou uma exceção, mas não sinto essa necessidade de conversas para passar o tempo. Gosto de ficar quieta ao lado dos outros. É mais fácil escutar o que não estão dizendo e, na maioria das vezes, é realmente isso que elas precisam que alguém escute, mesmo que tentem tão arduamente proteger.
            Quando estou com Eric, sinto a liberdade e o conforto do silêncio. Não tenho medo do que ele possa ler em mim quando me analisa com seu sorriso cheio de conclusões misteriosas. Nem temo o que se esconde sob as toneladas de águas profundas do oceano de seus olhos.
            Eu anseio por isso, na verdade. E gostaria que ele também não temesse o mergulho, embora eu saiba que ainda é muito cedo para ele. Há um longo caminho para nós, e eu nem sei o quanto ele está disposto a segui-lo.
            No entanto, agora ele sorri. E isso me basta. Não é o sorriso aberto e espontâneo que eu desejo ver um dia. Não é uma risada, tampouco. É apenas seu sorriso traiçoeiro e malicioso, aquele que temo e amo na mesma proporção.
            — No que você está pensando, assassina de sushis? — É sempre ele quem interrompe nossos silêncios, e eu sou bruscamente puxada de meus pensamentos.
            Em minha cabeça, há sempre muitas coisas acontecendo. Barulho e silêncio que se harmonizam e se completam. Então é difícil explicar a ele o que estou pensando. Não é algo que caiba nas poucas palavras de que disponho quando a presença dele transforma tudo em canção.
            É isso o que ele é para mim. Música. E tudo o que as palavras não podem dizer.
            — Estou pensando que você devia sorrir mais. Eu gosto disso — consigo articular, porque acho que essa era a nota mais alta da sinfonia. O quanto gosto do sorriso dele.
            Ele parece desarmado por um instante, pego de surpresa pelas minhas palavras, e o sorriso foge rápida e timidamente de seu rosto. Ele desvia os olhos de mim, mas não é o tipo de pessoa que se deixa tomar facilmente por emoções como essas. Não é surpresa quando ele veste de volta sua expressão lasciva, escondendo-se atrás dela.
            — Talvez você não gostasse tanto do meu sorriso se soubesse o que estou pensando por trás dele.
            E lá vai Eric usar sua técnica defletora preferida, a de me desconcertar. Estou meio perdida na imagem de lábios se encontrando e estou olhando para todos os lados menos para ele, porque essas coisas que ele me diz me fazem... me fazem...
            Ahn... Acho que a palavra que você está procurando é: Gulp!
            “Isso não é bem uma palavra.”
            A menos que você tenha uma ideia melhor para definir seu ar sendo roubado, agora é. Gulp!
            — Bem, não me importo com o motivo. Apenas gosto de ver você sorrir.
            Boa recuperação, Srta. Tímida.
            — Você me faz sorrir. Só você — ele diz simplesmente.
            Ok, tem uma palavra pra isso também, mas não estou encontrando.
            Então eu sou meio que deixada lá, sem ter o que dizer, porque aquela outra parte da minha mente, aquela que sabe lidar com o frio em minha barriga e com o congelamento de meus neurônios, está temporariamente ocupada vomitando um arco-íris.
            Não é que eu não saiba lidar com um homem demonstrando interesse por mim. Sou inexperiente, mas não sou idiota. Tampouco nasci ontem, portanto, essa não é a primeira vez que algo assim acontece. Não tenho tão pouca prática em ignorar galanteios ou me fingir de boba. É só que essa é a primeira vez que eu quero ouvir as coisas, ao invés de ignorá-las. É a primeira vez que desejo, mais que tudo no mundo, que elas sejam verdadeiras. Eu quero que ele me deseje, apesar de todo medo que sinto disso. E quero que ele me ame.
            É isso. A verdade cai sobre mim como um piano que estava pairando a poucos centímetros da minha cabeça. É claro que eu sabia disso. Eu soube desde o momento em que o vi. É estúpido, irresponsável e impulsivo, mas eu me apaixonei à primeira vista.      Eu não sei nada sobre ele, nada, e o conheço por um tempo ridiculamente pequeno. Tudo que é racional em mim protesta quanto à falta de lógica nisso, mas eu o amo. Percebê-lo foi como subitamente notar o desenho de uma constelação onde antes eu só enxergava um bando de estrelas. Sempre esteve ali, existiria mesmo que eu nunca notasse, e continuará existindo muito depois do fim.
            Eu o amo e já não me basta apenas isso, como em minha ingenuidade cheguei a pensar que bastaria. Eu quero que ele me ame também, porque sinto que posso enfrentar todas as minhas dúvidas se tiver essa certeza
            Meu Deus. Onde estou com a cabeça? O que estou fazendo?
            Não é como se eu pudesse perguntar a ele o que sente, é?  Eu nem sei se ele sente alguma coisa, para começar. Quer dizer, ele certamente não é indiferente a mim, mas, até onde eu sei, pode estar apenas querendo se divertir. E eu não posso ser o divertimento do homem que amo. Não esse tipo de divertimento. Não quando cada segundo ao lado dele significa tanto para mim.
            — Eric, olha... Eu... Eu não sei o que você está esperando, mas... Eu não sou esse tipo de pessoa...
            — Opa, calma! — ele rebate, uma expressão meio ultrajada no rosto e as mãos ligeiramente levantadas em um gesto de surpresa e rendição. — Espere aí, de onde saiu isso?
            Oh, céus! Você não achou de novo que ele estava acompanhando toda essa conversa na sua cabeça, não é? Porque você faz isso às vezes.
            O pior é que é verdade. Eu fiquei tão imersa nessas constatações, tão encantada com o conforto do silêncio entre nós, que acabei me esquecendo de consultar a outra parte da “conversa”.
            — É que eu gosto muito da sua companhia. E o que você falou sobre se sentir em paz comigo, sobre eu te fazer sorrir... É assim que eu me sinto com você, essas coisas são verdade para mim e...
            — Você está insinuando que não são verdade para mim? — ele me interrompe parecendo irritado, do jeito que costuma ficar antes de se isolar em sua fortaleza de frieza. — Acha que tenho o hábito de ficar atrás de garçonetes metidas a misteriosas que sequer aceitam me beijar?
            Tudo bem, você podia dormir sem essa, porque bem que doeu. Será que dá pra você ir direto ao ponto? Ou pelo menos passar perto do ponto, se possível?
            E eis que eu chego a um nível nunca antes visitado de autoboicote: consegui deixar Eric irritado, eu mesma nada feliz e aquela outra parte de mim ainda mais sardônica.
            Talvez eu devesse parar de chamá-la de cínica, malcriada e racional e inventar um nome para ela. Um vocativo que pudesse vir acompanhado da pergunta “De que lado você está, afinal?”
            E quando você fizer isso não precisará mais de mim, porque ficou louca e cínica de vez, então não vai mais precisar disfarçar com essa bobagem de amiga imaginária.
            “Gah!!! Cale a boca! Eu tenho um mal-entendido para resolver aqui.”
            Então eu respiro fundo e me foco no diálogo real em vez do imaginário. Mas acho que vou tentar seguir o que ela falou: ir direto ao ponto.
            — Não, é claro que não. Não foi isso que eu quis dizer. Não estou tentando me fazer de difícil e nem dizendo que você mentiu. É só que eu gosto muito de você e isso é novo para mim. Você não faz ideia do quanto. E eu sei que é cedo pra dizer, e que estou me arriscando a você achar que eu sou uma louca vendo coisas onde não existem, mas eu queria saber em que página você está desse livro.
            Tudo isso sai num jorro de coragem, de uma vez, sem reticências, e agora estou quase hiperventilando, porque estou imaginando como essas palavras estão soando malucas e precipitadas aos ouvidos dele. Tento conter minha ansiedade e parecer centrada, algo em que devo estar falhando miseravelmente. No entanto, vale a pena o esforço de tentar, porque ele não precisa que eu acentue meu discurso estranho com uma expressão de louca no rosto. Ele já deve estar analisando o ambiente para rotas de fuga sem isso.
            Depois de alguns segundos, ele ainda não fugiu, o que eu acho que é uma coisa boa, e sua irritação parece ter sido substituída por ponderação, o que eu acho que é uma coisa maravilhosa. Ele aperta os olhos me observando e posso perceber que ele está analisando tudo: meu rosto, os instantes anteriores, cada palavra que eu disse. Sinto-me como um inseto visto por uma lente de aumento, porém, ao contrário do que eu esperava, não estou com medo da resposta dele, eu realmente quero saber, e gosto do fato de ele estar pensando cuidadosamente no que vai dizer a seguir.
            — Gostar de alguém não é um conceito familiar para mim, Luz.
            E aqui está ele de novo, com seu jeito de responder sem responder, a fala pausada e os olhos perdidos de quem está se esforçando para escolher apenas um dos caminhos que se abrem em sua mente. Ele sempre parece assim quando fala sério. Sempre perdido em meio às milhares de coisas que acontecem ao mesmo tempo em sua cabeça. Barulho e silêncio que se harmonizam de uma forma que só ele entende.
            — Eu não gosto disso — ele continua. — Não gosto de ser confrontado com coisas que não pretendia enfrentar. E não gosto que você esteja me forçando a admitir isso.
            Isso está começando a se parecer demais com um discurso que precede uma despedida brusca, e meus olhos já estão começando a arder. Um constrangimento brutal começa a me pinicar os ossos, ameaçando sair em forma de palavras desconexas, quando ele retoma sua fala. Assim, como se não tivesse parado.
            — No entanto, é isso que você faz, não é? Você consegue o que quer. Então, embora eu também não saiba onde vamos chegar com isso, não menti pra você, Clara. Eu me sinto bem como nunca achei possível quando estou com você. Você me faz querer me acostumar a essa sensação e eu acho isso perigoso demais pra nós dois, porque eu não sou homem para você. Mas seria ridículo se eu continuasse dizendo a mim mesmo que não sinto nada.
            Solto a respiração que nem percebi que estava prendendo. Eric tem esse jeito de dizer as coisas de uma forma que parece que ele não disse nada, quando, na verdade, disse bem mais do que havia sido perguntado. E, a menos que eu tenha enlouquecido de vez, acho que ele acabou de admitir que sente alguma coisa por mim também.
            Quero permanecer focada e conversar sobre isso como uma pessoa normal, ou quase — mesmo que fosse apenas quase —, mas não consigo evitar o sorriso que começa a se espalhar em mim, vestindo meu rosto, transformando meus olhos em vitrines tão óbvias de minha alegria, que me sinto quase vulnerável demais.
            Algo em Eric também muda quando reajo dessa maneira. Subitamente, o peso de sua seriedade se foi e ele parece bem-humorado novamente.
            — Eu tenho uma pergunta — ele começa, e eu sei, pelo jeito como me olha, que ele vai vir com mais uma de suas frases atrevidas. — Existe alguma chance de esta conversa anular a anterior? Você sabe, sobre eu precisar esperar você entender o que está sentindo. Porque eu acho que nós meio que já estabelecemos isso.
            — Bom, eu... ahn... — Acho que ele tem razão, mas... mas... Céus! Eu não faço ideia do que vem agora. Não é como se tudo isso fizesse algum sentido pra mim, afinal. — Acho que não pensei sobre isso. Esta conversa saiu meio de repente, quer dizer, não era nem para estarmos aqui hoje, eu... Até ontem, eu nem imaginava que você...
            — Tudo bem, tudo bem! — Eric ri, obviamente se divertindo com minha falta de jeito. — Só achei que não custava perguntar.
            Eu tento rir também, mas estou constrangida demais para isso e o que sai é um riso nervoso e meio estranho. Então Eric fica sério de novo e segura minha mão, apertando de leve meus dedos. Ele não me encara quando fala, apenas olha para nossas mãos juntas, o que, na verdade, acaba tornando tudo um pouco mais fácil.
            — Você é realmente especial, Luz. Eu não a culpo por pensar bem no que está fazendo, porque, mais cedo ou mais tarde, você vai acreditar quando eu digo que não sou bom o bastante pra você. Eu só não consigo evitar estar perto quando você deseja que eu esteja.
            — Por quê? — pergunto, levantando seu rosto com os dedos para que ele olhe para mim. — Por que você quer estar junto de mim, sabe que eu preciso disso, mas não consegue entender que eu nunca, nunca serei capaz de achar que você não é bom o bastante?
            Um riso amargo escapa de seus lábios e ele meneia a cabeça devagar, num misto de negação e incredulidade. É então que finalmente percebo. Sua frieza, suas palavras tantas vezes duras e sempre dúbias, o jeito como ele afasta as pessoas, se escondendo atrás dessa pose de quem não precisa de ninguém. O jeito como ele tenta me afastar cada vez que chego um pouco mais perto... Todos esses avisos de que não é bom o bastante...
            Ele realmente acredita nisso. Simplesmente não consegue enxergar o que vejo. Não consegue ouvir a canção que se esconde em seus olhos, em seu coração que canta para o meu. Ele parece odiar a si mesmo e parte meu coração finalmente perceber essa dor.
            Como isso é possível? Quem o machucou tanto que cegou seus olhos para a luz em sua própria alma? Como ele não é capaz de ouvir aquilo que é tão alto para mim, apesar da confusão dos sons? Do meu desejo? Do meu amor? Da minha própria humanidade constantemente equivocada?
            Apenas não há equívoco nenhum aqui. Posso estar confusa sobre muitas coisas, mas eu sei de outras tantas. E confio nos sopros de minha intuição.
            Ele é especial. Ele é maravilhoso. E agora eu sei que sou eu que devo mostrar isso a ele.
            — Você pode me deixar entrar, Eric? Pode me deixar te mostrar quem você é através de meus olhos?
            — Você não sabe quem eu sou, Clara. E não vai querer saber também. Só está sendo ingênua. Você é apenas doce demais.
            — Você diz que eu sou especial, mas isso é algo que você enxerga, não eu. Para mim, eu sou todos os meus defeitos, todas as minhas fraquezas, tanto quanto o que me faz forte. Sou boa e ruim também. Às vezes um pouquinho mais ruim do que boa, em outras, sou as duas coisas ao mesmo tempo. Mas eu quero acreditar que na maior parte das vezes eu sou o que você vê. Você entende o quanto isso me faz bem?
            — Mas você deve acreditar. Você pode. É diferente.
            — Por favor, Eric. Deixe-me retribuir seu olhar. Deixe-me entrar. Por favor. Seria apenas gentil de sua parte.
            — Você vai tentar de qualquer forma, não vai? Ninguém pode impedi-la de ser você mesma.
            — Não realmente — respondo. — Então, sim, eu vou tentar de qualquer maneira.
            — Então talvez eu deva pensar com clareza por nós dois. — Ele tenta puxar a mão da minha e se levantar quando diz isso, mas eu não permito. Seguro-a firmemente numa espécie de ato reflexo, porque a mera possibilidade de que ele vá embora neste momento me parte a alma em duas.
            — Fique.
            Não estou implorando, sequer é um pedido. É mais como uma força inarticulada que sai de dentro de mim e projeta minha vontade numa única palavra. É tão intenso que um ligeiro tremor abala meu corpo quando o som daquele apelo escapa por meus lábios. Eu simplesmente preciso que ele fique.
            Eric para no meio do impulso de se levantar e seu corpo pousa de novo na cadeira, uma de suas mãos ainda entre as minhas e o semblante preocupado.
            — Tudo bem — ele diz simplesmente, e ficamos alguns segundos parados até que ele sorri, levando minhas mãos até os lábios e me olhando por cima de nossos dedos entrelaçados. — Mas só pra você saber, eu só ia chamar o garçom. Posso pensar com clareza amanhã.
            Explodo numa risada aliviada e meio sem graça. Se for verdade, acabei de fazer uma cena totalmente desnecessária. Outra. Mas estamos rindo e eu acabo de perceber que é uma expressão nova a que ele tem no rosto. E é para mim. Inteiramente para mim.
            — Você está rindo. — Pareço uma boba dizendo isso, mas meu filtro está de licença, aparentemente. Provavelmente de luto por meu bom senso.
            — Bem, você é engraçada.
            — Acho que sou — respondo, saboreando a palavra que em outras circunstâncias eu tomaria como código para “ridícula”, mas não hoje, porque ele não me faz sentir assim. — Disponha. Se minha recompensa for essa, estamos em cartaz cinco dias por semana no On The Rocks.
            — Hum, não sei, conheço o dono de lá e soube que ele não está contratando. É um sujeito meio antipático, sabe? Mas se você quiser, tem outro cara que não ligaria de te recompensar por coisa alguma.
            — Oh, você poderia me apresentar a esse cara, então?
            — Prontamente, senhorita. Mas eu meio que preciso dessa mão para a piada funcionar — Eric brinca, apontando com o queixo para a mão que ainda seguro como se ele fosse me escapar. Dou uma risadinha boba e solto a mão dele, me endireitando na cadeira. — Eric Morgan, como só você tem direito a ver. É um prazer conhecê-la, Srta. Luz na Escuridão.
            Ele estende a mão para mim, como se estivéssemos mesmo nos apresentando, mas eu não a pego. Apenas olho para ele, sem saber como dizer que isso não é uma piada, e sim a coisa mais bonita que já ouvi.
            Aquele sorriso novo de agora há pouco brinca novamente em seu rosto e, quando não reajo, ele olha para mim também, me convidando a “entrar”. Aceito o desafio e seguro a mão que ele me oferece, porque Eric precisa saber que eu não vou partir se ele me deixar ficar e sinto como se eu estivesse prometendo isso com esse gesto.
            Nossos olhos se encontram e nos trancamos um no outro, selando nosso pacto.

******

            — Tudo bem, me diga de novo como você me convenceu a isso — resmunga Eric, mal-humorado.
            “Isso” é um cachorro pequeno e magricela com que nos deparamos na saída do restaurante. Há um pelo branco malhado de marrom por baixo do barro sob o qual ele está escondido, acho. Mas neste exato momento, ele é só um monte de ossinhos frágeis coberto por uma sujeira fedorenta que eu embrulhei na jaqueta e estou carregando para dentro do carro de Eric.
            — Eu pedi “por favor” — respondo, rindo da cara que ele faz, os lindos olhos azuis estreitando-se num misto de raiva e indignação.
            — Sim, você pediu. E eu estou desenvolvendo o péssimo hábito de atender a seus pedidos absurdos — ele me responde com um sorrisinho provocador.
            E é por causa desse sorriso que percebo que ele não está falando sério. Não totalmente. Pelo menos é disso que tento me convencer enquanto a última palavra rola em minha cabeça.
            Absurdos.
            Lembro-me da última coisa que pedi a ele, algumas horas atrás, quando estávamos juntos no meu apartamento.
            “Você pode me esperar? Pode esperar que eu entenda o que está acontecendo comigo?”
            Eu sei como isso soa. Sei que cada palavra transparece minha extrema inexperiência e me deixa incrivelmente vulnerável. E também sei que Eric nunca deve ter ouvido um pedido como esse e que, especialmente depois da noite de hoje, parece um apelo estranhamente fora de lugar. Mas o que posso dizer?
            Este não é um relacionamento normal. Eu não sou uma pessoa normal. Há muitas coisas a serem ditas, pensadas e vividas, então é melhor tentar ir devagar. E neste momento eu tenho esta vidinha em minhas mãos precisando de minha ajuda.
            — Você não queria que eu o tivesse deixado na chuva, tremendo de frio como estava, queria?
            Eric não responde. Apenas olha para mim, claramente pensando em alguma coisa espertinha para me dizer, mas não encontra. Em vez disso, ele apenas abre a porta do carro e bufa, fazendo uma careta de puro desgosto quando coloco o cão no tapete de seu carro imaculadamente limpo.
            Ele tem um desses SUVs gigantescos e desajeitados, bem diferente da moto elegante e silenciosa que costuma usar quando não está chovendo. Mas há coisas em comum o suficiente entre os dois veículos: ambos são potentes, pretos e absurdamente caros, pelo menos para os meus padrões. Acho que dinheiro não é problema para ele, ao que parece.
            — Eu compro uma nova pra você, mas mantenha-o enrolado na jaqueta, ok? Pelo menos disfarça um pouco o mau cheiro.
            — Tudo bem, ele está com frio mesmo. Coitadinho!
            O cachorrinho, que não é um filhote, mas é pequeno e parece ser novinho, se aconchega em meus pés enquanto Eric nos leva para casa em total silêncio. Quando estávamos saindo do restaurante, paramos um pouco para nos proteger da chuva sob a marquise da entrada e eu o vi.
            Fechei meus olhos quando ele começou a correr em direção à calçada e um carro freou bruscamente para não atropelá-lo. Em seguida, ele veio diretamente se encostar em minha perna, todo molhado e trêmulo de frio. Eu me abaixei e afaguei sua cabeça. Ele olhou para mim, abanou o rabo e deixou claro que não sairia dali.
            E isso basicamente resume a história, porque acho que não preciso de outra razão para resolver que, daquele momento em diante, ele seria meu cachorro. De quando em quando, um deles me escolhe, e dessa vez foi esse.
            — Você tem certeza de que vai ficar com esse bicho? — Eric pergunta quando estacionamos em frente ao meu prédio. — Quer dizer, eu sei que você ficou com pena dele, mas tenho certeza de que deve ter algum lugar que o recolha, não?
            Ele não faz ideia. Deve ser uma daquelas pessoas que nunca teve cachorro na vida, e que acha que cachorrinhos de rua sujos e fedorentos têm algum lar possível em algum lugar onde eles não incomodem a sociedade.
            — Não, Eric. Não tem outro lugar pra onde ele possa ir — respondo tentando ter paciência. — E ele me escolheu, precisa de mim. Não posso simplesmente virar as costas.
            — Por que não?
            Olho para ele surpresa, constatando pela sua expressão e tom de voz que ele não está sendo cínico, é uma pergunta genuína. Cada vez que tenho um vislumbre do que se passa dentro dele de verdade, fico mais surpresa e entristecida, porque esse é um homem mais infeliz e ferido do que eu podia imaginar. Subitamente, ele parece tão frágil que tudo o que quero fazer é abraçá-lo.
            — Porque quando o amor nos escolhe não se pode dar as costas a ele, Eric. Não farei isso em nenhuma circunstância.
            Quero que ele saiba que essas palavras são para ele. São minha profissão de fé de que quero ajudá-lo, de que estarei aqui para ele. Mas não é o tipo de coisa em que ele acreditaria se eu simplesmente dissesse. Preciso de tempo para que ele perceba através de meus atos.
            Ele franze as sobrancelhas e olha para frente, encarando a rua através do parabrisa. Depois volta ao seu costumeiro ar blasé, tentando fingir que minhas palavras não significaram grande coisa, e olha para o cachorro aos meus pés distraidamente.
            — E que nome você vai dar a ele?
            — Hum, não sei. Alguma ideia?
            — Sei lá. Talvez alguma coisa com que ele se pareça... — Ele fecha um dos olhos e faz uma careta. — Ele é bem feio, na verdade.
            — Não diga isso! — bronqueio de forma brincalhona, enquanto tapo as orelhas do cachorro.
            — Clara! Nem você pode ignorar que esse coitado é puro osso, sujeira e pelos falhados.
            — Eu não vejo essas coisas. Só vejo esses olhos. São puros, leais e cheios de amor, apenas esperando alguém com quem dividi-lo. E se você der a ele um pouco de si, ele vai amá-lo mesmo que você não mereça. Quanto ao resto, não há nada realmente mais importante que isso, e não há nada que não possa ser consertado.
            — Carinha de sorte — ele diz, pensativo. — Quem dera fosse tão simples assim com as pessoas.
            — Poderia ser. Se as pessoas realmente tentassem. Se elas dessem uma chance a si mesmas e umas às outras.
            Eric olha para mim como se eu fosse uma aberração ingênua, mas eu não sou. Sei que as coisas não são simples, mas também sei que poderiam ser. Realmente acredito nisso. Acredito na possibilidade de mudança e perseguir isso é a essência do que eu sou. Então como eu poderia não ter esperanças?
            — Você realmente acha que pode consertar tudo? — ele pergunta com uma expressão de desdém.
            — Não. Eu só sei que vou sempre tentar.
            O cachorrinho continua dormindo encolhido sob minha jaqueta — acho que ele não esteve minimamente confortável por muito tempo, então agora conseguiu relaxar — e eu olho para ele por um instante, tentando desviar minha atenção do sentimento de amargor e desesperança que toma conta de Eric. Ele está sofrendo, lutando contra uma ideia que pode fazer tudo ser diferente, apenas porque deve sempre ter acreditado no oposto.
            — Mesmo quando o que é feio não pode ser visto com os olhos? Você acha que as coisas podem ser consertadas mesmo quando já nasceram sujas e quebradas?
            O significado profundo dessas palavras rasga um buraco dentro de mim. Ele está falando de si mesmo. Essa é a maneira como ele se vê. E qualquer que seja a razão para isso é tão dolorosa quanto irreal. O que quer que ele veja, eu sei que pode ser visto de forma diferente, porque, embora esteja quebrado, já foi perfeito. E ainda é perfeito para mim.
            — Talvez seja apenas a maneira de vê-las, Eric. Nada nasce sujo e quebrado. Nada nem ninguém. E se você me escolher, eu não vou te dar as costas.
            Ele parece com raiva por um instante, sua luta interior confundindo suas reações, mas, pela primeira vez, ele está fragilizado o bastante para que eu sinta um pouco de sua energia. Ele não está com raiva de mim. Está confuso e triste. E um pouco esperançoso também.
            Ele apoia a testa sobre o volante por um segundo e o esmurra de leve quando se levanta novamente. Então ele sai do carro e o contorna correndo, abrindo a porta do passageiro e me puxando para fora com as mãos em volta de minha cintura. Ele me abraça, prensando meu corpo contra o carro, e uma de suas mãos sobe pela minha nuca, os dedos entrelaçando-se em meus cabelos.
            — Me desculpe, Luz, mas se você não passar de um sonho bom, pelo menos desta vez eu tenho que fazer isso.
            Então os lábios dele se encostam nos meus e não há sequer tempo para que meu coração possa ameaçar abrir um buraco em meu peito. Talvez ele tenha parado, deixando o resto de meu corpo dormente, porque não sinto nada a não ser a boca de Eric abraçando a minha, seus lábios úmidos deslizando leve e gentilmente enquanto meus olhos se fecham por um instante que não poderia nunca ser longo o suficiente. No entanto, logo os abro de novo, porque quero vê-lo. Quero olhar para ele e para seus olhos fechados com firmeza, antes de eles se abrirem para mim quando Eric morde de leve meu lábio inferior.
            Deve haver no mundo um momento mais lindo que esse, mas eu não preciso conhecê-lo. Posso viver para sempre se a única lembrança que eu tiver for a desses olhos.
            — Blue — eu digo sem pensar.
            — O quê? — Eric pergunta numa risada baixa que sai numa pequena lufada de ar.
            — O cachorro. Vou chamá-lo de Blue.
            — Porque você acha que ele é triste[1]? — ele pergunta num tom divertido, o rosto distante do meu apenas o suficiente para que nossos lábios possam se mover sem se tocar, o que eu nem acho mais que seja uma coisa boa.
            — Não, porque eu gosto da cor.
            Eric ri, depois me abraça forte e me dá um beijo condescendente no topo da cabeça.
            — Tudo bem, Luz. Podemos voltar a pensar com clareza amanhã.
            Ficamos ali abraçados por um tempo, depois ele me acompanha e a Blue até a entrada e vai embora. O sorriso novo, o meu sorriso, brinca nos lábios dele o tempo inteiro. E depois mais tarde, nos meus sonhos.



[1] Em inglês, a palavra “blue” pode designar tanto a cor azul, quanto o sentimento de melancolia ou tristeza.

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