sexta-feira, 22 de maio de 2015

CD2 - cap 14

 Capítulo 14 – Mão dupla

All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?

(Eleanor Rigby – The Beatles)

Jeb

            Nunca fui um sujeito sentimental.
            Não é nenhum tipo de decisão racional ou princípio antiquado, mas alguma coisa em demonstrar emoções sempre pareceu atípico de mim. E quando você é um velho fazendeiro do sul ninguém se importa muito com isso, simplesmente deixam você ser um cara rústico e fechado e assumem que é natural.
            Eu mesmo nunca pensei muito a respeito, exceto uma vez, com Norah... Mas cheguei à conclusão de que antes de lutar para mudar por ela, devia ter sido aceito como era. Esta coisa toda de amor — ou o que quer que fosse aquilo — devia funcionar em mão dupla, segundo pude concluir mais tarde. Infelizmente, eu não entendi isso quando precisava e depois, quando finalmente entendi, não valia mais de nada. De qualquer jeito, não importava mais. No final das contas, era útil não amolecer com facilidade. O que não queria dizer que eu não ficasse balançado às vezes.
            Na noite em que voltei de minha ausência, por exemplo, algumas coisas me pegaram de surpresa.
            Não estou falando do fato de todos me receberam com entusiasmo e comoção. Era esperado que, diante das circunstâncias, mesmo aqueles que não são meus maiores fãs se importassem com minha saúde. Para o bem ou para o mal, todos ali éramos família, afinal. Então os apertos de mão e tapinhas nas costas eram previstos. Os abraços também.
            Era previsível que Estrela se pendurasse em meu pescoço antes mesmo de que eu conseguisse me erguer do catre, e que depois tentasse cuidar de mim, me impedindo de fazer qualquer esforço, dando ordens às quais sabia que eu não obedeceria. E não era nada estranho que Lindsay imitasse a mãe em seus carinhos arrebatados de criança e saísse dizendo a todos que eu devia ficar de “re-pou-so”, fazendo-os rirem da forma como ela pronunciava a palavra nova com cuidado, fazendo biquinho.
            Também não estranhei quando Peg se emocionou discretamente, desviando os olhos vermelhos e limpando as lágrimas furtivas, porque não gostava que se preocupassem com ela. Assim como fez Magnólia, minha irmã, que sempre quis parecer mais casca grossa do que eu.
            A alegria de Sharon e Doc. O alívio de Jared. O entusiasmo de Jamie. O olhar de triunfo de Melanie quando provei ser tão forte quanto ela esperava. Nada disso foi exatamente surpreendente. O que eu não esperava mesmo é que essas coisas cavassem um buraco tão fecundo dentro deste coração que eu mesmo julgava tão árido.
            Talvez eu não deixe ninguém saber, mas dividir a mente com Logan me mudou. Percebi isso naquela mesma noite, quando observei a expressão dele repetidas vezes, mas não por curiosidade, ou por me divertir ao vê-lo se retrair aos elogios e agradecimentos, como era seu costume, e sim em busca de algo que eu pudesse reconhecer e decifrar. Em busca de algo que me ajudasse a entendê-lo.
            Porque Deus que me perdoe, mas eu precisava. Essa história toda estava me corroendo por dentro.
            — Você não vai parar depois de duas míseras voltas. Pode parar de enrolar — ele decretou e eu tive vontade de matá-lo. Mas só porque eu sentia isso por qualquer um que me desse ordens daquele jeito.
            — Não sou um maldito hamster, Logan. Vê se me deixa em paz. Estou voltando para dentro para trabalhar, que é como os pobres mantêm a forma.
            O suplício das rotinas de exercícios tinha começado poucos dias depois do “susto”, como o pessoal tinha escolhido se referir à minha trombada com a morte. Por mim, eles podiam dar o nome que quisessem, desde que eu não tivesse que aturar todo mundo vigiando o que eu comia e me obrigando a correr no meio do deserto como um camelo que tomou Red Bull.
            — Acontece que você dá mais ordens do que põe a mão na massa. E até a última vez que chequei, delegar tarefas não ajuda a manter a forma.
            — Bom, cheque de novo. Pode ser útil no seu futuro, já que você é tão bom nisso de querer mandar nos outros.
            — Estrela disse que é bom para você — ele rebateu mal-humorado. O moleque tinha aquele tipo irritante de determinação de ferro e, previsivelmente, não gostava de ser contrariado.
            — Vou te dizer o que é bom para mim, garoto. Respirar. Então, se me der licença, vou me sentar ali e passar um tempinho de qualidade com meu amigo oxigênio. Pode até se juntar a nós se quiser.
            Àquela hora da manhã, o sol ainda não tinha tido tempo de ficar implacável, e era-nos até possível fazer uma caminhada ao ar livre sem morrermos torrados. Até aí tudo bem, eu nunca me queixaria de andar, Deus sabe que foi para isso que me deu pernas, mas quando Logan sugeriu que eu parecia bem o suficiente para tentar uma corrida curta cheguei ao limite da minha paciência. Nunca fui do tipo que corre sem ter aonde ir.
            Logan bufou de raiva, mas não protestou. Nem tampouco se juntou a mim também. Ao invés disso, optou por se calar e me deixar em paz enquanto gastava sua raiva correndo sozinho pelo percurso que tinha determinado. Provavelmente só ia parar quando suas pernas não aguentassem mais ou o sol estivesse forte demais para continuar.
            — Hamster! — resmunguei, me lembrando daquele “ratinho” que fica correndo em uma roda dentro da gaiola. Mel tinha um desses quando era criança. O bichinho era tinhoso e cheio de energia. Então já deu para entender a comparação.
            Eu certamente era grato por tudo que Logan tinha feito por mim, mas essa obsessão por cuidar da minha saúde, ironicamente, não estava sendo saudável para ele. Só um idiota não perceberia que ele estava usando isso para evitar pensar nas coisas difíceis, recurso com o qual eu até seria capaz de simpatizar se não me importasse tanto com o garoto. E já que eu me importava, não podia deixar que ele continuasse se fechando.
            Do jeito dele, acho que a experiência também o afetou e nenhum de nós sabia bem como lidar com isso. Em outros tempos, Logan teria ficado ali e me enfrentado, comprado a briga e se divertido com ela, mas ultimamente ele andava arredio.
            — Vamos voltar — ele disse quando, por fim, se cansou e voltou para onde eu estava esperando. — O sol está ficando quente demais, de qualquer jeito.
            — Ainda não. Me faça um pouco de companhia enquanto ainda temos sombra.
            A frase simples teve um efeito imediato. Logan tinha apoiado as mãos sobre os joelhos para descansar um segundo e estava olhando para baixo, mas imediatamente se empertigou, começando a me inspecionar. A expressão em seu rosto assumindo aquele ar de preocupação irritante no mesmo momento.
            — Por quê? — questionou, e juro por Deus que quis lhe dar um safanão. Afinal, estava na cara que ele já tinha a resposta pronta em sua cabeça. E não era a mesma que a minha.
            — Preciso ter uma razão para querer me sentar ao lado de um amigo? Eu só quero jogar um pouco de conversa fora, Logan! Não precisa achar que estou me sentindo mal cada vez que você não consegue mandar na minha vida.
            Isso pareceu tê-lo deixado meio sem graça, mas não o suficiente para parar de argumentar.
            — Desculpe — pediu, finalmente se sentando. — É que eu achei... Bom, fadiga é um dos sintomas. E talvez eu tenha forçado muito com a caminhada, está um dia quente.
            — Estou muito bem disposto, obrigado. E pude descansar bastante das “duas míseras voltas” que dei. Você precisa parar de se preocupar tanto.
            Não recebi nenhuma resposta. Obviamente toquei num ponto complicado. Devo admitir que fui irresponsável da primeira vez, subestimando os sinais que meu corpo dava. O resultado foi aquela situação que nos pegou a todos de surpresa e que levou a medidas extremas. Não creio que depois disso Logan vá confiar em mim para alertá-lo caso não esteja me sentindo bem, embora eu possa garantir que aprendi minha lição. A verdade é que, no lugar dele, eu também não confiaria. Nem tampouco me preocuparia tanto com um velho teimoso que passa o tempo todo implicando com seus cuidados excessivos.
            — Desculpe por ser tão difícil — admiti. — Sei que você só está querendo ajudar. Posso não ser o sujeito mais agradecido do mundo, mas não sou burro o suficiente para ignorar que isso é um defeito meu. É que sempre cuidei de mim mesmo e dos outros. É difícil me acostumar com a situação inversa.
            — Eu sei como é.
            É, ele sabia. Mas não era o mesmo tipo de sensação que a minha. Vinha de um lugar diferente em sua mente e causava um efeito bem diverso também.
            Na noite em que dividimos o corpo, quando tivemos que ser carregados por Jared e Ian porque eu não tinha forças para andar, pude sentir que aquilo significava mais do que um incômodo ou algum tipo de orgulho ferido, era mais complexo do que isso. Era algo que trazia de volta uma insegurança tão impertinente e dolorosa quanto uma ferida infeccionada. Como se relaxar um segundo e depender de ajuda pudesse ser catastrófico, como foi para a menininha que o Logan humano perdeu. Mas agora os tempos eram outros. Era preciso que ele entendesse isso, embora eu achasse que num nível racional ele até entendia.
            — Não é tão ruim assim, sabe? — eu disse depois de um tempo.
            — O quê?
            — Ser cuidado. Deixar as pessoas te ajudarem. Deixá-las à vontade para gostarem de você. Não é ruim.
            — Não, não é ruim — Logan respondeu, mas eu não estava certo de que ele sabia realmente o que eu queria dizer. Talvez estivesse apenas me enrolando com a resposta que achava que eu queria ouvir. Ele era bom nisso. Desenvolveu o talento quando veio para cá e precisou se acostumar com os humanos, mas tenho a impressão de que ele sempre foi do tipo que sabia o que dizer.
            — Então por que você nunca contou sobre as lembranças e pesadelos que te perturbam?
            Achei que não matava ir direto ao ponto. Cedo ou tarde a gente se cansa de jogar xadrez com as palavras.
            — Você também nunca me falou sobre as suas.
            Xeque!
            — Está se referindo a Norah? — Sei que aquela lembrança teve um impacto sobre ele. Talvez porque, de alguma forma, ele tenha intuído o que eu quis esconder. Que mais do que a doença, foi a maldita memória que me assaltou naquele dia.
            — Sim.
            — Por quê? O que importa falar sobre ela?
            — Tem razão, não importa. Não quero ser intrusivo.
            Porque assim também não precisamos falar sobre ele. O garoto sabe ser mais escorregadio do que peixe ensaboado.
            — Não banque o espertinho comigo, Logan. — Ele olhou para mim tentando fingir indignação, mas no fim apenas riu, porque sabia que eu já tinha entendido seu jogo. — Façamos o seguinte: eu digo o que você quer saber e você fala comigo. Sem segredos. Não faz sentido entre nós.
            — É, acho que, no fim das contas, não faz mesmo.
            — Além disso, já estou cheio destes fragmentos fora de contexto que ficaram na minha cabeça. Se eles vão ficar por aqui, pelo menos quero entender a história por trás deles.
            — É estranho, não é? — disse Logan. — Quando voltei para o meu corpo, queria conversar com você sobre isso, mas depois eu não soube como. Eu... Ah... Bom... Não sei muito bem como me abrir com ninguém.
            — Também não é minha especialidade, filho. Mas se você vai ficar tão preocupado comigo o tempo todo, ao menos me deixe retribuir o gesto.
            — Não, você não tem que se preocupar com nada. Estou b...
            — Estrela me disse que você tem tido pesadelos quase diários — interrompi. — Que dorme mal e que não fala com ela sobre isso. Ou com ninguém, até onde sabemos.
            — São só pesadelos, não têm importância alguma.
            — O que houve com “eu digo o que você quer saber e você fala comigo”? — provoquei, embora eu já soubesse o que viria a seguir. Mas tudo bem, eu pagaria o preço.
            — Bem, se vamos fazer nessa ordem, então você tem que me contar sobre Norah antes.
            Aí estava, xeque outra vez, como eu tinha previsto. Parece que nosso xadrez se estenderia por um tempo.
            — Pois bem. O que você quer saber?
            Logan coçou a cabeça, incerto sobre por onde começar.
            — Eu não entendo... Você a amava. Como pôde... Como pôde tê-la deixado partir?
            Claro. Coisas assim não faziam sentido para aquela cabeça irritantemente obstinada que ele tinha. No que dizia respeito a sentimentos, Logan era o cara mais simples que eu conhecia: ou ele amava muito ou não amava. E, sendo assim, provavelmente comparava a situação a quando Estrela fugiu dele em Phoenix, quando ela já o amava, mas achava que tinha coisas a fazer, uma dívida com Ian e Peg. No entanto a minha história com Norah não tinha nada a ver com pessoas tentando fazer o melhor umas para as outras. Pelo contrário.
            — Porque ela não partiu. Não do jeito que você pensa. Quisera eu que ela tivesse me abandonado. Teria sido mais... limpo. Mas ao invés disso, ela ficou comigo pelo tempo que conseguiu me enganar. 
            Logan parecia chocado, e eu entendia o sentimento. Não era que ele não acreditasse em mim, era que não podia. O fragmento de memória que ele tinha dizia respeito a uma ilusão, a uma época anterior à verdade que secou meu coração.
            — A imagem que você tem dela não corresponde a quem ela realmente era — continuei —, e sim à mulher que eu enxergava nela. Aquele dia, no deserto, nós estávamos acampando perto daqui. Não faz muito sentido, mas nós gostávamos disto: pegar um violão, acender uma fogueira e ficarmos juntos até o amanhecer. No começo, pelo menos. Eu estava apaixonado, então tudo parecia bom o bastante.
            — E por que as coisas mudaram?
            — Norah não era a pessoa que eu imaginava. Nem eu era quem ela queria que eu fosse. Quando a conheci, achei que a frieza dela era só fachada, que ela só precisava de um homem que a amasse, que cuidasse dela. Por isso tentei ser assim, mas ela achou que eu a sufocava, que era ciumento demais e que não entendia sua... “Busca por liberdade”, era o que ela dizia. Acontece que ela estava buscando liberdade em drogas e nos braços de outros caras que estavam dispostos a dar isso a ela. Então eu pulei fora o mais rápido que pude. Ela tentou me procurar, mas eu estava com raiva demais, e meu orgulho me manteve longe tempo o suficiente para ela sumir. Quando voltei a procurá-la, algumas semanas depois, ela tinha posto o pé na estrada e ninguém sabia dela.
            — E você nunca mais a viu.
            — Nós nos falamos por telefone uma vez, antes de ela desaparecer. Mas eu tinha meus próprios termos para fazer aquilo funcionar, obviamente. E obviamente não pareceram bons o bastante para ela. Então, não, eu não a vi mais.
            — Sinto muito.
            Eu também sentia. Agora, pensando naquela época. Contemplando as possibilidades, pela primeira vez eu realmente me arrependia por não ter tentado mais. Talvez tivesse me destruído, mas ao menos eu não teria a dúvida na cabeça.
            — Sua vez — decretei, porque eu não tinha a intenção de ficar me lamentando. — Fale comigo.
            Logan me olhou de soslaio, checando se eu ia mesmo insistir naquilo. Por fim, seus ombros cederam e ele adotou uma postura mais resignada, desviando o olhar para o horizonte.
            — Estrela está preocupada à toa. Esses pesadelos... São lembranças, na verdade. Foi assim quando eu a conheci e outras vezes depois, como quando ela ficou grávida, por exemplo. Toda vez que acontece alguma coisa significativa comigo é como se comportas se abrissem e eu me lembro de muitas coisas da vida dele.
            — Do Logan humano?
            Ao longo de nossas conversas, notei que ele raramente utilizava a palavra “hospedeiro” e por isso me habituei a esta diferenciação estranha entre o Logan que eu conhecia e o humano. Quando conversávamos sobre o assunto eram assim que nos referíamos ao outro e eu apreciava isso, porque nunca gostei da maldita palavra “hospedeiro”. Fazia parecer que o outro era só uma casca, uma máscara que este aqui temporariamente usava. Para os outros da espécie dele era bem provável que fosse assim, mas eu me recusava a pensar que Logan encarava da mesma maneira. Não combinava com a identidade amalgamada que tinha desenvolvido. E as lembranças de uma “casca” jamais o afetariam tanto quanto agora eu sei que o afetam.
            Ele assentiu, deixando de contemplar o horizonte e fixando os olhos em mim, provavelmente alheio à importância que eu dava a essa determinada escolha de palavras, que, no entanto, me parecia tão relevante.
            — Coisas que ele sufocava e nas quais não se permitia pensar com frequência, coisas da infância.
            — Como isso é possível? Você não se lembrava dessas coisas antes?
            — Em algum nível, sim — Logan explicou. — Acredito que ficaram guardadas no meu inconsciente, mas eu não pensava nelas. Quando acontece a inserção, algumas coisas sobrevivem por um bom tempo: os traços mais evidentes da personalidade, os hábitos mais recorrentes e as memórias recentes. E mesmo isso vai sendo deixado para trás lentamente, à medida que são substituídas por nossas próprias lembranças e características. Quanto ao resto, os Confortadores ensinam que não devemos acessar memórias desnecessárias. É o único jeito de podermos separar nossas próprias vidas das dos hospedeiros.
            — Mas Logan era mais que um hospedeiro para você, não é? Acho que posso adivinhar que você não conseguiu separar sua mente da dele.
            — Na maioria do tempo, eu conseguia sim. Pelo menos no que diz respeito às memórias. Eu gostava dele, mas não queria suas experiências humanas. Não queria nenhuma experiência humana. Eu só queria ir embora daqui assim que acabasse este ciclo de vida e voltar para o Mundo Cantor, ou quem sabe experimentar a vida entre os Ursos.
            — Isso até Estrela aparecer e “destravar” a humanidade que você herdou dele.
            — Sim, acho que, colocado de maneira simples, é isso. E então aconteceu de novo quando roubei o corpo para ela, quando viemos para cá, quando descobri que ia ser pai...
            — E agora, quando eu quase morri — deduzi.
            Logan não respondeu, em vez disso parou de me encarar mais uma vez, porque era o que ele fazia quando não sabia como lidar com alguma conversa. Mesmo assim, eu assumi que isso era um “sim”, afinal era óbvio, não precisava ser um gênio da matemática para somar dois mais dois. Com meio cérebro apoiado numa bengala daria para perceber que a morte o assustava. A minha morte. E isso me deixava ao mesmo tempo lisonjeado e preocupado.
            Eu podia ter trapaceado dessa vez, quem sabe ganhado mais uns anos até, mas eu não ia durar para sempre. Nenhum de nós iria. E, pelo jeito, cabia a mim ensinar isso ao garoto.
            Tudo bem, uma coisa de cada vez.
            — Então você tem um “surto” de lembranças reprimidas quando está ansioso ou algo assim — concluí. — Entendi. Mas essas lembranças não podem ser todas ruins, certo?
            — Não, não são. Às vezes eu tenho sonhos ao invés de pesadelos, e me lembro de coisas boas, embora isso seja mais raro.
            — Do que, por exemplo?
            — Lindsay. De brincar com ela e bancar o irmão mais velho. — Logan sorriu, um sorriso genuíno que iluminou seu rosto de um jeito que eu só via quando ele brincava com a filha. Um sorriso infantil. — Como quando ele cantava para ela dormir, mesmo quando ele mesmo estava caindo de sono. Ele sempre esperava até que ela fechasse os olhos, e era muito rápido. Ele gostava disso. O mundo parecia fácil de controlar quando tudo o que se precisava era da canção certa.
            — E qual era? — perguntei, já adivinhando a resposta. — Onde ele poderia ter aprendido uma canção de ninar?
            — Ah, não sei. Na escola, talvez? Não consigo me lembrar dessa parte, mas por alguma razão não me esqueço da música. Canto para minha Lindsay todos os dias.
            Talvez eu não devesse fazer isso. Talvez não devesse cutucar dores passadas, mas havia algo aqui. Coisas que precisavam ser lembradas. E no mínimo eu tinha me proposto a fazer Logan se abrir um pouco. Não havia de ser pior do que acordar todas as noites com o tipo de pesadelos que eu sabia que ele tinha. Não havia de ser pior...
            — Como ele foi parar lá, no lar provisório onde conheceu a garotinha? Você não lembra nada da família dele?
            — Eu não me lembro de nada antes da Lindsay e da casa de Joseph e Barbara. Acho que ele era criança demais quando foi para lá. Mas eu sei o que diziam para ele, que a mãe estava presa, por isso ele não foi para adoção de verdade. Depois ela morreu, mas ele já era grande demais para os casais, que geralmente procuravam bebês, então ficou no sistema.
            — E a menina, a Lindsay? Talvez eles fossem irmãos de verdade.
            — Não, acho que não. Ela tinha uma história também, algo sobre o pai ter matado a mãe, ou algo assim, mas ele não quis saber. Era doloroso demais.
            — E por que a mãe dele foi presa?
            — Metanfetamina, parece que cruzou o caminho de um peixe graúdo e serviu de bode expiatório. Depois a silenciaram.
            — Não sei o que dizer. Isso tudo... Parece muito.
            Era muito! Estava difícil até de pensar com alguma coerência.
            — Você acharia estranho se eu te dissesse que não parece muito para mim? Quer dizer, eu não gosto dos pesadelos, mas... Quero saber mais sobre ele. Não quero me esquecer de nada. E se essa é a forma de mantê-lo vivo, estou disposto a suportar.      Acontece que eu também queria. Naquele momento, mais do que nunca, eu entendia a importância do passado e precisava conhecer o desse garoto. Minha cabeça estava a mil.
            — Você não vai fazer isso sozinho, filho. Não precisa suportar a carga das lembranças sem nenhuma ajuda. Sua mulher se preocupa com você e eu também. E não é gentil de sua parte nos deixar sem saber o que se passa em sua cabeça. Precisa conversar comigo e com Estrela, dividir o fardo em vez de tentar guardar toda essa dor dentro de si.
            — Não. — Ele balançou a cabeça. — Não quero perturbá-la. Estrela é muito sensível e fica abalada com as histórias. Essa preocupação é desnecessária.
            — Não me venha com essa! Você é que tem essa mania de ficar protegendo Estrela de tudo e não percebe que é bem pior para ela ficar tentando adivinhar o que você está sentindo. Francamente, moleque, será que eu tenho que te ensinar tudo?
            Logan me olhou com um misto de incerteza e vergonha. Considerando que eu não era exatamente um sucesso com relacionamentos amorosos, devia ser mesmo vergonhoso ter que ouvir o óbvio de mim.
            — Talvez você esteja certo, mas...
            — Sem “mas”! Não faz muito tempo, você tomou uma decisão por nós dois. Salvou a minha vida, mas você não estava muito interessado no que eu pensava a respeito. Agora estou fazendo o mesmo. Para o seu bem. Sei que você não está acostumado a ser ajudado, que não gosta de se sentir vulnerável. Sei disso como ninguém. Mas, francamente, você vai fazer o que eu mando desta vez porque minha casa...
            — “Minhas regras”, eu sei.
            — Isso.
            Então estava resolvido. Eu tinha encontrado um maldito vespeiro e não estava com medo de mexer nele. Ou estava. Mas isso não importava. Medo é um luxo que alguns podem manter, outros não. E eu já tinha me dado esse luxo e guardado meu coração por tempo demais. Estava na hora de colocá-lo de volta na bendita estrada de mão dupla da vida.


           

           


           


            

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