Capítulo 14 – Mão dupla
All the lonely people
Where do they all come
from?
All the lonely people
Where do they all
belong?
(Eleanor Rigby – The Beatles)
Jeb
Nunca fui um sujeito sentimental.
Não é nenhum tipo de decisão
racional ou princípio antiquado, mas alguma coisa em demonstrar emoções sempre pareceu
atípico de mim. E quando você é um velho fazendeiro do sul ninguém se importa
muito com isso, simplesmente deixam você ser um cara rústico e fechado e
assumem que é natural.
Eu mesmo nunca pensei muito a
respeito, exceto uma vez, com Norah... Mas cheguei à conclusão de que antes de lutar
para mudar por ela, devia ter sido aceito como era. Esta coisa toda de amor —
ou o que quer que fosse aquilo — devia funcionar em mão dupla, segundo pude
concluir mais tarde. Infelizmente, eu não entendi isso quando precisava e depois,
quando finalmente entendi, não valia mais de nada. De qualquer jeito, não
importava mais. No final das contas, era útil não amolecer com facilidade. O
que não queria dizer que eu não ficasse balançado às vezes.
Na noite em que voltei de minha ausência, por exemplo, algumas coisas me
pegaram de surpresa.
Não estou falando do fato de todos
me receberam com entusiasmo e comoção. Era esperado que, diante das
circunstâncias, mesmo aqueles que não são meus maiores fãs se importassem com
minha saúde. Para o bem ou para o mal, todos ali éramos família, afinal. Então
os apertos de mão e tapinhas nas costas eram previstos. Os abraços também.
Era previsível que Estrela se
pendurasse em meu pescoço antes mesmo de que eu conseguisse me erguer do catre,
e que depois tentasse cuidar de mim, me impedindo de fazer qualquer esforço,
dando ordens às quais sabia que eu não obedeceria. E não era nada estranho que
Lindsay imitasse a mãe em seus carinhos arrebatados de criança e saísse dizendo
a todos que eu devia ficar de “re-pou-so”, fazendo-os rirem da forma como ela
pronunciava a palavra nova com cuidado, fazendo biquinho.
Também não estranhei quando Peg se
emocionou discretamente, desviando os olhos vermelhos e limpando as lágrimas
furtivas, porque não gostava que se preocupassem com ela. Assim como fez Magnólia,
minha irmã, que sempre quis parecer mais casca grossa do que eu.
A alegria de Sharon e Doc. O alívio
de Jared. O entusiasmo de Jamie. O olhar de triunfo de Melanie quando provei
ser tão forte quanto ela esperava. Nada disso foi exatamente surpreendente. O
que eu não esperava mesmo é que essas coisas cavassem um buraco tão fecundo
dentro deste coração que eu mesmo julgava tão árido.
Talvez eu não deixe ninguém saber,
mas dividir a mente com Logan me mudou. Percebi isso naquela mesma noite,
quando observei a expressão dele repetidas vezes, mas não por curiosidade, ou
por me divertir ao vê-lo se retrair aos elogios e agradecimentos, como era seu
costume, e sim em busca de algo que eu pudesse reconhecer e decifrar. Em busca
de algo que me ajudasse a entendê-lo.
Porque Deus que me perdoe, mas eu
precisava. Essa história toda estava me corroendo por dentro.
— Você não vai parar depois de duas
míseras voltas. Pode parar de enrolar — ele decretou e eu tive vontade de matá-lo.
Mas só porque eu sentia isso por qualquer um que me desse ordens daquele jeito.
— Não sou um maldito hamster, Logan.
Vê se me deixa em paz. Estou voltando para dentro para trabalhar, que é como os
pobres mantêm a forma.
O suplício das rotinas de exercícios
tinha começado poucos dias depois do “susto”, como o pessoal tinha escolhido se
referir à minha trombada com a morte. Por mim, eles podiam dar o nome que
quisessem, desde que eu não tivesse que aturar todo mundo vigiando o que eu
comia e me obrigando a correr no meio do deserto como um camelo que tomou Red
Bull.
— Acontece que você dá mais ordens
do que põe a mão na massa. E até a última vez que chequei, delegar tarefas não ajuda
a manter a forma.
— Bom, cheque de novo. Pode ser útil
no seu futuro, já que você é tão bom nisso de querer mandar nos outros.
— Estrela disse que é bom para você
— ele rebateu mal-humorado. O moleque tinha aquele tipo irritante de
determinação de ferro e, previsivelmente, não gostava de ser contrariado.
— Vou te dizer o que é bom para mim,
garoto. Respirar. Então, se me der licença, vou me sentar ali e passar um
tempinho de qualidade com meu amigo oxigênio. Pode até se juntar a nós se
quiser.
Àquela hora da manhã, o sol ainda
não tinha tido tempo de ficar implacável, e era-nos até possível fazer uma
caminhada ao ar livre sem morrermos torrados. Até aí tudo bem, eu nunca me
queixaria de andar, Deus sabe que foi para isso que me deu pernas, mas quando
Logan sugeriu que eu parecia bem o suficiente para tentar uma corrida curta
cheguei ao limite da minha paciência. Nunca fui do tipo que corre sem ter aonde
ir.
Logan bufou de raiva, mas não
protestou. Nem tampouco se juntou a mim também. Ao invés disso, optou por se
calar e me deixar em paz enquanto gastava sua raiva correndo sozinho pelo
percurso que tinha determinado. Provavelmente só ia parar quando suas pernas não
aguentassem mais ou o sol estivesse forte demais para continuar.
— Hamster! — resmunguei, me
lembrando daquele “ratinho” que fica correndo em uma roda dentro da gaiola. Mel
tinha um desses quando era criança. O bichinho era tinhoso e cheio de energia.
Então já deu para entender a comparação.
Eu certamente era grato por tudo que
Logan tinha feito por mim, mas essa obsessão por cuidar da minha saúde,
ironicamente, não estava sendo saudável para ele. Só um idiota não perceberia
que ele estava usando isso para evitar pensar nas coisas difíceis, recurso com
o qual eu até seria capaz de simpatizar se não me importasse tanto com o
garoto. E já que eu me importava, não podia deixar que ele continuasse se
fechando.
Do jeito dele, acho que a
experiência também o afetou e nenhum de nós sabia bem como lidar com isso. Em
outros tempos, Logan teria ficado ali e me enfrentado, comprado a briga e se
divertido com ela, mas ultimamente ele andava arredio.
— Vamos voltar — ele disse quando,
por fim, se cansou e voltou para onde eu estava esperando. — O sol está ficando
quente demais, de qualquer jeito.
— Ainda não. Me faça um pouco de
companhia enquanto ainda temos sombra.
A frase simples teve um efeito
imediato. Logan tinha apoiado as mãos sobre os joelhos para descansar um
segundo e estava olhando para baixo, mas imediatamente se empertigou, começando
a me inspecionar. A expressão em seu rosto assumindo aquele ar de preocupação
irritante no mesmo momento.
— Por quê? — questionou, e juro por
Deus que quis lhe dar um safanão. Afinal, estava na cara que ele já tinha a
resposta pronta em sua cabeça. E não era a mesma que a minha.
— Preciso ter uma razão para querer
me sentar ao lado de um amigo? Eu só quero jogar um pouco de conversa fora,
Logan! Não precisa achar que estou me sentindo mal cada vez que você não
consegue mandar na minha vida.
Isso pareceu tê-lo deixado meio sem
graça, mas não o suficiente para parar de argumentar.
— Desculpe — pediu, finalmente se
sentando. — É que eu achei... Bom, fadiga é um dos sintomas. E talvez eu tenha
forçado muito com a caminhada, está um dia quente.
— Estou muito bem disposto,
obrigado. E pude descansar bastante das “duas míseras voltas” que dei. Você
precisa parar de se preocupar tanto.
Não recebi nenhuma resposta.
Obviamente toquei num ponto complicado. Devo admitir que fui irresponsável da
primeira vez, subestimando os sinais que meu corpo dava. O resultado foi aquela
situação que nos pegou a todos de surpresa e que levou a medidas extremas. Não
creio que depois disso Logan vá confiar em mim para alertá-lo caso não esteja
me sentindo bem, embora eu possa garantir que aprendi minha lição. A verdade é
que, no lugar dele, eu também não confiaria. Nem tampouco me preocuparia tanto
com um velho teimoso que passa o tempo todo implicando com seus cuidados
excessivos.
— Desculpe por ser tão difícil —
admiti. — Sei que você só está querendo ajudar. Posso não ser o sujeito mais
agradecido do mundo, mas não sou burro o suficiente para ignorar que isso é um
defeito meu. É que sempre cuidei de mim mesmo e dos outros. É difícil me
acostumar com a situação inversa.
— Eu sei como é.
É, ele sabia. Mas não era o mesmo
tipo de sensação que a minha. Vinha de um lugar diferente em sua mente e
causava um efeito bem diverso também.
Na noite em que dividimos o corpo,
quando tivemos que ser carregados por Jared e Ian porque eu não tinha forças
para andar, pude sentir que aquilo significava mais do que um incômodo ou algum
tipo de orgulho ferido, era mais complexo do que isso. Era algo que trazia de
volta uma insegurança tão impertinente e dolorosa quanto uma ferida
infeccionada. Como se relaxar um segundo e depender de ajuda pudesse ser
catastrófico, como foi para a menininha que o Logan humano perdeu. Mas agora os
tempos eram outros. Era preciso que ele entendesse isso, embora eu achasse que
num nível racional ele até entendia.
— Não é tão ruim assim, sabe? — eu
disse depois de um tempo.
— O quê?
— Ser cuidado. Deixar as pessoas te
ajudarem. Deixá-las à vontade para gostarem de você. Não é ruim.
— Não, não é ruim — Logan respondeu,
mas eu não estava certo de que ele sabia realmente o que eu queria dizer.
Talvez estivesse apenas me enrolando com a resposta que achava que eu queria
ouvir. Ele era bom nisso. Desenvolveu o talento quando veio para cá e precisou
se acostumar com os humanos, mas tenho a impressão de que ele sempre foi do
tipo que sabia o que dizer.
— Então por que você nunca contou
sobre as lembranças e pesadelos que te perturbam?
Achei que não matava ir direto ao
ponto. Cedo ou tarde a gente se cansa de jogar xadrez com as palavras.
— Você também nunca me falou sobre
as suas.
Xeque!
—
Está se referindo a Norah? — Sei que aquela lembrança teve um impacto sobre
ele. Talvez porque, de alguma forma, ele tenha intuído o que eu quis esconder.
Que mais do que a doença, foi a maldita memória que me assaltou naquele dia.
— Sim.
— Por quê? O que importa falar sobre
ela?
— Tem razão, não importa. Não quero
ser intrusivo.
Porque
assim também não precisamos falar sobre ele. O garoto sabe ser mais
escorregadio do que peixe ensaboado.
—
Não banque o espertinho comigo, Logan. — Ele olhou para mim tentando fingir
indignação, mas no fim apenas riu, porque sabia que eu já tinha entendido seu
jogo. — Façamos o seguinte: eu digo o que você quer saber e você fala comigo.
Sem segredos. Não faz sentido entre nós.
— É, acho que, no fim das contas,
não faz mesmo.
— Além disso, já estou cheio destes
fragmentos fora de contexto que ficaram na minha cabeça. Se eles vão ficar por
aqui, pelo menos quero entender a história por trás deles.
— É estranho, não é? — disse Logan.
— Quando voltei para o meu corpo, queria conversar com você sobre isso, mas
depois eu não soube como. Eu... Ah... Bom... Não sei muito bem como me abrir
com ninguém.
— Também não é minha especialidade,
filho. Mas se você vai ficar tão preocupado comigo o tempo todo, ao menos me
deixe retribuir o gesto.
— Não, você não tem que se preocupar
com nada. Estou b...
— Estrela me disse que você tem tido
pesadelos quase diários — interrompi. — Que dorme mal e que não fala com ela
sobre isso. Ou com ninguém, até onde sabemos.
— São só pesadelos, não têm
importância alguma.
— O que houve com “eu digo o que
você quer saber e você fala comigo”? — provoquei, embora eu já soubesse o que
viria a seguir. Mas tudo bem, eu pagaria o preço.
— Bem, se vamos fazer nessa ordem,
então você tem que me contar sobre Norah antes.
Aí estava, xeque outra vez, como eu
tinha previsto. Parece que nosso xadrez se estenderia por um tempo.
— Pois bem. O que você quer saber?
Logan coçou a cabeça, incerto sobre
por onde começar.
— Eu não entendo... Você a amava.
Como pôde... Como pôde tê-la deixado partir?
Claro. Coisas assim não faziam
sentido para aquela cabeça irritantemente obstinada que ele tinha. No que dizia
respeito a sentimentos, Logan era o cara mais simples que eu conhecia: ou ele
amava muito ou não amava. E, sendo assim, provavelmente comparava a situação a
quando Estrela fugiu dele em Phoenix, quando ela já o amava, mas achava que
tinha coisas a fazer, uma dívida com Ian e Peg. No entanto a minha história com
Norah não tinha nada a ver com pessoas tentando fazer o melhor umas para as
outras. Pelo contrário.
— Porque ela não partiu. Não do
jeito que você pensa. Quisera eu que ela tivesse me abandonado. Teria sido
mais... limpo. Mas ao invés disso, ela ficou comigo pelo tempo que conseguiu me
enganar.
Logan parecia chocado, e eu entendia
o sentimento. Não era que ele não acreditasse em mim, era que não podia. O
fragmento de memória que ele tinha dizia respeito a uma ilusão, a uma época
anterior à verdade que secou meu coração.
— A imagem que você tem dela não
corresponde a quem ela realmente era — continuei —, e sim à mulher que eu
enxergava nela. Aquele dia, no deserto, nós estávamos acampando perto daqui.
Não faz muito sentido, mas nós gostávamos disto: pegar um violão, acender uma
fogueira e ficarmos juntos até o amanhecer. No começo, pelo menos. Eu estava
apaixonado, então tudo parecia bom o bastante.
— E por que as coisas mudaram?
— Norah não era a pessoa que eu
imaginava. Nem eu era quem ela queria que eu fosse. Quando a conheci, achei que
a frieza dela era só fachada, que ela só precisava de um homem que a amasse,
que cuidasse dela. Por isso tentei ser assim, mas ela achou que eu a sufocava,
que era ciumento demais e que não entendia sua... “Busca por liberdade”, era o
que ela dizia. Acontece que ela estava buscando liberdade em drogas e nos braços de outros caras que estavam
dispostos a dar isso a ela. Então eu pulei fora o mais rápido que pude. Ela
tentou me procurar, mas eu estava com raiva demais, e meu orgulho me manteve
longe tempo o suficiente para ela sumir. Quando voltei a procurá-la, algumas
semanas depois, ela tinha posto o pé na estrada e ninguém sabia dela.
— E você nunca mais a viu.
— Nós nos falamos por telefone uma
vez, antes de ela desaparecer. Mas eu tinha meus próprios termos para fazer
aquilo funcionar, obviamente. E obviamente não pareceram bons o bastante para
ela. Então, não, eu não a vi mais.
— Sinto muito.
Eu também sentia. Agora, pensando
naquela época. Contemplando as possibilidades, pela primeira vez eu realmente
me arrependia por não ter tentado mais. Talvez tivesse me destruído, mas ao
menos eu não teria a dúvida na cabeça.
— Sua vez — decretei, porque eu não
tinha a intenção de ficar me lamentando. — Fale comigo.
Logan me olhou de soslaio, checando
se eu ia mesmo insistir naquilo. Por fim, seus ombros cederam e ele adotou uma
postura mais resignada, desviando o olhar para o horizonte.
— Estrela está preocupada à toa.
Esses pesadelos... São lembranças, na verdade. Foi assim quando eu a conheci e
outras vezes depois, como quando ela ficou grávida, por exemplo. Toda vez que
acontece alguma coisa significativa comigo é como se comportas se abrissem e eu
me lembro de muitas coisas da vida dele.
— Do Logan humano?
Ao longo de nossas conversas, notei
que ele raramente utilizava a palavra “hospedeiro” e por isso me habituei a
esta diferenciação estranha entre o Logan que eu conhecia e o humano. Quando
conversávamos sobre o assunto eram assim que nos referíamos ao outro e eu
apreciava isso, porque nunca gostei da maldita palavra “hospedeiro”. Fazia
parecer que o outro era só uma casca, uma máscara que este aqui temporariamente
usava. Para os outros da espécie dele era bem provável que fosse assim, mas eu
me recusava a pensar que Logan encarava da mesma maneira. Não combinava com a
identidade amalgamada que tinha desenvolvido. E as lembranças de uma “casca”
jamais o afetariam tanto quanto agora eu sei que o afetam.
Ele assentiu, deixando de contemplar
o horizonte e fixando os olhos em mim, provavelmente alheio à importância que
eu dava a essa determinada escolha de palavras, que, no entanto, me parecia tão
relevante.
— Coisas que ele sufocava e nas
quais não se permitia pensar com frequência, coisas da infância.
— Como isso é possível? Você não se
lembrava dessas coisas antes?
— Em algum nível, sim — Logan explicou.
— Acredito que ficaram guardadas no meu inconsciente, mas eu não pensava nelas.
Quando acontece a inserção, algumas coisas sobrevivem por um bom tempo: os
traços mais evidentes da personalidade, os hábitos mais recorrentes e as
memórias recentes. E mesmo isso vai sendo deixado para trás lentamente, à
medida que são substituídas por nossas próprias lembranças e características.
Quanto ao resto, os Confortadores ensinam que não devemos acessar memórias
desnecessárias. É o único jeito de podermos separar nossas próprias vidas das
dos hospedeiros.
— Mas Logan era mais que um
hospedeiro para você, não é? Acho que posso adivinhar que você não conseguiu
separar sua mente da dele.
— Na maioria do tempo, eu conseguia
sim. Pelo menos no que diz respeito às memórias. Eu gostava dele, mas não
queria suas experiências humanas. Não queria nenhuma experiência humana. Eu só queria ir embora daqui assim que
acabasse este ciclo de vida e voltar para o Mundo Cantor, ou quem sabe
experimentar a vida entre os Ursos.
— Isso até Estrela aparecer e
“destravar” a humanidade que você herdou dele.
— Sim, acho que, colocado de maneira
simples, é isso. E então aconteceu de novo quando roubei o corpo para ela,
quando viemos para cá, quando descobri que ia ser pai...
— E agora, quando eu quase morri —
deduzi.
Logan não respondeu, em vez disso
parou de me encarar mais uma vez, porque era o que ele fazia quando não sabia
como lidar com alguma conversa. Mesmo assim, eu assumi que isso era um “sim”,
afinal era óbvio, não precisava ser um gênio da matemática para somar dois mais
dois. Com meio cérebro apoiado numa bengala daria para perceber que a morte o
assustava. A minha morte. E isso me
deixava ao mesmo tempo lisonjeado e preocupado.
Eu podia ter trapaceado dessa vez,
quem sabe ganhado mais uns anos até, mas eu não ia durar para sempre. Nenhum de
nós iria. E, pelo jeito, cabia a mim ensinar isso ao garoto.
Tudo
bem, uma coisa de cada vez.
— Então você tem um “surto” de lembranças
reprimidas quando está ansioso ou algo assim — concluí. — Entendi. Mas essas
lembranças não podem ser todas ruins, certo?
— Não, não são. Às vezes eu tenho
sonhos ao invés de pesadelos, e me lembro de coisas boas, embora isso seja mais
raro.
— Do que, por exemplo?
— Lindsay. De brincar com ela e
bancar o irmão mais velho. — Logan sorriu, um sorriso genuíno que iluminou seu
rosto de um jeito que eu só via quando ele brincava com a filha. Um sorriso
infantil. — Como quando ele cantava para ela dormir, mesmo quando ele mesmo
estava caindo de sono. Ele sempre esperava até que ela fechasse os olhos, e era
muito rápido. Ele gostava disso. O mundo parecia fácil de controlar quando tudo
o que se precisava era da canção certa.
— E qual era? — perguntei, já
adivinhando a resposta. — Onde ele poderia ter aprendido uma canção de ninar?
— Ah, não sei. Na escola, talvez?
Não consigo me lembrar dessa parte, mas por alguma razão não me esqueço da
música. Canto para minha Lindsay todos os dias.
Talvez eu não devesse fazer isso.
Talvez não devesse cutucar dores passadas, mas havia algo aqui. Coisas que
precisavam ser lembradas. E no mínimo eu tinha me proposto a fazer Logan se
abrir um pouco. Não havia de ser pior do que acordar todas as noites com o tipo
de pesadelos que eu sabia que ele tinha. Não havia de ser pior...
— Como ele foi parar lá, no lar
provisório onde conheceu a garotinha? Você não lembra nada da família dele?
— Eu não me lembro de nada antes da
Lindsay e da casa de Joseph e Barbara. Acho que ele era criança demais quando
foi para lá. Mas eu sei o que diziam para ele, que a mãe estava presa, por isso
ele não foi para adoção de verdade. Depois ela morreu, mas ele já era grande
demais para os casais, que geralmente procuravam bebês, então ficou no sistema.
— E a menina, a Lindsay? Talvez eles
fossem irmãos de verdade.
— Não, acho que não. Ela tinha uma
história também, algo sobre o pai ter matado a mãe, ou algo assim, mas ele não
quis saber. Era doloroso demais.
— E por que a mãe dele foi presa?
— Metanfetamina, parece que cruzou o
caminho de um peixe graúdo e serviu de bode expiatório. Depois a silenciaram.
— Não sei o que dizer. Isso tudo...
Parece muito.
Era
muito! Estava difícil até de pensar com alguma coerência.
— Você acharia estranho se eu te
dissesse que não parece muito para mim? Quer dizer, eu não gosto dos pesadelos,
mas... Quero saber mais sobre ele. Não quero me esquecer de nada. E se essa é a
forma de mantê-lo vivo, estou disposto a suportar. Acontece que eu também queria. Naquele momento, mais do que
nunca, eu entendia a importância do passado e precisava conhecer o desse garoto.
Minha cabeça estava a mil.
— Você não vai fazer isso sozinho,
filho. Não precisa suportar a carga das lembranças sem nenhuma ajuda. Sua
mulher se preocupa com você e eu também. E não é gentil de sua parte nos deixar
sem saber o que se passa em sua cabeça. Precisa conversar comigo e com Estrela,
dividir o fardo em vez de tentar guardar toda essa dor dentro de si.
— Não. — Ele balançou a cabeça. — Não
quero perturbá-la. Estrela é muito sensível e fica abalada com as histórias.
Essa preocupação é desnecessária.
— Não me venha com essa! Você é que
tem essa mania de ficar protegendo Estrela de tudo e não percebe que é bem pior
para ela ficar tentando adivinhar o que você está sentindo. Francamente,
moleque, será que eu tenho que te ensinar tudo?
Logan me olhou com um misto de
incerteza e vergonha. Considerando que eu não era exatamente um sucesso com
relacionamentos amorosos, devia ser mesmo vergonhoso ter que ouvir o óbvio de
mim.
— Talvez você esteja certo, mas...
— Sem “mas”! Não faz muito tempo,
você tomou uma decisão por nós dois. Salvou a minha vida, mas você não estava
muito interessado no que eu pensava a respeito. Agora estou fazendo o mesmo.
Para o seu bem. Sei que você não está acostumado a ser ajudado, que não gosta
de se sentir vulnerável. Sei disso como ninguém. Mas, francamente, você vai
fazer o que eu mando desta vez porque minha casa...
— “Minhas regras”, eu sei.
— Isso.
Então estava resolvido. Eu tinha
encontrado um maldito vespeiro e não estava com medo de mexer nele. Ou estava.
Mas isso não importava. Medo é um luxo que alguns podem manter, outros não. E
eu já tinha me dado esse luxo e guardado meu coração por tempo demais. Estava
na hora de colocá-lo de volta na bendita estrada de mão dupla da vida.
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