sexta-feira, 22 de maio de 2015

CD2 - cap 13


Capítulo 13 – Canções Noturnas

There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke
Through the trees
And the voices of those who stand looking

Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder

(Stairway to Heaven – Led Zeppelin)

Jeb

            Não era tão fácil quanto Mel fez parecer. Ou talvez minha sobrinha, minha pequena, fosse simplesmente mais forte do que eu. O fato é que você quer sobreviver, quer lutar com todas as forças pela posse do que sabe que está perdendo. E esse foi o instinto que tomou conta de mim antes que eu tivesse qualquer controle.
            Permanecer eu mesmo.
            Sem que eu previsse, imagens começaram a me povoar, brincar comigo. A criança que eu fui. Os ecos do homem que eu era. Eu. As coisas nas quais não pensava há tanto tempo, porque estavam tão profunda e naturalmente marcadas em mim que não podia mais chamá-las de lembranças. As partes de minha identidade. Nenhum nome era o suficiente para isso. E eu não era tão bom com as palavras. Mas também não precisava delas. As imagens falavam coisas que só eu entenderia.
            Mesmo assim, tentei sufocá-las. Não queria dividi-las com ninguém e sabia que não estava sozinho. Era como ser espreitado na escuridão, embora eu não sentisse medo. Como ser protegido por alguém que não se pode ver. Uma sensação que não sentia há muito tempo. Mas são minhas lembranças. Minhas. Senti que era preciso protegê-las, mas quanto mais eu tentava, mais escorregadias me pareciam.
            “Esqueça seu corpo. Imagine-se cercado de paredes.”
            Sim, eu me lembrava. Esquecer de meus sentidos. Abandonar meus instintos. Deixar tudo escorrer pelos dedos que não podiam ser mais meus.
            Ficarei firme, pequena.
            Mas resistir doía. As paredes se erguiam de mim como músculos arrancados. Desconectados de minha integridade. Era preciso romper o laço entre corpo e alma e tudo o que eu queria era descansar. Parar a dor. Para sempre.
            “Não.”
            Melanie surgiu ao meu lado. Adulta, olhos prateados. Depois se foi e quem voltou para mim foi a menina daquela tarde. Trevor e eu não brigamos naquele dia. Foi uma das raras vezes depois que ele cresceu e deixou de ser meu irmãozinho tão simples de agradar. Mel era simples. Minha pequena. Nós dois assistimos enquanto ela jogava futebol. Eu estava feliz.
            Então quando Trevor me olhou de novo tinha olhos verdes. Verdes e prateados. Parecia confuso. Mas não. Eu é que estava confuso. Aquele não era Trevor.
            Um sentimento estranho me invadiu quando reconheci o garoto. Um misto de familiaridade reconfortante e ansiedade para respirar. Como se a presença dele significasse salvação e desconforto ao mesmo tempo. Como um remédio amargo. Logan. Meu amigo de quem eu tinha que fugir. De certa forma.
            “Imagine-se cercado de paredes”, ela repetiu. “Assim, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.”
            Melanie.
            Finalmente achei minha voz. Usei-a para contar a ele quem ela era. E para lembrá-lo do porquê de estarmos ali. A clareza me invadiu e me senti como eu mesmo de novo. Talvez fosse simples, no final das contas. Ou o mais próximo disso. A ideia de morte não era tão estranha, eu podia lidar com ela, mas queria viver. Esse desejo era imperioso demais e me guiou para longe da escuridão que espreitava.
            Foi esse o momento, eu acho. O instante em que finalmente consegui criar as tais barreiras que tanto exigiram de mim. Pareceu difícil no começo e acho que por isso continuo me lembrando disso, que o momento continua a se repetir em minha cabeça como um filme. Sei que houve mais depois. Lembro-me de me sentir grato e incomodado, tudo ao mesmo tempo. E de, num certo ponto, ter perdido a conexão com meu próprio corpo, de sentir minha vida se dissipando como fumaça no ar. Lembro-me da sensação de morrer. Mas não é disso que me lembro melhor.
            Não estou morto. Sei disso. E estou sozinho de novo, posso sentir. Não dói mais. Meu corpo, as paredes que precisei manter erguidas e que drenavam minhas forças, tudo parece bem agora. Acho que conseguimos. O que quer que estivesse errado com meu coração não está mais. Só que eu não consegui. Por algum motivo, quando a conexão se foi, eu perdi também a consciência de como recuperá-la. E parece que algumas barreiras também. Agora não há limites para as coisas de que consigo me lembrar.
            Sinto-me perdido, desfeito dentro de mim mesmo. E é tão estranhamente agradável que quase não quero voltar à tona.
            Às vezes ouço algumas coisas. Vozes familiares em frases soltas ou trechos de conversas, e essas palavras produzem imagens. Só que eu não consigo discernir se são sonho, realidade ou lembranças, minhas ou dele.  
            O que posso dizer? Parece confuso. E é. E muito embora seja libertador e excitantemente diferente de tudo o que um humano poderia viver, é também doloroso.
            Eu quis tanto proteger minha identidade, minhas memórias, as peças de meu próprio quebra-cabeça, que não me protegi contra a força perturbadora que é carregar o peso de outra pessoa. É como assistir, do prédio vizinho, a uma criança andar tranquilamente pelo peitoril de uma janela no quinto andar. Quero ser os braços que poderiam puxá-la para a segurança, mas não sou. Quero desviar os olhos para não ver a queda, mas não posso. Não posso fingir que a dor não existe. Já estou envolvido.
            Vejo o Logan humano. Acho que é uma memória, mas também pode ser um pesadelo. Ele é o primeiro a chegar à cena de um crime e olha para ela com frieza. Um traficante matou o rival a tiros e fugiu. Ele não se importa. É vazio por dentro e a morte não o impressiona. É sua profissão, quer apenas fazer seu trabalho e dar o fora assim que possível, partir para outra.
            Com a arma em punho, ele checa se não há mais suspeitos no local, se os socorristas podem entrar em segurança, embora não haja o que fazerem pelo pobre diabo caído numa poça escura de sangue. Há um armário velho na casa, está crivado de balas como as paredes ao redor, mas pode ser um esconderijo. É possível notar a umidade escorrendo por baixo da porta. Talvez o suspeito tenha se ferido e não tenha, afinal, conseguido fugir. Então ele faz sinal para parceiro que o acompanha abra a porta do móvel enquanto ele faz a mira, dando cobertura.
            Sem o apoio da porta crivada, um corpo inanimado tomba para o lado, caindo num baque surdo no chão. Está morto também. A criança não tem mais do que uns 7 ou 8 anos e seus olhos ainda estão abertos. É um menino, um garoto que parece com todas as crianças sofridas que já vi. Que parece com o de outras lembranças ou pesadelos que tenho tido. Parece-se com Logan.
            Chego a sentir o gosto de bile na garganta e acho que é assim que tomo consciência de minha própria respiração, atravessando o bolo incômodo que se forma. Talvez eu esteja acordando, afinal. Porque sinto as lágrimas não derramadas arderem nos olhos do Logan humano. Ou talvez seja nos meus. Consigo imaginar o alivio quando, na mesma noite, ele exauriu o próprio corpo no saco de pancadas da academia de polícia. Sinto até mesmo os nós de meus dedos doerem.
            Penso na menininha morta que despertou tudo isso, toda essa fúria que agora sei que ele sempre guardou. Chamava-se Lindsay, como “minha patinha”, como a doce garotinha a quem eu chamo de neta. Não é ela, embora tome seu rosto emprestado às vezes, mas dói como se fosse. A dor dessa memória, das noites de pesadelo relacionadas a ela, parece para mim como a de dezenas de fraturas. Tem o som de uma alma se rompendo, de estilhaços pesados batendo contra as paredes de um quarto fechado e ricocheteando, ferindo e maculando tudo o que ainda esteja inteiro ao redor.
            É parte de quem ele é, mas não é tudo o que ele se tornou. Vejo outras cenas também, algumas de meu próprio ponto de vista, provavelmente, já que estou na maior parte delas. Talvez seja eu mesmo que esteja lembrando.
            Nós dois no deserto, naquele dia em que achei que finalmente ia ser obrigado a matar ou morrer, com Estrela desmaiada aos pés dele. Quando eu soube que Peg estava viva e o que tudo aquilo significava. Depois, o momento em que o vi partir determinado a trazer Estrela de volta em um novo corpo e a tarde em que voltaram de fato. A sensação de estranheza e alívio quando ele entendeu que podia confiar em mim, o prazer até então estranho de não ser temido ou julgado. Minha visão e os sentimentos dele misturados.
            Os nascimentos de Lindsay e John embaralhados a cenas aparentemente banais, mas que tinham cheiro de lar. Uma discussão com Kyle que acabou em risadas, Sunny cozinhando e colocando um prato quente de macarrão e queijo em minha frente na mesa. Um jogo de futebol com Mel ou de damas com Doc, as lições de direção dadas a Jamie, ou uma conversa tola sobre morcegos e super-heróis com Lily. Eu nunca gostei de macarrão com queijo, ou de discutir com Kyle, ou mesmo me importei com HQs ou coisa que o valha, mas posso sentir o extremo prazer que ele tirou de cada uma daquelas experiências simples e perfeitamente humanas.
            Para mim, Logan é agora tão familiar quanto os labirintos de pedra das minhas cavernas. E eu gosto do que vejo. Já gostava antes, mas agora é como gostar de mim mesmo. E não gostar também, porque às vezes posso ser um sujeito difícil de lidar. Assim como ele. Assim como todo mundo em algum momento. Mas eu entendo. Entendo tudo e aceito. Acho que é isso que se chama paz.
            Sei que havia uma coisa que eu queria saber, algo com que eu devia estar preocupado, mas não estou. Em algum lugar de minha mente sem fronteiras, uma ideia qualquer navega no oceano de muitas outras, mas tudo o que não seja entendimento e aceitação não parece chegar perto o suficiente para ser tocado. As sensações e pensamentos é que me escolhem e não o contrário. Gosto da liberdade disso.
            Liberdade. Talvez estar morto seja assim, mas eu sei que não estou morto. Não me pergunte como, mas eu sei. Desconfio que mortos não sintam o cheiro telúrico de pedra bruta que impregna as paredes da minha casa, aquele odor que outros não sentem, mas que eu sei que está lá. Não que eu seja entendido no assunto, mas suponho que só os narizes vivos funcionem. Provavelmente.
            E eu acho que minha audição está melhor também. Semi-acordada, como quando eu cochilava na frente da televisão e juntava partes dos filmes com meus próprios fragmentos de sonho. Agora mesmo ouço Logan falar. Tenho consciência da voz dele há algum tempo, na realidade, mas só há pouco as imagens que ela produz começaram a ficar mais vivas. Quer dizer, acho que faz pouco tempo, mas não tenho mais certeza sobre essas coisas.
            Ele está falando sobre música. Algo sobre arranjar um violão e sobre como as notas de Stairway to Heaven sobem até o céu e deslizam de volta. Imediatamente sinto asas se abrirem e se elevarem por uma força inesperada, ao menos para mim. Não que eu entenda algo sobre voar, mas... Santo Deus! Estou no ar. Ou o que quer que acaricie a matéria de que sou feito e me impulsione para cima. Tenho tido esses sonhos muitas vezes, e de repente começo a entender por quê. Acho que é uma lembrança... De outro planeta!
            Um conjunto de sons que parecem a princípio dissonantes começa a se agrupar. São notas desconhecidas que comunicam coisas, sons metálicos e agudos se juntando a graves tão retumbantes e baixos que é mais fácil sentir sua vibração do que, de fato, ouvi-los. Frequências tão contraditórias e extremas que eu nunca imaginaria juntas, mas que formam uma música desconhecida que me dá a conhecer tudo ao meu redor. O som é onisciência. É ele que me empurra para cima. Toca as coisas e volta para mim com a forma delas. Vivo através do que as canções me confessam. A visão, esse sentido humano tão indispensável, não tem importância aqui. Tudo é noite que faz parte de mim. E o mundo é absoluta, clara e perfeitamente sonoro.
            No entanto, é uma imagem o que me traz de volta. Meu pai e seu violão. As canções suaves e atemporais de que ele gostava. A melancolia dolorida da saudade que sinto sempre que me lembro. Minha mãe e seus olhos tão verdes e ternos. Todo esse passado longínquo que me puxa para minhas raízes, para o solo familiar em que aterrisso calmamente.
            Por algum motivo me lembro de Norah. Acho que tem a ver com a música. Recordo o dia em que a conheci naquele bar de motoqueiros, parecendo a coisa mais encrenqueira que já andou sobre a Terra, jogando sinuca e fazendo pose de má. Achei que ela era perigosa, tentando esconder sua doçura por trás das roupas pretas e da atitude inconsequente. E ela era perigosa mesmo. Até hoje não sei o que eu estava fazendo naquele maldito lugar. Foi mesmo por causa da música. Pois eu devia ter me contentado com o rádio do meu carro.
            Música... Tem alguma coisa sobre isso, mas não quero pensar.
            Tento me focar no que Logan diz, voltar para o momento anterior, com Stairway to Heaven e meu pai na varanda, mas não está mais igual. Aquelas ideias leves se perderam, o tom dele está diferente.
            “Estou com muito medo.
            ... eu fiz isso.”
            Medo.
            A palavra fica ricocheteando em minha cabeça.
            Fez o quê? Do que ele está falando?
            Começo a me sentir incomodado com a conversa, mas me sinto ainda pior com o silêncio que se segue. Estou mais alerta agora, tentando não me perder em divagações, mas o eco daquelas palavras continua a me atormentar. Talvez até por isso. Porque sei que elas não estão no passado. Há algo de opressivo em sentir uma dor que não vem de memórias, mas do presente. E a voz dele está repleta de um sentimento fora de lugar, de uma angústia e de um cansaço que pesam sobre mim também, porque agora me preocupo com ele mais do que antes.
            Percebo a presença de Peg, mas a paz que sua voz de menina sempre me trouxe parece perturbada também, como se ela, em certa medida, compartilhasse da aflição dele. Quero parar isso, porque não faz sentido. Eles falam sobre culpa e medo da morte quando devíamos estar celebrando a vida. Afinal, nós vencemos, não vencemos? Eu não estou morto, estou?
            Não, eu não estou.
            Começo a empurrar a energia que existe dentro de mim para todas as direções certas. Eu acho. Pelo menos é o que eu tento fazer. Tento imaginar meus braços, os dedos que senti doerem há pouco, procuro movimentá-los. A letargia é imensa, no entanto. Qualquer movimento me parece penoso demais, mas... Aí está! Eu consegui. Tomo consciência de que mexi meu indicador e tento mexer os outros também, depois, quem sabe, girar o pulso, o pescoço... Tem que ficar mais fácil.
            No começo é muito difícil, sinto como se cada dedo pesasse uma arroba ou mais, mas depois meus músculos parecem se reacostumar, se reconectando aos movimentos que lhes ordeno. Então minha mão esquerda está de volta. O mesmo acontece com a direita depois de muito esforço, mas ainda assim menos do que precisei antes.
            Ouço a voz de Lindsay.
            Vamos lá, Jebediah! Não seja preguiçoso. Você sempre gostou de mandar, mande no seu próprio corpo!
            Crianças. Lindsay. John. Jamie. A criança que está em minhas memórias agora. Quero vê-las.
            Vamos... lá.
            — Vovô “ta” doente?
            Não, patinha. Alguém diz a ela que estou voltando, que já sinto minhas pernas. E o sangue em minhas veias.
            — Ele não está doente, não, meu amor. Só está dormindo um pouquinho, como você devia estar fazendo. Já está tarde para crianças estarem de pé.
            Estrela está aqui também. Ela disse que está tarde? Quanto tempo se passou?
            — Mas eu “quelia” o papai.
            — Vá, Logan. Cuide de sua filha. Eu fico aqui com ele.
            — Tudo bem, bebê. Papai vai fazer você dormir.
            Reencontro meus olhos justamente quando Logan a toma nos braços e, de costas para mim, começa a niná-la. Estou de volta à última cena que vi antes das coisas começarem a ficar malucas e eu terminar aqui, com todas essas lembranças estranhas e reveladoras em minha cabeça. A ideia que flutuava à deriva finalmente entra em meu campo de visão. Posso contemplá-la à distância, mas ainda não sei o que fazer com isso. Só sei que antes de tudo, preciso voltar definitivamente para casa.
            — Não se esqueça de cantar aquela sua musiquinha desafinada — digo.
            E mais do que nunca, reconheço os olhos que me olham de volta espantados.

           


             
           
           
           
           




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