Capítulo 13 – Canções Noturnas
There's
a feeling I get when I look to the west
And
my spirit is crying for leaving
In my
thoughts I have seen rings of smoke
Through
the trees
And
the voices of those who stand looking
Oh,
it makes me wonder
Oh,
and it makes me wonder
(Stairway to Heaven – Led
Zeppelin)
Jeb
Não
era tão fácil quanto Mel fez parecer. Ou talvez minha sobrinha, minha pequena,
fosse simplesmente mais forte do que eu. O fato é que você quer sobreviver,
quer lutar com todas as forças pela posse do que sabe que está perdendo. E esse
foi o instinto que tomou conta de mim antes que eu tivesse qualquer controle.
Permanecer eu mesmo.
Sem que eu previsse, imagens
começaram a me povoar, brincar comigo. A criança que eu fui. Os ecos do homem
que eu era. Eu. As coisas nas quais não pensava há tanto tempo, porque estavam
tão profunda e naturalmente marcadas em mim que não podia mais chamá-las de
lembranças. As partes de minha identidade. Nenhum nome era o suficiente para
isso. E eu não era tão bom com as palavras. Mas também não precisava delas. As
imagens falavam coisas que só eu entenderia.
Mesmo assim, tentei sufocá-las. Não
queria dividi-las com ninguém e sabia que não estava sozinho. Era como ser
espreitado na escuridão, embora eu não sentisse medo. Como ser protegido por
alguém que não se pode ver. Uma sensação que não sentia há muito tempo. Mas são
minhas lembranças. Minhas. Senti que era preciso protegê-las, mas quanto mais
eu tentava, mais escorregadias me pareciam.
“Esqueça seu corpo. Imagine-se
cercado de paredes.”
Sim, eu me lembrava. Esquecer de
meus sentidos. Abandonar meus instintos. Deixar tudo escorrer pelos dedos que
não podiam ser mais meus.
Ficarei
firme, pequena.
Mas resistir doía. As paredes se
erguiam de mim como músculos arrancados. Desconectados de minha integridade.
Era preciso romper o laço entre corpo e alma e tudo o que eu queria era
descansar. Parar a dor. Para sempre.
“Não.”
Melanie surgiu ao meu lado. Adulta,
olhos prateados. Depois se foi e quem voltou para mim foi a menina daquela
tarde. Trevor e eu não brigamos naquele dia. Foi uma das raras vezes depois que
ele cresceu e deixou de ser meu irmãozinho tão simples de agradar. Mel era
simples. Minha pequena. Nós dois assistimos enquanto ela jogava futebol. Eu
estava feliz.
Então quando Trevor me olhou de novo
tinha olhos verdes. Verdes e prateados. Parecia confuso. Mas não. Eu é que
estava confuso. Aquele não era Trevor.
Um sentimento estranho me invadiu
quando reconheci o garoto. Um misto de familiaridade reconfortante e ansiedade
para respirar. Como se a presença dele significasse salvação e desconforto ao
mesmo tempo. Como um remédio amargo. Logan. Meu amigo de quem eu tinha que
fugir. De certa forma.
“Imagine-se cercado de paredes”, ela
repetiu. “Assim, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.”
Melanie.
Finalmente
achei minha voz. Usei-a para contar a ele quem ela era. E para lembrá-lo do
porquê de estarmos ali. A clareza me invadiu e me senti como eu mesmo de novo.
Talvez fosse simples, no final das contas. Ou o mais próximo disso. A ideia de
morte não era tão estranha, eu podia lidar com ela, mas queria viver. Esse desejo
era imperioso demais e me guiou para longe da escuridão que espreitava.
Foi esse o momento, eu acho. O
instante em que finalmente consegui criar as tais barreiras que tanto exigiram
de mim. Pareceu difícil no começo e acho que por isso continuo me lembrando
disso, que o momento continua a se repetir em minha cabeça como um filme. Sei
que houve mais depois. Lembro-me de me sentir grato e incomodado, tudo ao mesmo
tempo. E de, num certo ponto, ter perdido a conexão com meu próprio corpo, de sentir
minha vida se dissipando como fumaça no ar. Lembro-me da sensação de morrer.
Mas não é disso que me lembro melhor.
Não estou morto. Sei disso. E estou
sozinho de novo, posso sentir. Não dói mais. Meu corpo, as paredes que precisei
manter erguidas e que drenavam minhas forças, tudo parece bem agora. Acho que
conseguimos. O que quer que estivesse errado com meu coração não está mais. Só
que eu não consegui. Por algum
motivo, quando a conexão se foi, eu perdi também a consciência de como
recuperá-la. E parece que algumas barreiras também. Agora não há limites para
as coisas de que consigo me lembrar.
Sinto-me perdido, desfeito dentro de
mim mesmo. E é tão estranhamente agradável que quase não quero voltar à tona.
Às vezes ouço algumas coisas. Vozes
familiares em frases soltas ou trechos de conversas, e essas palavras produzem
imagens. Só que eu não consigo discernir se são sonho, realidade ou lembranças,
minhas ou dele.
O que posso dizer? Parece confuso. E
é. E muito embora seja libertador e excitantemente diferente de tudo o que um
humano poderia viver, é também doloroso.
Eu quis tanto proteger minha
identidade, minhas memórias, as peças de meu próprio quebra-cabeça, que não me
protegi contra a força perturbadora que é carregar o peso de outra pessoa. É
como assistir, do prédio vizinho, a uma criança andar tranquilamente pelo
peitoril de uma janela no quinto andar. Quero ser os braços que poderiam
puxá-la para a segurança, mas não sou. Quero desviar os olhos para não ver a
queda, mas não posso. Não posso fingir que a dor não existe. Já estou
envolvido.
Vejo o Logan humano. Acho que é uma
memória, mas também pode ser um pesadelo. Ele é o primeiro a chegar à cena de
um crime e olha para ela com frieza. Um traficante matou o rival a tiros e
fugiu. Ele não se importa. É vazio por dentro e a morte não o impressiona. É
sua profissão, quer apenas fazer seu trabalho e dar o fora assim que possível,
partir para outra.
Com a arma em punho, ele checa se
não há mais suspeitos no local, se os socorristas podem entrar em segurança,
embora não haja o que fazerem pelo pobre diabo caído numa poça escura de
sangue. Há um armário velho na casa, está crivado de balas como as paredes ao
redor, mas pode ser um esconderijo. É possível notar a umidade escorrendo por
baixo da porta. Talvez o suspeito tenha se ferido e não tenha, afinal,
conseguido fugir. Então ele faz sinal para parceiro que o acompanha abra a
porta do móvel enquanto ele faz a mira, dando cobertura.
Sem o apoio da porta crivada, um
corpo inanimado tomba para o lado, caindo num baque surdo no chão. Está morto
também. A criança não tem mais do que uns 7 ou 8 anos e seus olhos ainda estão abertos.
É um menino, um garoto que parece com todas as crianças sofridas que já vi. Que
parece com o de outras lembranças ou pesadelos que tenho tido. Parece-se com
Logan.
Chego a sentir o gosto de bile na
garganta e acho que é assim que tomo consciência de minha própria respiração,
atravessando o bolo incômodo que se forma. Talvez eu esteja acordando, afinal. Porque
sinto as lágrimas não derramadas arderem nos olhos do Logan humano. Ou talvez
seja nos meus. Consigo imaginar o alivio quando, na mesma noite, ele exauriu o
próprio corpo no saco de pancadas da academia de polícia. Sinto até mesmo os
nós de meus dedos doerem.
Penso na menininha morta que
despertou tudo isso, toda essa fúria que agora sei que ele sempre guardou.
Chamava-se Lindsay, como “minha patinha”, como a doce garotinha a quem eu chamo
de neta. Não é ela, embora tome seu rosto emprestado às vezes, mas dói como se
fosse. A dor dessa memória, das noites de pesadelo relacionadas a ela, parece
para mim como a de dezenas de fraturas. Tem o som de uma alma se rompendo, de
estilhaços pesados batendo contra as paredes de um quarto fechado e
ricocheteando, ferindo e maculando tudo o que ainda esteja inteiro ao redor.
É
parte de quem ele é, mas não é tudo o que ele se tornou. Vejo outras cenas também,
algumas de meu próprio ponto de vista, provavelmente, já que estou na maior
parte delas. Talvez seja eu mesmo que esteja lembrando.
Nós dois no deserto, naquele dia em
que achei que finalmente ia ser obrigado a matar ou morrer, com Estrela
desmaiada aos pés dele. Quando eu soube que Peg estava viva e o que tudo aquilo
significava. Depois, o momento em que o vi partir determinado a trazer Estrela
de volta em um novo corpo e a tarde em que voltaram de fato. A sensação de
estranheza e alívio quando ele entendeu que podia confiar em mim, o prazer até
então estranho de não ser temido ou julgado. Minha visão e os sentimentos dele
misturados.
Os nascimentos de Lindsay e John
embaralhados a cenas aparentemente banais, mas que tinham cheiro de lar. Uma
discussão com Kyle que acabou em risadas, Sunny cozinhando e colocando um prato
quente de macarrão e queijo em minha frente na mesa. Um jogo de futebol com Mel
ou de damas com Doc, as lições de direção dadas a Jamie, ou uma conversa tola sobre
morcegos e super-heróis com Lily. Eu nunca gostei de macarrão com queijo, ou de
discutir com Kyle, ou mesmo me importei com HQs ou coisa que o valha, mas posso
sentir o extremo prazer que ele tirou de cada uma daquelas experiências simples
e perfeitamente humanas.
Para mim, Logan é agora tão familiar
quanto os labirintos de pedra das minhas cavernas. E eu gosto do que vejo. Já
gostava antes, mas agora é como gostar de mim mesmo. E não gostar também,
porque às vezes posso ser um sujeito difícil de lidar. Assim como ele. Assim
como todo mundo em algum momento. Mas eu entendo. Entendo tudo e aceito. Acho
que é isso que se chama paz.
Sei que havia uma coisa que eu
queria saber, algo com que eu devia estar preocupado, mas não estou. Em algum
lugar de minha mente sem fronteiras, uma ideia qualquer navega no oceano de muitas
outras, mas tudo o que não seja entendimento e aceitação não parece chegar
perto o suficiente para ser tocado. As sensações e pensamentos é que me
escolhem e não o contrário. Gosto da liberdade disso.
Liberdade. Talvez estar morto seja
assim, mas eu sei que não estou morto. Não me pergunte como, mas eu sei.
Desconfio que mortos não sintam o cheiro telúrico de pedra bruta que impregna
as paredes da minha casa, aquele odor que outros não sentem, mas que eu sei que
está lá. Não que eu seja entendido no assunto, mas suponho que só os narizes
vivos funcionem. Provavelmente.
E eu acho que minha audição está
melhor também. Semi-acordada, como quando eu cochilava na frente da televisão e
juntava partes dos filmes com meus próprios fragmentos de sonho. Agora mesmo
ouço Logan falar. Tenho consciência da voz dele há algum tempo, na realidade,
mas só há pouco as imagens que ela produz começaram a ficar mais vivas. Quer
dizer, acho que faz pouco tempo, mas não tenho mais certeza sobre essas coisas.
Ele está falando sobre música. Algo
sobre arranjar um violão e sobre como as notas de Stairway to Heaven sobem até
o céu e deslizam de volta. Imediatamente sinto asas se abrirem e se elevarem
por uma força inesperada, ao menos para mim. Não que eu entenda algo sobre
voar, mas... Santo Deus! Estou no ar. Ou o que quer que acaricie a matéria de
que sou feito e me impulsione para cima. Tenho tido esses sonhos muitas vezes,
e de repente começo a entender por quê. Acho que é uma lembrança... De outro
planeta!
Um conjunto de sons que parecem a
princípio dissonantes começa a se agrupar. São notas desconhecidas que
comunicam coisas, sons metálicos e agudos se juntando a graves tão retumbantes
e baixos que é mais fácil sentir sua vibração do que, de fato, ouvi-los.
Frequências tão contraditórias e extremas que eu nunca imaginaria juntas, mas
que formam uma música desconhecida que me dá a conhecer tudo ao meu redor. O
som é onisciência. É ele que me empurra para cima. Toca as coisas e volta para
mim com a forma delas. Vivo através do que as canções me confessam. A visão,
esse sentido humano tão indispensável, não tem importância aqui. Tudo é noite
que faz parte de mim. E o mundo é absoluta, clara e perfeitamente sonoro.
No entanto, é uma imagem o que me
traz de volta. Meu pai e seu violão. As canções suaves e atemporais de que ele
gostava. A melancolia dolorida da saudade que sinto sempre que me lembro. Minha
mãe e seus olhos tão verdes e ternos. Todo esse passado longínquo que me puxa
para minhas raízes, para o solo familiar em que aterrisso calmamente.
Por algum motivo me lembro de Norah.
Acho que tem a ver com a música. Recordo o dia em que a conheci naquele bar de
motoqueiros, parecendo a coisa mais encrenqueira que já andou sobre a Terra,
jogando sinuca e fazendo pose de má. Achei que ela era perigosa, tentando
esconder sua doçura por trás das roupas pretas e da atitude inconsequente. E
ela era perigosa mesmo. Até hoje não sei o que eu estava fazendo naquele
maldito lugar. Foi mesmo por causa da música. Pois eu devia ter me contentado
com o rádio do meu carro.
Música... Tem alguma coisa sobre
isso, mas não quero pensar.
Tento me focar no que Logan diz,
voltar para o momento anterior, com Stairway to Heaven e meu pai na varanda,
mas não está mais igual. Aquelas ideias leves se perderam, o tom dele está
diferente.
“Estou com muito medo.
... eu fiz isso.”
Medo.
A palavra fica ricocheteando em
minha cabeça.
Fez o quê? Do que ele está falando?
Começo a me sentir incomodado com a
conversa, mas me sinto ainda pior com o silêncio que se segue. Estou mais
alerta agora, tentando não me perder em divagações, mas o eco daquelas palavras
continua a me atormentar. Talvez até por isso. Porque sei que elas não estão no
passado. Há algo de opressivo em sentir uma dor que não vem de memórias, mas do
presente. E a voz dele está repleta de um sentimento fora de lugar, de uma
angústia e de um cansaço que pesam sobre mim também, porque agora me preocupo
com ele mais do que antes.
Percebo a presença de Peg, mas a paz
que sua voz de menina sempre me trouxe parece perturbada também, como se ela,
em certa medida, compartilhasse da aflição dele. Quero parar isso, porque não
faz sentido. Eles falam sobre culpa e medo da morte quando devíamos estar
celebrando a vida. Afinal, nós vencemos, não vencemos? Eu não estou morto,
estou?
Não, eu não estou.
Começo a empurrar a energia que
existe dentro de mim para todas as direções certas. Eu acho. Pelo menos é o que
eu tento fazer. Tento imaginar meus braços, os dedos que senti doerem há pouco,
procuro movimentá-los. A letargia é imensa, no entanto. Qualquer movimento me
parece penoso demais, mas... Aí está! Eu consegui. Tomo consciência de que mexi
meu indicador e tento mexer os outros também, depois, quem sabe, girar o pulso,
o pescoço... Tem que ficar mais fácil.
No começo é muito difícil, sinto
como se cada dedo pesasse uma arroba ou mais, mas depois meus músculos parecem
se reacostumar, se reconectando aos movimentos que lhes ordeno. Então minha mão
esquerda está de volta. O mesmo acontece com a direita depois de muito esforço,
mas ainda assim menos do que precisei antes.
Ouço a voz de Lindsay.
Vamos
lá, Jebediah! Não seja preguiçoso. Você sempre gostou de mandar, mande no seu
próprio corpo!
Crianças. Lindsay. John. Jamie. A
criança que está em minhas memórias agora. Quero vê-las.
Vamos...
lá.
— Vovô “ta” doente?
Não, patinha. Alguém diz a ela que
estou voltando, que já sinto minhas pernas. E o sangue em minhas veias.
— Ele não está doente, não, meu amor.
Só está dormindo um pouquinho, como você devia estar fazendo. Já está tarde
para crianças estarem de pé.
Estrela está aqui também. Ela disse
que está tarde? Quanto tempo se passou?
— Mas eu “quelia” o papai.
— Vá, Logan. Cuide de sua filha. Eu
fico aqui com ele.
— Tudo bem, bebê. Papai vai fazer
você dormir.
Reencontro meus olhos justamente
quando Logan a toma nos braços e, de costas para mim, começa a niná-la. Estou
de volta à última cena que vi antes das coisas começarem a ficar malucas e eu
terminar aqui, com todas essas lembranças estranhas e reveladoras em minha
cabeça. A ideia que flutuava à deriva finalmente entra em meu campo de visão.
Posso contemplá-la à distância, mas ainda não sei o que fazer com isso. Só sei
que antes de tudo, preciso voltar definitivamente para casa.
— Não se esqueça de cantar aquela
sua musiquinha desafinada — digo.
E mais do que nunca, reconheço os
olhos que me olham de volta espantados.
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