Capítulo 33 – A Esperança é Vermelha
When
it will be right, I don´t know.
What
it will be like, I don´t know.
We
live in hope of deliverance
From
the darkness that surrounds us.
(…)
And I
wouldn´t mind knowing, knowing
That
you wouldn´t mind going,
Going
along with my plan.
(Hope of Deliverance – Paul
Mccartney)
Há
dias que parecem não ter fim. Os minutos que deveriam preencher suas meras 24
horas têm, na verdade, ramificações que se estenderão indefinidamente no
futuro. Isso é porque, para o bem ou para o mal, eles também não têm começo. Ao
menos não um muito discernível.
O dia de hoje, por exemplo, talvez
tenha começado no dia em que encontrei Marina pela primeira vez, mas o mais
provável é que tenha sido em outro momento. Quem sabe no instante
inidentificável em que, sem perceber, deixei-a entrar em minha alma e fiz dela
e de seu filho minha família. Talvez tenha sido aí. Ou em qualquer outro dos
dias felizes ou difíceis que passei ao lado deles.
Foram novecentos e vinte e três ao
todo. Eu contei. Às vezes posso ser realmente boa em me torturar. Tentei contar
os outros também. Quero dizer, quanto tempo se passou desde que os deixei. Mas
quando esta conta ultrapassou em muito o resultado da anterior, eu desisti. Até
eu tenho meus limites. Mesmo assim, não posso desconsiderá-los. Os infinitos
minutos de saudade. Talvez eu nunca saiba ao certo quanto, mas eles têm um peso
enorme. E um papel em quem eu sou.
Uma coisa que eu sei, no entanto, é
que certamente os dias que não me permiti contar também me trouxeram até aqui.
Para este momento em que a decisão é tomada antes mesmo de que eu tenha
consciência dela.
— Clara, você e minha mãe se
conhecem? Como foi que você ficou sabendo que eu estava aqui?
Minha boca se abre para contar uma
mentira qualquer, mas é impossível. As palavras deslizam para algum canto
inalcançável de minha mente, porque, em seu lugar, os infinitos minutos começam
a correr de novo em minha lembrança. Passando pelo instante em que levantei os
olhos do trabalho mecânico que fazia e vi Teo no palco pela primeira vez, até o
dia em que descobri quem ele realmente era. E então as imagens se aceleram
outra vez e meus pensamentos se congelam no momento mais assustador de minha
vida.
“Aconteceu uma coisa.”
Por um segundo, antes de saber
realmente o que essas palavras pronunciadas entre lágrimas significavam, minha
mente imaginou o inimaginável.
Eu
perdi você, Caio. Perdi. Você.
Não
foi mais que um segundo, mas eu o vivi. A perda. O luto. O estar vazia e
impotente. A noção aterradora e definitiva do nunca mais. Eu senti tudo e não
posso ser a mesma depois disso. Não consigo. Simplesmente não consigo mais
adiar a verdade quando me dou conta de que ela poderia jamais ter a chance de
ser contada.
— Sim, nós nos conhecemos —
confesso.
Marina adivinha minhas próximas
palavras e me olha assustada.
“Agora não”, seus olhos parecem
dizer. E percebo que ela tem razão. Vê-lo recuperado é a prioridade. E ele vai
precisar de todas as suas forças nos próximos dias, não pode prescindir de
nada. Como posso pensar em bagunçar a vida dele justo agora? Ou a de Marina e
Fernando quando eles mais precisam de paz?
Eu sei que não é a hora, não
precisaria ser muito sensível para perceber. É só que não consigo pensar em
nada bom para dizer para, mais uma vez, encobrir a verdade.
— Você me pediu para chamá-la —
Marina me socorre, lembrando do que tínhamos combinado anteriormente. — Ela e
sua outra amiga, a...
— Paty — completo quando vejo seus
dedos estralando no ar nervosamente, tentando localizar na memória o nome que
só mencionei uma vez.
— Eu pedi? — ele se surpreende, mas
não questiona muito. — Poxa, não estou lembrado. Na verdade, está tudo meio
bagunçado na minha cabeça.
— É normal — tento tranquilizá-lo. —
As pessoas têm reações estranhas à anestesia. Sua mãe também se esquece das
coisas que disse. — No dia da cesariana de Caio, ela estava muito nervosa e lhe
deram um calmante. Foi o suficiente para deixá-la grogue e meio esquecida
depois.
— Como você sabe? — ele pergunta,
genuinamente confuso.
Cala
a boca, Clara! Por que você não consegue fechar esta maldita boca?
Marina me fuzila com os olhos e me
dou conta tarde demais do que disse. Vou ter que ser convincente para corrigir
isso. Por ela. Visto minha expressão mais desentendida e faço força para
parecer imperturbável, tranquila.
— Ela me contou. Ficamos conversando
enquanto você não acordava. Quando cheguei aqui, nós percebemos que nos
conhecíamos, embora eu não tivesse ligado o nome à pessoa quando você me falou
dela.
— Sério? E de onde?
Eu sabia que ele ia perguntar isso,
mas ainda estou tentando ganhar tempo, esperando meu cérebro voltar a funcionar
e me dar alguma ideia brilhante. Ou pelo menos razoável. Na realidade, uma
ideia estúpida já estaria boa, mas não acontece nada. Apenas fico olhando para
ele, desejando não ter entrado no modo-verdade-nada-mais-que-a-verdade justo
agora. Felizmente, Marina está mais
lúcida que eu.
— É que Clara foi minha paciente anos
atrás.
Até eu me surpreendo com essa. Era
mesmo a solução mais óbvia, mas isso não minimiza o quanto me parece
inteligente. Caio não vai perguntar detalhe nenhum depois disso. Ele sabe que a
relação entre psicólogo e paciente é tão íntima quanto privada.
— Caramba. Quem ia imaginar? — ele
diz, com os olhos arregalados. Dá para ver o quanto ele está surpreso e se
mordendo por dentro de curiosidade, mas que não vai dizer mais coisa alguma com
medo de ser indiscreto.
— Pois é. A Marina me ajudou muito a
lidar com a solidão que eu senti quando perdi minha mãe. Ela me fez perceber
que família é sempre família, mesmo quando está longe.
Sei que isso foi golpe baixo, mas
não consegui resistir. Tenho certeza de que ela conhece todos os sentidos
ocultos nessa frase e sabe que tudo é absolutamente verdadeiro, mas eu não
pretendo perder qualquer oportunidade que tenha de dizer essas coisas para ela.
De quebra, ainda dei algo para Caio pensar sobre os motivos que me aproximaram
dela, caso ele fique se perguntando. A morte de meus pais seria motivo
suficiente para procurar ajuda profissional. Nem mesmo Paty vai conjecturar a
respeito. Ou fazer perguntas, o que é mais importante.
— Eu... Ahn... Fico feliz em ter te
ajudado. Eu...
Marina se atrapalha com a resposta,
mas eu sei que ela entendeu o que eu quis dizer. Sobre família. Sobre ela
sempre representar isso para mim, não importa o que aconteça ou quanto tempo
nos separe. Eu a amo demais para esquecê-la. Ela e Caio preencherem vazios em
mim que eu nem sabia que existiam.
— Eu sei — digo. E sorrimos uma para
a outra.
O toque de mensagem do meu celular
nos interrompe.
— Paty chegou — anuncio. — Vou
encontrá-la lá fora.
— Ai, ai. Ela vai me dar uma bronca.
Certeza — diz Caio, em tom de lástima.
— Então eu já gosto dela — provoca a
mãe dele. — Porque eu mesma não tive coragem ainda, querido, mas bem que você
merece.
********
A primeira coisa que Paty faz quando
vou encontrá-la na recepção é me abraçar. Bem apertado. A princípio, eu não
deveria estranhar. Ela tem feito isso praticamente todos os dias desde que nos
conhecemos. É só que hoje parece diferente.
— Você chegou antes de mim — ela
observa assim que nos afastamos.
Já estou usando um crachá de
visitante e, além disso, ela me viu vindo de onde ficam os quartos. Então,
mesmo que eu quisesse mentir para ela não seria possível. Ainda bem que não é o
caso. Eu até pretendia, para falar a verdade. Achei que seria mais confortável
para todo mundo se eu fingisse que não tinha intimidade alguma com Marina e que
só a tinha conhecido há poucos minutos. Mas aqui, olhando nos olhos de minha
amiga, fica óbvio que eu não estava pensando direito quando considerei isso.
Qualquer um que conheça Paty poderia apostar que ela não ia acreditar em algo
assim quando nos visse juntas. O bom é que, de qualquer forma, agora eu tenho
uma desculpa.
— Não aguentei esperar, por causa de
uma coisa que eu ainda não te contei. É que... Bom, na verdade, eu vim ver a
mãe do Ca... do Teo.
Por um instante, soa esquisito
chamá-lo pelo apelido, porque isso me faz lembrar o homem feito que conheci no
On The Rocks e hoje eu só consigo enxergar meu garotinho. Mesmo assim, faço o
esforço mental e “mudo meu chip”, porque sempre evito me referir a ele como
Caio na frente de outras pessoas, mas se essa pessoa for Paty eu me policio
ainda mais. Desnecessário acrescentar ao ciúme que ela já sente de mim, mesmo
sem admitir.
— A mãe? — ela pergunta, parecendo
surpresa e desconfiada.
— Sim. Quando ela me ligou eu
percebi que nos conhecíamos. Ela é psicóloga, como o Teo deve ter te contado, e
eu já me tratei com ela. Eu gostava muito dela na época. Fiquei lá em casa
pensando e acabei decidindo vir antes do horário de visitas, para ver se ela
precisava de alguma coisa.
— Que coincidência estranha.
— É.
Não sei mais o que dizer e nem ela.
Paty estreita um pouco os olhos e fica me observando, como se estivesse
tentando entender o que a incomoda na história que acabei de contar. Por minha
parte, tento parecer impassível. Obviamente, eu já fui melhor nisso de
transparecer uma segurança convincente, mas só quando podia me dar ao luxo de
fingir que era uma versão mais simples de mim mesma. O caso é que quanto mais
eu gosto das pessoas ao meu redor, quanto mais intimamente me envolvo com elas,
mais difícil fica. E com Paty, claro, tem sido quase impossível. Por fim, ela
suspira, resignando-se à história que, afinal de contas, é bem verossímil.
— E como ele está? Você já viu o
Teo, não viu?
— Vi. Ele está bem. Está acordado e
só se queixou de um pouquinho de dor. Está esperando por você, com medo de
levar uma bronca.
Rio um pouco, mas ela não me
acompanha. Talvez esteja preocupada demais para se distrair com qualquer tipo
de brincadeira, mas não sei dizer ao certo se é isso mesmo. Nunca vi Paty assim
tão séria.
— Vamos lá, então — ela propõe e eu
começo a andar, só para perceber, um segundo depois, que ela continua parada
onde estava.
— Paty? O que foi?
— Eu não sei como agir — ela diz,
parecendo um pouco atordoada, como se admitir aquilo a estivesse incomodando
mais do que previu. — Estou muito puta com ele.
Não sei por que isso me surpreende.
Afinal, o próprio Teo anteviu que o estado de espírito dela não seria dos
melhores. E a verdade é que eu entendo. Ele pôs sua vida em risco, tão tola
quanto desnecessariamente. Quando Paty souber na companhia de quem, então, a
coisa vai piorar. Penso em contar a ela, mas acabo reconsiderando e optando por
fazer isso na presença de Marina e do próprio Teo. Quem sabe a companhia de uma
estranha e a visão do amigo tão fragilizado arrefeçam um pouco a irritação.
Deixar que ela fique cada vez mais aborrecida não fará bem para nenhum de nós.
— Eu entendo, mas não acho que este
seja o melhor momento para...
— Eu fiquei com medo — ela continua,
como se nem tivesse me ouvido. — Droga, fiquei com muito medo! E quero dar na
cara dele por isso.
E é só então que eu finalmente
entendo. A perplexidade real por trás de suas palavras me faz perceber o que
ela também está começando a admitir. Que o medo que sentiu é maior do que o que
se sentiria normalmente por um amigo. E o ineditismo disso a aterroriza um
bocado.
— Respira, Paty — digo, segurando
seu rosto em minhas mãos. — Vai ficar tudo bem.
Não sei exatamente o que quero dizer
com isso. O amor é sempre uma coisa boa, sempre um indício de que tudo pode
mesmo ficar bem, mas é também extremamente imprevisível. E agora minha melhor
amiga está apaixonada pelo meu lindo menino-anjo.
De certa forma, eu já sabia e sempre
gostei da ideia. Eu me permitia sonhar com a possibilidade e ficar feliz com
isso, porque o amor não pode ser ruim. De jeito nenhum. Mas nunca parei
realmente para pensar no quanto isso podia ser inconsequente, embora eu não
pudesse realmente fazer nada para evitar.
Ela esta apaixonada por Caio e ele
não parece pronto para corresponder. Por minha causa. Por minha culpa. Porque
eu não fui hábil o suficiente para discernir meus reais sentimentos a seu
respeito até ser tarde demais para frear os dele, ou o que ele acha que sente.
Porque eu quis preservá-lo por mais tempo e prepará-lo devagar para a verdade
que deveria ter sido dita de imediato. Porque eu é que não estava pronta e fui
covarde. E quando deixar de sê-lo vou acrescentar outro empecilho à vida de
Paty.
— Vai dar tudo certo — repito, mas
desta vez para mim mesma.
O último pensamento me fez cair de
novo na real. Não parece justo ver nosso dom como um empecilho. Nada nunca
impediu a minha espécie de amar, a não ser nossa própria introspecção
característica, e Caio não é assim. Ele sempre foi humano demais. Amável e
aberto às pessoas. E Paty é do tipo que arromba os corações. Ela certamente
arrombou o meu.
Vai
ficar tudo bem. De um jeito ou de outro.
Eu a abraço e ficamos ali um pouco
em silêncio. Depois, ela se separa de mim e assente, como se dissesse que está
pronta, então eu a puxo pela mão e ela se deixa levar pelo longo corredor até a
porta do quarto dele. Marina surge na soleira assim que bato discretamente e
nos recebe com um sorriso.
— Então você é a famosa e temível
Paty — ela brinca. — Entre aqui, querida. Obrigada por ter vindo.
Marina a cumprimenta com um beijinho
no rosto e minha jovem amiga sorri timidamente. Eu nunca a tinha visto ficar
tímida! É uma graça.
— Vou deixá-los à vontade para
conversar — diz minha amiga mais antiga. — Preciso ligar para meu marido.
Marina sai do quarto depois disso e
eu fico ali, pensando se invento uma desculpa e saio também, mas Paty não larga
a minha mão. Ela também não chega perto da cama por iniciativa própria, então
eu a levo a reboque.
— Oi. Como você está? — ela pergunta
a Caio. Sua voz soa surpreendentemente calma, considerando a mão suada que
seguro na minha. Mesmo assim, a pergunta simples soa estranha vinda dela,
artificial como se ela estivesse tentando entabular uma conversa cordial com um
estranho.
— Bem. — Caio também parece
estranho, meio sem-graça, na verdade. —Paty...
— Oi?
— Você está brava? Porque eu sei que
mereço, mas não gosto quando você fica chateada, menos ainda se eu for o
culpado.
Eu sinceramente gostaria que ele não
tivesse dito isso, porque acho que Paty está fazendo uma tentativa honesta de
se manter, mais do que calma, um pouco distante. Não por estar realmente
zangada, pelo contrário. Acho que a preocupação que o acidente a fez sentir só
tornou evidente o carinho que tem por ele, porém isso não parece tão claro
assim para ela. De fato, pelo que vi lá fora, os sentimentos dela estão meio
bagunçados no momento, e Caio se mostrar afetuoso e arrependido pode ser um
risco para a máscara atrás da qual ela decidiu se esconder. Abrir uma brecha em
sua armadura para as emoções entrarem pode também fazê-las sair, e não acho que
ela esteja preparada para isso agora.
—
Não estou brava. Por que estaria? Só vim mesmo fazer uma visita, ver como você
está.
— Certo. É que eu achei que... Bom,
você sempre me dá bronca quando eu faço alguma besteira. E desta vez foi uma
das grandes.
É claro que eu não podia esperar que
Caio percebesse o que está acontecendo. Ele acha que a secura do comportamento
de Paty, tão atípica dela e que provavelmente ele nunca sentiu antes, se deve à
suposta irritação pelo erro que ele cometeu. Tenho a impressão de que ele está
se sentindo tão mal com isso tudo que é só o que consegue enxergar.
— Ninguém está chateado com você,
Teo — tento consolá-lo. Por mais que seja bom que ele se arrependa, já que isso
me deixa mais segura de que ele não voltará a incorrer no mesmo deslize
perigoso, não quero que ele sinta que estamos ressentidos e acusando-o de algo
de que já está tão dolorosamente consciente por si mesmo. — É só que todos nós
ficamos muito preocupados.
— Desculpe — ele responde
constrangido. — Eu sei que é até estranho para um cara da minha idade e que,
ainda por cima, trabalha em bares, mas eu não estou acostumado a beber. Aí
acabei perdendo a medida. Eu estava chateado e achei que não tinha problema
descontrair um pouco.
Detesto saber que sou a causa desse
aborrecimento, mas as coisas que ele me disse ontem no bar deixaram isso bem
claro. Toda aquela história sobre como ele tinha encontrado alguém que gostava
dele, já que eu não gostava... Toda essa conversa equivocada e a mágoa dirigida
a mim e a Eric não me deixaram ilusões. Nunca quis machucá-lo, só não tive como
protegê-lo nesse caso. De qualquer jeito, não achei que ele reagiria assim,
cedendo à influência de alguém tão claramente daninha como Esther.
— É, mas descontrair um pouco não
significa bancar o ridículo.
Sou arrancada de meus pensamentos
pelas palavras de Paty. Demorou um pouco mais do que eu imaginei, mas a
armadura finalmente começou a se desmontar. Quando tem tudo sob controle, minha
amiga jamais demonstra cinismo. Cuidado sim, até um pouco exagerado às vezes,
mas esse tom de maldade na fala é novidade para mim. É como Marina costumava
falar comigo no começo: como alguém sensível que tenta evitar ser magoado
construindo muros de sarcasmo em torno de si.
— Aí está a Paty que eu conheço —
Caio atesta, e não é uma total surpresa para mim que ele esteja tão mais bem
familiarizado com esse lado vulnerável dela. É até bonitinho como nenhum dos
dois parece se dar conta do que ele realmente representa.
— Foi mal — ela se desculpa.
— Não, não foi mal. Vem aqui, por
favor.
É então que algo realmente espantoso
acontece: de um jeito totalmente inesperado e espontâneo, Caio puxa Paty para
um abraço e ela cede sem pensar muito no que está fazendo. Parecem duas
crianças fazendo as pazes do jeito mais simples que conhecem, se dando um ao
outro, se encontrando quando as palavras parecem insuficientes e pouco úteis.
— Desculpa, Paty. De verdade. Você
tem sido tão legal comigo e eu não dei à sua amizade o valor que merecia — ele
diz, e logo depois a solta.
Por mais que as palavras dele
pareçam desapaixonadas e amigáveis, há uma energia unindo os dois, se
desprendendo de seus corpos e isolando-os do resto como se eles fossem parte de
um outro todo. É rosada no início, pacífica em sua quase brancura, mas depois
vai escurecendo, como se tivesse recebido uma injeção de vermelho, e sei que o
coração de ambos está se abrindo neste exato instante e, alheios aos seus donos
e aos cérebros obstinados que os comandam, estão reconhecendo o inevitável. É
uma das coisas mais bonitas que já vi, ainda que seja complexa demais para ser
apreendida em sua grandeza.
A névoa se rompe de súbito —
resultado do desconforto físico de Caio quando tenta se acomodar na mesma
posição de antes — mas não desaparece, fica pairando ao redor, voltando ao seu
tom rosado inicial. Distraio um pouco meu menino ajudando-o a se recostar de
novo nos travesseiros, pois sei que Paty precisa de um segundo. Daria mais a
ela se pudesse, mas ele recomeça a falar:
— E para seu governo, eu gosto
quando você me chama a atenção. Me sinto importante. Não me oponho que meus
amigos cuidem de mim.
Eu sabia. Paty é o que eu chamo de
cuidadora. Em todas as suas atitudes, suas ações se direcionam a fazer os
outros se sentirem bem. E Caio gosta disso. Compreensivelmente. Foi por essa
porta que ela entrou em meu coração também.
— É verdade. Paty faz a gente se
sentir cuidado, não é? — incito, porque quero que ele continue, quero que ela
saiba o quanto nos faz bem.
Caio entende e está prestes a
continuar quando ela interrompe o momento com um pigarro falso. Talvez sejam
muitos furos na armadura para um único dia.
— Mas, bom... Você não me disse como
está se sentindo.
— Eu estou legal. Melhor agora que
vocês estão aqui. É muito bom ter um pouco de companhia para a minha mãe poder
relaxar um pouco, porque eu fico chateado de vê-la tão preocupada. Nunca mais
vou beber nada, só pra não ter que ver ela e meu pai sofrerem desse jeito de
novo. E vou ficar bem esperto com algumas pessoas também...
Percebo no mesmo instante que ele
está falando de Esther e saber que ele pretende manter distância me deixa
aliviada. Porém, de um jeito estranho, sinto que o vem a seguir não vai ser
agradável de ouvir.
— Pelo menos eu não usei as outras
coisas que Esther me ofereceu... — ele prossegue, confirmando minhas suspeitas.
— Não que eu estivesse considerando, claro, mas ela bem que insistiu. Desculpe
por não ter ouvido você, Clara. Eu não me lembro muito bem do que houve ontem,
mas sei que não fui nada legal.
E quando a conversa parecia ter
voltado a andar em círculos seguros...
Oh,
céus! Oh, Pai!
— Tudo bem — respondo, tentando
fazer parecer que ele não disse nada de mais, mas o problema é que o detalhe das
“outras coisas” também me pegou desprevenida, então não consigo afetar
indiferença. Mesmo que isso pudesse confundir Paty, o que obviamente não seria
possível.
— Ahn, quem? Você estava com...? E
ela te ofereceu...? Você. Fez. O quê?
Se eu fosse do tipo que fala
palavrão teria dito um bem feio agora.
Puta
que pariu! E daí pra pior.
—
Escuta aqui, onde você estava com a cabeça, hein? — ela esbraveja, todo
controle que estava a duras penas mantendo foi para o espaço mais rápido do que
eu conseguiria dizer “F...eu”!
Tento acalmá-la, minhas duas mãos
estão nos ombros dela como se para dizer que estou aqui, mas isso só piora
tudo. A onda vermelha que emana dela agora tem um tom muito diferente,
arroxeado. O ciúme é uma percepção violenta e Paty é bem transparente no que
diz respeito a emoções passionais.
— Eu... Só queria me divertir um
pouco... Ela estava sendo legal e é tão gata. Meus amigos...
Ai,
Caio, fique em silêncio, por favor!
— Ah, deixa eu adivinhar: seus
amigos ficaram te incentivando? Acharam bonito te jogar numa cilada, né? Só
pode. Ou isso ou são um bando de manés. Se algum de vocês fosse tentar comer o
peixão ia sair vomitando piranha, especialmente um cara metido a bonzinho feito
você. Porque deixa eu te falar uma coisa, Teo, a vadia não é para o bico de
vocês, moleques tontos, não! E você vai ver o quanto ela vai ficar gata depois
que eu estourar a cara dela!
— Calma, Paty.
— Que calma o quê, Clara! A
vagabunda fica querendo pegar nossos homens agora e você fica aí pedindo calma?
Já estava devendo uma peruca nova para o travesti que é meu amigo desde o dia
em que aquela piranha te maltratou no On the Rocks. E vai ser hoje mesmo que eu
vou providenciar uma. A Valeska vai adorar o cabelão escuro.
Pronto, assumiu. Não posso evitar o
sorriso quando percebo que ela também nota sua escolha reveladora de palavras:
“nossos homens”. As coisas vão ficar interessantes depois dessa. Especialmente
quando vejo a expressão surpresa e lisonjeada no rosto de Caio.
— Menos mal — ela diz num rompante, antes
de sair correndo do quarto. — Pelo menos agora você já sabe que eu estou no
páreo.
Olho para Caio e ele continua
sorrindo, as bochechas adoravelmente vermelhas com um constrangimento
satisfeito. Saio correndo atrás dela depois disso, porque não quero que ela vá
embora sem saber o que eu percebi.
— Paty, você está bem? — pergunto
quando a alcanço lá fora.
— Ah... Não?
Ela quase põe as mãos na cintura
quando me responde. Sinto que ela tenha parado o gesto na metade, porque seria
a combinação perfeita com a expressão petulante em seu rosto. É engraçado.
E
você não deve rir da sua amiga numa hora dessas... Bom, talvez só um pouquinho
para aliviar a tensão.
— Claro. Pergunta idiota a minha.
Mas, bem, se ajuda em alguma coisa, acho que ele gostou de saber.
— Fiz um show lá dentro, não foi? —
ela diz, parecendo um tanto envergonhada.
— É, foi interessante. — Não posso
negar que estou me divertindo horrores com isso. Pelo motivo certo, porém. —
Mas ele estava sorrindo no final.
— Deve ser por causa da história da
peruca.
— Sorrindo, Paty. De alegria. Não
dando risada. Acho que ele não tinha percebido que você estava a fim. Se ele
for um pouquinho igual a mim é meio lento para perceber essas coisas, mas agora
ele vai começar a olhar tudo de outra perspectiva.
— Não sei, Clara. Ele ainda gosta de
você.
— Confie em mim. Essa ilusão não vai
durar muito. Ele vai entender logo que somos só amigos.
— Como?
Porque
eu vou dizer a verdade para ele e fazê-lo entender o que realmente nos une.
— A mãe dele gostou de você. Eu
conheço Marina. Você tem uma aliada nela. Duas se contar comigo. — Digo isso
porque preciso mudar de assunto, mas não estou mentindo. Paty me faz lembrar
Marina em muitos aspectos, e sei que uma simpatizou com a outra.
O suspiro aliviado dela me faz
sorrir de novo, e logo sua animação espelha a minha. Talvez eu devesse, mas não
consigo me preocupar com o que virá para os dois depois disso. Prefiro ter
esperança.