sábado, 31 de outubro de 2015

ELS - Cap 33

Capítulo 33 – A Esperança é Vermelha

When it will be right, I don´t know.
What it will be like, I don´t know.
We live in hope of deliverance
From the darkness that surrounds us.
(…)
And I wouldn´t mind knowing, knowing
That you wouldn´t mind going,
Going along with my plan.

(Hope of Deliverance – Paul Mccartney)

            Há dias que parecem não ter fim. Os minutos que deveriam preencher suas meras 24 horas têm, na verdade, ramificações que se estenderão indefinidamente no futuro. Isso é porque, para o bem ou para o mal, eles também não têm começo. Ao menos não um muito discernível. 
            O dia de hoje, por exemplo, talvez tenha começado no dia em que encontrei Marina pela primeira vez, mas o mais provável é que tenha sido em outro momento. Quem sabe no instante inidentificável em que, sem perceber, deixei-a entrar em minha alma e fiz dela e de seu filho minha família. Talvez tenha sido aí. Ou em qualquer outro dos dias felizes ou difíceis que passei ao lado deles.
            Foram novecentos e vinte e três ao todo. Eu contei. Às vezes posso ser realmente boa em me torturar. Tentei contar os outros também. Quero dizer, quanto tempo se passou desde que os deixei. Mas quando esta conta ultrapassou em muito o resultado da anterior, eu desisti. Até eu tenho meus limites. Mesmo assim, não posso desconsiderá-los. Os infinitos minutos de saudade. Talvez eu nunca saiba ao certo quanto, mas eles têm um peso enorme. E um papel em quem eu sou.
            Uma coisa que eu sei, no entanto, é que certamente os dias que não me permiti contar também me trouxeram até aqui. Para este momento em que a decisão é tomada antes mesmo de que eu tenha consciência dela.
            — Clara, você e minha mãe se conhecem? Como foi que você ficou sabendo que eu estava aqui?
            Minha boca se abre para contar uma mentira qualquer, mas é impossível. As palavras deslizam para algum canto inalcançável de minha mente, porque, em seu lugar, os infinitos minutos começam a correr de novo em minha lembrança. Passando pelo instante em que levantei os olhos do trabalho mecânico que fazia e vi Teo no palco pela primeira vez, até o dia em que descobri quem ele realmente era. E então as imagens se aceleram outra vez e meus pensamentos se congelam no momento mais assustador de minha vida.
            “Aconteceu uma coisa.”
            Por um segundo, antes de saber realmente o que essas palavras pronunciadas entre lágrimas significavam, minha mente imaginou o inimaginável.
           
            Eu perdi você, Caio. Perdi. Você.

            Não foi mais que um segundo, mas eu o vivi. A perda. O luto. O estar vazia e impotente. A noção aterradora e definitiva do nunca mais. Eu senti tudo e não posso ser a mesma depois disso. Não consigo. Simplesmente não consigo mais adiar a verdade quando me dou conta de que ela poderia jamais ter a chance de ser contada.
            — Sim, nós nos conhecemos — confesso.
            Marina adivinha minhas próximas palavras e me olha assustada.
            “Agora não”, seus olhos parecem dizer. E percebo que ela tem razão. Vê-lo recuperado é a prioridade. E ele vai precisar de todas as suas forças nos próximos dias, não pode prescindir de nada. Como posso pensar em bagunçar a vida dele justo agora? Ou a de Marina e Fernando quando eles mais precisam de paz? 
            Eu sei que não é a hora, não precisaria ser muito sensível para perceber. É só que não consigo pensar em nada bom para dizer para, mais uma vez, encobrir a verdade.
            — Você me pediu para chamá-la — Marina me socorre, lembrando do que tínhamos combinado anteriormente. — Ela e sua outra amiga, a...
            — Paty — completo quando vejo seus dedos estralando no ar nervosamente, tentando localizar na memória o nome que só mencionei uma vez.
            — Eu pedi? — ele se surpreende, mas não questiona muito. — Poxa, não estou lembrado. Na verdade, está tudo meio bagunçado na minha cabeça.
            — É normal — tento tranquilizá-lo. — As pessoas têm reações estranhas à anestesia. Sua mãe também se esquece das coisas que disse. — No dia da cesariana de Caio, ela estava muito nervosa e lhe deram um calmante. Foi o suficiente para deixá-la grogue e meio esquecida depois.
            — Como você sabe? — ele pergunta, genuinamente confuso.
            Cala a boca, Clara! Por que você não consegue fechar esta maldita boca?
            Marina me fuzila com os olhos e me dou conta tarde demais do que disse. Vou ter que ser convincente para corrigir isso. Por ela. Visto minha expressão mais desentendida e faço força para parecer imperturbável, tranquila.
            — Ela me contou. Ficamos conversando enquanto você não acordava. Quando cheguei aqui, nós percebemos que nos conhecíamos, embora eu não tivesse ligado o nome à pessoa quando você me falou dela.
            — Sério? E de onde?
            Eu sabia que ele ia perguntar isso, mas ainda estou tentando ganhar tempo, esperando meu cérebro voltar a funcionar e me dar alguma ideia brilhante. Ou pelo menos razoável. Na realidade, uma ideia estúpida já estaria boa, mas não acontece nada. Apenas fico olhando para ele, desejando não ter entrado no modo-verdade-nada-mais-que-a-verdade justo agora.  Felizmente, Marina está mais lúcida que eu.
            — É que Clara foi minha paciente anos atrás.
            Até eu me surpreendo com essa. Era mesmo a solução mais óbvia, mas isso não minimiza o quanto me parece inteligente. Caio não vai perguntar detalhe nenhum depois disso. Ele sabe que a relação entre psicólogo e paciente é tão íntima quanto privada.
            — Caramba. Quem ia imaginar? — ele diz, com os olhos arregalados. Dá para ver o quanto ele está surpreso e se mordendo por dentro de curiosidade, mas que não vai dizer mais coisa alguma com medo de ser indiscreto.
            — Pois é. A Marina me ajudou muito a lidar com a solidão que eu senti quando perdi minha mãe. Ela me fez perceber que família é sempre família, mesmo quando está longe.
            Sei que isso foi golpe baixo, mas não consegui resistir. Tenho certeza de que ela conhece todos os sentidos ocultos nessa frase e sabe que tudo é absolutamente verdadeiro, mas eu não pretendo perder qualquer oportunidade que tenha de dizer essas coisas para ela. De quebra, ainda dei algo para Caio pensar sobre os motivos que me aproximaram dela, caso ele fique se perguntando. A morte de meus pais seria motivo suficiente para procurar ajuda profissional. Nem mesmo Paty vai conjecturar a respeito. Ou fazer perguntas, o que é mais importante.
            — Eu... Ahn... Fico feliz em ter te ajudado. Eu...
            Marina se atrapalha com a resposta, mas eu sei que ela entendeu o que eu quis dizer. Sobre família. Sobre ela sempre representar isso para mim, não importa o que aconteça ou quanto tempo nos separe. Eu a amo demais para esquecê-la. Ela e Caio preencherem vazios em mim que eu nem sabia que existiam.
            — Eu sei — digo. E sorrimos uma para a outra.
            O toque de mensagem do meu celular nos interrompe.
            — Paty chegou — anuncio. — Vou encontrá-la lá fora.
            — Ai, ai. Ela vai me dar uma bronca. Certeza — diz Caio, em tom de lástima.
            — Então eu já gosto dela — provoca a mãe dele. — Porque eu mesma não tive coragem ainda, querido, mas bem que você merece.

********

            A primeira coisa que Paty faz quando vou encontrá-la na recepção é me abraçar. Bem apertado. A princípio, eu não deveria estranhar. Ela tem feito isso praticamente todos os dias desde que nos conhecemos. É só que hoje parece diferente.
            — Você chegou antes de mim — ela observa assim que nos afastamos.
            Já estou usando um crachá de visitante e, além disso, ela me viu vindo de onde ficam os quartos. Então, mesmo que eu quisesse mentir para ela não seria possível. Ainda bem que não é o caso. Eu até pretendia, para falar a verdade. Achei que seria mais confortável para todo mundo se eu fingisse que não tinha intimidade alguma com Marina e que só a tinha conhecido há poucos minutos. Mas aqui, olhando nos olhos de minha amiga, fica óbvio que eu não estava pensando direito quando considerei isso. Qualquer um que conheça Paty poderia apostar que ela não ia acreditar em algo assim quando nos visse juntas. O bom é que, de qualquer forma, agora eu tenho uma desculpa.
            — Não aguentei esperar, por causa de uma coisa que eu ainda não te contei. É que... Bom, na verdade, eu vim ver a mãe do Ca... do Teo.
            Por um instante, soa esquisito chamá-lo pelo apelido, porque isso me faz lembrar o homem feito que conheci no On The Rocks e hoje eu só consigo enxergar meu garotinho. Mesmo assim, faço o esforço mental e “mudo meu chip”, porque sempre evito me referir a ele como Caio na frente de outras pessoas, mas se essa pessoa for Paty eu me policio ainda mais. Desnecessário acrescentar ao ciúme que ela já sente de mim, mesmo sem admitir.
            — A mãe? — ela pergunta, parecendo surpresa e desconfiada.
            — Sim. Quando ela me ligou eu percebi que nos conhecíamos. Ela é psicóloga, como o Teo deve ter te contado, e eu já me tratei com ela. Eu gostava muito dela na época. Fiquei lá em casa pensando e acabei decidindo vir antes do horário de visitas, para ver se ela precisava de alguma coisa.
            — Que coincidência estranha.
            — É.
            Não sei mais o que dizer e nem ela. Paty estreita um pouco os olhos e fica me observando, como se estivesse tentando entender o que a incomoda na história que acabei de contar. Por minha parte, tento parecer impassível. Obviamente, eu já fui melhor nisso de transparecer uma segurança convincente, mas só quando podia me dar ao luxo de fingir que era uma versão mais simples de mim mesma. O caso é que quanto mais eu gosto das pessoas ao meu redor, quanto mais intimamente me envolvo com elas, mais difícil fica. E com Paty, claro, tem sido quase impossível. Por fim, ela suspira, resignando-se à história que, afinal de contas, é bem verossímil.
            — E como ele está? Você já viu o Teo, não viu?
            — Vi. Ele está bem. Está acordado e só se queixou de um pouquinho de dor. Está esperando por você, com medo de levar uma bronca.
            Rio um pouco, mas ela não me acompanha. Talvez esteja preocupada demais para se distrair com qualquer tipo de brincadeira, mas não sei dizer ao certo se é isso mesmo. Nunca vi Paty assim tão séria.
            — Vamos lá, então — ela propõe e eu começo a andar, só para perceber, um segundo depois, que ela continua parada onde estava.
            — Paty? O que foi?
            — Eu não sei como agir — ela diz, parecendo um pouco atordoada, como se admitir aquilo a estivesse incomodando mais do que previu. — Estou muito puta com ele.
            Não sei por que isso me surpreende. Afinal, o próprio Teo anteviu que o estado de espírito dela não seria dos melhores. E a verdade é que eu entendo. Ele pôs sua vida em risco, tão tola quanto desnecessariamente. Quando Paty souber na companhia de quem, então, a coisa vai piorar. Penso em contar a ela, mas acabo reconsiderando e optando por fazer isso na presença de Marina e do próprio Teo. Quem sabe a companhia de uma estranha e a visão do amigo tão fragilizado arrefeçam um pouco a irritação. Deixar que ela fique cada vez mais aborrecida não fará bem para nenhum de nós.
            — Eu entendo, mas não acho que este seja o melhor momento para...
            — Eu fiquei com medo — ela continua, como se nem tivesse me ouvido. — Droga, fiquei com muito medo! E quero dar na cara dele por isso.
            E é só então que eu finalmente entendo. A perplexidade real por trás de suas palavras me faz perceber o que ela também está começando a admitir. Que o medo que sentiu é maior do que o que se sentiria normalmente por um amigo. E o ineditismo disso a aterroriza um bocado.
            — Respira, Paty — digo, segurando seu rosto em minhas mãos. — Vai ficar tudo bem.
            Não sei exatamente o que quero dizer com isso. O amor é sempre uma coisa boa, sempre um indício de que tudo pode mesmo ficar bem, mas é também extremamente imprevisível. E agora minha melhor amiga está apaixonada pelo meu lindo menino-anjo.
            De certa forma, eu já sabia e sempre gostei da ideia. Eu me permitia sonhar com a possibilidade e ficar feliz com isso, porque o amor não pode ser ruim. De jeito nenhum. Mas nunca parei realmente para pensar no quanto isso podia ser inconsequente, embora eu não pudesse realmente fazer nada para evitar.
            Ela esta apaixonada por Caio e ele não parece pronto para corresponder. Por minha causa. Por minha culpa. Porque eu não fui hábil o suficiente para discernir meus reais sentimentos a seu respeito até ser tarde demais para frear os dele, ou o que ele acha que sente. Porque eu quis preservá-lo por mais tempo e prepará-lo devagar para a verdade que deveria ter sido dita de imediato. Porque eu é que não estava pronta e fui covarde. E quando deixar de sê-lo vou acrescentar outro empecilho à vida de Paty.
            — Vai dar tudo certo — repito, mas desta vez para mim mesma.
            O último pensamento me fez cair de novo na real. Não parece justo ver nosso dom como um empecilho. Nada nunca impediu a minha espécie de amar, a não ser nossa própria introspecção característica, e Caio não é assim. Ele sempre foi humano demais. Amável e aberto às pessoas. E Paty é do tipo que arromba os corações. Ela certamente arrombou o meu.
            Vai ficar tudo bem. De um jeito ou de outro.
            Eu a abraço e ficamos ali um pouco em silêncio. Depois, ela se separa de mim e assente, como se dissesse que está pronta, então eu a puxo pela mão e ela se deixa levar pelo longo corredor até a porta do quarto dele. Marina surge na soleira assim que bato discretamente e nos recebe com um sorriso.
            — Então você é a famosa e temível Paty — ela brinca. — Entre aqui, querida. Obrigada por ter vindo.
            Marina a cumprimenta com um beijinho no rosto e minha jovem amiga sorri timidamente. Eu nunca a tinha visto ficar tímida! É uma graça.
            — Vou deixá-los à vontade para conversar — diz minha amiga mais antiga. — Preciso ligar para meu marido.
            Marina sai do quarto depois disso e eu fico ali, pensando se invento uma desculpa e saio também, mas Paty não larga a minha mão. Ela também não chega perto da cama por iniciativa própria, então eu a levo a reboque.
            — Oi. Como você está? — ela pergunta a Caio. Sua voz soa surpreendentemente calma, considerando a mão suada que seguro na minha. Mesmo assim, a pergunta simples soa estranha vinda dela, artificial como se ela estivesse tentando entabular uma conversa cordial com um estranho.
            — Bem. — Caio também parece estranho, meio sem-graça, na verdade. —Paty...           
            — Oi?
            — Você está brava? Porque eu sei que mereço, mas não gosto quando você fica chateada, menos ainda se eu for o culpado.
            Eu sinceramente gostaria que ele não tivesse dito isso, porque acho que Paty está fazendo uma tentativa honesta de se manter, mais do que calma, um pouco distante. Não por estar realmente zangada, pelo contrário. Acho que a preocupação que o acidente a fez sentir só tornou evidente o carinho que tem por ele, porém isso não parece tão claro assim para ela. De fato, pelo que vi lá fora, os sentimentos dela estão meio bagunçados no momento, e Caio se mostrar afetuoso e arrependido pode ser um risco para a máscara atrás da qual ela decidiu se esconder. Abrir uma brecha em sua armadura para as emoções entrarem pode também fazê-las sair, e não acho que ela esteja preparada para isso agora.
            — Não estou brava. Por que estaria? Só vim mesmo fazer uma visita, ver como você está.
            — Certo. É que eu achei que... Bom, você sempre me dá bronca quando eu faço alguma besteira. E desta vez foi uma das grandes.
            É claro que eu não podia esperar que Caio percebesse o que está acontecendo. Ele acha que a secura do comportamento de Paty, tão atípica dela e que provavelmente ele nunca sentiu antes, se deve à suposta irritação pelo erro que ele cometeu. Tenho a impressão de que ele está se sentindo tão mal com isso tudo que é só o que consegue enxergar.
            — Ninguém está chateado com você, Teo — tento consolá-lo. Por mais que seja bom que ele se arrependa, já que isso me deixa mais segura de que ele não voltará a incorrer no mesmo deslize perigoso, não quero que ele sinta que estamos ressentidos e acusando-o de algo de que já está tão dolorosamente consciente por si mesmo. — É só que todos nós ficamos muito preocupados.
            — Desculpe — ele responde constrangido. — Eu sei que é até estranho para um cara da minha idade e que, ainda por cima, trabalha em bares, mas eu não estou acostumado a beber. Aí acabei perdendo a medida. Eu estava chateado e achei que não tinha problema descontrair um pouco.
            Detesto saber que sou a causa desse aborrecimento, mas as coisas que ele me disse ontem no bar deixaram isso bem claro. Toda aquela história sobre como ele tinha encontrado alguém que gostava dele, já que eu não gostava... Toda essa conversa equivocada e a mágoa dirigida a mim e a Eric não me deixaram ilusões. Nunca quis machucá-lo, só não tive como protegê-lo nesse caso. De qualquer jeito, não achei que ele reagiria assim, cedendo à influência de alguém tão claramente daninha como Esther.
            — É, mas descontrair um pouco não significa bancar o ridículo.
            Sou arrancada de meus pensamentos pelas palavras de Paty. Demorou um pouco mais do que eu imaginei, mas a armadura finalmente começou a se desmontar. Quando tem tudo sob controle, minha amiga jamais demonstra cinismo. Cuidado sim, até um pouco exagerado às vezes, mas esse tom de maldade na fala é novidade para mim. É como Marina costumava falar comigo no começo: como alguém sensível que tenta evitar ser magoado construindo muros de sarcasmo em torno de si.
            — Aí está a Paty que eu conheço — Caio atesta, e não é uma total surpresa para mim que ele esteja tão mais bem familiarizado com esse lado vulnerável dela. É até bonitinho como nenhum dos dois parece se dar conta do que ele realmente representa.
            — Foi mal — ela se desculpa.
            — Não, não foi mal. Vem aqui, por favor.
            É então que algo realmente espantoso acontece: de um jeito totalmente inesperado e espontâneo, Caio puxa Paty para um abraço e ela cede sem pensar muito no que está fazendo. Parecem duas crianças fazendo as pazes do jeito mais simples que conhecem, se dando um ao outro, se encontrando quando as palavras parecem insuficientes e pouco úteis.
            — Desculpa, Paty. De verdade. Você tem sido tão legal comigo e eu não dei à sua amizade o valor que merecia — ele diz, e logo depois a solta.
            Por mais que as palavras dele pareçam desapaixonadas e amigáveis, há uma energia unindo os dois, se desprendendo de seus corpos e isolando-os do resto como se eles fossem parte de um outro todo. É rosada no início, pacífica em sua quase brancura, mas depois vai escurecendo, como se tivesse recebido uma injeção de vermelho, e sei que o coração de ambos está se abrindo neste exato instante e, alheios aos seus donos e aos cérebros obstinados que os comandam, estão reconhecendo o inevitável. É uma das coisas mais bonitas que já vi, ainda que seja complexa demais para ser apreendida em sua grandeza.
            A névoa se rompe de súbito — resultado do desconforto físico de Caio quando tenta se acomodar na mesma posição de antes — mas não desaparece, fica pairando ao redor, voltando ao seu tom rosado inicial. Distraio um pouco meu menino ajudando-o a se recostar de novo nos travesseiros, pois sei que Paty precisa de um segundo. Daria mais a ela se pudesse, mas ele recomeça a falar:
            — E para seu governo, eu gosto quando você me chama a atenção. Me sinto importante. Não me oponho que meus amigos cuidem de mim.
            Eu sabia. Paty é o que eu chamo de cuidadora. Em todas as suas atitudes, suas ações se direcionam a fazer os outros se sentirem bem. E Caio gosta disso. Compreensivelmente. Foi por essa porta que ela entrou em meu coração também.
            — É verdade. Paty faz a gente se sentir cuidado, não é? — incito, porque quero que ele continue, quero que ela saiba o quanto nos faz bem.
            Caio entende e está prestes a continuar quando ela interrompe o momento com um pigarro falso. Talvez sejam muitos furos na armadura para um único dia.
            — Mas, bom... Você não me disse como está se sentindo.
            — Eu estou legal. Melhor agora que vocês estão aqui. É muito bom ter um pouco de companhia para a minha mãe poder relaxar um pouco, porque eu fico chateado de vê-la tão preocupada. Nunca mais vou beber nada, só pra não ter que ver ela e meu pai sofrerem desse jeito de novo. E vou ficar bem esperto com algumas pessoas também...
            Percebo no mesmo instante que ele está falando de Esther e saber que ele pretende manter distância me deixa aliviada. Porém, de um jeito estranho, sinto que o vem a seguir não vai ser agradável de ouvir.
            — Pelo menos eu não usei as outras coisas que Esther me ofereceu... — ele prossegue, confirmando minhas suspeitas. — Não que eu estivesse considerando, claro, mas ela bem que insistiu. Desculpe por não ter ouvido você, Clara. Eu não me lembro muito bem do que houve ontem, mas sei que não fui nada legal.
            E quando a conversa parecia ter voltado a andar em círculos seguros...
            Oh, céus! Oh, Pai!
            — Tudo bem — respondo, tentando fazer parecer que ele não disse nada de mais, mas o problema é que o detalhe das “outras coisas” também me pegou desprevenida, então não consigo afetar indiferença. Mesmo que isso pudesse confundir Paty, o que obviamente não seria possível.
            — Ahn, quem? Você estava com...? E ela te ofereceu...? Você. Fez. O quê?
            Se eu fosse do tipo que fala palavrão teria dito um bem feio agora.
            Puta que pariu! E daí pra pior.
            — Escuta aqui, onde você estava com a cabeça, hein? — ela esbraveja, todo controle que estava a duras penas mantendo foi para o espaço mais rápido do que eu conseguiria dizer “F...eu”!
            Tento acalmá-la, minhas duas mãos estão nos ombros dela como se para dizer que estou aqui, mas isso só piora tudo. A onda vermelha que emana dela agora tem um tom muito diferente, arroxeado. O ciúme é uma percepção violenta e Paty é bem transparente no que diz respeito a emoções passionais.
            — Eu... Só queria me divertir um pouco... Ela estava sendo legal e é tão gata. Meus amigos...
            Ai, Caio, fique em silêncio, por favor!
            — Ah, deixa eu adivinhar: seus amigos ficaram te incentivando? Acharam bonito te jogar numa cilada, né? Só pode. Ou isso ou são um bando de manés. Se algum de vocês fosse tentar comer o peixão ia sair vomitando piranha, especialmente um cara metido a bonzinho feito você. Porque deixa eu te falar uma coisa, Teo, a vadia não é para o bico de vocês, moleques tontos, não! E você vai ver o quanto ela vai ficar gata depois que eu estourar a cara dela!
            — Calma, Paty.
            — Que calma o quê, Clara! A vagabunda fica querendo pegar nossos homens agora e você fica aí pedindo calma? Já estava devendo uma peruca nova para o travesti que é meu amigo desde o dia em que aquela piranha te maltratou no On the Rocks. E vai ser hoje mesmo que eu vou providenciar uma. A Valeska vai adorar o cabelão escuro.
            Pronto, assumiu. Não posso evitar o sorriso quando percebo que ela também nota sua escolha reveladora de palavras: “nossos homens”. As coisas vão ficar interessantes depois dessa. Especialmente quando vejo a expressão surpresa e lisonjeada no rosto de Caio.
            — Menos mal — ela diz num rompante, antes de sair correndo do quarto. — Pelo menos agora você já sabe que eu estou no páreo.
            Olho para Caio e ele continua sorrindo, as bochechas adoravelmente vermelhas com um constrangimento satisfeito. Saio correndo atrás dela depois disso, porque não quero que ela vá embora sem saber o que eu percebi.
            — Paty, você está bem? — pergunto quando a alcanço lá fora.
            — Ah... Não?
            Ela quase põe as mãos na cintura quando me responde. Sinto que ela tenha parado o gesto na metade, porque seria a combinação perfeita com a expressão petulante em seu rosto. É engraçado.
            E você não deve rir da sua amiga numa hora dessas... Bom, talvez só um pouquinho para aliviar a tensão.
            — Claro. Pergunta idiota a minha. Mas, bem, se ajuda em alguma coisa, acho que ele gostou de saber.
            — Fiz um show lá dentro, não foi? — ela diz, parecendo um tanto envergonhada.
            — É, foi interessante. — Não posso negar que estou me divertindo horrores com isso. Pelo motivo certo, porém. — Mas ele estava sorrindo no final.
            — Deve ser por causa da história da peruca.
            — Sorrindo, Paty. De alegria. Não dando risada. Acho que ele não tinha percebido que você estava a fim. Se ele for um pouquinho igual a mim é meio lento para perceber essas coisas, mas agora ele vai começar a olhar tudo de outra perspectiva.
            — Não sei, Clara. Ele ainda gosta de você.
            — Confie em mim. Essa ilusão não vai durar muito. Ele vai entender logo que somos só amigos.
            — Como?
            Porque eu vou dizer a verdade para ele e fazê-lo entender o que realmente nos une.
            — A mãe dele gostou de você. Eu conheço Marina. Você tem uma aliada nela. Duas se contar comigo. — Digo isso porque preciso mudar de assunto, mas não estou mentindo. Paty me faz lembrar Marina em muitos aspectos, e sei que uma simpatizou com a outra.

            O suspiro aliviado dela me faz sorrir de novo, e logo sua animação espelha a minha. Talvez eu devesse, mas não consigo me preocupar com o que virá para os dois depois disso. Prefiro ter esperança.

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