sábado, 21 de março de 2015

ELS - Capítulo 18

Capítulo 18 – Encontros

Completely colorblind, these red lights are going unseen
Fall behind with words unsaid you know they're always obscene
'cause my ears, they bled before; I need to let them heal
She fell out; her broken legs won't let her walk away
From this town that couldn't give a single shit either way
And her fears, they bled before she's convinced that they're real

(Makeover – David Cook)


Ela é bonita, apesar do ar de cansaço. Tem a pele morena, formas arredondadas e olhos gentis por trás do jeito estressado. À primeira vista parece uma mulher comum, mas depois de um tempo você percebe que ela tem traços inconfundíveis, um rosto marcadamente quadrado e um maxilar forte e anguloso que contrasta com o nariz pequeno e com a boca delicada e feminina. Já faz alguns minutos que eu a estou observando, desde que cheguei aqui, mas ainda não sei o que tenho que fazer. Só sei que é ela.
Eu soube que era ela no minuto em que a vi, sentada no ponto de ônibus, com ondas de melancolia cinza emanando do seu corpo e fazendo com que as pessoas que vão e vêm se mantenham instintivamente distantes dela. Há alguma angústia no coração dessa mulher e é meu dever consertar, por isso estou aqui, ainda que esteja, eu própria, morta de cansaço.
É sábado de manhã e eu trabalhei até altas horas da madrugada ontem, mas mal encostei a cabeça no travesseiro e já acordei com a sensação de que tinha que estar aqui hoje, então eu vim.
Quando vê o ônibus se aproximando ao longe, ela se levanta. Não há mais nenhum passageiro por perto e imediatamente percebo o que tenho que fazer: não posso deixar que ela embarque. Tenho só uns milésimos de segundo para decidir como vou fazer isso e estou andando apressada na direção dela, tentando pensar em alguma coisa a tempo, mas então eu percebo que é meu corpo que tem que agir.
Ao invés de parar ou me desviar dela quando me aproximo, eu continuo andando e me choco contra a moça com força, bem quando ela está levantando o braço para dar o sinal. Sou pequena e não tenho muita força e, como ela é maior do que eu, é meu corpo quem leva o prejuízo no impacto e eu caio sentada no chão. Dói um pouco e eu aproveito para fazer uma ceninha para distraí-la mais uns segundos.
— Aaiiii! — choramingo.
O corpo da moça oscila ligeiramente com o impacto, mas ela se equilibra facilmente, massageando o braço que bateu em mim como se estivesse dolorido, entretanto o sinal mais evidente dos efeitos de nosso “encontrão” está no rosto dela: verdadeiramente possesso quando olha para o ônibus que passou rápido por nós se afastando. Nem tenho tempo de pensar no tamanho da minha sorte porque nenhum passageiro tinha que desembarcar aqui. A moça, contudo, continua furiosa e me chama de uma coisa que eu não vou dizer, porque, bem, você sabe, eu sou um anjo e tal.
— Você não olha por onde anda, não?
— Desculpe — respondo, apoiando as mãos no chão para poder me levantar e depois batendo uma na outra para tirar a poeira. — Eu estava distraída. Estou tão cansada que mal sei o que estou fazendo. Acabei de sair do trabalho faz pouco tempo. Sabe como é, garçonete de balada, noite de sexta-feira... Foi mal mesmo, eu só estava tentando ir para casa.
Isso parece deixá-la menos brava. Ela olha sutilmente para o uniforme que está vestindo, o de um salão de beleza, e provavelmente pensa no dia árduo de trabalho que tem pela frente.
— Tudo bem — ela diz, a raiva em seu rosto e em sua voz já suavizada. — Mas agora por sua culpa eu vou chegar atrasada no meu trabalho. De sábado o intervalo entre os ônibus é maior e vai demorar no mínimo uns vinte minutos até passar outro.
— Ah, meu Deus. Sinto muito. Mas me deixe corrigir isso, vou pagar um táxi para você.
Eu tinha acabado de ver o carro que encostou na parada de táxis e soube que ela tinha que estar dentro dele em vez de em um ônibus. E tinha que ser naquele táxi.
— Não, não. Imagina! — ela responde, surpresa e assustada. — Você não precisa fazer isso. Táxi é muito caro. Também não é tão ruim assim eu me atrasar. Vão castigar meus ouvidos, mas até aí... Já fui garçonete e sei que a ninguém está pra ficar jogando dinheiro fora.
— Por favor, me deixe fazer isso. Vou me sentir melhor. Além do mais, ontem foi dia de pagamento e eu trabalho num lugar legal, meio chique, sabe? — Pisquei para ela dando a entender que eu ganhava um salário razoável. Não queria que ela se sentisse culpada pelo dinheiro que eu ia gastar. — Não vai me fazer tanta falta — completei.
Ela suspirou e pensou um pouco. Em seguida olhou no relógio e percebeu que não tinha muito tempo para discutir. Suspirou de novo e me seguiu quando eu comecei a caminhar em direção ao ponto de táxi.
— Você se machucou? Acabei de me dar conta de que você está sendo tão gentil comigo e eu nem isso perguntei.
— Não — menti. Eu estava um pouco dolorida, mas nada que valesse a pena mencionar. Qual seria o propósito de qualquer forma? — Estou bem. E você?
— Tudo bem também. Meu nome é Flávia. E o seu?
— Clara.
— Bom, obrigada, Clara. Pelo favor que você está me fazendo. Passe lá no salão onde eu trabalho qualquer dia. Eu te dou um desconto pra compensar o gasto que você está tendo comigo.
Flávia estende um cartão de visitas para mim e eu sorrio para ela quando o pego. Em seguida me abaixo para olhar através da janela do carro e, quando o taxista atrás do volante me olha de volta, eu entendo.
— Er... É... Quanto o senhor cobra para ir até este endereço?
Estendo o cartão para ele e espero que faça os cálculos mentalmente, tentando prever mais ou menos quanto o taxímetro marcará de acordo com a distância. A pele dele é um pouco mais escura e a boca, obviamente, não tem o mesmo contorno delicado e feminino dos lábios de Flávia, mas o rosto quadrado e o queixo anguloso são inconfundíveis.
Aquele homem é pai dela e eu estou prestes a promover o reencontro dos dois.
Ele me passa o preço aproximado e eu entrego o dinheiro a ele, deixando um pouco a mais caso tenha errado nos cálculos. Flávia sorri de novo para mim antes de entrar no carro e agradece outra vez.
— Não foi nada — digo. — Apenas acertando algo que deu errado. — E ela não faz ideia de que eu não estou falando do ônibus perdido.
Quando o carro se afasta, eu ainda consigo ver a expressão no rosto dela quando finalmente se foca na imagem dele no retrovisor. Intrigada e indagadora. O rosto de alguém que está a um segundo de encontrar aquela peça que desvendará todo o enigma. E eu fico tão feliz por saber disso que nem as minhas pálpebras pesadas me incomodam.
Começo a caminhar de volta para minha casa, feliz por estar só a uns poucos minutos da cama que me espera. Em outros tempos, eu morava bem mais longe daqui, numa parte diferente da cidade, mas parece que este lugar vez ou outra me atrai de volta. Vinte anos atrás, foi neste mesmo lugar que encontrei Marina desmaiada. Então acho que há uma energia boa para mim aqui, a possibilidade de belos encontros.
Fico imaginando a história de Flávia e do taxista que é seu pai. Onde foi que tudo deu errado? Em que ponto a história dos dois se separou? Será que ele a abandonou ou sequer sabia da existência dela? Será que ela o procurou, quis saber quem ele era? Ou o odiou por tê-la deixado para trás?
A única coisa que sei é que seja o que for que os separou, o que quer que tenha dado errado, precisava ser corrigido. Talvez um dia eu vá mesmo até aquele salão. Só para descobrir o que aconteceu.
Acompanhar o que se passa depois que fazemos nossas pequenas intervenções não é parte da missão. Como aconteceu com Marina, ficar por perto pode realmente complicar as coisas. Nosso dever é simplesmente seguir adiante e nos concentrar na próxima, mas, bem, às vezes eu fico curiosa.
— Eu vi quando você saiu correndo e esbarrou nela de propósito.
Uma voz desconhecida e rouca me puxa de volta à realidade. Olho na direção de onde ela vem e fico com o coração apertado imediatamente. Na calçada oposta a onde caminho agora, há um homem velho e esfarrapado, sentado à porta de uma loja. Eu não o tinha visto antes porque estava concentrada em Flávia, mas me estapeio mentalmente por tê-lo ignorado. Ainda que ele pareça tão pequeno e frágil enrolado em seu cobertor sujo, ou talvez especialmente por isso. Parece que minha missão ainda não acabou.
Atravesso a rua e me agacho em frente a ele. Um cheiro nauseabundo de sujeira, suor e bebida invade minhas narinas, mesmo assim eu seguro sua mão com ambas as minhas. Ele tenta tirar a mão e se afastar de mim, surpreso e arredio por causa da atenção inesperada, mas focaliza meus olhos e para de se mover, como se tivesse visto alguma coisa que muda tudo.
— Você não vai dizer a ela, vai? — peço suavemente.
— Não, Anjo, não vou — ele diz, e eu me surpreendo com sua resposta.
De alguma forma, ele entendeu mais do que os outros. Simplesmente olhou para mim e me viu, como se seu olhar estivesse livre dos pré-julgamentos e do ceticismo que impede os outros de enxergarem o sobrenatural. Lentamente, lágrimas grossas começam a brotar de seus olhos e a escorrer por suas bochechas, cortando a poeira de sua pele malcuidada. Poso uma de minhas mãos sobre seu rosto, mas ele a segura com força entre as suas, e seu choro fica um pouco mais desesperado.
— Eu desperdicei minha vida, Anjo. Você pode pedir a Ele por mim, pedir que me perdoe por ter desistido?
— Qual o seu nome?
— Enoque.
— É bonito — sorrio para ele e isso lhe faz bem, faz com que se acalme um pouco. Fico me perguntando há quanto tempo ninguém lhe dirige um sorriso. — Sabe, Enoque, você pode falar com Ele tanto quanto eu posso. E se você quiser saber minha opinião, acho que ele acredita em você. Eu não sei o que você fez, mas, seja o que for, ainda tem conserto se você realmente quiser. Sei disso porque é o que faço. Tento consertar as coisas.
— Eu quero, Anjo. Quero consertar.
— Então vamos pedir ajuda a um amigo, tudo bem? Você conhece o restaurante vegetariano, aquele que tem lá na praça do centro?
— Sim, já vi qual é.
Tiro um pequeno caderno de dentro da bolsa e escrevo um bilhete, depois arranco a folha, dobro e entrego a Enoque.
— O dono de lá se chama Pablo. Eu já o ajudei antes e sei que ele vai te ajudar agora. Entregue isso a ele, mas não abra, certo? Diga que a Clara te mandou e que disse que você pode comer lá quantas vezes quiser por minha conta. Eu explico isso a ele no bilhete e ele não vai negar. Ele chega por volta das dez. Tem uns 30 anos e o cabelo preto bem curtinho, quase raspado. Você vai até lá?
— Vou estar lá antes mesmo de ele chegar. Vou ficar esperando na praça — ele se levanta e começa a recolher suas poucas coisas, mas deixa um saco de papel pardo de lado.
— Você está se esquecendo daquela sacola.
— Não preciso mais dela. Não quero mais. Você pode levá-la para longe de mim, Anjo Clara?
Quando ele se levanta, parece um homem mais forte. Há um brilho diferente em seu olhar e qualquer um pode ver, se quiser. Eu espero que Pablo possa. Pego a sacola do chão e não preciso olhar dentro para saber o que é, o contorno e o peso me indicam que aquilo é parte de um passado ruim sendo deixado para trás naquele exato instante.
— Enoque, você pode me fazer um favor?
— Eu viro o mundo do avesso por você, menina.
— É mais simples do que isso — respondo rindo, e Enoque ri também. — Só quero que você não diga a ninguém o que eu sou.
— Se é isso o que você quer, pode contar comigo. Ninguém acredita em velhos malucos como eu mesmo!
— Você é um velho maluco adorável. Preciso ir agora. Boa sorte com tudo.
— Agradecido, Anjo.
Vou embora, satisfeita com minhas missões, levando comigo a garrafa de pinga que pesa em minhas mãos tanto quanto os erros de uma vida podem pesar. Vou jogar aquilo na privada assim que chegar em casa, como um gesto simbólico do meu desejo de que o futuro de Enoque seja diferente. Às vezes, num breve momento de vulnerabilidade, a luz penetra em você a então só é preciso uma mão amiga. Ou duas.
Acho que vou ligar para Pablo mais tarde, mas vou esperar que ele decida por si mesmo. Sei, daquele jeito que você conhece, que isso vai dar certo. Há alguns meses, quando conheci Pablo, eu fiz com que ele conhecesse o amor de sua vida. Marcos o ajudou a perceber que há muitas formas de amar e que estava tudo bem, que ele não precisava mais lutar contra si mesmo.
No bilhete, eu pedi que alimentasse meu amigo e que lhe emprestasse os cômodos dos fundos do restaurante por um tempo. Sei que é muito a se pedir, mas conheço Pablo, ou a pessoa que Marcos o ajudou a se tornar, e sei que ele se compadecerá de Enoque.
Não estou cobrando um favor prestado a Pablo ou comprando o silêncio de Enoque, por isso não quis pedir diretamente, mas sei que os meninos estão precisando de alguém que os ajude na limpeza e a tomar conta do lugar. Outra coisa que eu também sei é que coisas boas acontecem.

********

Durmo o resto do dia todo e só acordo no meio da tarde com um telefonema de Alberto, com quem compartilho as alegrias deste dia. Ele tem me ligado muitas vezes, já que não pode vir até aqui para me ver ainda. Como ele acabou de tirar uns dias de folga para viajar, não dá para se ausentar novamente em tão pouco tempo. Não é nenhuma surpresa para mim, que sei que ele leva seu trabalho terreno tão a sério quanto o “outro”. Na verdade, as duas coisas praticamente se tornaram uma só, um só jeito de ele se pôr a serviço dos homens e de sua missão “extra”.
Cada um de nós encontra a melhor maneira de aplicar seus dons e, diferente de mim, que prefiro trabalhos onde posso permanecer no anonimato com mais facilidade, Beto se arrisca numa profissão tão nobre quanto marcante para os que cruzam seu caminho: ele é bombeiro.
Sim, eu sei. Clichê. E incrivelmente imprudente se pensarmos que a cada 15 ou 20 anos precisamos “renovar” nossos documentos e reinventar nossa identidade. Mas é o que ele sempre amou fazer, onde encontrou seu lugar. Como eu disse antes, cada um de nós descobre por si onde seu dom é mais útil e, então, determinados por essa escolha, alguns talentos extras aparecem.
Eu, por exemplo, vejo a energia das pessoas e percebo suas propensões. Isso às vezes me ajuda a, digamos, prever suas intenções. E eis que quando se trabalha em um ambiente onde tentações como bebidas e drogas estão tão presentes, essa acaba sendo uma habilidade muito útil. Para Alberto, a força física acima da média dos humanos, que é o dom extra que lhe foi dado, também vem muito a calhar durante os salvamentos.
Nenhum de nós pode interferir no sagrado livre-arbítrio ou nas consequências das escolhas dos outros, por piores que elas sejam às vezes. Mas certas coisas podem ser evitadas e as pessoas podem ser auxiliadas a tomar certas decisões, caso estejam abertas a isso. Muitas vezes, a diferença entre uma má decisão, daquelas que desencadeará um desastroso processo em cadeia que vai afetar muitas vidas, e uma escolha inofensiva ou benéfica é um segundo de generosidade de um estranho ou uma simples palavra amiga. É aí que nós entramos.
O destino de todas as pessoas está magnificamente entrelaçado e a nossa missão é espiar por entre as brechas e puxar aquela linha específica da trama, aquela que não vai desmanchar o desenho intrincado, mas apenas dar nós que não estavam ali antes, formando novos padrões. É um trabalho delicado, posso garantir.
Sorte nossa que Alguém — você sabe Quem — sempre “sopra” para nós as respostas. E claro que quando você tem o privilégio de entender o quadro geral percebe o quanto ele é magnífico. Pena que não é sempre que nós vemos. Nem sempre ficamos tempo o suficiente para entender o tamanho da mudança que ajudamos a engendrar. Não faz parte da tarefa. Mas quando você é tão velho quanto Beto, essas coisas acabam se tornando mais claras com o tempo.
E se você pudesse vê-lo! Se pudesse ver Alberto “trabalhar”, entenderia a beleza de que estou falando! Por isso é tão importante para mim me manter em contato com ele. Embora há muito tempo eu não precise mais de um mentor, continuo aprendendo com ele e nunca quero parar. Alberto é como minha família e tê-lo por perto, mesmo que seja apenas em conversas telefônicas, faz com que eu me sinta melhor em todos os sentidos possíveis.
Conversamos sobre tudo e ele me ajuda a pôr as coisas em foco novamente, entender meus sentimentos e voltar a ser eu mesma. Não é a mesma coisa que se ele estivesse aqui, mas eu entendo. Ele não pode abandonar sua própria vida e vir correndo, tanto quanto eu não posso abandonar a minha e ir correndo até ele. Não sempre, pelo menos. Além disso, eu posso me virar sozinha, sessenta anos já é bem grandinha para uma irmã caçula!

Não que eu esteja fazendo lá um grande trabalho, para ser sincera.
Eric, por exemplo, parece ter como missão na vida me deixar confusa. Ele é como uma daquelas músicas que não saem da cabeça. Uma bela canção que eu não quero esquecer. Mas, meu Deus, como é difícil entendê-lo!
Sonho com ele quase todas as noites, cenas incoerentes e bobas, apenas recortes de cotidiano onde ele sempre está. Ou então somos nós dois, andando juntos enquanto o sol se põe e conversando como se sempre tivéssemos feito isso. E nesses sonhos ele faz todas essas coisas que eu gostaria que fizesse na realidade. Sorri o tempo todo e fala sobre si, segura minha mão e me conduz para onde quer ir. Ele se deixa conduzir também, às vezes. Eu confio nele e ele em mim.
Aí eu acordo com esses fragmentos incrustados em minha memória e volto para a realidade em que ele age como se fosse um príncipe de gelo. Sim, é isso. Às vezes ele age como um príncipe gentil, encantador e misterioso. Em outras ele é frio e distante. Apenas o meu chefe e mais nada. É como se ele tivesse dupla personalidade. Ou múltipla, até onde deu para saber.
Talvez você ria quando eu disser que só se passaram pouco mais de duas semanas desde aquele primeiro e turbulento dia. E talvez você ache que eu estou sendo pretensiosa e apressada em chamar Eric de frio quando nos conhecemos há tão pouco tempo. Que direito eu tenho de me incomodar por ser tratada por ele como todas as outras mulheres, com cordialidade distante permeada por flertes ocasionais? Nenhum. Eu acho.
Flertes. Algumas vezes sua idade escapa pelas palavras, não é?E, bem, talvez ele trate você como qualquer outra porque é isso que você é para ele! Pronto. As coisas podem ser bem simples assim.
E faz sentido. Claro. Mas nem mesmo minha mente malcriada e incomodamente realista acredita nisso quando lembro como ele me olha quando se mostra através do gelo. Vez ou outra eu vislumbro alguma coisa, uma palavra a mais que lhe escapa, um sorriso não calculado, um toque mais gentil que os outros... São breves segundos em que eu vejo o que ele vê quando me olha: uma coisa rara que pode facilmente ser quebrada, uma vulnerabilidade que eu não gosto de admitir que existe.
Não, não é minha imaginação! Não estou tendo delírios de paixonite adolescente (bem) tardia, como minha mente se apressa em jogar na minha cara a toda hora. Eu tenho esse sentido extra, afinal. E ele pode não ser de todo confiável quando estou tomada por sentimentos humanos, mas por que outra razão Eric teria tamanho impacto sobre mim se não fosse porque, de alguma forma, precisamos fazer parte do futuro um do outro?
Nem Beto consegue me ajudar nessa. Ele diz que há muitas coisas acontecendo em minha vida ao mesmo tempo e que ele precisa ver isso tudo ao vivo para entender melhor. Enquanto isso eu vou trabalhar todos os dias com esse homem que age como se houvesse algo terrivelmente contagioso que pudéssemos transmitir um ao outro, mas só ele soubesse onde estão as doses do antídoto. Aí, enquanto ele decide se eu ganho minha dose ou não, eu fico aqui tentando me equilibrar no gelo.
Sabe aquela sensação que se tem quando se está no ponto mais alto da montanha russa? Aquele segundo imediatamente anterior à descida, quando você sabe que seu estômago vai subir para a garganta, mas mesmo assim você vai adorar o frio na barriga? É. Pois é.
Em compensação, as coisas com Caio têm sido... Ah! Como é que eu posso explicar? Estar com ele é tudo o que eu sempre quis. É como uma necessidade básica. Tomar um copo d’água depois de estar sedenta por horas ou finalmente cair no sono depois de passar muito tempo acordada. É basal e poderoso, uma dessas coisas que se precisa para continuar vivendo.
Nós almoçamos juntos ou saímos para caminhar, programas inocentes no território neutro do dia. Tenho me esforçado para evitar encontros noturnos, porque ele ainda permanece firme em suas intenções e eu preciso dissuadi-lo devagar. Tenho que mantê-lo afastado, mas próximo o suficiente para que ele confie em mim quando estiver pronto para a verdade. Então tudo o que fazemos é conversar o tempo todo. Ele me conta sobre si, faz perguntas das quais me esquivo discretamente e conta piadas bobas das quais eu finjo achar graça. E eu me deleito em tê-lo por perto e poder rir junto com ele de coisas tolas, como os amigos fazem ou como as mães fazem por seus filhos.
Em minhas conversas com Caio, tento saber tudo o quanto posso sobre Marina sem parecer estranho, e me encanto com a mulher forte e independente que ela se tornou. Ela é agora aquela mulher que já morava dentro da menininha assustada, mas resiliente, que tanto amei e de quem tanto sinto falta. Anseio desesperadamente por conhecer a Marina mulher, mas como eu queria achar minha menina guardada em algum lugar dentro dela!
Espero poder fazer isso logo, mas se Caio ainda não está preparado, Marina muito menos. E eu preciso pensar bem na maneira certa de fazer isso, de me aproximar e contar toda a verdade. Talvez se eu não tivesse tantos sentimentos humanos borbulhando dentro de mim agora, pudesse pensar com mais clareza. Mas não consigo me lamentar por isso. Pelas emoções envoltas em neblina e arrepios que Eric me traz ou pela delicadeza de me sentir mãe novamente. Estou tão feliz que acho que posso ficar mais um tempo me deixando levar por tudo isso.
Especialmente esta noite. É sábado e Caio vai tocar no On the Rocks com sua banda mais uma vez. Hoje é um dia de casa cheia em que eu mal terei tempo de matar a saudade da voz dele, mas não significa que eu não vá ter que lutar o tempo todo para evitar que a música se aposse de mim e eu me esqueça de trabalhar. É difícil conter o orgulho e o enlevo que sinto quando me lembro do quanto ele é talentoso, por isso tenho que manter minha guarda alta.
Não ajuda muito quando ele interrompe a passagem de som para me dar um abraço e ficar conversando comigo. Estamos jogando conversa fora quando vejo Eric se aproximar pelo meu campo de visão. Hoje ele está em um de seus dias de príncipe de gelo.
— Clara, D. Maria está precisando de ajuda lá no depósito. Eu não posso ir, porque já tem gente consumindo e eu tenho que ficar no bar. Samuel está no caixa.
— A Paty não está ocupada — Caio reclama com ar atrevido.
Oh-oh.
Eric , que estivera agindo como se Caio fizesse parte do mobiliário do bar, move os olhos na direção dele depois do comentário. O pescoço se vira um segundo depois e é um movimento tão robótico e calculado que chega a assustar. Os olhos dele atiram flechas geladas na direção de meu bebê, mas sou eu que me arrepio com o frio.
— Teo, não é? Ou Caio? Afinal, qual é o seu nome?
— Me chame Teo — resmunga ele, mal-humorado.
— Tanto faz. Escute, Teo, Patrícia tem clientes que acabaram de se sentar na área dela e, ao que me consta, Clara não está ocupada, está? — Balanço a cabeça em negação mecanicamente, mas Caio apenas o encara em silêncio. — Então acho que posso pedir à minha funcionária que vá fazer algo, mesmo que ela esteja ocupada em conversar com você. E, caso tenha esquecido, você também está ao meu serviço esta noite e tudo o que estou vendo no palco é sua banda sem vocalista. Que tal irmos todos trabalhar?
Eric não diz mais nada, apenas se afasta, para meu alívio, mas o recado está dado.
— Clarraa! — diz Caio, tentando, sem muito sucesso, imitar o sotaque que Eric deixa escapar quando está bravo. – Idiota.
— Não fale assim — corrijo. — Ele tem razão. Precisamos trabalhar. Vá ajudar seus amigos a prepararem os instrumentos. Nós nos falamos depois.
Dou um beijo na bochecha dele e saio em disparada para o depósito. Caio sorri meio contrariado, mas não diz nada, nem tem tempo para isso. Ajudo D. Maria e Jefferson a transportar para a cozinha algumas mercadorias, que nem eram tantas assim, e quando volto vejo que Caio está nos bastidores e que já tenho alguns clientes no meu setor. Um casal está sentado se abraçando e eu espero um pouco para ir até lá, pois não quero atrapalhar.
Não são os clientes típicos que vêm aqui, não no modo de vestir, pelo menos. O pessoal que vem aqui usa muita roupa preta e camisetas de banda, mas não esses dois. Ele está vestido de um jeito que não combina nada com esse lugar, com uma camisa branca de botões e tecido fino, o esforço em se misturar fica nítido apenas no jeans escuro, que deve estar sendo usado pela primeira vez. Ela usa um vestido longo de alguma cor escura também, azul marinho parece, mas a sandália delicada e o cabelo bem penteado a denunciam. São clientes de primeira noite.
Estou observando os dois quando o homem, que está de costas para mim, se levanta e se inclina sobre ela, talvez dando um beijo ou dizendo alguma coisa em seu ouvido. Não consigo ver bem, porque ela está de lado e ele está tampando minha visão. Quando ele sai em direção ao banheiro, ela se vira para onde estou, pretendendo acompanhá-lo com os olhos. Mas então são os meus olhos que ela encontra.
Estive ignorando o sinal vermelho por tempo demais e agora é tarde. Estou no caminho de um carro em movimento e não posso fugir do impacto. Tudo que eu devia ter dito antes... Nem tive tempo para me preparar.
O ar indiferente com que ela me olha não dura nem um segundo. Uma expressão de reconhecimento e perplexidade toma conta de seu rosto antes mesmo que eu possa processar o choque.
Um pavor paralisante se apodera de mim, ao mesmo tempo que meu coração fica pesado de amor.
É ela.

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