Capítulo 40
Família
There were times I didn't understand
And there were times I wouldn't hold your hand
But now baby now I'm here for you
'Cause baby I am so in love with you
I'm gonna stand by my woman now
I'm gonna stand by my woman now
'Cause I can't live my life alone
Without a home
(Stand By My Woman – Lenny Kravitz)
Jared
— Acho que nunca
vou me acostumar com isso de novo! — disse Lily, acionando a torneira da pia da
cozinha planejada. — É impressionante como a gente não dava valor para coisas
assim antes...
— Olha pra isso
— comentou Brandt, entrando na brincadeira e ligando e desligando o interruptor
da luminária sobre o balcão que dividia a cozinha. — E o chuveiro, então! Meu.
Deus. Do céu.
Ao meu lado,
Melanie riu e deu uma batidinha no ombro de Paddy, que pareceu feliz com a
satisfação dos outros diante de sua obra.
Aparentemente,
Lily estava encantada demais com os eletrodomésticos e a acolhedora mesa de
jantar, mas o resto de nós seguiu Paddy de volta para a sala de estar, onde
Kate ainda estava estatelada no imenso e confortável sofá que formava um arco
em torno da tela grande que era um misto de TV, computador, celular, videogame
e projetor.
— O que é mesmo
que esse troço faz? — perguntei, apontando para a tela. Só porque eu queria
ouvir de novo a descrição de como ela era fantástica.
— Você pode ver
programas 3D, conversar por videoconferência, brincar com jogos interativos
para várias pessoas e ler. A SmartCombo dá acesso a todas as bibliotecas do
mundo, livros de antes e depois da nossa chegada. Todo e qualquer conhecimento
já produzido, é só escolher.
— Fico com a
parte dos jogos — disse Mel —, mas Peg
vai adorar as bibliotecas.
— Sim — ele concordou. — Dá para usar a tela grande, pedir uma
projeção para uma tela portátil ou acionar o áudio que o computador lê as obras
para você.
— Caramba — Kate
exclamou, ainda esparramada. — E esse sofá é demais, quase que não dá vontade
de sair daqui. Acho que vou querer um igual. Provavelmente minha mãe também vai
gostar de um destes pra casa de vocês, não acha, Bran?
Meio atordoado,
Brandt confirmou, mal conseguindo disfarçar os ciúmes quando a enteada deixava
implícito que teria sua própria casa com Jamie. Melanie também se sentia assim
e fui obrigado a rir quando percebi a troca de olhares e pigarros entre os dois
superprotetores.
— Posso levar
vocês até a loja — comentou Paddy, alheio ao clima estranho.
— Eu ia adorar! — disse Kate. — Ficou bem legal o que você escolheu
pra cá. Você tem muito bom gosto.
— Obrigado, mas o pessoal da loja de móveis ajudou bastante, então
acabou sendo fácil acertar.
— Não é só isso, Paddy. A decoração ficou ótima mesmo, mas a casa em
si está muito bonita — Mel comentou.
— Eu gostei de trabalhar nela — respondeu ele, dando de ombros. Depois
lançou a ela um sorriso discreto de cumplicidade. — O propósito é muito nobre.
Estávamos na futura Casa dos Visitantes — a única totalmente montada
naquele ponto — e o propósito a que Paddy se referia era acolher nossos amigos
quando viessem visitar, mas, principalmente, hospedar nossos familiares biológicos
quando — e se — viessem nos conhecer.
A ideia tinha sido de Melanie, depois de uma conversa com Kyle e, a pedido
dela, tinha sido a primeira casa a ser terminada. As demais estavam em fase de
pintura e outros acabamentos, mas logo já poderiam receber os móveis que seus
futuros moradores escolheriam nos próximos dias.
— Nós vamos passar a noite aqui, não é? — perguntou Lily, vinda do
corredor dos quartos. — Eu posso dividir um quarto com Kate, Paddy e Brandt
dividem outro e vocês dois ficam com a suíte, que tal?
— Se estiver legal para vocês, acho mais confortável para todo mundo —
concordei.
Estávamos fazendo a mudança em etapas e tínhamos vindo hoje para
trazer várias coisas no caminhão e começar a fazer umas faxinas. Mas a ideia
inicial de dormirmos em colchões no chão da casa que estivesse mais limpa ao
fim do dia tinha perdido força rapidamente, assim que Paddy veio nos encontrar
dizendo que esta casa já estava habitável.
— Amanhã vem mais gente para ajudar — disse Mel, animada.
— Nesse ritmo, em uma semana já podemos nos mudar de vez — observou
Paddy, parecendo aliviado. Por causa da construção, ele passava várias noites
em um trailer na entrada da vila, e claramente queria voltar a ficar o tempo todo
perto da família que tinha adotado.
— Vai ser bom — disse Lily. — Mas agridoce, né? — completou e todos
concordamos em silêncio, sem ter muito a acrescentar.
Não era algo que qualquer um de nós saberia definir, mas a sensação
era provavelmente a mesma para todos. Por trás dos planos de deixar tudo
habitável para que pudéssemos correr para lá quando sentíssemos falta, havia
uma imensa dificuldade em nos despedir de uma parte da nossa vida. É claro que
as plantações não seriam abandonadas até o fim da colheita, então nos
revezaríamos entre o trabalho aqui e lá, mas não era exatamente a mesma coisa.
— É preciso abrir mão de coisas para se dar lugar ao novo — Paddy
aconselhou, entendendo nossa relutância. — Vocês serão felizes aqui.
— É uma nova fase — Mel complementou. — E só tem como melhorar, certo?
Kate assentiu, espantando o olhar saudosista do rosto.
— Não é como se não tivéssemos passado por uma mudança total antes. Só
que agora é, com certeza, para melhor — argumentou.
— Acho que a gente devia deixar pra pensar nisso diante de um bom
prato de comida — disse Brandt. — E depois de um bom banho!
— Certo, Bran. Já sabemos que você sentiu falta de chuveiros —
provocou Lily, explodindo numa risada que todos acompanharam.
— Bom, ainda bem, né? Queriam que eu gostasse de ficar sujo? — ele
respondeu com indignação fingida.
Acompanhei os risos, tentando adiar o instante em que teria de
lembrá-los de que ainda tínhamos muito a fazer, então olhei para Melanie, que
parecia leve depois de ter andado preocupada por muito tempo, e decidi que não
valia a pena acabar com o momento.
Depois de tantos anos carregando boa parte da responsabilidade pelo
bem-estar dos outros, às vezes eu sentia que não sabia mais como me divertir,
mas Mel me fazia lembrar que eu não precisava planejar cada mínimo detalhe do
dia. Muito menos arrastar os outros para o redemoinho da minha própria e rígida
logística interna.
Sempre foi ela.
Melanie. Minha prioridade, minha preocupação, mas também o meu
descanso. Minha mulher.
— Está nervosa? — perguntei em seu ouvido, descendo a mão de leve por
sua coluna enquanto a observava apreendendo os detalhes da casa. — Ficou do
jeito que você queria, não ficou?
— Ficou até melhor. — Ela sorriu. — Paddy fez um ótimo trabalho, mas
você sabe que isso não garante nada. — Deu de ombros.
No dia anterior, Logan e Estrela tinham partido em busca de Trevor e
Linda Styder. O objetivo era, assim que se sentissem seguros e confiantes,
trazê-los para cá para uma visita. Nesta casa, esperávamos, eles teriam o
espaço necessário para lidar com a sobrecarga de emoções que um reencontro
significaria, especialmente para Trevor, ou como quer que ele se chamasse
agora. Era quase certo que lidar ao mesmo tempo com todos os remanescentes da
família Stryder seria tão necessário quanto difícil para a Alma no corpo do pai
de Melanie.
Por isso ela tinha canalizado toda sua angústia em forma de
expectativas para a Casa dos Visitantes, para que fosse um escudo que os
protegesse, ao menos um pouco, do medo do contato direto. Pelo tempo que
ficassem aqui, Trevor e Linda teriam onde se refugiar quando a situação fosse
demais para eles. Assim como Mel e Jamie poderiam aceitar que a porta se
fechasse, sabendo que poderiam bater de novo quando estivessem prontos.
Era como uma estranha apólice de seguros para os sentimentos de todos,
uma que Mel não tinha certeza se cumpriria seu propósito, mas ao menos até aqui
parecia ter funcionado bem para ela.
— Se eles não quiserem vir — completou —, pelo menos vou saber que fiz
o melhor que pude.
— Sim, você fez. Você sempre faz — assegurei, abraçando-a e sentindo
seu corpo se aninhar no abrigo dos meus braços.
********
A previsão de Paddy estava correta. Em menos de uma semana, as casas
já estavam terminadas e, com tudo previamente organizado para a mudança,
tínhamos nos instalado de forma rápida e permanente na vila da Fazenda Stryder.
Tão rapidamente, aliás, que ainda parecia mais com estar passando férias em um
hotel.
A única constante era a presença das pessoas. Para mim,
especificamente, a coisa que me fazia sentir verdadeiramente em casa era Melanie.
Por isso acordei sobressaltado quando, na manhã do terceiro dia, me virei na
cama e percebi o lado dela vazio.
Andei pela casa, meio trôpego de sono, até encontrá-la no sofá,
olhando para o celular deixado sobre a mesa de centro como se fosse algum
animal perigoso observado à distância.
— Mel — chamei. — O que foi?
— Logan me ligou. Eles estão voltando.
Por si só, essa informação não dizia muita coisa, já que eu não sabia
se Logan e Estrela estavam voltando com ou sem os pais de Mel, mas ela não
disse mais nada.
Contando apenas com esse silêncio, tentei avaliar a situação, perceber
se sua expressão parecia decepcionada ou ansiosa, mas desisti de fazer
suposições. Então sentei-me ao lado dela e esperei.
Assim como fazia sempre, minha garota chegou mais perto e se aninhou a
mim, que a recebi como se ela nunca devesse ter saído.
— O nome dela é Céu de Inverno. É Confortadora em San Diego — disse
enquanto eu alisava seu cabelo. Ela respirou fundo, esfregando o nariz em meu
pescoço e me causando um arrepio. Depois continuou baixinho. — Eles não vivem
como companheiros, se separaram logo depois que Jamie e eu fugimos. Então Rio
Entre Montanhas... esse é o nome dele... — Ela riu baixinho. — Tio Jeb vai
dizer que parecem nomes de hippies.
— Ou de índios naquelas histórias de cowboy — acrescentei e rimos juntos, baixinho, deixando um pouco da
tensão de lado. — Mas você estava falando sobre Rio Entre Vales.
— Rio Entre as Montanhas — corrigiu, aceitando minha deixa para não
permitir que o assunto caísse em banalidades. — Ele foi para Albuquerque,
trabalhar no Instituto de Criações Avançadas que as Almas fundaram lá. A
profissão dele é o que chamam de Criadores. Acho que é tipo um cientista.
— Parece interessante. Doc vai gostar dele — arrisquei e ela apenas
assentiu, dando a entender que o tal Rio das Montanhas viria mesmo para cá.
Pelo menos ele. Soltei um pouco do ar que estava prendendo, aliviado.
— Isso explica por que demorou tanto. Primeiro Logan e Estrela tiveram
que ir pra Califórnia, depois pra minha cidade natal. Esse tempo todo Rio Entre
as Montanhas estava tão perto... Eu podia tê-lo encontrado antes. Estivemos
tantas vezes em Albuquerque nos últimos anos.
— Tem hora pra tudo, amor.
— É, acho que sim.
— E o que mais você já sabe sobre eles?
Mel endireitou o corpo para me olhar e um sorriso sutil, o primeiro do
dia, apareceu em seus lábios.
— Rio é bastante progressista, segundo Logan me disse. O nome dele
constava nas atas de várias reuniões do Conselho de Albuquerque. Apenas como
ouvinte, ou seja, ele não era Conselheiro como David, mas era participante
ativo. Tem interesse em se juntar às Forças de Paz.
Sorri em resposta. O prognóstico era bom, ao que tudo indicava.
— Céu é menos ativa nesse sentido — ela continuou. — Parece que se
dedica apenas ao trabalho de Confortadora. E ao novo companheiro. Mas não tem
filhos. Aliás, Rio também não.
“Bem, uma complicação a menos”, pensei, mas não disse nada, porque
sabia que, de certa forma, irmãos biológicos balançariam as estruturas de
Melanie tanto quando a deixariam confusa.
— Você está feliz? — perguntei, segurando o rosto dela em minhas mãos.
Mel apenas deu de ombros, mas sorriu de novo, a expressão carregada de
expectativas.
— Eles estão a caminho. Vão chegar daqui umas horas — contou
finalmente, e o olhar que acompanhou a frase me deu a resposta que eu
precisava.
— Jamie já sabe?
— Estrela deve estar no telefone com ele neste momento.
E como se o nome fosse uma invocação, Jamie abriu a porta de nossa
casa e entrou sem cerimônias, o celular apertado contra a orelha, trazendo uma
Kate confusa e de pijamas a reboque.
— E você acha que eles vão ter problemas em ficar juntos na Casa dos
Visitantes? — questionou, mas não deu tempo de resposta à pessoa do outro lado
da linha. — Porque um deles pode ficar na minha casa... Aham... Certo. Entendi.
— Diz pra Estrela que a casa dela está arrumada com tudo o que ela
escolheu — cochichou Kate, mas Jamie não deu ouvidos, animado enquanto
combinava detalhes e se sentava num dos bancos altos da bancada da cozinha.
— O que está acontecendo, hein? — Kate perguntou, acomodando-se ao
lado de Mel no sofá. — Jamie me acordou e me trouxe pra cá, mas não desgrudou
desse telefone. Só sei que é Estrela porque reconheci uns gritinhos da Lindsay.
— Nossos “pais” estão vindo — Mel simplificou e a garota arregalou os
olhos, em choque.
— Hoje!? Ai, meu Deus! Isso é o máximo! — ela exclamou, atirando-se sobre
Mel num abraço tão animado quanto alguém poderia estar às 7 da manhã. —
Caramba! Eu tenho falado com Estrela todos esses dias, porque me ofereci para ajudar
Peg a preparar a casa deles enquanto estavam longe, mas ela não me disse nada.
— Logan só tinha me dito que encontrou as localizações deles — Mel
explicou. — Mas ele não quis entrar em detalhes antes de conhecê-los
pessoalmente. Eu meio que pedi isso a ele. Não quis que a gente ficasse
recebendo informações aos pedaços. Preferi saber tudo de uma vez.
— Foi bom vocês terem combinado isso. Seria impossível lidar com
Jamie.
— Não ter notícias é boa notícia, como Tio Jeb costuma dizer.
— Estou tão feliz por vocês — Kate suspirou, apertando as mãos de
Melanie. — Você também vai procurar sua família, Jared?
— Minha família são vocês — respondi, sorrindo para a menina. — Estou
concentrado em Mel e Jamie agora. Eles precisam de mim. Mas no futuro...
talvez. Não sei.
— Eu entendo bem — ela disse, seu rosto jovem ganhando subitamente
ares daquela maturidade forjada entre sobreviventes. — Mas acho que você devia,
sim.
Então ela me beijou no rosto e foi ao encontro de Jamie, que ainda
prendia Estrela a um telefonema inesgotável, abraçando-o por trás e cochichando
algo no ouvido dele. Pela primeira vez desde que entrou aqui, meu filho postiço
ficou em silêncio, olhou para a namorada e lhe ofereceu exatamente o mesmo
sorriso que Mel tinha me dado minutos atrás.
É, estava começando. E eu estaria aqui para passar por tudo com eles.
Com a minha família.
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