domingo, 5 de maio de 2019

CD2 Cap 41


Capítulo 41
Rio Entre Distâncias

Please tell me there's a new beginning
Coming up with the sunrise
Holding out for a happy ending
And it's gonna be alright
Please tell me there's a new beginning
And it's going to be alright

Someday we'll be closer to loving each other
The way that it should be
The streets that divide us
Will join and unite us
You've gotta believe
(New Beginning – Noah Guthrie)

Rio Entre as Montanhas

— Está reconhecendo o lugar? — perguntou Logan enquanto percorríamos a pequena estrada que, poucos quilômetros à frente, nos daria acesso à Fazenda Stryder.
Dali já era possível vislumbrar as plantações e, obviamente, Trevor tinha feito aquele caminho inúmeras vezes, mas aquilo não me trazia nenhuma lembrança ou emoção.
— O caminho parece familiar, tenho a sensação de que devia reconhecer alguma coisa, mas é só uma impressão vaga — respondi, encontrando o olhar dele no retrovisor com um pedido silencioso de desculpas.
— Está tudo muito diferente, imagino — disse meu novo sobrinho, e eu apenas assenti, porque, na verdade, não saberia dizer o quão diferentes estavam aquelas terras do lugar das memórias desvanecidas de Trevor.
— Lembranças assim se perdem com facilidade — opinou Céu de Inverno. — Passamos por um processo de desvinculação das emoções do hospedeiro logo que o assumimos. E lembranças distantes no tempo como essa são apagadas rapidamente.
— Claro. É compreensível — concordou Estrela gentilmente, mas não perdi o olhar que ela e Logan trocaram.
Havia muitas expectativas no ar. A história daquelas pessoas envolvia uma vivência muito diferente da nossa. A ligação das Almas aculturadas com seus hospedeiros era diametralmente oposta ao que Céu de Inverno tinha narrado. Por mais que o conceito em suas palavras fosse completamente familiar para as Almas comuns, Estrela e Logan não eram comuns. Por isso desejei que minha amiga não tivesse usado um tom tão profissional.
— Imagino que os familiares de Trevor e Linda devam estar diferentes também — comentei, tentando mudar um pouco o foco da conversa. — Os filhos principalmente. Eram praticamente crianças da última vez em que os vi.
— Mel e Jamie são ambos adultos agora. E são ótimas pessoas, embora sejam bem diferentes um do outro — respondeu Estrela. — Jamie é mais expansivo e Mel é mais séria, sempre muito responsável e prática. Mas isso é porque ela teve que crescer rápido para poder garantir que o irmão fosse bem cuidado. Então, por muito tempo, Jamie foi o nosso garotinho protegido, e por isso às vezes pode dar a impressão de ainda ser um adolescente rebelde tentando se afirmar. Mas ele é muito maduro. Sempre foi. Nunca cansa de surpreender a gente pela forma como encara as coisas.
Fiquei pensando naquilo. Em como Logan disse que foi a pedido de Jamie que ele tinha me encontrado. Aparentemente, o rapaz não guardava nenhum ressentimento. Mas eu não sabia onde isso deixava Melanie, que tinha passado a adolescência — esse período tão determinante para os humanos — salvando a si mesma e ao irmão pequeno. Também não sabia o que pensariam os irmãos de Trevor. E eu estava bem curioso a respeito.
Deveria estar nervoso, mas estava mais intrigado e ansioso do que com medo. Desde que os esforços de paz começaram, me questionei se voltaria a ver algum deles e como seria se acontecesse.
— Tia Mel e Tio Jey são fofinhos — disse a menininha ruiva acomodada num assento especial no banco de trás, entre eu e Céu de Inverno. — Vocês vão adorar eles.
Os pais sorriram em resposta, como se a interferência da criança tivesse sido mais do que simplesmente oportuna, mas também uma pérola de compreensão das relações. Então me flagrei querendo sentir aquele tipo de orgulho, entender como se dava um sentimento que mudava tantas coisas. Assim como Logan e Estrela, eu já tinha ouvido falar de muitas Almas que tinham abdicado de sua condição imortal apenas porque não conseguiam conceber outras vidas sem sua prole humana. E apesar de eu conseguir me lembrar da intensidade do que Trevor sentia, por um instante, desejei mais do que isso. Mais do que apenas lembrar.
— O vovô Jeb e a vovó Maggie são muito legais também. A vovó me deixa comer biscoito escondido e o vovô me faz cosquinha assim... — Estendendo a mãozinha, a garotinha roçou os dedos gorduchos em minha barriga. Não senti nada, mas era inusitadamente divertido vê-la tentar, então fingi uma risada.
Sem fazer a menor ideia de onde tinha vindo o impulso de agradá-la.
— Eles são seus irmãos, né? — perguntou Lindsay, a pequena humana de cujo nome eu subitamente tinha conseguido me lembrar.
Bem, eles eram. Biologicamente falando. Da mesma forma que Melanie e Jamie Stryder eram meus filhos. Mas eu não era meu hospedeiro. E simplesmente não conhecia aquelas pessoas. O que, pensando bem, era uma noção bem complicada. Quase um dilema filosófico, eu diria. Certamente não era algo que eu saberia explicar a uma criança.
Lancei um pedido mudo de socorro pelo espelho retrovisor, mas Céu de Inverno interferiu antes que Logan ou Estrela viessem em meu auxílio.
— Sim, eles eram irmãos do hospedeiro Trevor Stryder, mas Rio Entre Montanhas é uma Alma. Então parentes de sangue é uma definição melhor.
A pequenina franziu a testa, confusa. A frase não parecia fazer sentido algum para ela. Por isso, mais uma vez, desejei que Céu de Inverno simplesmente tivesse ficado calada.
Era quase estranho finalmente admitir isso para mim mesmo, mas eu detestava a maneira como ela confiava excessivamente em sua função de Confortadora, agindo de modo mecânico como se suas palavras fossem um manual à prova de erros e as diferenças individuais fossem irrelevantes.
— Eu não sei o que são parentes de sangue... — Lindsay repetiu devagar, como se testasse as palavras. — Tia Flora é nossa parente de sangue? E o vovô David? Porque eu não conhecia eles antes também. Nós somos parentes de sangue, Tio Rio?
Logan fez uma careta estranha para Estrela e ela segurou a mão dele pousada sobre o câmbio.
— Tudo tem tum-tum, lembra? — ele falou e a filha assentiu sorrindo, parecendo se conformar com aquela resposta estranha.
— Lindsay cresceu em um grupo muito unido — explicou Estrela. — Ela chama os mais jovens de tios e os mais velhos de avós, porque nos consideramos todos família. Para ela, o conceito de parentesco de sangue não faz sentido.
— Desculpe — pediu Céu de Inverno, parecendo envergonhada pela primeira vez. — Nossa orientação aos membros de famílias mistas sempre foi lidar com as dúvidas das crianças utilizando os fatos.
— E nós concordamos com isso, por isso não é necessário se desculpar. Mas minha filha nasceu entre humanos, entre os dela, então o ponto de vista a partir do qual ela interpreta os fatos às vezes é um pouco diferente. É uma nova realidade para vocês, Confortadores. E para quem mais for trabalhar com crianças como Lindsay ou John.
— Claro — disse Céu de Inverno, por fim concedendo à razão de Estrela. — Minha nossa, eu não tinha me dado conta! Acho que teremos que estudar essa situação específica e criar algumas instruções para o trabalho com famílias como a sua. Meu companheiro, Terra Sonora, vai se entusiasmar com a perspectiva.
— Não acho que instruções possam ajudar — Logan comentou, ainda parecendo contrariado.
— Acho que nós apenas temos muito a observar, Céu de Inverno — falei.
— Nisso eu concordo — ela respondeu.
— Vocês são mais que bem-vindos para conviver com nossas crianças e aprender com elas — disse Estrela, novamente sendo gentil. — Aliás, se durante o tempo em que estiverem na vila quiserem se hospedar em nossa casa... Digo, há uma casa para os visitantes, e ela é grande e confortável o bastante, mas se um de vocês quiser mais privacidade, podemos providenciar alguma alternativa.
— Oh, não. Não é necessário. Rio Entre as Montanhas e eu nos damos muito bem. Somos amigos desde os primórdios da colonização. Já dividimos o mesmo teto antes.
— É verdade — confirmei.
Embora a parte de termos morado juntos fosse óbvia e de conhecimento geral, às vezes o fato de sermos amigos parecia quase improvável, dadas as diferenças entre nós. Mas Céu de Inverno não as considerava relevantes o bastante e eu guardava por ela um imenso carinho por causa das lembranças de Trevor com Linda. Assim, mesmo que nunca tenhamos nos sentido unidos o suficiente para sermos um par, sempre mantivemos contato e nos tratamos com grande afeição.
— Acho que entendo um pouco os laços a que Estrela se refere — disse a ela. — Você e eu, por exemplo, não somos um casal e nossa ligação familiar poderia perfeitamente ter desaparecido junto com nossos filhos, mas não foi o que aconteceu.
— Hum, tem razão. Faz sentido. Na realidade, não é muito diferente dos nossos próprios laços comunitários. Mesmo tantos de nós tendo nascido da mesma mãe, é o convívio e o zelo pelo bem comum que nos tornam irmãos. Me pergunto o que sentiremos em relação aos humanos. O que me diz, Estrela? Certamente, vocês têm alguma conclusão que possa nos servir de ajuda.
— Eu não saberia o que dizer. Cada experiência é única, obviamente. Mas acho que tudo depende do quanto vocês vão se envolver com os humanos a partir de agora, independente das lembranças que ainda possam guardar.
— Eu sou parente de sangue do vovô Jeb — disse Lindsay, repentinamente voltando à conversa, como se estivesse elaborando as ideias enquanto falávamos. — Ele é papai do meu papai. Mas como é que John é meu irmão?
— Somos todos parentes de coração, amor — Logan falou num tom suave que eu só o vira usar com a criança. — Vovô Jeb é meu pai porque nos amamos. John é seu irmão porque ele também é nossa criança. Nós cuidamos dele e os pais dele cuidam de você. Nós nos ajudamos e nos amamos. É isso que importa.
— Tá bom.
— Escute, criança — Céu de Inverno a abordou. — A Tia Céu se confundiu, mas é porque eu sou nova nisso de família e pensei que para os humanos ter o mesmo sangue fosse importante. Porque, veja, Melanie e Jamie nasceram da mesma mãe e do mesmo pai, que são os hospedeiros de Rio Entre as Montanhas e meu... Bem, você deve saber o que é um hospedeiro... Ela sabe? — perguntou, dirigindo-se a Estrela e Logan, como se com isso pedisse permissão para continuar a explicação. Mesmo assim, foi Lindsay quem respondeu.
— No começo, todo mundo era humano que nem eu — Lindsay começou a recitar, como se fosse uma história que ela tivesse ouvido muitas vezes. — Aí as Almas vieram morar na Terra também, mas elas são muito pequenininhas, então precisavam pegar carona.  Só que não deu. Elas não queriam machucar ninguém, mas machucaram. Os humanos que sobreviveram ficaram muito tristes e se esconderam. As Almas ficaram com medo, porque achavam que a gente tinha raiva deles. Mas agora vai ficar tudo bem.
— Isso — Céu de Inverno concordou, impressionada. — Quando Melanie e Jamie ficaram tristes com nossa chegada, eles se esconderam e nós não os vimos mais. Então é como se não nos conhecêssemos. Mas agora que está ficando tudo bem, eles querem nos ver, porque somos parentes de sangue. Foi isso que eu quis dizer.
Senti uma ponta de orgulho de Céu de Inverno. Claramente, era difícil para ela lidar com as concepções de uma criança sui generis [1] como Lindsay. Tudo era inédito demais e minha amiga não era boa com mudanças de paradigma. Mesmo assim, a menininha a tinha sensibilizado o bastante para que ela desse seu melhor e tentasse conciliar a situação, aprendendo com o novo.
— Somos parentes de sangue por causa dos nossos hospedeiros, mas podemos tentar ser uma família com o tempo — completei, dando a Céu de Inverno um olhar que pedia que confirmasse o que eu dizia, independente de suas pretensões reais, e assim ela o fez. — Porque como seus pais nos explicaram, tem a ver com estarmos juntos, certo?
Lindsay assentiu e percebi que estava pondo em palavras uma coisa que eu mesmo tinha acabado de aprender.  
— Então você vai ser papai dos meus tios, igual o vovô Jeb do meu pai?
— Bem, eu não sei — respondi honestamente.
— Eu queria. Vovô Paddy ficou com a gente e ele é legal.
— Paddy é o pai biológico de dois de nossos amigos — explicou Estrela. — Ele se mudou para cá.
— Entendo — falei, notando que a semelhança das situações exercia sobre nós uma pressão incômoda, por isso Paddy não tinha sido mencionado antes em nossas conversas.
— Eles vieram conhecer nossa família, bebê. Apenas isso — Logan interferiu, esclarecendo a filha. — Não sabemos o que vai acontecer, mas, no mínimo, seremos muito amigos.
— Isso nós já somos — ela falou com meiga indignação. E foi minha vez de sorrir como se a garotinha tivesse dito algo genial.
— Melanie, Jamie, meu pai, todos vão recebê-los de braços abertos. Almas são familiares para eles. O campo já foi aberto há muitos anos.
— O que quer dizer? — perguntou Céu de Inverno.
— Que nós cortamos o mato para vocês colherem os frutos — Logan completou. — Construímos relações de confiança e amizade com esses humanos, de modo que eles fazem mais do que nos aceitar. Eles nos amam. Receber vocês só vai requerer abrir um pouco mais os braços.
— Você anda falando como Jeb — disse Estrela, rindo. E Logan a acompanhou.
— Ele parece um homem sábio — observei. — Excêntrico, segundo me lembro. Mas muito inteligente e bondoso.
— Jeb me recebeu como filho muito antes de alguém ter qualquer razão para confiar em mim. Ele acolheu Estrela sem preconceitos e, antes disso, Peg e Sunny, nossas irmãs.
— Você disse que ele não quis fazer o teste genético para confirmar que era seu pai.
— Ele disse que não tem importância — Logan deu de ombros.
— Essas relações são fascinantes — disse Céu de Inverno. — Mas confesso que não as entendo muito bem.
— Bem, você se acostuma — disse ele. — Para mim também foi confuso no começo. Mas é minha lógica agora.
— Percebo — ela confirmou, reflexiva. — Vocês se referem à outra criança, John, como se fosse seu filho também. Estrela disse “nossas crianças” e que Jamie era o garotinho protegido de todos...
— Eles são criados por todos. Nossas crianças são filhos de uma comunidade — declarou Estrela.
— Interessante. Não somos tão diferentes assim.
— Não, não somos — concordei com Céu de Inverno.
E esse pensamento me animou quando atravessamos a velha porteira da qual eu começava a me lembrar.
— Chegamos — disse Logan.
Olhei para Céu de Inverno, confiante de que tínhamos tomado a decisão certa, afinal. Mas a verdade é que desde o momento em que os caminhos se apresentaram, jamais cogitei tomar outro que não fosse o que me traria até aqui.




[1] Expressão latina que significa “única de seu gênero”.

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