sexta-feira, 5 de julho de 2019

Epílogo CD2


Epílogo



Lindsay



12 anos depois...



Pequei meu caderno e fugi para meu lugar preferido na fazenda: a sombra de uma grande árvore à beira do lago.

Havia muitos lugares que eu amava aqui. Como a Grande Cozinha, de onde agora vinham risadas e conversas alegres. A estufa de cheiro doce e ar fresco que me parecia mágica. Ou, ainda, a imensa clareira onde as crianças amavam brincar e onde antes eu tinha passado tanto tempo entre brinquedos também.

Este aqui, porém, era meu refúgio. Meu repouso. Embora não fosse exatamente um esconderijo.

— Fazendo poesia de novo, Lindy? — disse John, chegando de mansinho e, por cima do meu ombro, tentando bisbilhotar o caderno onde eu anotava minhas ideias.

— Eu não fico xeretando na sua coleção de insetos! — joguei na cara dele, usando o caderno fechado no susto para bater em seu ombro, o que só me rendeu uma careta e uma risada. — Já te falei que não são poesias, Johnny — suavizei.

Não eram. Não exatamente. Quer dizer, sei lá. Eu não sabia bem o que eram. Ideias e coisas que eu sentia. Ultimamente percebi que me fazia bem guardar certas sensações para mim mesma. Assim como era gostoso revisitá-las mais tarde. Era isso que eu estava tentando fazer.

— Só queria descansar um pouco — confessei. — A fazenda hoje está muito agitada.

Era domingo e todos os nossos amigos estavam presentes. Além das três Casas de Visitantes completamente cheias, ainda havia gente hospedada nas nossas casas também. Tudo por conta do aniversário de 80 anos do meu avô.

— Não é que eu não goste, mas... — continuei, tentando explicar ao meu melhor amigo o quanto eu às vezes precisava de só um pouquinho de silêncio.

— Tudo bem, Lindy. Eu entendo — ele se adiantou. — Fazer o que se nosso velho Jeb é tão querido?

— Só estou feliz por não ir à escola amanhã — disse Caleb, sentando-se ao meu lado também, vindo sabe-se lá de onde.

Caleb sempre fazia isso de aparecer do nada. Dava até para desconfiar que estivesse sempre de olho em onde John e eu estávamos. Isso porque, aos 11 anos, acho que ele se sentia mais próximo de nós do que dos outros primos menores.

— Não sei do que você está fingindo reclamar — John o provocou. — Todo mundo sabe que você gosta de ir na escola.

— Gosto das aulas de atletismo. E dos meus amigos. E de algumas palestras. E também...

— Gosta de ir na escola — afirmei, encerrando a discussão.

Caleb olhou para mim e sorriu. Tinha aqueles mesmos olhos com pontos dourados de Tio Jared, mas os traços de Tia Mel também eram fortes, tudo estampado na mistura mais perfeita.

Todos nós íamos à escola na cidade mais próxima, onde Tia Sharon trabalhava como professora e John queria trabalhar também, embora às vezes dissesse que queria dar aulas na universidade, como Tia Peg.

Mas, bem, além de nós três, ainda havia nossos primos, o que dava quase para encher um ônibus.

Assim, como Doc, Candy e minha mãe trabalhavam na Instalação de Cura de lá também, acabamos arranjando um para acomodar todo mundo. Brandt dirigia e, embora o calendário de aulas fosse bem flexível, a gente acabava indo sempre para a cidade, o que era bom. Porque eu gostava de estar em contato com outros almanos, que era como, de repente, a mídia tinha passado a chamar os filhos humanos das Almas.

Acima de tudo, eu gostava de conviver com as Almas. Tendo sido criada por pais como os meus, simplesmente me sentia em casa.

Mesmo assim, decidimos ficar na fazenda alguns dias desta semana, para poder estar junto com nossos convidados e aproveitar a visita.

Apesar de toda agitação a que estava me tornando avessa nos últimos tempos, eu estava adorando o fato de rever todo mundo de uma vez. Sentia falta de todos, especialmente de Tia Lily, o que tornava o fato de ela e Cal estarem com a bebê Florence em minha casa superespecial.

Depois de se casarem, dez anos atrás, eles sempre passavam longas temporadas aqui, mas moravam mesmo, na maior parte do tempo, no Condomínio da Antiga Fábrica de Doces de Nate. A fábrica, aliás, tinha sido reconstruída e funcionava a pleno vapor, com os moradores do condomínio, em sua maioria, trabalhando nela. Lily e Cal, entretanto, trabalhavam como botânicos e paisagistas, principalmente recriando espécies de flores extintas, que foi algo que aprenderam a fazer juntos.

Eu adorava isso. E achava a história dos dois muito inspiradora, do tipo que eu queria para mim. Sem sofrimentos ou conflitos, uma coisa que simplesmente aconteceu, porque tinha que ser. Tipo uma noite que amanhece em calmaria.

“Foi tudo culpa da bendita estufa”, Tia Lily costumava dizer. “Passávamos tanto tempo sozinhos lá que era impossível não sentir falta quando Cal voltava para casa.”

Seja como for, por mais que Lily tentasse fazer parecer uma coisa corriqueira, acho que as flores tinham mesmo algum poder, porque eles não foram o único casal que floresceu lá.

Quando começaram os primeiros contatos feitos pelos Esforços de Paz, Tia Peg tomou uma decisão difícil. Por mais doloroso que parecesse, achou que devia uma explicação a Fiandeira das Nuvens, a mãe biológica de sua hospedeira.

Contrariando as expectativas, a mulher chorou de alívio quando soube que Pet tinha sido mandada de volta ao planeta que tanto amava. Porque, bem, não era o que se podia esperar cada vez que uma Alma desaparecia sem deixar explicação. Então, saber que aquela Alma com quem dividira anos de existência na Terra estava bem, fez seu coração se acalmar de imediato.

Nós a chamamos de Fia aqui, e ela era uma Alma típica, inclusive na facilidade que tinha para o perdão. Porque, no fim, era importante demais para ela estar ao lado da filha de sua hospedeira, mesmo que fosse Peregrina e não Pet a Alma por trás dos traços angelicais.

Em pouco tempo, Fia convenceu-se de que queria morar conosco, especialmente depois que Peg engravidou, um pouco depois de Melanie dar à luz Caleb. Quando Pétala nasceu, a pura e loura imagem da mãe na figura da menina mais doce que já conheci, Fia se apaixonou por ela no mesmo instante. Por isso quis estar perto.

Por essa época, Lily estava indo viver com Cal e a estufa foi deixada aos cuidados da nova moradora. O outro avô coruja, Paddy, se ofereceu para ajudar. Assim, as flores operaram sua magia outra vez e eles se descobriram um apaixonados.

Foi lá também que Rio e Céu conheceram nossa família. Então, alguns dias depois, veio Terra Sonora. Como ele tinha três filhos biológicos, mais ou menos da idade do Tio Jamie, logo eles também começaram a frequentar nossa casa, e as visitas de Céu, embora menos frequentes que as de Rio, eram superanimadas por causa da nossa nova família grande.

Além deles, o pai e os irmãos de Jared também vêm sempre, junto com as cunhadas e sobrinhos que ele nem sabia que tinha. Os pais de Tia Sunny, que também ficaram aliviados em saber que ela estava segura, vieram duas ou três vezes no começo, mas então nasceram as gêmeas, e eles acabaram se tornando visitantes assíduos também.

As gêmeas, aliás, eram mesmo cativantes, se você soubesse lidar com suas personalidades opostas e marcantes. Ally e Lucy tinham oito anos e se pareciam com a mãe em tudo, exceto pelo temperamento de Lucy, herdado e moldado exatamente ao do Tio Kyle. As duas, que eram a exata combinação de placidez e explosão sob a mesma aparência, deixavam o pai louco, mas Tia Sunny tirava de letra.

Tia Sharon e Tio Doc também tiveram filhos. Seth tinha nove anos e Christian, ou Kit, tinha seis, mas eram tão companheiros um do outro, tão semelhantes, que era como se tivessem a mesma idade. Ambos curiosos e amorosos, com um grande amor pelos estudos. Por causa disso, adoravam Rio, de quem  Kit se dizia o melhor amigo. Seth, entretanto, dizia a todos que, depois dos pais, sua pessoa preferida no mundo era sua avó Maggie.

Coisa de criança, eu acho. Porque para mim, hoje em dia, eram todos eles.

Simplesmente, não era possível pensar em alguém que eu amasse menos por aqui. Minha família era grande e só crescia. E eu aprendia muito com cada um.

Ainda assim, havia um lugar todo especial em meu coração para a única pessoa, dentre as que já amei, que não estava mais comigo.

O nome dele era Celestino, mas eu o chamava de Biso. E ele era uma Alma. Era também o avô da minha amada Tia Kate.

Havia uma espécie de trato entre Almas e humanos remanescentes. Que se fosse de comum acordo, ou melhor, se fosse da livre e espontânea vontade da Alma, podia-se tentar resgatar a consciência suprimida do hospedeiro. Meu pai passou por isso certa vez: um penoso processo de retiradas consecutivas, enquanto o corpo era mantido em coma.

Não funcionava. Pelo menos até onde tínhamos notícia.

Exceto por meu pai e por Tia Sunny, muito tempo atrás, nunca nenhum de nós tentou. Era perigoso. E todo mundo aqui concordava que bastava de sofrimento.

Mas nós sabíamos que havia Almas lá fora que tinham tentado. Como parte dos Esforços de Paz, meus pais e meus tios Ian, Peg, Kyle e Sunny já tinham até mesmo viajado para outros países, e nós mantínhamos contato com quase todas as células remanescentes que eles tinham ajudado. Toda vez que algum desses humanos procurava seus parentes, toda vez que alguém se arriscava, o resultado era o mesmo. Nada.

Já havia passado tempo demais. E ficava cada vez menos seguro tentar.

Por isso Rachel e Kate jamais cogitariam pedir isso a Celestino. Elas só não contavam que ele faria mesmo assim. Mesmo antes de conhecê-las bem, mesmo quando o único contato feito, um breve encontro mediado por Tia Peg, era tudo o que tinham.

Eu me lembro bem até hoje. Tia Kate ficou furiosa! Durante toda minha vida, nunca achei que a veria transtornada daquele jeito, mas quando soube, ela saiu daqui direto para a Instalação onde ele estava, disposta a arrancá-lo do coma “na marra” se fosse preciso.

Foi necessário que Tio Jamie, Rachel e Brandt intercedessem para que ela não fizesse uma loucura. Mesmo assim, no minuto em que ele foi trazido de volta da primeira retirada, ela implorou para que Celestino não se arriscasse mais, porque se lembrava do que meu pai tinha passado e, diferente dele,  o avô não era mais um homem jovem e forte.

Não sei bem o que aconteceu naquela noite, as palavras exatas que foram ditas, mas sei que Kate e Rachel o convenceram e ele veio morar aqui. E foi assim que todos nós passamos a amá-lo como o ser mais delicado que havia. Dia após dia, ano após ano.

Foi a melhor década de todas, a última de sua vida. Porque Celestino queria entender a experiência completa, queria saber o que havia na outra ponta. Ele achava que havia honra em não adiar a velhice, em abraçá-la com toda a humildade que vinha com o declínio do corpo. Para meu Biso, havia mérito em nos ensinar e aprender sobre o valor do tempo. E ele tinha razão.

Então, embora ele cuidasse ao máximo de sua saúde, um dia seu coração simplesmente parou de bater. Bem aqui, embaixo de sua árvore preferida. Exatos seis meses depois do nascimento de sua bisneta Celeste.

Foi Rachel quem o encontrou no fim de uma tarde de verão feito esta. E aquele foi o dia em que Almas e almanos aprenderam sobre a morte. Ironicamente, não foi um humano que nos ensinou. Mas nós entendemos.

Uma vida de amor e bondade é o suficiente. Uma vida em que se é amado vale tudo. Porque a dor que fica não é o resultado final. Ela é só uma prova de que você fez as outras pessoas felizes.

Era por isso que eu vinha sempre aqui. Para lembrar.

Porque um dia este lugar já foi o símbolo da maior dor que conheci. Mas não podia ser só isso. Não devia. Este seria o lugar onde eu ainda havia de entender qual seria minha marca neste mundo, pois tenho certeza que foi isso que Biso pôde ver antes de fechar os olhos. E é disso que vai se lembrar quando acordar no futuro, em outro planeta. Ele vai saber que foi amado aqui e que fez a diferença.

Quero o mesmo para mim. Quer dizer, sei que não vou para outro planeta, provavelmente, a menos que a tecnologia se aprimore muito, mas quero fazer a diferença aqui de qualquer jeito. Como Tia Peg e meus pais. Como Vovô Jeb e meus tios.

Aos 16 anos, ninguém sabe ao certo aonde a grande aventura da vida vai dar. Mas estou aqui para descobrir. Não tenho pressa.

Eu vou continuar.

— Ei, Lindy — chamou John, quebrando nosso silêncio e apontando para a cozinha. — Acho que está chegando a hora do bolo.

Seguindo a mão dele, vi Vovó Candy gesticulando, nos chamando para voltar e, de repente, voltei a sentir vontade de estar na agitação. Não havia lugar melhor, afinal.

— O último a chegar fica sem bolo — gritou Caleb antes de sair correndo.

John e eu trocamos um olhar e gargalhamos. Por fim, ele me estendeu a mão e seguimos juntos para nossa casa.




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