quinta-feira, 4 de julho de 2019

CD2 Cap 43 Final


Capítulo 43 – Remate

I see trees of green, red roses too

I see them bloom for me and you

And I think to myself, what a wonderful world

I see skies of blue and clouds of white

The bright blessed days, the dark sacred night

And I think to myself, what a wonderful world

The colors of the rainbow, so pretty in the sky

Are also on the faces of people going by

I see friends shaking hands, saying: How do you do?

They're really saying: I love you

I hear babies crying, I watch them grow

They'll learn much more, than I'll never know

And I think to myself, what a wonderful world

Yes, I think to myself, what a wonderful world

(What a Wonderful World – Louis Armstrong)

Logan



Perdi a noção da hora enquanto trabalhava. Ou pelo menos foi o que pensei quando espiei pela porta do ateliê e vi Estrela e Lindsay adormecidas no sofá. Enquanto isso, uma animação com música e bichos falantes era projetada pela SmartCombo e a luz azulada da tela brincava nos rostos delas.

Saí de mansinho e desliguei o desenho, acendendo apenas uma tênue luminária para iluminar o caminho para os quartos. Nosso dia tinha sido bem cansativo, levando Rio, Céu e Terra Sonora ao aeroporto, então imaginei que Estrela estaria exausta e mal se moveria quando eu tentasse acordá-la. Mesmo assim, apenas um roçar de meus lábios no rosto dela foi suficiente para que abrisse os olhos desperta.

— Você terminou? — perguntou como se estivéssemos continuando uma conversa, e, apesar da aparente falta de contexto, eu sabia que ela estava se referindo à peça em que estive trabalhando.

— Sim, está pronta. Quer ver?

— Aham — ela murmurou, conseguindo parecer ao mesmo tempo sonolenta e animada.

— Ela está com os dentes escovados? — Apontei para Lindsay, observando que já estava vestida com seu pijama de unicórnios preferido.

— Está, sim. Disse que queria comer pipoca, mas como eu sabia que ela dormiria em quinze minutos, consegui convencê-la a deixar para amanhã.

— No café da manhã? — adivinhei.

— Mas, bem, aí será outro dia para se negociar, não é? Provavelmente consigo convencê-la a deixar para o lanche da tarde. Ou ela vai até a casa de Maggie e consegue o que quer escondido.

Contive uma risada, imaginando a cena, ao mesmo tempo em que apreciava o jeito delicado como Estrela lidava com as manias de nossa menininha.

Mais recentemente, ela tinha decidido que gostava mais de pipoca do que de qualquer outra coisa, e queria substituir todas as refeições por uma porção delas. Tínhamos que debater com ela o dia todo para reduzir a um único lanche e todo mundo ajudava, de maneira que a luta era contínua, mas não solitária. Sunny, em especial, se desdobrava em agradar Lindsay com outras coisas de que gostasse, mas Magnólia teimava em “contrabandear” tudo o que nossa ruivinha manipuladora pedia.

“A vida é curta. Não faz mal deixar a menina ser feliz enquanto é criança”, insistia. “É só uma fase, daqui a pouco ela esquece.”

Talvez Magnólia tivesse razão: era só uma fase. Ou pelo menos foi o que pensamos na fase dos bolos. Que tinha sido antes da fase dos biscoitos que, por sua vez, aconteceu logo depois da época em que ela preferia os sorvetes.

— Amanhã é minha vez como negociador — falei, suspendendo Lindsay nos braços.

Estrela ostentou uma expressão desafiadora, antecipando a disputa enquanto se espreguiçava no sofá. Subi as escadas para o quarto e, quando voltei depois de colocar nossa filha na cama, encontrei minha esposa no ateliê, sorrindo diante de meu trabalho.

— Ficou lindo! Você tem se saído um ótimo aluno — disse orgulhosa, já que vinha se dedicando a me ensinar a desenhar. — Tem alguma coisa que você não faça bem?

— Não ficou tão bom quanto ficaria se você tivesse feito — admiti, olhando em volta para as paredes cobertas pelos quadros cada vez melhores que ela criava.

— Mas quando comecei não era nem a metade tão boa quanto você, novato.

— Mentira — ri, colocando as mãos sobre a mesa contra a qual ela estava encostada, prendendo-a ali. — Você sempre foi perfeita. — Ela sorriu, se contorcendo pelo arrepio que minha respiração em seu pescoço causava. — Como você bem sabe, eu sempre soube apreciar a beleza. Sua e de sua arte.

— Era outro corpo naquele tempo, lembra?

— E isso importa? Era você. Simples assim.

Deixei meus lábios percorrem o pescoço dela, apreciando o gosto da pele macia, e Estrela soltou um suspiro suave, me abraçando quando mordi o lóbulo de sua orelha.

— Você nunca me leva a sério quando te elogio — ela disse, e senti que balançava a cabeça de um lado para o outro contra meu ombro. — Mas teima em me colocar num pedestal.

— Nada disso, não é minha imaginação que estrelas estão no ponto mais alto que meus olhos enxergam.

— Ah, que poético! — ela riu e eu acompanhei, ciente do quanto tinha soado canastrão, embora falasse a verdade.

Nós nos afastamos em nosso abraço e, enquanto ela fingia se concentrar outra vez no trabalho sobre a mesa, observei sua risada se transformar no sorriso suave e tenso que Estrela tinha quando queria que eu entendesse as coisas à sua maneira.

— O que foi? — perguntei, passando a mão por suas costas.

— Nós percorremos um longo caminho, não foi?

— Fizemos muitas coisas, sim — A resposta parecia óbvia, mas eu não estava certo sobre em que ponto ela queria chegar.

— Sim, muitas coisas. Mas não estou falando sobre as coisas que fizemos, estou falando de quem nos tornamos.

— E o que foi que nós nos tornamos? — Puxei-a pela mão para se sentar em meu colo na poltrona de leitura, aquela antiga e espaçosa em que costumávamos passar nossas noites insones quando Estrela amamentava Lindsay.

— Humanos, eu acho. Ao menos em parte. Pais, obviamente. E também... Sou irmã e amiga agora. Você se tornou filho. Mudamos e lutamos pelos nossos amigos, pelas nossas crenças. E fizemos isso juntos. Nós aprendemos a amar.

— Você sempre soube amar.

— Não. Eu aprendi com você. A primeira pessoa que amei e que era verdadeiramente “minha pessoa”. Você apostou em mim mesmo quando achava que eu era louca, vivendo os amores de outra.

— Você estava lutando por Peregrina e pela família dela. Eu podia não entender por que você achava que aquela era a melhor maneira, mas nunca tive dúvidas de que você estava protegendo John com todas as suas forças.

— E você me protegeu para que eu pudesse fazer isso, não foi?

— Você também me protegeu.

— Sim, eu sei. A loucura das extrações.

Era assim que Jeb se referia ao período em que tentamos despertar o Logan humano. E Estrela sabia que era a isso, principalmente, que eu me referia quando dizia que ela me apoiava em tudo. Porque eu sabia — e lamentava — o quanto tinha lhe custado. Sempre seria grato por aquilo, não importava o que ela me dissesse.

— Você sabe que eu sempre vou te colocar num pedestal... Pelo que te fiz passar. — Abaixei a cabeça, sem conseguir evitar o sentimento ruim que pensar na dor dela me trazia.

— Esse é meu ponto — Estrela levantou meu rosto com as pontas dos dedos. — Eu fiz porque você precisava de mim. Da mesma forma que precisei de você antes. E é como seria em qualquer dia das nossas vidas. Nossas aventuras como “infiltrados” em Nova Orleans, nosso trabalho nos Esforços de Paz... Fizemos tudo juntos.

— Irrevogavelmente fundidos — sussurrei.

— Irrevogavelmente fundidos — ela repetiu. — Somos iguais, Logan. Somos duas partes da mesma coisa. Lado a lado, entende?

— Entendo.

E entendia mesmo. Eu sabia que ela queria dizer que se incomodava com o modo como eu às vezes parecia tratá-la. Como uma estrela de fato. Uma ideia perfeitamente inalcançável. Não como uma mulher comum e com defeitos. O que ela não entendia, porém, era que os defeitos não significavam nada para mim. Estrela jamais seria comum aos meus olhos.

— Eu sei que você estará sempre ao meu lado, tão incondicionalmente quanto eu vou estar do seu — expliquei. — Já aprendi a não questionar se mereço essa sorte, porque sei que você não gosta que eu faça isso. Mas não muda o fato de que me considero um homem sortudo por tê-la em minha vida. Então, querida Estrelinha, você vai ter que se conformar em ser idolatrada, sinto muito.

Estrela revirou os olhos de um jeito teatral, me deixando saber que não iria mais discutir comigo. Depois sorriu, absolutamente luminosa.

— Você não tem jeito.

— E você gosta de mim assim.

— Sim, gosto muito — ela confirmou, beijando minhas pálpebras e depois minha boca. — Eu amo você.

— Também te amo — respondi, e ficamos apenas contemplando o momento em silêncio depois disso, as pontas de meus dedos correndo calmamente pela pele macia do rosto dela.

— Você vai entregar o presente a Jeb agora? — perguntou suavemente, bocejando de cansaço. — Acho que ele ainda vai estar acordado. Sempre demora a dormir quando o dia foi agitado.

— Sim. Vou até lá sondar se as luzes estão acesas. Assim “trocamos dois dedos de prosa”, como ele diz, e eu te deixo descansar um pouco. Como ainda não estou com sono, acho que não custa tentar, principalmente depois de você me dar todo esse sermão pra me convencer a aceitar um elogio — provoquei.

— Não foi só por isso! — ela protestou, bem-humorada. — Só gosto de checar de vez em quando se você está mesmo aprendendo alguma coisa com nossas experiências — completou, retribuindo a provocação.

Touché.

Dei um sorriso de lado, daqueles que eu sabia que ela adorava e que eu às vezes dava propositalmente para jogar charme. Ela riu e beijou o canto da minha boca em uma carícia tão delicada que me fez fechar os olhos.

— É só que... Não sei, mas estar aqui, neste lugar, nesta casa, com tantas coisas mudadas, me dá uma sensação de desfecho, sabe? — explicou. — Às vezes não sei como lidar com isso e fico tentando tirar lições de tudo.

— Este é um desfecho, mas não o fim. Não é a mesma coisa. Ainda temos o que aprender. E tempo para isso.

— Eu sei. Está mais para um começo. Precisamos “deixar os bons tempos rolarem”, não é mesmo? — ela repetiu o lema de Nova Orleans, que eu adorava.

— Laissez les bons temps rouler — recitei em francês, como eles diziam por lá.

— É um bom lema, não se pode negar.

Fechei meus olhos de novo quando os lábios dela acariciaram minha testa, enquanto isso ela ficou de pé para comtemplar as próprias pinturas e esboços.

Retratos de pessoas amadas. Paisagens de Picacho Peak. O amplo milharal iluminado pelo reflexo do sol nos espelhos. E, por fim, os campos da Fazenda Stryder.

— Bem — disse, virando-se para mim enquanto eu continuava sentado a observá-la, o calor do corpo dela ainda aquecendo o meu. — Eu não me arrependo de nada. Faria tudo de novo, quantas vezes fosse preciso.

— Você sabe que eu também faria. — Sorri. — No fim, se você quiser tirar uma lição disso tudo, acho que pode ser essa.

— A de que valeu a pena.

— Sim, valeu a pena — concordei. — Valeu muito a pena.



********

— Pai? — chamei enquanto subia a escada da varanda, mas ele não respondeu de imediato. Apenas continuou olhando para a lua acima das casas.

Às vezes Jeb fazia isso. Demorava para responder como se o vocativo não fosse para ele.

No começo, cheguei a achar que ele se esquecia de que agora tinha alguém que o chamava de pai. Mas então ele me disse que estava ouvindo. Que gostava de apenas ouvir. Então não questionei mais. Era, de fato, uma palavra que eu também gostava de ouvir. E de dizer.

— Oi, filho — respondeu, finalmente voltando os olhos para mim quando apoiei os antebraços no parapeito de madeira, ao lado dele. — Acordado tão tarde?

— Dia agitado.

— Expulsa o sono, não é?

— Como você está? — questionei, sério, porque ainda não tínhamos falado sobre a partida de Rio, depois de ele e Céu terem passado um mês conosco. — Sei que ele prometeu voltar logo, mas deve ter sido difícil se despedir. Quer dizer, por causa do seu irmão...

— Não foi difícil. Meu irmãozinho já partiu. Essa parte não fica mais fácil, mas já lidei com ela. Esse tempo todo eu queria apenas conhecer Rio. E foi bom. Gostei dele.

— Vocês ficaram um bom tempo conversando.

— Sim, ele é uma figura interessante. Mal conheceu a fazenda e já estava fazendo planos para otimizar a irrigação. É um dos motivos para voltar logo.

— É o trabalho dele — lembrei, embora Jeb já soubesse disso. — O Instituto de Albuquerque é especializado em sustentabilidade no uso dos recursos hídricos.

— Rio me ensinou muito sobre isso. E foi interessante e assustador ao mesmo tempo. Me assustou muito perceber quanta água desperdiçávamos nos velhos tempos. Poluição, encanamentos de esgoto e abastecimento quebrados ou construídos da forma errada, excesso de irrigação quando bastava apenas mudar o tipo de cultura para outra mais resistente, o mau uso nas indústrias... E eram tantas indústrias explorando tudo! A crise hídrica era iminente. Muitos países ficariam sem água e, claro, sem agricultura. Teria sido uma guerra terrível. Nessas horas entendo que a raça humana teria acabado de qualquer jeito.

— Infelizmente, concordo com você.

— Bem, não acabou. Alguns de nós ainda estão aqui. E agora estamos juntos. — Ele me sorriu, apertando meu ombro. — Em boa parte, graças ao trabalho que você vem fazendo.

— Não fiz nada sozinho. Fizemos tudo juntos, cada um ajudando de uma forma.

— Sim, eu sei. Mas hoje me despedi de um novo amigo que me faz lembrar meu irmão. Um pouco da saudade que eu sentia pôde desaparecer para sempre. Jamie agora tem o gosto de rever os pais quando quiser. Melanie se reconciliou com seu senso de família. E, por fim, Magnólia sorriu mais nesse mês que passou do que na última década inteira. Gosto de pensar no quanto meu filho é responsável por tudo isso. Você me deu uma família, Logan. Uma que não está mais quebrada.

— Você também me deu uma família, pai.

A mão em meu ombro me puxou para um meio abraço, daqueles desajeitados que agora costumava me dar. Estendi meus braços e completei o gesto dele, unindo-nos num abraço decente. Quando nos soltamos, senti os habituais tapinhas no rosto, que era um dos jeitos de Jeb dizer que estava feliz e orgulhoso.

— O que você acha que Rio e Céu vão fazer? — perguntei.

Terra Sonora, o companheiro de Céu, tinha vindo também depois de alguns dias, e todos se deram muito bem. Como Confortadores, eles tinham demonstrado imenso interesse em aprender com nossa comunidade. Quanto a Rio, em pouco tempo ele desenvolvera laços significativos com todos da família de Trevor, além de uma grande amizade com Doc. Então achei que não fosse demais imaginar que poderiam querer criar raízes aqui, apesar de seus compromissos profissionais os chamarem de volta por uns tempos.

— Acho que serão visitas constantes, mas eles têm uma vida fora daqui. E, de qualquer jeito, Mel e Jamie concordaram em não esperar nada além disso. — Então ele olhou para mim, ciente das minhas expectativas. — Sempre soubemos que as experiências não seriam iguais para todo mundo — completou, antes que eu pudesse usar as escolhas de Paddy como argumento.

— É só um anseio meio ingênuo de ver todo mundo feliz — expliquei.

— Todo mundo está feliz, filho. As pessoas podem continuar juntas, mesmo que estejam fisicamente separadas.

— Eu sei. — Ri. — Como disse, foi só um impulso ingênuo.

Às vezes, na frente de meu pai, eu me comportava como se soubesse bem menos deste mundo do que realmente sei.

— Se fosse no mundo de antes, provavelmente estariam um para cada lado também. Mel e Jamie teriam ido para a faculdade, talvez encontrado empregos em outras cidades...

— É — confirmei, só para demonstrar que tinha entendido o ponto dele. Depois ficamos contemplando o horizonte por alguns segundos. Pensando. Fazíamos muito isso em nossas conversas. Pensar juntos. — Não sei como vou me sentir se algum dia Lindsay e John quiserem sair daqui.

Jeb olhou para mim, uma expressão solidária no rosto.

— Até lá, se for o caso, o tempo vai preparar sua cabeça. Mas admito que também não vou gostar. Acho que é inevitável querer mantê-los perto. Quando você teve a ideia de se infiltrar nos Conselhos, pensei que...

— Eu não deixaria meus amigos. Jamais deixaria você — interrompi.

— Talvez não de imediato, mas quem sabe quanto tempo as missões poderiam levar? Naquela época era tudo incerteza. E, eventualmente, poderia se tornar mais fácil, ou necessário, se estabelecer em outro lugar.

— Você já tinha a ideia de que eu podia ser seu filho.

— Independente disso, eu sentiria falta de vocês.

— Bem, você nunca vai precisar se preocupar, pelo menos no que diz respeito a mim e a Estrela.

— Todo mundo se separa um dia. É apenas natural, Logan — ele falou e minha expressão se fechou de imediato.

Eu simplesmente odiava quando Jeb entrava nesse assunto. Voltei a fitar o céu. De repente, a finitude da Terra tinha voltado a me incomodar.

— Os tratamentos... — comecei, mas ele me interrompeu.

— Não foram projetados para nos fazer viver para sempre.

— Alguns precisam partir para outros nascerem, eu sei. — Soltei uma risada amarga, lembrando do que Kyle me dissera uma vez, com toda a delicadeza que lhe era peculiar: “Humanos só têm um planeta para povoar, otário!”— Só não preciso fingir que não me importo.

— Claro que não. A gente sempre vai se importar. Mas com o tempo, imagino que até mesmo quem pode viver para sempre entenda que não vale a pena. Por isso as Almas não tornaram o corpo humano imortal. Creio que eles até poderiam, se quisessem. Mas sabem que não deve ser assim.

— O que quer dizer?

— Que se não morrermos, quem morre é Deus. A morte é a única coisa que tememos, que dá perspectiva para os valores que construímos. Se vivêssemos sabendo que não há limites para o que podemos conquistar, o valor das coisas se perderia.

Assenti, conformado. Não havia como discutir essa lógica. Até mesmo a minha espécie precisava considerar o término de cada ciclo. E, eventualmente, a possibilidade de um remate para nossas vidas. Aqui na Terra, muitos como eu passaram a ver esse momento como uma inevitabilidade tão absoluta quanto para os humanos. Eu não queria viver mais do que Lindsay, por exemplo. Por ela, eu precisei me tornar humano no que há de mais intrínseco à vida: o caminhar para a morte.

— Você tem razão — admiti. — Mas não precisamos falar disso agora. Não gosto desse assunto.

— Não, não precisamos falar. Só me prometa que quando chegar a hora de lidar com isso você vai se lembrar que é um preço que compensa.

Ser parte de uma família, de um grupo. Amar e ser amado. Eu aprendi essas coisas aqui. Neste planeta. E para onde quer que vá minha consciência quando este corpo perecer, se é que essa parte de mim vai continuar e seguir para o cosmo ou qualquer outro lugar, amor estará na minha constituição. Porque na Terra foi onde encontrei meu coração.

— Eu vou ficar bem, pai. Você pode ficar tranquilo. Um único dia com vocês já valeria qualquer coisa. É como Peg diz, há uma balança, mas ser parte disso que vivemos faz com que ela penda sempre a meu favor.

Jeb me observou em silêncio, analisando minhas palavras. Depois sorriu e estendeu a mão para bagunçar meu cabelo como se eu fosse um garoto.

— O que é aquele pacote mal-acabado que você trouxe ali? — perguntou, indicando que já tinha se dado por satisfeito no que dizia respeito aos assuntos sérios.

Dirigi o olhar ao pacote deixado ao pé da escada, esquecido, e gargalhei pelo “mal-acabado”, porque estava mesmo. Na pressa de pegar Jeb acordado, eu tinha apenas apanhado um punhado de papel pardo e enrolado em torno da madeira. Desci a escada e o trouxe para cima, entregando-o nas mãos do destinatário.

— É uma coisa que fiz para você. Quer dizer, para todos nós. Notei que precisava quando trouxe Rio e Céu para a fazenda.

Removendo o papel, Jeb revelou uma placa de madeira com as palavras “Fazenda Stryder” desenhadas com um aparelho chamado pirógrafo. Não tinha havido um batizado formal, mas era dessa forma que todos tínhamos nos referido à nossa nova casa desde o começo. Simplesmente pareceu natural. Abaixo do nome, coloquei a imagem mais caprichada em que consegui pensar.

— Uma mandala? — ele perguntou, e me surpreendi que Jeb soubesse como se chamava o intrincado traçado de círculos concêntricos. Eu não sabia ao certo se era uma desenho comum.

— Eu queria algo que fosse legal e tivesse significado. Então pesquisei e descobri que mandalas simbolizam harmonia e integração. Achei que combinava com este lugar.

— Combina muito, filho. Obrigado — disse, sorrindo, sem levantar os olhos da imagem.

Então se sentou numa das cadeiras da varanda, com a placa sobre os joelhos, fazendo sinal para que eu também me sentasse.

— Não sabia que você estava aprendendo a fazer isso — observou enquanto eu me acomodava ao seu lado, por certo referindo-se à pirografia.

— Estou experimentando técnicas. Sempre gostei de todo tipo de arte, mas tenho que confessar que era arrogante e perfeccionista demais para tentar aprender alguma coisa. Agora Estrela tem nos ensinado a desenhar e tive que ser humilde, porque é óbvio que os desenhos de Lindsay com guache são muito melhores que qualquer coisa que eu faça.

— É óbvio — ele reconheceu, soltando uma gargalhada que acompanhei. — Amanhã vamos juntos até a entrada para colocar a placa. Leve a Lindy. Podemos passar e pegar John também. Acho que eles devem participar do momento solene.

— Claro — falei. Depois fiquei pensando sobre aquilo.

“Momento solene”.

Jeb falou em tom de brincadeira, mas acho que ele tinha uma certa razão na escolha da palavra. Porque parecia uma coisa simples. Colocar uma placa sinalizando a entrada de nossa casa. O nome de Jeb escrito nela, nos identificando. Parecia simples. Mas não era. Queria dizer muito.

— Você já tinha pensado que uma coisa assim pudesse acontecer? — questionei.

Com as sobrancelhas arqueadas e uma resignação admirada, ele me respondeu:

— Para ser sincero, não pensei que nada disso pudesse acontecer. É o futuro que nos esperava, filho. E você nos trouxe até ele.

— Já disse que não fiz nada sozinho.

— É claro que não. Esse é o princípio da coisa, afinal. De qualquer jeito, obrigado.

Senti seus tapinhas nas costas da minha mão, aquela que estava sobre o braço da cadeira. Olhei para ele e sorri, encarando os olhos vivos e sábios de meu pai, sentindo meu coração se expandir no processo.

Depois voltamos a contemplar juntos a linha do horizonte, bem lá onde a terra se unia ao céu.




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