Capítulo
43 – Remate
I
see trees of green, red roses too
I
see them bloom for me and you
And
I think to myself, what a wonderful world
I
see skies of blue and clouds of white
The
bright blessed days, the dark sacred night
And
I think to myself, what a wonderful world
The
colors of the rainbow, so pretty in the sky
Are
also on the faces of people going by
I
see friends shaking hands, saying: How do you do?
They're
really saying: I love you
I
hear babies crying, I watch them grow
They'll
learn much more, than I'll never know
And
I think to myself, what a wonderful world
Yes,
I think to myself, what a wonderful world
(What
a Wonderful World – Louis Armstrong)
Logan
Perdi a noção da hora enquanto
trabalhava. Ou pelo menos foi o que pensei quando espiei pela porta do ateliê e
vi Estrela e Lindsay adormecidas no sofá. Enquanto isso, uma animação com
música e bichos falantes era projetada pela SmartCombo e a luz azulada da tela
brincava nos rostos delas.
Saí de mansinho e desliguei o
desenho, acendendo apenas uma tênue luminária para iluminar o caminho para os
quartos. Nosso dia tinha sido bem cansativo, levando Rio, Céu e Terra Sonora ao
aeroporto, então imaginei que Estrela estaria exausta e mal se moveria quando
eu tentasse acordá-la. Mesmo assim, apenas um roçar de meus lábios no rosto
dela foi suficiente para que abrisse os olhos desperta.
— Você terminou? —
perguntou como se estivéssemos continuando uma conversa, e, apesar da aparente
falta de contexto, eu sabia que ela estava se referindo à peça em que estive
trabalhando.
— Sim, está pronta.
Quer ver?
— Aham — ela
murmurou, conseguindo parecer ao mesmo tempo sonolenta e animada.
— Ela está com os
dentes escovados? — Apontei para Lindsay, observando que já estava vestida com
seu pijama de unicórnios preferido.
— Está, sim. Disse
que queria comer pipoca, mas como eu sabia que ela dormiria em quinze minutos,
consegui convencê-la a deixar para amanhã.
— No café da manhã?
— adivinhei.
— Mas, bem, aí será
outro dia para se negociar, não é? Provavelmente consigo convencê-la a deixar
para o lanche da tarde. Ou ela vai até a casa de Maggie e consegue o que quer
escondido.
Contive uma risada,
imaginando a cena, ao mesmo tempo em que apreciava o jeito delicado como
Estrela lidava com as manias de nossa menininha.
Mais recentemente, ela
tinha decidido que gostava mais de pipoca do que de qualquer outra coisa, e
queria substituir todas as refeições por uma porção delas. Tínhamos que debater
com ela o dia todo para reduzir a um único lanche e todo mundo ajudava, de
maneira que a luta era contínua, mas não solitária. Sunny, em especial, se
desdobrava em agradar Lindsay com outras coisas de que gostasse, mas Magnólia
teimava em “contrabandear” tudo o que nossa ruivinha manipuladora pedia.
“A vida é curta.
Não faz mal deixar a menina ser feliz enquanto é criança”, insistia. “É só uma
fase, daqui a pouco ela esquece.”
Talvez Magnólia
tivesse razão: era só uma fase. Ou pelo menos foi o que pensamos na fase dos bolos.
Que tinha sido antes da fase dos biscoitos que, por sua vez, aconteceu logo
depois da época em que ela preferia os sorvetes.
— Amanhã é minha
vez como negociador — falei, suspendendo Lindsay nos braços.
Estrela ostentou
uma expressão desafiadora, antecipando a disputa enquanto se espreguiçava no
sofá. Subi as escadas para o quarto e, quando voltei depois de colocar nossa
filha na cama, encontrei minha esposa no ateliê, sorrindo diante de meu
trabalho.
— Ficou lindo! Você
tem se saído um ótimo aluno — disse orgulhosa, já que vinha se dedicando a me
ensinar a desenhar. — Tem alguma coisa que você não faça bem?
— Não ficou tão bom
quanto ficaria se você tivesse feito — admiti, olhando em volta para as paredes
cobertas pelos quadros cada vez melhores que ela criava.
— Mas quando
comecei não era nem a metade tão boa quanto você, novato.
— Mentira — ri,
colocando as mãos sobre a mesa contra a qual ela estava encostada, prendendo-a
ali. — Você sempre foi perfeita. — Ela sorriu, se contorcendo pelo arrepio que
minha respiração em seu pescoço causava. — Como você bem sabe, eu sempre soube
apreciar a beleza. Sua e de sua arte.
— Era outro corpo
naquele tempo, lembra?
— E isso importa?
Era você. Simples assim.
Deixei meus lábios
percorrem o pescoço dela, apreciando o gosto da pele macia, e Estrela soltou um
suspiro suave, me abraçando quando mordi o lóbulo de sua orelha.
— Você nunca me
leva a sério quando te elogio — ela disse, e senti que balançava a cabeça de um
lado para o outro contra meu ombro. — Mas teima em me colocar num pedestal.
— Nada disso, não é
minha imaginação que estrelas estão no ponto mais alto que meus olhos enxergam.
— Ah, que poético! —
ela riu e eu acompanhei, ciente do quanto tinha soado canastrão, embora falasse
a verdade.
Nós nos afastamos em
nosso abraço e, enquanto ela fingia se concentrar outra vez no trabalho sobre a
mesa, observei sua risada se transformar no sorriso suave e tenso que Estrela tinha
quando queria que eu entendesse as coisas à sua maneira.
— O que foi? —
perguntei, passando a mão por suas costas.
— Nós percorremos
um longo caminho, não foi?
— Fizemos muitas
coisas, sim — A resposta parecia óbvia, mas eu não estava certo sobre em que
ponto ela queria chegar.
— Sim, muitas
coisas. Mas não estou falando sobre as coisas que fizemos, estou falando de
quem nos tornamos.
— E o que foi que
nós nos tornamos? — Puxei-a pela mão para se sentar em meu colo na poltrona de
leitura, aquela antiga e espaçosa em que costumávamos passar nossas noites insones
quando Estrela amamentava Lindsay.
— Humanos, eu acho.
Ao menos em parte. Pais, obviamente. E também... Sou irmã e amiga agora. Você
se tornou filho. Mudamos e lutamos pelos nossos amigos, pelas nossas crenças. E
fizemos isso juntos. Nós aprendemos a amar.
— Você sempre soube
amar.
— Não. Eu aprendi
com você. A primeira pessoa que amei e que era verdadeiramente “minha pessoa”. Você
apostou em mim mesmo quando achava que eu era louca, vivendo os amores de
outra.
— Você estava
lutando por Peregrina e pela família dela. Eu podia não entender por que você
achava que aquela era a melhor maneira, mas nunca tive dúvidas de que você
estava protegendo John com todas as suas forças.
— E você me
protegeu para que eu pudesse fazer isso, não foi?
— Você também me
protegeu.
— Sim, eu sei. A
loucura das extrações.
Era assim que Jeb
se referia ao período em que tentamos despertar o Logan humano. E Estrela sabia
que era a isso, principalmente, que eu me referia quando dizia que ela me
apoiava em tudo. Porque eu sabia — e lamentava — o quanto tinha lhe custado.
Sempre seria grato por aquilo, não importava o que ela me dissesse.
— Você sabe que eu
sempre vou te colocar num pedestal... Pelo que te fiz passar. — Abaixei a
cabeça, sem conseguir evitar o sentimento ruim que pensar na dor dela me
trazia.
— Esse é meu ponto —
Estrela levantou meu rosto com as pontas dos dedos. — Eu fiz porque você
precisava de mim. Da mesma forma que precisei de você antes. E é como seria em
qualquer dia das nossas vidas. Nossas aventuras como “infiltrados” em Nova Orleans,
nosso trabalho nos Esforços de Paz... Fizemos tudo juntos.
— Irrevogavelmente
fundidos — sussurrei.
— Irrevogavelmente
fundidos — ela repetiu. — Somos iguais, Logan. Somos duas partes da mesma
coisa. Lado a lado, entende?
— Entendo.
E entendia mesmo. Eu
sabia que ela queria dizer que se incomodava com o modo como eu às vezes
parecia tratá-la. Como uma estrela de fato. Uma ideia perfeitamente
inalcançável. Não como uma mulher comum e com defeitos. O que ela não entendia, porém, era que os
defeitos não significavam nada para mim. Estrela jamais seria comum aos meus
olhos.
— Eu sei que você
estará sempre ao meu lado, tão incondicionalmente quanto eu vou estar do seu —
expliquei. — Já aprendi a não questionar se mereço essa sorte, porque sei que
você não gosta que eu faça isso. Mas não muda o fato de que me considero um
homem sortudo por tê-la em minha vida. Então, querida Estrelinha, você vai ter
que se conformar em ser idolatrada, sinto muito.
Estrela revirou os
olhos de um jeito teatral, me deixando saber que não iria mais discutir comigo.
Depois sorriu, absolutamente luminosa.
— Você não tem
jeito.
— E você gosta de
mim assim.
— Sim, gosto muito —
ela confirmou, beijando minhas pálpebras e depois minha boca. — Eu amo você.
— Também te amo —
respondi, e ficamos apenas contemplando o momento em silêncio depois disso, as
pontas de meus dedos correndo calmamente pela pele macia do rosto dela.
— Você vai entregar
o presente a Jeb agora? — perguntou suavemente, bocejando de cansaço. — Acho
que ele ainda vai estar acordado. Sempre demora a dormir quando o dia foi
agitado.
— Sim. Vou até lá
sondar se as luzes estão acesas. Assim “trocamos dois dedos de prosa”, como ele
diz, e eu te deixo descansar um pouco. Como ainda não estou com sono, acho que
não custa tentar, principalmente depois de você me dar todo esse sermão pra me
convencer a aceitar um elogio — provoquei.
— Não foi só por
isso! — ela protestou, bem-humorada. — Só gosto de checar de vez em quando se
você está mesmo aprendendo alguma coisa com nossas experiências — completou,
retribuindo a provocação.
— Touché.
Dei um sorriso de
lado, daqueles que eu sabia que ela adorava e que eu às vezes dava
propositalmente para jogar charme. Ela riu e beijou o canto da minha boca em
uma carícia tão delicada que me fez fechar os olhos.
— É só que... Não
sei, mas estar aqui, neste lugar, nesta casa, com tantas coisas mudadas, me dá
uma sensação de desfecho, sabe? — explicou. — Às vezes não sei como lidar com
isso e fico tentando tirar lições de tudo.
— Este é um
desfecho, mas não o fim. Não é a mesma coisa. Ainda temos o que aprender. E
tempo para isso.
— Eu sei. Está mais
para um começo. Precisamos “deixar os bons tempos rolarem”, não é mesmo? — ela
repetiu o lema de Nova Orleans, que eu adorava.
— Laissez les bons
temps rouler — recitei em francês, como eles diziam por lá.
— É um bom lema,
não se pode negar.
Fechei meus olhos de
novo quando os lábios dela acariciaram minha testa, enquanto isso ela ficou de
pé para comtemplar as próprias pinturas e esboços.
Retratos de pessoas
amadas. Paisagens de Picacho Peak. O amplo milharal iluminado pelo reflexo do
sol nos espelhos. E, por fim, os campos da Fazenda Stryder.
— Bem — disse,
virando-se para mim enquanto eu continuava sentado a observá-la, o calor do
corpo dela ainda aquecendo o meu. — Eu não me arrependo de nada. Faria tudo de
novo, quantas vezes fosse preciso.
— Você sabe que eu
também faria. — Sorri. — No fim, se você quiser tirar uma lição disso tudo,
acho que pode ser essa.
— A de que valeu a
pena.
— Sim, valeu a pena
— concordei. — Valeu muito a pena.
********
— Pai? — chamei
enquanto subia a escada da varanda, mas ele não respondeu de imediato. Apenas
continuou olhando para a lua acima das casas.
Às vezes Jeb fazia
isso. Demorava para responder como se o vocativo não fosse para ele.
No começo, cheguei
a achar que ele se esquecia de que agora tinha alguém que o chamava de pai. Mas
então ele me disse que estava ouvindo. Que gostava de apenas ouvir. Então não
questionei mais. Era, de fato, uma palavra que eu também gostava de ouvir. E de
dizer.
— Oi, filho —
respondeu, finalmente voltando os olhos para mim quando apoiei os antebraços no
parapeito de madeira, ao lado dele. — Acordado tão tarde?
— Dia agitado.
— Expulsa o sono,
não é?
— Como você está? —
questionei, sério, porque ainda não tínhamos falado sobre a partida de Rio,
depois de ele e Céu terem passado um mês conosco. — Sei que ele prometeu voltar
logo, mas deve ter sido difícil se despedir. Quer dizer, por causa do seu
irmão...
— Não foi difícil.
Meu irmãozinho já partiu. Essa parte não fica mais fácil, mas já lidei com ela.
Esse tempo todo eu queria apenas conhecer Rio. E foi bom. Gostei dele.
— Vocês ficaram um
bom tempo conversando.
— Sim, ele é uma figura
interessante. Mal conheceu a fazenda e já estava fazendo planos para otimizar a
irrigação. É um dos motivos para voltar logo.
— É o trabalho dele
— lembrei, embora Jeb já soubesse disso. — O Instituto de Albuquerque é
especializado em sustentabilidade no uso dos recursos hídricos.
— Rio me ensinou
muito sobre isso. E foi interessante e assustador ao mesmo tempo. Me assustou
muito perceber quanta água desperdiçávamos nos velhos tempos. Poluição,
encanamentos de esgoto e abastecimento quebrados ou construídos da forma
errada, excesso de irrigação quando bastava apenas mudar o tipo de cultura para
outra mais resistente, o mau uso nas indústrias... E eram tantas indústrias
explorando tudo! A crise hídrica era iminente. Muitos países ficariam sem água
e, claro, sem agricultura. Teria sido uma guerra terrível. Nessas horas entendo
que a raça humana teria acabado de qualquer jeito.
— Infelizmente,
concordo com você.
— Bem, não acabou.
Alguns de nós ainda estão aqui. E agora estamos juntos. — Ele me sorriu,
apertando meu ombro. — Em boa parte, graças ao trabalho que você vem fazendo.
— Não fiz nada
sozinho. Fizemos tudo juntos, cada um ajudando de uma forma.
— Sim, eu sei. Mas
hoje me despedi de um novo amigo que me faz lembrar meu irmão. Um pouco da
saudade que eu sentia pôde desaparecer para sempre. Jamie agora tem o gosto de
rever os pais quando quiser. Melanie se reconciliou com seu senso de família.
E, por fim, Magnólia sorriu mais nesse mês que passou do que na última década
inteira. Gosto de pensar no quanto meu filho é responsável por tudo isso. Você
me deu uma família, Logan. Uma que não está mais quebrada.
— Você também me
deu uma família, pai.
A mão em meu ombro
me puxou para um meio abraço, daqueles desajeitados que agora costumava me dar.
Estendi meus braços e completei o gesto dele, unindo-nos num abraço decente.
Quando nos soltamos, senti os habituais tapinhas no rosto, que era um dos
jeitos de Jeb dizer que estava feliz e orgulhoso.
— O que você acha
que Rio e Céu vão fazer? — perguntei.
Terra Sonora, o
companheiro de Céu, tinha vindo também depois de alguns dias, e todos se deram
muito bem. Como Confortadores, eles tinham demonstrado imenso interesse em
aprender com nossa comunidade. Quanto a Rio, em pouco tempo ele desenvolvera
laços significativos com todos da família de Trevor, além de uma grande amizade
com Doc. Então achei que não fosse demais imaginar que poderiam querer criar
raízes aqui, apesar de seus compromissos profissionais os chamarem de volta por
uns tempos.
— Acho que serão
visitas constantes, mas eles têm uma vida fora daqui. E, de qualquer jeito, Mel
e Jamie concordaram em não esperar nada além disso. — Então ele olhou para mim,
ciente das minhas expectativas. — Sempre soubemos que as experiências não
seriam iguais para todo mundo — completou, antes que eu pudesse usar as
escolhas de Paddy como argumento.
— É só um anseio
meio ingênuo de ver todo mundo feliz — expliquei.
— Todo mundo está
feliz, filho. As pessoas podem continuar juntas, mesmo que estejam fisicamente
separadas.
— Eu sei. — Ri. —
Como disse, foi só um impulso ingênuo.
Às vezes, na frente
de meu pai, eu me comportava como se soubesse bem menos deste mundo do que
realmente sei.
— Se fosse no mundo
de antes, provavelmente estariam um para cada lado também. Mel e Jamie teriam
ido para a faculdade, talvez encontrado empregos em outras cidades...
— É — confirmei, só
para demonstrar que tinha entendido o ponto dele. Depois ficamos contemplando o
horizonte por alguns segundos. Pensando. Fazíamos muito isso em nossas
conversas. Pensar juntos. — Não sei como vou me sentir se algum dia Lindsay e
John quiserem sair daqui.
Jeb olhou para mim,
uma expressão solidária no rosto.
— Até lá, se for o
caso, o tempo vai preparar sua cabeça. Mas admito que também não vou gostar.
Acho que é inevitável querer mantê-los perto. Quando você teve a ideia de se
infiltrar nos Conselhos, pensei que...
— Eu não deixaria
meus amigos. Jamais deixaria você — interrompi.
— Talvez não de
imediato, mas quem sabe quanto tempo as missões poderiam levar? Naquela época
era tudo incerteza. E, eventualmente, poderia se tornar mais fácil, ou
necessário, se estabelecer em outro lugar.
— Você já tinha a
ideia de que eu podia ser seu filho.
— Independente
disso, eu sentiria falta de vocês.
— Bem, você nunca
vai precisar se preocupar, pelo menos no que diz respeito a mim e a Estrela.
— Todo mundo se
separa um dia. É apenas natural, Logan — ele falou e minha expressão se fechou
de imediato.
Eu simplesmente
odiava quando Jeb entrava nesse assunto. Voltei a fitar o céu. De repente, a
finitude da Terra tinha voltado a me incomodar.
— Os tratamentos...
— comecei, mas ele me interrompeu.
— Não foram
projetados para nos fazer viver para sempre.
— Alguns precisam
partir para outros nascerem, eu sei. — Soltei uma risada amarga, lembrando do
que Kyle me dissera uma vez, com toda a delicadeza que lhe era peculiar:
“Humanos só têm um planeta para povoar, otário!”— Só não preciso fingir que não
me importo.
— Claro que não. A
gente sempre vai se importar. Mas com o tempo, imagino que até mesmo quem pode
viver para sempre entenda que não vale a pena. Por isso as Almas não tornaram o
corpo humano imortal. Creio que eles até poderiam, se quisessem. Mas sabem que
não deve ser assim.
— O que quer dizer?
— Que se não
morrermos, quem morre é Deus. A morte é a única coisa que tememos, que dá
perspectiva para os valores que construímos. Se vivêssemos sabendo que não há
limites para o que podemos conquistar, o valor das coisas se perderia.
Assenti,
conformado. Não havia como discutir essa lógica. Até mesmo a minha espécie precisava
considerar o término de cada ciclo. E, eventualmente, a possibilidade de um
remate para nossas vidas. Aqui na Terra, muitos como eu passaram a ver esse
momento como uma inevitabilidade tão absoluta quanto para os humanos. Eu não
queria viver mais do que Lindsay, por exemplo. Por ela, eu precisei me tornar
humano no que há de mais intrínseco à vida: o caminhar para a morte.
— Você tem razão —
admiti. — Mas não precisamos falar disso agora. Não gosto desse assunto.
— Não, não
precisamos falar. Só me prometa que quando chegar a hora de lidar com isso você
vai se lembrar que é um preço que compensa.
Ser parte de uma
família, de um grupo. Amar e ser amado. Eu aprendi essas coisas aqui. Neste
planeta. E para onde quer que vá minha consciência quando este corpo perecer,
se é que essa parte de mim vai continuar e seguir para o cosmo ou qualquer
outro lugar, amor estará na minha constituição. Porque na Terra foi onde
encontrei meu coração.
— Eu vou ficar bem,
pai. Você pode ficar tranquilo. Um único dia com vocês já valeria qualquer
coisa. É como Peg diz, há uma balança, mas ser parte disso que vivemos faz com
que ela penda sempre a meu favor.
Jeb me observou em
silêncio, analisando minhas palavras. Depois sorriu e estendeu a mão para
bagunçar meu cabelo como se eu fosse um garoto.
— O que é aquele
pacote mal-acabado que você trouxe ali? — perguntou, indicando que já tinha se
dado por satisfeito no que dizia respeito aos assuntos sérios.
Dirigi o olhar ao
pacote deixado ao pé da escada, esquecido, e gargalhei pelo “mal-acabado”,
porque estava mesmo. Na pressa de pegar Jeb acordado, eu tinha apenas apanhado
um punhado de papel pardo e enrolado em torno da madeira. Desci a escada e o
trouxe para cima, entregando-o nas mãos do destinatário.
— É uma coisa que
fiz para você. Quer dizer, para todos nós. Notei que precisava quando trouxe
Rio e Céu para a fazenda.
Removendo o papel,
Jeb revelou uma placa de madeira com as palavras “Fazenda Stryder” desenhadas
com um aparelho chamado pirógrafo. Não tinha havido um batizado formal, mas era
dessa forma que todos tínhamos nos referido à nossa nova casa desde o começo.
Simplesmente pareceu natural. Abaixo do nome, coloquei a imagem mais caprichada
em que consegui pensar.
— Uma mandala? —
ele perguntou, e me surpreendi que Jeb soubesse como se chamava o intrincado
traçado de círculos concêntricos. Eu não sabia ao certo se era uma desenho
comum.
— Eu queria algo
que fosse legal e tivesse significado. Então pesquisei e descobri que mandalas
simbolizam harmonia e integração. Achei que combinava com este lugar.
— Combina muito,
filho. Obrigado — disse, sorrindo, sem levantar os olhos da imagem.
Então se sentou
numa das cadeiras da varanda, com a placa sobre os joelhos, fazendo sinal para
que eu também me sentasse.
— Não sabia que
você estava aprendendo a fazer isso — observou enquanto eu me acomodava ao seu
lado, por certo referindo-se à pirografia.
— Estou
experimentando técnicas. Sempre gostei de todo tipo de arte, mas tenho que
confessar que era arrogante e perfeccionista demais para tentar aprender alguma
coisa. Agora Estrela tem nos ensinado a desenhar e tive que ser humilde, porque
é óbvio que os desenhos de Lindsay com guache são muito melhores que qualquer
coisa que eu faça.
— É óbvio — ele
reconheceu, soltando uma gargalhada que acompanhei. — Amanhã vamos juntos até a
entrada para colocar a placa. Leve a Lindy. Podemos passar e pegar John também.
Acho que eles devem participar do momento solene.
— Claro — falei.
Depois fiquei pensando sobre aquilo.
“Momento solene”.
Jeb falou em tom de
brincadeira, mas acho que ele tinha uma certa razão na escolha da palavra.
Porque parecia uma coisa simples. Colocar uma placa sinalizando a entrada de
nossa casa. O nome de Jeb escrito nela, nos identificando. Parecia simples. Mas
não era. Queria dizer muito.
— Você já tinha
pensado que uma coisa assim pudesse acontecer? — questionei.
Com as sobrancelhas
arqueadas e uma resignação admirada, ele me respondeu:
— Para ser sincero,
não pensei que nada disso pudesse acontecer. É o futuro que nos
esperava, filho. E você nos trouxe até ele.
— Já disse que não
fiz nada sozinho.
— É claro que não.
Esse é o princípio da coisa, afinal. De qualquer jeito, obrigado.
Senti seus tapinhas
nas costas da minha mão, aquela que estava sobre o braço da cadeira. Olhei para
ele e sorri, encarando os olhos vivos e sábios de meu pai, sentindo meu coração
se expandir no processo.
Depois voltamos a
contemplar juntos a linha do horizonte, bem lá onde a terra se unia ao céu.
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