sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

CD2 Cap 20

Capítulo 20 — A Velha Arte de Ruminar

In the days of my youth, I was told what it means to be a man,
Now I've reached that age, I've tried to do all those things the best I can.
No matter how I try, I find my way into the same old jam.
(...)
I know what it means to be alone, I sure do wish I was at home.
I don't care what the neighbors say, I'm gonna love you each and every day.

(Good times bad times – Led Zeppelin)

Jeb

            As provas estavam todas diante de mim e a conclusão era inevitável: eu tinha mesmo virado um velho bundão. Você nunca analisa esse tipo de coisa, nunca leva muito a sério, a menos que esteja acontecendo com você, mas agora eu estava sendo obrigado a encarar a verdade. E apesar de eu precisar disso tanto quanto de uma dor de dente, a coisa toda de ter sentimentos estava finalmente me atingindo.
            Já ouvi dizer que envelhecer traz consequências estranhas para personalidades irrequietas, que ou você se torna uma versão amplificada do mesmo tipo de cabeça dura de sempre, ou você começa a mudar de maneiras que não esperava. Acho que peguei um pouco das duas hipóteses, mas, no fim, o que me assusta é o quanto acabei me apegando às pessoas daqui como se fossem uma família pela qual sou responsável. Eu, o velho e orgulhoso lobo solitário que sempre achou que a vida era mais simples sem alcateias.
Então, com o passar dos anos — especialmente dos últimos —, a solidão passou de fardo inteligente para um estorvo insustentável. Era certo que o “fim do mundo” tinha contribuído para isso; quer dizer, não dá para ficar preso ao último quinhão de humanos que povoam o planeta e não se apegar a eles; mas aí tinha a outra parte. O outro lado que não era mais outro lado, e que, no entanto, agora estava exatamente lá, fora do meu alcance.

Não ter que cruzar com Logan todos os dias tinha até seu lado bom. Pelo menos me dava tempo de colocar a cabeça no lugar e analisar tudo mais friamente antes de dizer qualquer coisa precipitada. Todo o episódio envolvendo o “susto” tinha sido muito estressante para nós dois, e a verdade que eu não confessaria tão cedo era que o cérebro dele não era o único que tinha ficado cheio de caraminholas com as quais eu precisava lidar. O meu também tinha se enchido de memórias esquecidas e fantasmas do passado, mas na verdade, se eu tivesse que ser honesto comigo mesmo, precisaria admitir que foi um pouco antes de sermos “vizinhos de cachola” que a coisa aconteceu.
Tudo começou com aquela música.
A tal musiquinha que Logan e Estrela usavam para ninar Lindsay não era, na verdade, uma canção de ninar. Era uma canção antiga e pouco conhecida que meu pai gostava de cantar para nós e que eu costumava cantarolar para Norah quando estávamos juntos, porque achava que combinava com ela.
Claro que isso não queria dizer nada. Meu pai não tinha composto a música, afinal, e não era impossível que o Logan humano a tivesse simplesmente aprendido em algum disco velho ou com algum maluco preciosista que tivesse cruzado seu caminho na infância. O fato de que o Logan de hoje não guardasse lembrança alguma a respeito não significava que a explicação não pudesse ser simples.
Além disso, naquela noite eu não estava em meu melhor, obviamente, e os momentos anteriores ao meu desmaio eram meio nublados em minha memória. De maneira que a impressão que tive de que a voz dele era parecida demais com a de meu pai talvez não passasse de um devaneio. Assim como existiam diversas explicações para os olhos de Logan serem iguais aos de minha mãe e seu sorriso me lembrar o de Norah às vezes. Explicações existiam às milhares, por certo. E a mais lúcida delas era que eu estava me deixando contaminar pelo quanto gostava dele. Pelo quanto, desde o início, sempre imaginei que se tivesse um filho...
Não! Isso era apenas a velhice e a proximidade da morte fazendo seu trabalho de me pôr a lamentar o que nunca me importei de ter deixado para trás. A vida não era nenhuma droga de novela onde coincidências absurdas aconteciam, por isso eu esperava que tudo não passasse de algum efeito do agravamento natural da minha maluquice costumeira.
No entanto, isso não diminuía a falta que ele e as meninas me faziam e, depois de tudo, saber que uma parte importante da família torta que construímos aqui estava longe era uma fonte diária de preocupações e ansiedade. Tudo por causa da teimosia daquele moleque em provar suas teorias impossíveis.
Se bem que “impossíveis” não era bem a palavra. Eu não podia ser assim tão cínico a ponto de me esquecer de minhas próprias conversas com Nate sobre a possibilidade — ainda que remota — de uma convivência pacífica entre Almas e humanos. Talvez fosse tudo altamente improvável para um futuro próximo, mas o esforço de Logan e Estrela era muito válido de qualquer jeito. Por isso, quando vi que não conseguiria dissuadi-los e que a ideia já tinha ganhado a adesão da maioria, tentei dar todo meu apoio. Mesmo assim, não me senti melhor quanto a tê-lo longe.
Eu não sabia se conversaria com ele a respeito das minhas suspeitas malucas, muito menos, se caso um dia chegasse a fazê-lo, como seria, que palavras usaria, que reações esperaria... Mas de uma coisa eu tinha certeza: por mais que eu amasse este Logan que eu conhecia — porque sim, eu amava, embora essa não fosse uma palavra que eu usasse com muita frequência, era verdade —, havia o outro. Aquele que eu não tive a oportunidade de conhecer e nem teria. Mas no qual eu agora sentia necessidade de pensar.
— Não entendo por que de repente esse assunto te interessou tanto — reclamou Candy, tentando não parecer aborrecida por causa do excesso de perguntas que eu andava lhe fazendo sobre suas lembranças da época em que foi suprimida. — Por que não pergunta para Melanie? Ela tem melhores condições de te esclarecer do que eu.
Eu não tinha a menor intenção de incomodar Candy. A bem da verdade, a mulher era tão gentil que a ideia de a perturbar já estava se tornando quase indigesta, mas eu não podia perguntar a Mel o que queria saber. Porque Mel era uma sobrevivente e eu sabia muito bem como era o exercício de resistir à supressão, eu mesmo já tinha feito isso, ainda que aos trancos e barrancos. O que me atormentava a mente era o que acontecia com quem não conseguia.
            — Desculpe, Candy. Sei que você não gosta de falar nisso, mas é que eu acho que... Bom, a experiência de Mel foi bem diferente da sua.
            — Tem Lacey também.
            E os coiotes lá fora, mas eu bem que poderia deixar cada um em seu canto e viver em paz!
            — Lacey não é tão má assim — ela emendou, lendo meus pensamentos. Ou mais provavelmente minha expressão de quem preferia um tratamento de canal.
            — Eu sei — menti. — Mas me sinto mais confortável falando com você. Ninguém aqui gosta de trazer à tona a maneira como Lacey chegou até nós.
            — Tudo bem. — Candy finalmente se rendeu. — Do que você se lembra?
            — Não me lembro de muita coisa. Acho que acordei primeiro depois que houve a inserção. Logan estava mais confuso que eu no começo, mas depois ele foi ficando mais lúcido. Nós nos mantivemos conversando, porque meu corpo estava fraco e a vontade de ceder à supressão ficava maior a cada minuto.
            — É, eu sei. Eu me lembro disso também. É quase como ter que manter os olhos abertos quando você precisa muito piscar.
            A definição era simples, mas ainda assim precisa, e quando Candy sorriu para mim de forma compreensiva, percebi que gostava de sua linha de pensamento. E também que a danada tinha um sorriso bonito. Porque, aparentemente, eu agora era do tipo que reparava nessas coisas.
            — Exatamente isso —  confirmei. — E depois eu acho que desmaiei. Então passei um tempo tendo uns sonhos esquisitos, como se estivesse dormindo, até que simplesmente comecei a perceber o ambiente ao meu redor de novo...
            — Depois seu corpo e, finalmente, seus movimentos. Comigo também foi assim, só que provavelmente muito mais devagar por causa do tempo de supressão.
            — Era aí que eu queria chegar. Você ficou anos... — Dispersa dentro de si mesma? Eu não sabia como definir, na verdade. Felizmente, ela pareceu me entender. — Você se lembra de alguma coisa? Estava acordada como Mel?
            Candy pensou um pouco, o que acabava sendo meio inesperado, porque era de se imaginar que depois de todo esse tempo ela tivesse feito isso muito vezes, isto é, pensar a respeito de seus anos “fora de si”. Mas, aparentemente, ela não tinha nenhuma resposta na ponta da língua.
            — Eu sempre achei que não estivesse — disse, finalmente. — Se você me fizesse essa mesma pergunta tempos atrás eu diria, sem sombra de dúvida, que não, não estava acordada. Mas o que aconteceu com você me impressionou um bocado, sabe? Vocês sempre foram discretos, mas eu convivo muito com Doc e Estrela, e assim acabei ouvindo coisas... Então comecei a pensar em minha própria experiência e percebi que tenho lembranças. No começo, eu nem tinha muita certeza se eram realmente isso ou se eram sonhos que tive depois, mas agora sei que eram memórias mesmo. Não é nada muito específico, mas o fato é que já não posso dizer se eu estava dormindo o tempo todo, como antes pensei que estava.
            — E essas lembranças se relacionam a quê?
            — A coisas que eram importantes para mim antigamente, mesmo que agora eu me sinta completamente mudada. — Algo em minha expressão deve ter denunciado minha confusão, porque Candy se apressou em me esclarecer. — Eu era uma pessoa muito rígida antes de tudo isso acontecer. Tinha uma religião e certezas muito específicas que eu não mudaria por nada, um mundo perfeitamente quadrado que não admitia curvas ou arestas sem aparar. Agora já não consigo mais ser assim, mas não é só porque certeza nenhuma cabe nesta nova realidade, e sim porque acho que um pouco de Verana ficou em mim. Ou muito, na verdade.
            Muitas vezes, Logan e eu falamos sobre isso, sobre o fato de ele e o humano terem, de certa forma, se fundido em um só. Por isso o que Candy estava me contando fazia todo sentido, mas ainda não me ajudava a chegar a nenhuma conclusão, porque o que eu queria mesmo saber, por mais que me custasse admitir, era como e por quanto tempo um humano poderia sobreviver depois da inserção.
            — Não estou certo de que entendi, Candy. Sobre as lembranças... Você acha que foram elas que te ajudaram a sobreviver?
            — Sim, é minha única explicação. Quando eu digo que mudei, você não entende a dimensão do quanto, mas comparando minha experiência com a de Melanie eu tenho certeza de que fiquei por causa do meu marido.       — Você era casada?
            Fiquei surpreso por não saber disso. Afinal, nós todos conversamos muito por aqui, considerando que em muitos dias é só o que temos para fazer. Não sou exatamente um modelo de livro aberto, mas acho que um laço forte o suficiente para mantê-la viva era algo que valeria a pena ser mencionado. Mesmo que eu não estivesse entre seus amigos mais chegados.
            — Eu fui, mas não faço ideia de onde ele esteja agora. Aparentemente, não aconteceu com Verana aquilo que acontece com muitas Almas, de sentirem uma identificação com os parceiros de seus hospedeiros, e ele deve ter ido para outro canto.
            — Sinto muito.
            — Não é de se espantar, ele não me amava e não era um casamento feliz — ela completou, como se me dissesse que eu não precisava lhe dar as condolências. — Mas eu estava presa a ele, não admitia a possibilidade de separação. E é por isso que digo que mudei muito. Porque desde que abri os olhos eu soube que, mesmo que isso fosse possível, eu jamais voltaria para um relacionamento abusivo como aquele.
            Abusivo. A palavra me picou como uma punhalada. Não havia equívoco possível quanto ao que ela queria dizer e meu estômago se revoltou de ódio, porque eu queria poder arrebentar a cara de um sujeito como que não respeitava mulheres e crianças, mesmo que todos eles tivessem ficado no passado e agora provavelmente fossem Alminhas amigáveis.
A ausência desses canalhas era uma vantagem inegável do fim do mundo conhecido, mas ao mesmo tempo me causava uma frustração egoísta por não poder fazer a justiça tardia pela qual eu ansiava. Desde que soube do passado de Logan, lidar com a raiva estava sendo... Bom, o maior desafio dentre os desafios. O estômago embrulhado era resultado de ter que engolir todas as coisas amargas que passavam por minha cabeça cada vez que pensava no assunto. Mas era melhor guardar essa parte para mim.
— Mais uma vez, sinto muito — falei, forçando-me a deixar minha revolta de lado. Mexer nessas lembranças devia ser muito doloroso para ela, e meu desconforto perdia a importância diante disso. — Queria que você não tivesse passado por algo assim.
— Eu também, mas já me perdoei meu passado — ela respondeu. Em seguida, a atmosfera pareceu pesar um pouco e Candy resolveu fingir que os livros de Doc sobre a mesa estavam em completa desordem, precisando de sua total atenção. — Bem — suspirou, sorrindo em seguida — , consegui responder o que você queria saber?
Sim.
E não.
Eu não sabia bem o que estava esperando ouvir, porque, afinal, nada daquilo era exatamente novo para mim. A experiência de Candy tinha mostrado apenas que era possível sobreviver à supressão, da mesma forma que a da Sunny deixava evidente que nem sempre era esse o caso, mesmo que uma menina como Jodi tivesse muito a que se prender. Portanto, se havia algum critério que definisse quem tinha chances, ele não era nada óbvio. Talvez se fosse a teimosia o Logan humano ainda estivesse lá dentro, mas o que significaria se fosse esse o caso? E se não fosse?
— Você sofreu? Digo, enquanto Verana esteve no seu corpo?
— Não. Como eu disse, era como se eu estivesse dormindo. Não foi assim com você?
— Foi exatamente assim — confirmei, mais para encerrar o assunto e não correr o risco de que ela fizesse outras perguntas.  Não era justo depois que eu tinha feito as minhas, mas eu podia viver com essa injustiça, especificamente. — Obrigado por me aguentar, Candy. É que esse é um assunto difícil de conversar com outra pessoa que não seja o Logan, e como ele não está aqui...
— Você sente falta dele, não é?
E bem de acordo com o esperado, aqui estava uma pergunta que eu não queria responder. Não porque eu não soubesse a resposta. A maioria das perguntas que não gostamos de responder são aquelas cujas respostas estão na ponta de nossa língua. Era só porque eu não tinha engolido ainda o quanto eu tinha me tornado egoísta nos últimos tempos, disfarçando minha vontade de tê-lo por perto — mesmo que fosse para esquentar minha cabeça com suspeitas que eu não tinha como confirmar —  com uma preocupação meio injustificada com a segurança do grupo.
“Confie em mim, Jeb”, disse Logan na manhã em que partiu. “O único risco que há vai ser voltarmos de mãos vazias.”
E então ele riu, daquele jeito que fazia minhas preocupações parecerem meras excentricidades. Do jeito que Norah ria. E quando eu quis abraçá-lo em despedida, não consegui. Simplesmente deixei-o ir. Com um tapinha nas costas e um punhado de advertências de cuidado.
— Claro — respondi, tentando manter um tom neutro.
— Claro — Candy repetiu, e em seguida sorriu, cheia de mistérios como se entendesse. — Eu... nunca falei sobre meu marido com ninguém...
— Vou guardar segredo! — apressei-me em dizer.
— Só queria dizer obrigada. Foi bom conversar. Mas tenho que ir ajudar com o jantar agora, prometi a Paige.
— Tudo bem — resmunguei sem graça pela falta do que dizer.
Na porta do hospital, Candy se voltou para mim, e pela primeira vez enxerguei uma amiga nela.
— Você é um homem bom, Jeb. As pessoas fazem bem em confiar em você. Talvez você pudesse confiar um pouco nelas também.
E com essas palavras dignas de serem ruminadas e digeridas, Candy saiu para cuidar do jantar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentem e façam uma Autora Feliz!!!

Visitas ao Amigas Fanfics

Entre a Luz e as Sombras

Entre a luz e a sombras. Confira já.