Capítulo 20 — A Velha Arte de Ruminar
In the days of my youth, I was told what it means to be a man,
Now I've reached that age, I've tried to do all those things the best I
can.
No matter how I try, I find my way into the same old jam.
(...)
I know what it means to be alone, I sure do wish I was at home.
I don't care what the neighbors say, I'm gonna love you each and every day.
(Good times bad times – Led Zeppelin)
Jeb
As
provas estavam todas diante de mim e a conclusão era inevitável: eu tinha mesmo
virado um velho bundão. Você nunca analisa esse tipo de coisa, nunca leva muito
a sério, a menos que esteja acontecendo com você, mas agora eu estava sendo
obrigado a encarar a verdade. E apesar de eu precisar disso tanto quanto de uma
dor de dente, a coisa toda de ter sentimentos estava finalmente me atingindo.
Já
ouvi dizer que envelhecer traz consequências estranhas para personalidades
irrequietas, que ou você se torna uma versão amplificada do mesmo tipo de
cabeça dura de sempre, ou você começa a mudar de maneiras que não esperava.
Acho que peguei um pouco das duas hipóteses, mas, no fim, o que me assusta é o
quanto acabei me apegando às pessoas daqui como se fossem uma família pela qual
sou responsável. Eu, o velho e orgulhoso lobo solitário que sempre achou que a
vida era mais simples sem alcateias.
Então, com o passar dos
anos — especialmente dos últimos —, a solidão passou de fardo inteligente para
um estorvo insustentável. Era certo que o “fim do mundo” tinha contribuído para
isso; quer dizer, não dá para ficar preso ao último quinhão de humanos que
povoam o planeta e não se apegar a eles; mas aí tinha a outra parte. O outro lado
que não era mais outro lado, e que, no entanto, agora estava exatamente lá,
fora do meu alcance.
Não ter que cruzar com
Logan todos os dias tinha até seu lado bom. Pelo menos me dava tempo de colocar
a cabeça no lugar e analisar tudo mais friamente antes de dizer qualquer coisa
precipitada. Todo o episódio envolvendo o “susto” tinha sido muito estressante
para nós dois, e a verdade que eu não confessaria tão cedo era que o cérebro
dele não era o único que tinha ficado cheio de caraminholas com as quais eu
precisava lidar. O meu também tinha se enchido de memórias esquecidas e
fantasmas do passado, mas na verdade, se eu tivesse que ser honesto comigo
mesmo, precisaria admitir que foi um pouco antes de sermos “vizinhos de
cachola” que a coisa aconteceu.
Tudo começou com aquela
música.
A tal musiquinha que
Logan e Estrela usavam para ninar Lindsay não era, na verdade, uma canção de
ninar. Era uma canção antiga e pouco conhecida que meu pai gostava de cantar
para nós e que eu costumava cantarolar para Norah quando estávamos juntos,
porque achava que combinava com ela.
Claro que isso não queria
dizer nada. Meu pai não tinha composto a música, afinal, e não era impossível
que o Logan humano a tivesse simplesmente aprendido em algum disco velho ou com
algum maluco preciosista que tivesse cruzado seu caminho na infância. O fato de
que o Logan de hoje não guardasse lembrança alguma a respeito não significava
que a explicação não pudesse ser simples.
Além disso, naquela noite
eu não estava em meu melhor, obviamente, e os momentos anteriores ao meu
desmaio eram meio nublados em minha memória. De maneira que a impressão que
tive de que a voz dele era parecida demais com a de meu pai talvez não passasse
de um devaneio. Assim como existiam diversas explicações para os olhos de Logan
serem iguais aos de minha mãe e seu sorriso me lembrar o de Norah às vezes.
Explicações existiam às milhares, por certo. E a mais lúcida delas era que eu
estava me deixando contaminar pelo quanto gostava dele. Pelo quanto, desde o
início, sempre imaginei que se tivesse um filho...
Não! Isso era apenas a
velhice e a proximidade da morte fazendo seu trabalho de me pôr a lamentar o
que nunca me importei de ter deixado para trás. A vida não era nenhuma droga de
novela onde coincidências absurdas aconteciam, por isso eu esperava que tudo não
passasse de algum efeito do agravamento natural da minha maluquice costumeira.
No entanto, isso não
diminuía a falta que ele e as meninas me faziam e, depois de tudo, saber que
uma parte importante da família torta que construímos aqui estava longe era uma
fonte diária de preocupações e ansiedade. Tudo por causa da teimosia daquele
moleque em provar suas teorias impossíveis.
Se bem que “impossíveis”
não era bem a palavra. Eu não podia ser assim tão cínico a ponto de me esquecer
de minhas próprias conversas com Nate sobre a possibilidade — ainda que remota
— de uma convivência pacífica entre Almas e humanos. Talvez fosse tudo
altamente improvável para um futuro próximo, mas o esforço de Logan e Estrela
era muito válido de qualquer jeito. Por isso, quando vi que não conseguiria
dissuadi-los e que a ideia já tinha ganhado a adesão da maioria, tentei dar
todo meu apoio. Mesmo assim, não me senti melhor quanto a tê-lo longe.
Eu não sabia se
conversaria com ele a respeito das minhas suspeitas malucas, muito menos, se
caso um dia chegasse a fazê-lo, como seria, que palavras usaria, que reações
esperaria... Mas de uma coisa eu tinha certeza: por mais que eu amasse este
Logan que eu conhecia — porque sim, eu amava, embora essa não fosse uma palavra
que eu usasse com muita frequência, era verdade —, havia o outro. Aquele que eu
não tive a oportunidade de conhecer e nem teria. Mas no qual eu agora sentia
necessidade de pensar.
— Não entendo por que de
repente esse assunto te interessou tanto — reclamou Candy, tentando não parecer
aborrecida por causa do excesso de perguntas que eu andava lhe fazendo sobre
suas lembranças da época em que foi suprimida. — Por que não pergunta para
Melanie? Ela tem melhores condições de te esclarecer do que eu.
Eu não tinha a menor intenção
de incomodar Candy. A bem da verdade, a mulher era tão gentil que a ideia de a
perturbar já estava se tornando quase indigesta, mas eu não podia perguntar a
Mel o que queria saber. Porque Mel era uma sobrevivente e eu sabia muito bem
como era o exercício de resistir à supressão, eu mesmo já tinha feito isso,
ainda que aos trancos e barrancos. O que me atormentava a mente era o que
acontecia com quem não conseguia.
—
Desculpe, Candy. Sei que você não gosta de falar nisso, mas é que eu acho
que... Bom, a experiência de Mel foi bem diferente da sua.
—
Tem Lacey também.
E os coiotes lá fora, mas eu bem que poderia
deixar cada um em seu canto e viver em paz!
—
Lacey não é tão má assim — ela emendou, lendo meus pensamentos. Ou mais
provavelmente minha expressão de quem preferia um tratamento de canal.
—
Eu sei — menti. — Mas me sinto mais confortável falando com você. Ninguém aqui
gosta de trazer à tona a maneira como Lacey chegou até nós.
—
Tudo bem. — Candy finalmente se rendeu. — Do que você se lembra?
—
Não me lembro de muita coisa. Acho que acordei primeiro depois que houve a
inserção. Logan estava mais confuso que eu no começo, mas depois ele foi
ficando mais lúcido. Nós nos mantivemos conversando, porque meu corpo estava
fraco e a vontade de ceder à supressão ficava maior a cada minuto.
—
É, eu sei. Eu me lembro disso também. É quase como ter que manter os olhos
abertos quando você precisa muito piscar.
A
definição era simples, mas ainda assim precisa, e quando Candy sorriu para mim
de forma compreensiva, percebi que gostava de sua linha de pensamento. E também
que a danada tinha um sorriso bonito. Porque, aparentemente, eu agora era do
tipo que reparava nessas coisas.
—
Exatamente isso — confirmei. — E depois
eu acho que desmaiei. Então passei um tempo tendo uns sonhos esquisitos, como
se estivesse dormindo, até que simplesmente comecei a perceber o ambiente ao
meu redor de novo...
—
Depois seu corpo e, finalmente, seus movimentos. Comigo também foi assim, só
que provavelmente muito mais devagar por causa do tempo de supressão.
—
Era aí que eu queria chegar. Você ficou anos... — Dispersa dentro de si mesma?
Eu não sabia como definir, na verdade. Felizmente, ela pareceu me entender. —
Você se lembra de alguma coisa? Estava acordada como Mel?
Candy
pensou um pouco, o que acabava sendo meio inesperado, porque era de se imaginar
que depois de todo esse tempo ela tivesse feito isso muito vezes, isto é,
pensar a respeito de seus anos “fora de si”. Mas, aparentemente, ela não tinha
nenhuma resposta na ponta da língua.
—
Eu sempre achei que não estivesse — disse, finalmente. — Se você me fizesse
essa mesma pergunta tempos atrás eu diria, sem sombra de dúvida, que não, não
estava acordada. Mas o que aconteceu com você me impressionou um bocado, sabe?
Vocês sempre foram discretos, mas eu convivo muito com Doc e Estrela, e assim
acabei ouvindo coisas... Então comecei a pensar em minha própria experiência e
percebi que tenho lembranças. No começo, eu nem tinha muita certeza se eram
realmente isso ou se eram sonhos que tive depois, mas agora sei que eram
memórias mesmo. Não é nada muito específico, mas o fato é que já não posso
dizer se eu estava dormindo o tempo todo, como antes pensei que estava.
—
E essas lembranças se relacionam a quê?
—
A coisas que eram importantes para mim antigamente, mesmo que agora eu me sinta
completamente mudada. — Algo em minha expressão deve ter denunciado minha
confusão, porque Candy se apressou em me esclarecer. — Eu era uma pessoa muito
rígida antes de tudo isso acontecer. Tinha uma religião e certezas muito
específicas que eu não mudaria por nada, um mundo perfeitamente quadrado que
não admitia curvas ou arestas sem aparar. Agora já não consigo mais ser assim,
mas não é só porque certeza nenhuma cabe nesta nova realidade, e sim porque
acho que um pouco de Verana ficou em mim. Ou muito, na verdade.
Muitas
vezes, Logan e eu falamos sobre isso, sobre o fato de ele e o humano terem, de
certa forma, se fundido em um só. Por isso o que Candy estava me contando fazia
todo sentido, mas ainda não me ajudava a chegar a nenhuma conclusão, porque o
que eu queria mesmo saber, por mais que me custasse admitir, era como e por
quanto tempo um humano poderia sobreviver depois da inserção.
—
Não estou certo de que entendi, Candy. Sobre as lembranças... Você acha que
foram elas que te ajudaram a sobreviver?
—
Sim, é minha única explicação. Quando eu digo que mudei, você não entende a
dimensão do quanto, mas comparando minha experiência com a de Melanie eu tenho
certeza de que fiquei por causa do meu marido. —
Você era casada?
Fiquei
surpreso por não saber disso. Afinal, nós todos conversamos muito por aqui,
considerando que em muitos dias é só o que temos para fazer. Não sou exatamente
um modelo de livro aberto, mas acho que um laço forte o suficiente para mantê-la
viva era algo que valeria a pena ser mencionado. Mesmo que eu não estivesse
entre seus amigos mais chegados.
—
Eu fui, mas não faço ideia de onde ele esteja agora. Aparentemente, não
aconteceu com Verana aquilo que acontece com muitas Almas, de sentirem uma
identificação com os parceiros de seus hospedeiros, e ele deve ter ido para
outro canto.
—
Sinto muito.
—
Não é de se espantar, ele não me amava e não era um casamento feliz — ela
completou, como se me dissesse que eu não precisava lhe dar as condolências. —
Mas eu estava presa a ele, não admitia a possibilidade de separação. E é por
isso que digo que mudei muito. Porque desde que abri os olhos eu soube que,
mesmo que isso fosse possível, eu jamais voltaria para um relacionamento
abusivo como aquele.
Abusivo.
A palavra me picou como uma punhalada. Não havia equívoco possível quanto ao
que ela queria dizer e meu estômago se revoltou de ódio, porque eu queria poder
arrebentar a cara de um sujeito como que não respeitava mulheres e crianças,
mesmo que todos eles tivessem ficado no passado e agora provavelmente fossem
Alminhas amigáveis.
A ausência desses
canalhas era uma vantagem inegável do fim do mundo conhecido, mas ao mesmo
tempo me causava uma frustração egoísta por não poder fazer a justiça tardia
pela qual eu ansiava. Desde que soube do passado de Logan, lidar com a raiva
estava sendo... Bom, o maior desafio dentre os desafios. O estômago embrulhado
era resultado de ter que engolir todas as coisas amargas que passavam por minha
cabeça cada vez que pensava no assunto. Mas era melhor guardar essa parte para
mim.
— Mais uma vez, sinto
muito — falei, forçando-me a deixar minha revolta de lado. Mexer nessas
lembranças devia ser muito doloroso para ela, e meu desconforto perdia a
importância diante disso. — Queria que você não tivesse passado por algo assim.
— Eu também, mas já me
perdoei meu passado — ela respondeu. Em seguida, a atmosfera pareceu pesar um
pouco e Candy resolveu fingir que os livros de Doc sobre a mesa estavam em
completa desordem, precisando de sua total atenção. — Bem — suspirou, sorrindo
em seguida — , consegui responder o que você queria saber?
Sim.
E não.
Eu não sabia bem o que
estava esperando ouvir, porque, afinal, nada daquilo era exatamente novo para
mim. A experiência de Candy tinha mostrado apenas que era possível sobreviver à
supressão, da mesma forma que a da Sunny deixava evidente que nem sempre era esse
o caso, mesmo que uma menina como Jodi tivesse muito a que se prender.
Portanto, se havia algum critério que definisse quem tinha chances, ele não era
nada óbvio. Talvez se fosse a teimosia o Logan humano ainda estivesse lá
dentro, mas o que significaria se fosse esse o caso? E se não fosse?
— Você sofreu? Digo,
enquanto Verana esteve no seu corpo?
— Não. Como eu disse, era
como se eu estivesse dormindo. Não foi assim com você?
— Foi exatamente assim —
confirmei, mais para encerrar o assunto e não correr o risco de que ela fizesse
outras perguntas. Não era justo depois
que eu tinha feito as minhas, mas eu podia viver com essa injustiça,
especificamente. — Obrigado por me aguentar, Candy. É que esse é um assunto
difícil de conversar com outra pessoa que não seja o Logan, e como ele não está
aqui...
— Você sente falta dele,
não é?
E bem de acordo com o
esperado, aqui estava uma pergunta que eu não queria responder. Não porque eu
não soubesse a resposta. A maioria das perguntas que não gostamos de responder
são aquelas cujas respostas estão na ponta de nossa língua. Era só porque eu
não tinha engolido ainda o quanto eu tinha me tornado egoísta nos últimos
tempos, disfarçando minha vontade de tê-lo por perto — mesmo que fosse para
esquentar minha cabeça com suspeitas que eu não tinha como confirmar — com uma preocupação meio injustificada com a
segurança do grupo.
“Confie em mim, Jeb”,
disse Logan na manhã em que partiu. “O único risco que há vai ser voltarmos de
mãos vazias.”
E então ele riu, daquele
jeito que fazia minhas preocupações parecerem meras excentricidades. Do jeito
que Norah ria. E quando eu quis abraçá-lo em despedida, não consegui.
Simplesmente deixei-o ir. Com um tapinha nas costas e um punhado de
advertências de cuidado.
— Claro — respondi,
tentando manter um tom neutro.
— Claro — Candy repetiu,
e em seguida sorriu, cheia de mistérios como se entendesse. — Eu... nunca falei
sobre meu marido com ninguém...
— Vou guardar segredo! — apressei-me
em dizer.
— Só queria dizer obrigada.
Foi bom conversar. Mas tenho que ir ajudar com o jantar agora, prometi a Paige.
— Tudo bem — resmunguei
sem graça pela falta do que dizer.
Na porta do hospital,
Candy se voltou para mim, e pela primeira vez enxerguei uma amiga nela.
— Você é um homem bom, Jeb.
As pessoas fazem bem em confiar em você. Talvez você pudesse confiar um pouco
nelas também.
E com essas palavras
dignas de serem ruminadas e digeridas, Candy saiu para cuidar do jantar.
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