sábado, 5 de setembro de 2015

ELS - Cap 29

Capítulo 29 - Bagagem

And love is not the easy thing....
The only baggage you can bring
Is all that you can't leave behind
(…)
You're packing a suitcase
for a place none of us has been
A place that has to be believed to be seen
You could have flown away
A singing bird in an open cage
Who will only fly, only fly for freedom
(...)
Home... hard to know what it is if you've never had one
Home... I can't say where it is
but I know I'm going home

(Walk on – U2)

           
            Já está amanhecendo e o telefone toca mais uma vez. É a sexta desde que me deitei, e não tenho mais esperanças de conseguir conciliar o sono por tempo suficiente para me sentir descansada. Então me levanto para preparar um café, ignorando o som que me faz sentir engulhos e também a pessoa do outro lado da linha.
            Quando Eric me deixou em casa ontem — ou hoje mais cedo, para ser mais exata, porque já era madrugada —, eu sabia que não conseguiria pregar os olhos. Meus pés pareciam recusar a firmeza do chão, acostumados que estavam com a textura metafórica das nuvens, e eu não esperava mesmo conseguir acalmar meus pensamentos tão cedo. Tampouco acreditei que pudesse calar a euforia que não sossegava meu coração com a lembrança das últimas horas, porque, em uma única noite, eu tinha vivido uma história inteira.
            Coisas assim não podiam ser ignoradas, e eu estava certa de que devia haver um preço que pessoas de mente alada como a minha tinham que pagar por arrastar-se de volta à realidade depois de descobrir para que os sonhos existam. Porém, no final das contas, não foi essa a razão que me manteve acordada.
            Eu tinha voltado para casa para um Blue todo animado, saltando para lá e para cá em meio ao enchimento disperso de uma almofada que ele tinha se ocupado em destruir na minha ausência.
            — Parece que sua energia voltou com tudo, hein! Esteve ocupado, rapazinho?
            “Olha só o que eu fiz pra você, mãe!”, ele parecia me dizer enquanto andava em torno de mim, tentando me presentear com a fronha eviscerada. “Acho que ficou muito mais bonito assim.”
            Por um momento considerei a possibilidade de dar-lhe uma bronca, mas eu sabia que não adiantaria de nada. Se eu o tivesse pegado em flagrante, deixar claro que o comportamento não me agradava podia ter alguma efetividade, mas horas depois do feito de que ele parecia se orgulhar tanto, tudo o que Blue enxergaria seria uma louca gritando com ele e traindo sua confiança canina.
            Além disso, era preciso reconhecer minha parcela de responsabilidade. Eu sabia muito bem que trazer um cachorro, especialmente um quase filhote, para dentro de um apartamento onde ele ficaria sozinho por horas teria consequências. Não era como se eu pudesse culpá-lo por agir como cachorro, afinal. E pensando bem, graças à minha lembrança de fechar as outras portas e limitar os movimentos dele à sala e à cozinha, até que o prejuízo da primeira noite tinha sido pequeno.
            — Tudo bem, menino. Nada aqui dentro é insubstituível, você é. Mas, no futuro, tente se lembrar que a mamãe prefere os enchimentos dentro das coisas, ok?
            “Sim, sim. Vou tentar me lembrar... Do que mesmo?” adivinhei sua resposta pela cara aloprada com que me fitava, o olhar curioso e amigável e a língua de fora lhe dando o ar inocente que era o que eu precisava para me esquecer de ficar brava enquanto varria a bagunça. Foi então que o telefone tocou pela primeira vez. 
            Atendi rápido e sem olhar o número, porque o meu primeiro pensamento foi para Eric e... Céus, como eu já estava sentindo falta dele! Como isso era possível? Talvez ele tivesse voltado e estivesse ligando para perguntar se podia subir? Ou quem sabe ele quisesse apenas dar um último “boa noite”... As pessoas fazem isso, não fazem? Ligam para se despedir antes de dormir?
            — Alô — atendi, animada por uma esperança meio desvairada de ouvir a voz dele um pouco mais. Entretanto, não houve resposta. E o silêncio era mais do que familiar. Era ele. O encapuzado. — É você, não é? Vai querer conversar hoje? Porque eu sempre disse que podia. Eu sempre disse a você que estava tudo bem.
            Dizer isso só me rendeu um telefone “batido na cara” e as próximas vezes foram ainda piores. Não porque ele fizesse qualquer outra coisa que não fosse ficar em silêncio e depois desligar abruptamente quando eu tentava deixá-lo confortável, mas porque a insistência daquela ausência que tentava a todo custo se fazer presente finalmente começou a me assustar.
            Era como se ele estivesse me vigiando, adivinhando exatamente quando meu corpo começava a relaxar e eu começava a navegar pelas águas calmas da dormência, e então o toque do telefone me trazia de volta às pressas, violentamente demais para que eu conseguisse me acalmar depois. E então, quando parecia que estava tudo bem e ele tinha se esquecido de mim, acontecia de novo.
            Pensei que pudesse ajudá-lo, que ele precisasse de mim, mas à medida que a noite avançava, comecei a enxergar a arrogância desse pensamento. Quem eu achava que era? Como eu podia ajudá-lo se ele sequer me deixava saber seu nome? Se ele continuava a ter medo de me dizer o que quer que fosse, nunca me deixaria chegar perto o suficiente para ajudar. Era possível que nem quisesse, porque, no fim, tudo o que ele estava conseguindo era me lembrar daquela noite.
            A noite em que tentou me matar.
            Não sei se foi o peso das horas insones ou o desejo de uma felicidade mais egoísta que eu vinha me permitindo, mas a realidade finalmente se abateu sobre mim. Mesmo que eu tivesse sentido o conflito e a dor sob suas ações, e ainda que ele tivesse desistido de seu intento antes que Caio lutasse para impedi-lo, mesmo assim aquele homem tinha vindo ao meu encontro com uma intenção maligna. 
            Todas as coisas boas... As pessoas. Caio. Marina. Eric. Eu nunca teria visto os olhos de Eric, sentido seus lábios nos meus. Nunca.
            Nunca. 
            É uma palavra cortante. Rasga pedaços de você, de seus sonhos, da realidade... Deixa tudo emaranhado como se não fizesse diferença, porque pó se perde no vento e é isso que você se torna diante do “nunca”. A morte é um imenso não.
            Quem dera que para os vivos ela fosse o nada, o cessar, o desaparecimento puro e simples. Mas ela é apenas o “Não”. Para os olhos dos que ficam, ela é o oposto do que é vivo, do que é bonito, do que é esperança e continuidade. E eu queria continuar. Pela primeira vez na vida, senti a urgência disso. E senti raiva daquele que tentou tirar isso de mim.
            Eu nunca tinha precisado pensar nessas coisas antes. Não dessa maneira. Nunca tinha dedicado ao fim de minha própria vida mais pensamentos do que ao começo, porque a iminência da morte nunca fora algo que eu precisasse cogitar. Exceto por aquela noite. Exceto pelas mãos daquele homem, cujas ações eu me permitia analisar verdadeiramente pela primeira vez.
            Talvez nada seja tão aterrorizante do que finalmente perceber que se tem muito a perder, porque daquele instante em diante senti medo. Muito medo. E uma imensa saudade de coisas ainda não vividas. Não consegui mais atender ao telefone depois disso e agora, novamente, seu berro fere meus ouvidos até parar de tocar.
            Com a manhã chegando, espero que seja a última vez. Por algum motivo, penso que a luz do dia talvez leve consigo a escuridão daquele homem, mas não posso ter certeza. E assim como do lado de fora, é provável que dentro dele sempre anoiteça de novo.
            Sento-me no sofá com Blue ao meu lado e uma xícara grande de café aquecendo minhas mãos. O gosto amargo parece me trazer um pouco de lucidez e, num rompante, puxo o fio do telefone, desligando-o e amaldiçoando meu cérebro cansado por não ter pensado nisso antes. Cedo ou tarde terei que encontrar uma maneira de enfrentar isso, mas, por ora, posso me esconder aqui e descansar um pouco.
            Agarro meu cachorrinho, que se aninha ao meu lado, parecendo pressentir a necessidade que tenho dele, e, ali mesmo no sofá, mergulho num sono exausto, apesar do sol que começa a penetrar as frestas da janela. Ou talvez por causa dele.

******
           
            São quase dez da manhã quando acordo. Não é exatamente o equivalente a uma noite de sono, mas bastou para que eu descansasse. Está um dia bonito lá fora e sinto que devo a Blue algum tempo que seja só para ele. Não vamos muito longe, porque o sol está a pino e ele ainda não está apto e grandes aventuras, mas deixo-o correr um pouco sob as árvores de uma praça aqui perto e jogo uma bolinha para ele se distrair.
            Quando voltamos para casa, ele e eu estamos famintos e relaxados e não consigo evitar que a sensação ruim deslize sorrateiramente para um canto esquecido de minha mente, voltando às vezes só para ser deixada de lado novamente, embora eu prometa a mim mesma que vou finalmente ceder à razão e ir à polícia. Mas não hoje. Porque, hoje, uma coisa fantástica acontece.
            Passa um pouco do meio-dia quando Marina aparece sem avisar. Não pergunto por que ela não está trabalhando ou o que veio fazer aqui, e ela também não menciona nenhuma dessas coisas. Age como se fizesse isto todo dia: aparecer com uma sacola de compras nos braços, me dar um abraço breve, brincar um pouco com o cachorro e, por fim, se instalar na cozinha, fazendo o almoço.
            Não ouso agir como se não estivesse entendendo, porque preciso disto tanto quanto ela. A sensação de normalidade. O alívio das coisas cotidianas. Apenas por estes minutos, é como se nunca tivéssemos perdido nossa vida de antes. Estou no paraíso.
            Ficamos lado a lado, ouvindo música e cantarolando enquanto cozinhamos juntas, trocando sorrisos e lembrando os gostos uma da outra como se o tempo não tivesse passado. Sei que as amenidades não resistirão por muito tempo, não se pode fingir para sempre que não há um par de elefantes cor-de-rosa passeando pela sala. Mas se eles entrarem na cozinha agora, sou capaz de latir para eles! Rio sozinha quando imagino a cena, e Marina me lança um olhar divertido.
            — Você continua igual nisso também. — Ela sorri e aponta para minha testa, encostando a pontinha do dedo em minha têmpora. — Tem uma história inteira acontecendo só aqui dentro.
            Um alarme dispara dentro de mim. Se ela me perguntar do que estou rindo, vou ter que explicar. E como vou dizer que estava imaginando os assuntos pendentes que estamos evitando como dois elefantes para os quais eu pretendia latir? Felizmente, ela não pergunta nada, e nosso singelo e frágil equilíbrio pode se manter. Parece um esforço estranho de nossa parte, mas eu entendo o que ela está fazendo.
            “É tarde para perdão, porque eu nem sequer posso culpá-la, não posso odiá-la pelo sofrimento que me causou. Mas saber a verdade muda tudo. Permite começar de novo. Eu só preciso de tempo.”
            Foi com essas palavras que ela se despediu de mim outro dia. E, pensando sobre elas, percebo que ela está tentando nos dar esse tempo. Não precisamos de outra conversa difícil, precisamos de outra chance. Começar de novo, mas não como se o passado não existisse. Estamos simplesmente voltando ao ponto onde paramos para saber como continuar dali.
            Entendo isso com a mesma naturalidade com que sinto os laços que nos unem sendo lentamente reatados, forjados de volta a algo muito parecido com sua forma original, porque o amor nunca desaparece. O tempo anestesia sua força quando é preciso sobreviver à sua ausência, mas ele continua ali, esperando. E quando nosso coração se abre novamente para ele, percebemos que seu abraço sempre esteve ao nosso redor.
            — Você deve estar achando estranho eu vir aqui assim — ela diz, como se estivesse tendo sua própria versão da mesma reflexão que eu.
            — Não, não acho — tranquilizo-a. — Estou feliz o suficiente para não precisar achar nada.
            Ela sorri para mim do mesmo jeito que fazia antes, com os lábios apertados e os olhos fugidios, desviando-os de volta para o que está fazendo. Não dizemos mais nada depois disso, mas não é um silêncio constrangido. É apenas calmaria. Já estamos sentadas à mesa quando voltamos a conversar.
            — O que você tem feito esses anos todos? — Marina pergunta com uma curiosidade inocente e genuína.
            — Nada de mais. Minha vida não mudou nada desde aquela época. Apenas os detalhes. Passei por duas cidades diferentes, numa delas trabalhei em um consultório médico, na outra em um supermercado. Mas na maior parte do tempo, eu acabava voltando a ser garçonete.
            — Por quê? Eu me lembro que na nossa época você trabalhava em um restaurante chique. No começo, pensei que era só por necessidade, já que você não tinha família para te ajudar com as contas, mas depois percebi que você adorava aquele trabalho.
            — Eu gosto de trabalhar com comida. Já pensei em ser chef e, quem sabe até, ter meu próprio restaurante. Mas é uma vida muito atarefada, com horários loucos, não daria para administrar... Bom, a minha outra vida. Trabalhando em bares, eu fico perto das pessoas e posso cuidar delas quando estão próximas demais das tentações.
            — Não é ruim? Abrir mão do seu sonho?
            Penso um pouco naquela pergunta. Não tenho certeza se as coisas podem ser postas nesses termos. Nunca pensei nas escolhas que não fiz como sonhos perdidos.
            — Sou feliz assim, Marina. Escolhi cada passo do meu caminho.
            Não percebo a real dimensão do que disse até que já tenha dito. Compreendo tarde demais a verdade dolorosa por trás das palavras, mas agora também é tarde para fugir delas. Marina precisa saber que, embora tenha lhe pedido perdão, não me arrependo da decisão que tomei no passado. Fiz uma escolha e nós duas sofremos por ela. Mas não sinto mais culpa. Olhando para essa mulher à minha frente, tão equilibrada e pronta a me entender, não consigo mais me sentir culpada por tê-la deixado tomar suas próprias decisões.
            — Fiz escolhas difíceis, como todo mundo. Mas não me arrependo delas, nem mesmo das que partiram meu coração.
            Pronto. Está feito. O casal de elefantes cor-de-rosa adentrou a cozinha e resolveu se sentar sobre a mesa de jantar. E fui eu mesma quem os convidou.
            — Você não se arrepende de ter ido embora? — ela pergunta baixinho. Mas não há acusação em sua voz, somente uma tristeza que me penetra feito minúsculos cacos de vidro contra a minha pele.
            — Não — respondo. Dizer isso e não sentir dor é tão estranho que quase parece errado. Por um segundo, desejo não ter dito nada e seguido a deixa de não tocar em assuntos difíceis, mas não posso voltar atrás agora. — Não há nada neste mundo que faça com que eu me perdoe por ter feito você sofrer. Nem mesmo a consciência de ter feito a coisa certa. Mas a verdade é que, por mais que eu não quisesse fazer essa escolha, a decisão foi minha e eu sabia o que estava fazendo. Sabia que ia querer de volta cada minuto que não tive com vocês e também que havia o risco de você chegar a me odiar, mas...
            — Eu nunca odiei você — ela me interrompe. — Senti muitas coisas, mas nunca odiei você.
            Sinto meu coração se acelerar. Ouvir isso, sentir a verdade por trás das palavras, é mais do que eu poderia desejar.
            — E eu nunca deixei de te amar — digo, porque preciso que ela saiba.
            — Eu até tentei te odiar, mas acho que também nunca deixei de te amar.
            Seguro a mão dela e nossos dedos se entrelaçam como se aquilo fosse hábito. É tão reconfortante que chega a parecer impossível. Contemplo seu rosto enquanto ela observa nossas mãos unidas e sorri sem me olhar.
            — Parece que não conseguimos fugir do assunto, não é?
            — Acho que não — decido. — Talvez seja muito cedo para fingir que não temos tantas coisas a dizer.
            — É — ela confirma, soltando minha mão e endireitando-se na cadeira. — Mas eu quero que você saiba que... aquilo que aconteceu... o jeito como eu reagi no sábado... — Ela para um segundo, suspira e me olha nos olhos. — Sinto muito.
            — Não... — tento interromper, mas ela não permite.
            — Me deixe dizer, Clara. Eu realmente sinto muito. Não devia ter feito aquilo. Não sei o que aconteceu comigo para agir daquele jeito.
            — Eu não me importo. Sei que você estava assustada, confusa, magoada... E sei que fui eu que fiz isso com você. Quem sente muito sou eu, embora eu saiba que pedir perdão nunca vai ser suficiente.
            — Perdão não é mais necessário. Eu só... estou me esforçando para entender nossa nova situação. Começar de novo. Só não sei de que ponto.
            — Vamos descobrir juntas, então. Aos poucos.
            — Sim, aos poucos — ela confirma.
            Voltamos a comer em silêncio, mas dá para sentir que há algo diferente desta vez. Uma leveza que o ar não tinha minutos atrás. Nosso equilíbrio não é mais tão frágil e nossos olhares estão impregnados de futuros possíveis.
E de pedaços de um passado perdido e encontrado pairando sobre nós.
            — Este apartamento me lembra muito da nossa casa. O jeito como você arruma as coisas... — diz Marina, quando volta a falar.
            — Acho que velhos hábitos são difíceis de perder.
            — Sim. Acho que sim. Também faço muita coisa exatamente como fazíamos naquele tempo. Sinto muita saudade daquele lugar. Eu morei lá até me casar, sabia? E nunca consegui vender a casa. Ela está alugada agora.
            Eu também sentia muita saudade daquele lugar, mas acho que não tinha nada a ver com a casa em si, e sim com o que ela representou. Tanto que nunca consegui voltar lá, nem mesmo para olhá-la de longe. No começo, porque eu não queria me arriscar a reencontrar Marina ou Caio sem estar preparada para isso. Depois, porque percebi que ou doeria demais saber que aquele era o lar de outra pessoa ou eu não sentiria nada, o que seria muito pior. A morte de uma lembrança é uma força destrutiva que sempre me pareceu assustadora demais.
            — E como vocês passaram depois que eu... hã... me mudei?
            Essa pergunta sempre tinha me corroído, apesar de ter me certificado de que ela não passaria necessidades. Naquela época, Marina tinha um emprego que arranjei para ela na loja de uma amiga enquanto Caio ficava na creche e, sem ter que pagar aluguel, ela teria o suficiente para as necessidades domésticas, ainda que não pudesse desperdiçar.
            Além disso, por incrível que pareça, a casa onde ela tinha morado com a mãe era própria e pudemos vendê-la para iniciar uma poupança. Não era lá grande coisa, aliás era quase nada, porque o imóvel estava em péssimo estado e a localização era ruim, mas era mais do que uma mãe adolescente e órfã podia esperar das circunstâncias. A esse dinheiro, acresci boa parte de minhas próprias economias, de maneira que ela teria com que contar numa emergência.
            — Bem, não era exatamente um mar de rosas, mas não posso reclamar. Acho que tenho que agradecer muito pela maneira como você deixou as coisas.
            — Não agradeça. Eu não conseguiria fazer o que precisava se não me certificasse que vocês ficariam minimamente bem. A única coisa que eu queria ter feito e não pude foi garantir que você estudasse.
            — Mas, de certa forma, você conseguiu, porque eu nem consideraria faculdade se não fosse você. Com a cabeça que eu tinha naquela época, não me parecia importante e eu só passei a desejar isso de tanto você insistir.
            — Acho que meus “discursos”, como você dizia, valeram a pena, afinal — provoco, com a satisfação que as mães devem sentir ao perceber que seus conselhos foram reconhecidos.
            — Valeram — ela confirma, rindo. — Eu pensei em você no dia em que passei no vestibular e Fernando me deu a notícia de que tinha conseguido um emprego para mim no mesmo projeto em que ele trabalhava, lá mesmo na faculdade. Naquelas alturas, ele já tinha uma certa influência e conhecia gente importante... Eu fiquei constrangida, mas não podia me dar ao luxo de escrúpulos bobos. Eu precisava do dinheiro e do tempo livre, então eu simplesmente engoli a vergonha e dei o melhor de mim. Claro que eu ganhava pouco e eles me pediam um monte de coisas, mesmo que fossem serviços simples, para justificar o fato de eu estar lá mesmo sendo uma caloura. Mas acho que nunca aprendi tanto e, de quebra, não precisei trabalhar de dia e estudar à noite. Tinha tempo para ficar com Caio, mesmo que não tanto quanto eu gostaria.
            — Então você pôde largar logo o emprego na loja?
            — Não, eu fiquei lá por uns anos. Isso que estou te contando aconteceu quando eu já estava noiva do Fernando. Mas na época em que você foi embora eu não tinha condições de passar em vestibular nenhum. Você tinha me obrigado a terminar o ensino médio, mas, sendo sincera, eu fiz isso aos trancos e barrancos. Não tinha cabeça, com o bebê e tudo mais. Mas fiquei estudando em casa, sozinha. Fiquei nessa por um tempo, até que conheci umas meninas, Isabela e Ana, que tinham acabado de se mudar para a cidade para fazer faculdade. Elas eram clientes da loja e ficamos amigas. Aí, quando precisaram de um lugar mais em conta para morar, aluguei seu quarto para elas. Era um bom negócio, porque elas me ajudavam a estudar e eu ainda tinha uma grana a mais.
            — Que ideia ótima! — Quer dizer, nossa casa era pequena, mas era suficientemente grande para que Marina tivesse amigas com quem dividir o espaço e as despesas. Respiro aliviada quando percebo que ela não ficou muito tempo sozinha. — E Fernando, quando foi que ele apareceu?
            À menção do nome dele, seu rosto se ilumina, exatamente como da outra vez. Sinto o ar em volta dela mudar, vibrando numa energia intensa e incontida quando ela começa a falar do marido que parece amar demais.
            — Ele é primo da Isabela, foi ela quem nos apresentou — ela diz sorrindo. — Eles não eram muito próximos, mas depois que começaram a se encontrar com frequência na faculdade se tornaram amigos. E tinha um cara da turma dele que estava muito a fim da Ana, aí ele começou a frequentar nossa casa por causa desse amigo, para ter uma desculpa para levá-lo junto. Eu fiquei deslumbrada desde o primeiro momento em que o vi, mas não consegui admitir. Só sabia que ele mexia comigo e isso me dava medo. Você sabe, minhas experiências com homens tinham sido péssimas até ali, e ele era mais velho, parecia experiente e daquele tipo que é seguro demais de si... Sei lá, me assustou. Fiquei fazendo força para me convencer que um cara daquele não poderia nunca querer algo sério comigo e eu tinha um filho com que me preocupar, então comecei a evitá-lo. Quanto mais gentil ele se mostrava, quanto mais ele demonstrava interesse, mais eu corria para longe. Mas aí teve um dia... Eu precisei trabalhar até um pouco mais tarde e pedi para Isabela pegar o Caio na creche. Quando cheguei, ele estava com Fernando, os dois riam e brincavam como... Ah, Clara, foi demais para mim ver os dois daquele jeito. Como pai e filho. Eu não estava preparada para aquilo.
            Estou fascinada pela história. Cada vez mais tenho certeza de que se tivesse ficado por perto, eu a teria resguardado de muitas experiências, talvez até mesmo de conhecer Isabela e, através dela, Fernando. Pelo menos me consola pensar dessa maneira. Tudo o que sacrifiquei foi por acreditar que Deus tinha Seus planos, e que eu estava agindo exatamente como o necessário para que eles se realizassem.
            — Fui para o quarto com uma desculpa qualquer e chorei até meus olhos não aguentarem mais — ela continua. — Naquela noite, quando finalmente apareci, ele tinha feito Caio dormir e tinha ido embora. Fiquei com medo de que ele não voltasse, que achasse que eu não valia o esforço, já que nem conseguia ficar no mesmo cômodo que ele por mais que alguns minutos antes de fugir feito boba. Mas ele voltou. E eu não consegui mais evitá-lo. Principalmente porque Caio estava encantado e ficava todo dia perguntando quando o “Teodolo” ia voltar, quando a gente ia sair com ele e aceitar o convite para ver um desenho bobo no cinema... Eu nunca tinha levado meu filho ao cinema — Ela ri. — Tive que aceitar. Não consegui mais dizer não para tudo. Quando dei por mim, ele já tinha tomado conta dos meus sentimentos e eu não conseguia mais imaginá-lo longe da minha vida.
            Eu já gostava imensamente de Fernando, mesmo antes de conhecê-lo, por conta do amor que Caio sempre demonstrou por ele em nossas conversas. Mas é maravilhoso perceber o quanto ele escolheu ser importante para Marina, como ele merece a luz nos olhos dela.
            — É uma história linda. Alguém como ele foi o que eu sempre quis para você.
            — Alguém como ele foi o que eu nunca achei possível existir. E demorou para eu perceber que estava errada. Eu não confiava nas pessoas. Não conseguia acreditar que não me abandonariam.
            Uma espécie de soluço tolhe sua respiração quando ela percebe o que disse. Em algum ponto da conversa, talvez imersa na beleza de suas lembranças sobre Fernando, ela se esqueceu de que eu não sou uma amiga, mas alguém que ela está tentando perdoar.
            — Me desculpe — ela diz, os olhos arregalados e tristes. — Eu não quis dizer isso.
            — Sim, eu sei. Não se incomode comigo. Não tenho direito de me magoar com a verdade.
            Não é minha intenção me fazer de vítima, mas é o que acaba parecendo quando digo isso com um amargor mal-disfarçado em minha voz. Sinto-me ridícula. Como se estivesse tentando convencer a mim mesma de que tudo o que a fiz sentir de ruim desapareceu magicamente.
            — Não vim aqui fazer acusações, Clara. Eu entendo agora o que você fez. Ainda estou lidando com isso, mas entendo e não te culpo.
            — Eu sei, eu sei. Desculpe se pareci sensível demais. É só que eu estava tão feliz pensando em como as coisas aconteceram para você, imaginando sua vida e pensando em como sua família é linda, que me esqueci por um momento que fiz um estrago quando fui embora.
            — Não, eu não acho que você tenha feito um estrago. Eu já estava estragada. A situação com a minha mãe foi o que me impediu de confiar às pessoas, mas eu precisava de alguém. Precisava ter alguém em quem confiar. Quando você apareceu, disposta a ser essa pessoa, eu me apeguei como uma âncora, e quando achei que você tinha me abandonado a ferida mal cicatrizada reabriu. Mas não foi você que me feriu, e eu sempre soube disso. Só me esqueci por um tempo que não cabia a você me curar.
            — Nem tampouco te causar sofrimento.
            — Qualquer pessoa para quem eu me abrisse tinha o potencial de me ferir enquanto eu não resolvesse minhas próprias questões, enquanto eu não entendesse que eu valia a pena, por mais que minha mãe tivesse me feito crer que não.
            Ouvir isso me deixa, em certa medida, em choque. Por mais que suas palavras façam sentido racionalmente, meu coração continua lutando com a ideia que lhe parece inconcebível: que ela não tenha visto o que eu, suas amigas e Fernando pudemos sempre enxergar com absoluta clareza.
            — Você sempre valeu a pena, Marina. Você era uma menina que só tinha gentilezas para com um mundo que não tinha sido nem um pouco generoso com você. Ainda que tudo estivesse contra, você se manteve determinada a ser boa. E mesmo agora, você está me oferecendo o melhor que pode. Para mim, que te magoei tanto.
            Seus olhos se enchem de lágrimas, mas ela não as deixa cair. Acho que, tal como o meu, seu coração tem comportas que não podem ser abertas de uma só vez, sob pena de que as emoções nos façam submergir. Mesmo assim, sei que há muitas coisas acontecendo dentro dela. Sei que, em algum lugar, há uma chuva fina desencantando a estiagem sobre as lembranças que ela se cansou de enfrentar.
            De repente, ela se levanta e fico com medo de que fuja de mim outra vez, que este doce e doloroso interlúdio termine tão desastradamente quanto começou, mas ela apenas faz sinal com a mão para que eu espere e vai até a sala. Ouço-a mexer em sua bolsa e voltar a passos lentos que vão, gradualmente, parecendo menos incertos.
            — A bondade pode ser maior que a dor, Clara — ela diz, sentando-se de novo à minha frente. — Para mim, foi. O que você fez de bom foi sempre mais importante do que o fato de você ter ido embora. Porque mesmo quando eu sentia raiva, sempre soube que você tinha me dado seu melhor. Está na hora de te devolver um pouco.
            Fico confusa quando ela deposita uma caixa sobre a mesa. É pequena e desengonçada, feita de um papelão meio amassado coberto por dedinhos de tinta guache. Na parte de cima, escritas numa letra infantil, estão as palavras “Mamãe” e “Caio”. Seguro a tampa de leve quando percebo do que se trata, deixando a doce lembrança que não me pertence entrar em meu coração, mas quando a levanto e ela se solta da base, posso ver o interior da caixa.
            Uma lembrança que me pertence.
            Agora são os meus olhos que se enchem de lágrimas ao ver as joias de minha mãe. Aquelas eram as coisas mais preciosas que eu tinha, as mais sagradas, porque eram as preferidas dela.     
            Giro o relógio dourado nos dedos, sentindo de novo sua textura, observando seu brilho. É exatamente como me lembro, exceto que parece mais pesado agora que carrega as horas de outras separações. A gravação está um pouco apagada, mas na parte de trás do mostrador ainda se lê em letras diminutas: “Para Dirce. Com amor, Luís.” Foi um presente de noivado. O anel, uma pérola solitária ladeada por dois pequenos brilhantes, meu pai deu a ela no dia em que nasci. As duas únicas joias que ele pôde comprar na vida eram celebrações do amor dos dois, da nossa família.
            E eu as tinha deixado para minha outra família, para Marina, como uma promessa, como um sinal de amor.
            — Você...
            Quero encontrar um jeito de dizer tudo o que está acontecendo em meu coração. Quero ao menos encontrar palavras para dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas não acho que consiga fazer nada com o nó em minha garganta — já é muito simplesmente respirar. Sinto tantas emoções ao mesmo tempo, que é quase como se não sentisse nada.
            — Essas coisas nunca me deixaram esquecer que você deu o seu melhor por mim — ela fala com a voz vacilante, embargada, os cabelos longos dançando sobre os ombros quando meneia a cabeça. — Não foi por você ter me tirado da rua naquela noite e cuidado de mim e do meu filho pelo tempo que cuidou. Não foi sequer pela casa ou por seu esforço em me deixar segura, embora tudo isso tenha significado muito. Mas quando eu olhava para as joias que você usou em todos os dias que te conheci e que eram a lembrança de sua família, eu sabia. Por baixo da dúvida, eu sempre acreditei nas palavras daquela carta... que você ia voltar. E acreditei por causa disso. Porque eu sabia o quanto essas joias significavam para você e que deixá-las para mim foi seu jeito de dizer que nos amava.
            — Elas foram... Foram meu presente para você.
            — Eu sei — ela diz, lançando-me um sorriso complacente. É a sua vez de segurar minha mão, e o contato traz uma paz momentânea ao dilúvio de emoções que ameaça romper as comportas convenientemente posicionadas. — Mas não preciso mais do consolo que elas me davam, porque agora tenho você de volta em minha vida. Deixe que, de hoje em diante, elas sejam o meu jeito de dizer que vou voltar para você, que estou lidando com a situação e me esforçando para entender.
            Não sei o que pensar. Nunca esperei ter essas coisas de volta. Eu as dei a Marina como minha mãe as deu a mim, porque queria um laço entre essas duas pontas tão importantes da minha vida. Porque aquela garota e seu filho eram minha nova versão de felicidade familiar. Ao mesmo tempo... A maneira como Marina as coloca de volta em minhas mãos deixa claro o que eu sempre soube: os objetos não têm importância alguma por si só, é o que eles representam que forma a bagagem que levamos através de nossas histórias.
            Eu fiz parte da história de Marina de forma tão indelével quanto ela da minha. E agora ela me estende a mão para encontrarmos juntas o caminho de volta para o lar que podemos ser uma para a outra. Sábia como sempre foi, minha menina está me dizendo que posso perdoar a mim mesma e seguir em frente. Em direção a ela.
            Não penso mais. Apenas sorrio de volta.
            — Eu aceito. Obrigada.
            E isso diz mais do que qualquer um que nos visse agora poderia supor.

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