Capítulo 29 - Bagagem
And
love is not the easy thing....
The
only baggage you can bring
Is
all that you can't leave behind
(…)
You're
packing a suitcase
for a
place none of us has been
A
place that has to be believed to be seen
You
could have flown away
A
singing bird in an open cage
Who
will only fly, only fly for freedom
(...)
Home...
hard to know what it is if you've never had one
Home...
I can't say where it is
but I
know I'm going home
(Walk
on – U2)
Já
está amanhecendo e o telefone toca mais uma vez. É a sexta desde que me deitei,
e não tenho mais esperanças de conseguir conciliar o sono por tempo suficiente
para me sentir descansada. Então me levanto para preparar um café, ignorando o
som que me faz sentir engulhos e também a pessoa do outro lado da linha.
Quando Eric me deixou em casa ontem
— ou hoje mais cedo, para ser mais exata, porque já era madrugada —, eu sabia
que não conseguiria pregar os olhos. Meus pés pareciam recusar a firmeza do
chão, acostumados que estavam com a textura metafórica das nuvens, e eu não
esperava mesmo conseguir acalmar meus pensamentos tão cedo. Tampouco acreditei
que pudesse calar a euforia que não sossegava meu coração com a lembrança das
últimas horas, porque, em uma única noite, eu tinha vivido uma história
inteira.
Coisas assim não podiam ser
ignoradas, e eu estava certa de que devia haver um preço que pessoas de mente
alada como a minha tinham que pagar por arrastar-se de volta à realidade depois
de descobrir para que os sonhos existam. Porém, no final das contas, não foi
essa a razão que me manteve acordada.
Eu tinha voltado para casa para um
Blue todo animado, saltando para lá e para cá em meio ao enchimento disperso de
uma almofada que ele tinha se ocupado em destruir na minha ausência.
— Parece que sua energia voltou com
tudo, hein! Esteve ocupado, rapazinho?
“Olha só o que eu fiz pra você,
mãe!”, ele parecia me dizer enquanto andava em torno de mim, tentando me
presentear com a fronha eviscerada. “Acho que ficou muito mais bonito assim.”
Por um momento considerei a
possibilidade de dar-lhe uma bronca, mas eu sabia que não adiantaria de nada.
Se eu o tivesse pegado em flagrante, deixar claro que o comportamento não me
agradava podia ter alguma efetividade, mas horas depois do feito de que ele
parecia se orgulhar tanto, tudo o que Blue enxergaria seria uma louca gritando
com ele e traindo sua confiança canina.
Além disso, era preciso reconhecer
minha parcela de responsabilidade. Eu sabia muito bem que trazer um cachorro,
especialmente um quase filhote, para dentro de um apartamento onde ele ficaria
sozinho por horas teria consequências. Não era como se eu pudesse culpá-lo por
agir como cachorro, afinal. E pensando bem, graças à minha lembrança de fechar
as outras portas e limitar os movimentos dele à sala e à cozinha, até que o
prejuízo da primeira noite tinha sido pequeno.
— Tudo bem, menino. Nada aqui dentro
é insubstituível, você é. Mas, no futuro, tente se lembrar que a mamãe prefere
os enchimentos dentro das coisas, ok?
“Sim, sim. Vou tentar me lembrar...
Do que mesmo?” adivinhei sua resposta pela cara aloprada com que me fitava, o
olhar curioso e amigável e a língua de fora lhe dando o ar inocente que era o
que eu precisava para me esquecer de ficar brava enquanto varria a bagunça. Foi
então que o telefone tocou pela primeira vez.
Atendi rápido e sem olhar o número,
porque o meu primeiro pensamento foi para Eric e... Céus, como eu já estava
sentindo falta dele! Como isso era possível? Talvez ele tivesse voltado e
estivesse ligando para perguntar se podia subir? Ou quem sabe ele quisesse
apenas dar um último “boa noite”... As pessoas fazem isso, não fazem? Ligam
para se despedir antes de dormir?
— Alô — atendi, animada por uma
esperança meio desvairada de ouvir a voz dele um pouco mais. Entretanto, não
houve resposta. E o silêncio era mais do que familiar. Era ele. O encapuzado. —
É você, não é? Vai querer conversar hoje? Porque eu sempre disse que podia. Eu
sempre disse a você que estava tudo bem.
Dizer isso só me rendeu um telefone
“batido na cara” e as próximas vezes foram ainda piores. Não porque ele fizesse
qualquer outra coisa que não fosse ficar em silêncio e depois desligar
abruptamente quando eu tentava deixá-lo confortável, mas porque a insistência
daquela ausência que tentava a todo custo se fazer presente finalmente começou
a me assustar.
Era como se ele estivesse me
vigiando, adivinhando exatamente quando meu corpo começava a relaxar e eu
começava a navegar pelas águas calmas da dormência, e então o toque do telefone
me trazia de volta às pressas, violentamente demais para que eu conseguisse me
acalmar depois. E então, quando parecia que estava tudo bem e ele tinha se
esquecido de mim, acontecia de novo.
Pensei que pudesse ajudá-lo, que ele
precisasse de mim, mas à medida que a noite avançava, comecei a enxergar a
arrogância desse pensamento. Quem eu achava que era? Como eu podia ajudá-lo se
ele sequer me deixava saber seu nome? Se ele continuava a ter medo de me dizer
o que quer que fosse, nunca me deixaria chegar perto o suficiente para ajudar.
Era possível que nem quisesse, porque, no fim, tudo o que ele estava
conseguindo era me lembrar daquela noite.
A noite em que tentou me matar.
Não sei se foi o peso das horas
insones ou o desejo de uma felicidade mais egoísta que eu vinha me permitindo,
mas a realidade finalmente se abateu sobre mim. Mesmo que eu tivesse sentido o
conflito e a dor sob suas ações, e ainda que ele tivesse desistido de seu
intento antes que Caio lutasse para impedi-lo, mesmo assim aquele homem tinha
vindo ao meu encontro com uma intenção maligna.
Todas as coisas boas... As pessoas.
Caio. Marina. Eric. Eu nunca teria visto os olhos de Eric, sentido seus lábios
nos meus. Nunca.
Nunca.
É uma palavra cortante. Rasga
pedaços de você, de seus sonhos, da realidade... Deixa tudo emaranhado como se
não fizesse diferença, porque pó se perde no vento e é isso que você se torna
diante do “nunca”. A morte é um imenso não.
Quem dera que para os vivos ela
fosse o nada, o cessar, o desaparecimento puro e simples. Mas ela é apenas o
“Não”. Para os olhos dos que ficam, ela é o oposto do que é vivo, do que é
bonito, do que é esperança e continuidade. E eu queria continuar. Pela primeira
vez na vida, senti a urgência disso. E senti raiva daquele que tentou tirar
isso de mim.
Eu nunca tinha precisado pensar
nessas coisas antes. Não dessa maneira. Nunca tinha dedicado ao fim de minha
própria vida mais pensamentos do que ao começo, porque a iminência da morte
nunca fora algo que eu precisasse cogitar. Exceto por aquela noite. Exceto
pelas mãos daquele homem, cujas ações eu me permitia analisar verdadeiramente
pela primeira vez.
Talvez nada seja tão aterrorizante
do que finalmente perceber que se tem muito a perder, porque daquele instante
em diante senti medo. Muito medo. E uma imensa saudade de coisas ainda não
vividas. Não consegui mais atender ao telefone depois disso e agora, novamente,
seu berro fere meus ouvidos até parar de tocar.
Com a manhã chegando, espero que
seja a última vez. Por algum motivo, penso que a luz do dia talvez leve consigo
a escuridão daquele homem, mas não posso ter certeza. E assim como do lado de
fora, é provável que dentro dele sempre anoiteça de novo.
Sento-me no sofá com Blue ao meu
lado e uma xícara grande de café aquecendo minhas mãos. O gosto amargo parece
me trazer um pouco de lucidez e, num rompante, puxo o fio do telefone,
desligando-o e amaldiçoando meu cérebro cansado por não ter pensado nisso
antes. Cedo ou tarde terei que encontrar uma maneira de enfrentar isso, mas,
por ora, posso me esconder aqui e descansar um pouco.
Agarro meu cachorrinho, que se
aninha ao meu lado, parecendo pressentir a necessidade que tenho dele, e, ali
mesmo no sofá, mergulho num sono exausto, apesar do sol que começa a penetrar
as frestas da janela. Ou talvez por causa dele.
******
São quase dez da manhã quando
acordo. Não é exatamente o equivalente a uma noite de sono, mas bastou para que
eu descansasse. Está um dia bonito lá fora e sinto que devo a Blue algum tempo
que seja só para ele. Não vamos muito longe, porque o sol está a pino e ele
ainda não está apto e grandes aventuras, mas deixo-o correr um pouco sob as
árvores de uma praça aqui perto e jogo uma bolinha para ele se distrair.
Quando voltamos para casa, ele e eu
estamos famintos e relaxados e não consigo evitar que a sensação ruim deslize
sorrateiramente para um canto esquecido de minha mente, voltando às vezes só
para ser deixada de lado novamente, embora eu prometa a mim mesma que vou
finalmente ceder à razão e ir à polícia. Mas não hoje. Porque, hoje, uma coisa
fantástica acontece.
Passa um pouco do meio-dia quando
Marina aparece sem avisar. Não pergunto por que ela não está trabalhando ou o
que veio fazer aqui, e ela também não menciona nenhuma dessas coisas. Age como
se fizesse isto todo dia: aparecer com uma sacola de compras nos braços, me dar
um abraço breve, brincar um pouco com o cachorro e, por fim, se instalar na cozinha,
fazendo o almoço.
Não ouso agir como se não estivesse
entendendo, porque preciso disto tanto quanto ela. A sensação de normalidade. O
alívio das coisas cotidianas. Apenas por estes minutos, é como se nunca
tivéssemos perdido nossa vida de antes.
Estou no paraíso.
Ficamos lado a lado, ouvindo música
e cantarolando enquanto cozinhamos juntas, trocando sorrisos e lembrando os
gostos uma da outra como se o tempo não tivesse passado. Sei que as amenidades
não resistirão por muito tempo, não se pode fingir para sempre que não há um
par de elefantes cor-de-rosa passeando pela sala. Mas se eles entrarem na cozinha agora, sou capaz de latir para eles!
Rio sozinha quando imagino a cena, e Marina me lança um olhar divertido.
— Você continua igual nisso também. —
Ela sorri e aponta para minha testa, encostando a pontinha do dedo em minha
têmpora. — Tem uma história inteira acontecendo só aqui dentro.
Um alarme dispara dentro de mim. Se
ela me perguntar do que estou rindo, vou ter que explicar. E como vou dizer que
estava imaginando os assuntos pendentes que estamos evitando como dois
elefantes para os quais eu pretendia latir? Felizmente, ela não pergunta nada,
e nosso singelo e frágil equilíbrio pode se manter. Parece um esforço estranho
de nossa parte, mas eu entendo o que ela está fazendo.
“É tarde para perdão, porque eu nem
sequer posso culpá-la, não posso odiá-la pelo sofrimento que me causou. Mas
saber a verdade muda tudo. Permite começar de novo. Eu só preciso de tempo.”
Foi com essas palavras que ela se
despediu de mim outro dia. E, pensando sobre elas, percebo que ela está
tentando nos dar esse tempo. Não precisamos de outra conversa difícil,
precisamos de outra chance. Começar de novo, mas não como se o passado não
existisse. Estamos simplesmente voltando ao ponto onde paramos para saber como
continuar dali.
Entendo isso com a mesma
naturalidade com que sinto os laços que nos unem sendo lentamente reatados,
forjados de volta a algo muito parecido com sua forma original, porque o amor
nunca desaparece. O tempo anestesia sua força quando é preciso sobreviver à sua
ausência, mas ele continua ali, esperando. E quando nosso coração se abre
novamente para ele, percebemos que seu abraço sempre esteve ao nosso redor.
— Você deve estar achando estranho
eu vir aqui assim — ela diz, como se estivesse tendo sua própria versão da
mesma reflexão que eu.
— Não, não acho — tranquilizo-a. —
Estou feliz o suficiente para não precisar achar nada.
Ela sorri para mim do mesmo jeito
que fazia antes, com os lábios apertados e os olhos fugidios, desviando-os de
volta para o que está fazendo. Não dizemos mais nada depois disso, mas não é um
silêncio constrangido. É apenas calmaria. Já estamos sentadas à mesa quando
voltamos a conversar.
— O que você tem feito esses anos
todos? — Marina pergunta com uma curiosidade inocente e genuína.
— Nada de mais. Minha vida não mudou
nada desde aquela época. Apenas os detalhes. Passei por duas cidades
diferentes, numa delas trabalhei em um consultório médico, na outra em um
supermercado. Mas na maior parte do tempo, eu acabava voltando a ser garçonete.
— Por quê? Eu me lembro que na nossa
época você trabalhava em um restaurante chique. No começo, pensei que era só
por necessidade, já que você não tinha família para te ajudar com as contas,
mas depois percebi que você adorava aquele trabalho.
— Eu gosto de trabalhar com comida.
Já pensei em ser chef e, quem sabe
até, ter meu próprio restaurante. Mas é uma vida muito atarefada, com horários
loucos, não daria para administrar... Bom, a minha outra vida. Trabalhando em
bares, eu fico perto das pessoas e posso cuidar delas quando estão próximas
demais das tentações.
— Não é ruim? Abrir mão do seu
sonho?
Penso um pouco naquela pergunta. Não
tenho certeza se as coisas podem ser postas nesses termos. Nunca pensei nas
escolhas que não fiz como sonhos perdidos.
— Sou feliz assim, Marina. Escolhi
cada passo do meu caminho.
Não percebo a real dimensão do que
disse até que já tenha dito. Compreendo tarde demais a verdade dolorosa por
trás das palavras, mas agora também é tarde para fugir delas. Marina precisa
saber que, embora tenha lhe pedido perdão, não me arrependo da decisão que
tomei no passado. Fiz uma escolha e nós duas sofremos por ela. Mas não sinto
mais culpa. Olhando para essa mulher à minha frente, tão equilibrada e pronta a
me entender, não consigo mais me sentir culpada por tê-la deixado tomar suas
próprias decisões.
— Fiz escolhas difíceis, como todo
mundo. Mas não me arrependo delas, nem mesmo das que partiram meu coração.
Pronto. Está feito. O casal de
elefantes cor-de-rosa adentrou a cozinha e resolveu se sentar sobre a mesa de
jantar. E fui eu mesma quem os convidou.
— Você não se arrepende de ter ido
embora? — ela pergunta baixinho. Mas não há acusação em sua voz, somente uma tristeza
que me penetra feito minúsculos cacos de vidro contra a minha pele.
— Não — respondo. Dizer isso e não
sentir dor é tão estranho que quase parece errado. Por um segundo, desejo não
ter dito nada e seguido a deixa de não tocar em assuntos difíceis, mas não
posso voltar atrás agora. — Não há nada neste mundo que faça com que eu me
perdoe por ter feito você sofrer. Nem mesmo a consciência de ter feito a coisa
certa. Mas a verdade é que, por mais que eu não quisesse fazer essa escolha, a
decisão foi minha e eu sabia o que estava fazendo. Sabia que ia querer de volta
cada minuto que não tive com vocês e também que havia o risco de você chegar a
me odiar, mas...
— Eu nunca odiei você — ela me
interrompe. — Senti muitas coisas, mas nunca odiei você.
Sinto meu coração se acelerar. Ouvir
isso, sentir a verdade por trás das palavras, é mais do que eu poderia desejar.
— E eu nunca deixei de te amar —
digo, porque preciso que ela saiba.
— Eu até tentei te odiar, mas acho
que também nunca deixei de te amar.
Seguro a mão dela e nossos dedos se
entrelaçam como se aquilo fosse hábito. É tão reconfortante que chega a parecer
impossível. Contemplo seu rosto enquanto ela observa nossas mãos unidas e sorri
sem me olhar.
— Parece que não conseguimos fugir
do assunto, não é?
— Acho que não — decido. — Talvez
seja muito cedo para fingir que não temos tantas coisas a dizer.
— É — ela confirma, soltando minha
mão e endireitando-se na cadeira. — Mas eu quero que você saiba que... aquilo
que aconteceu... o jeito como eu reagi no sábado... — Ela para um segundo,
suspira e me olha nos olhos. — Sinto muito.
— Não... — tento interromper, mas
ela não permite.
— Me deixe dizer, Clara. Eu
realmente sinto muito. Não devia ter feito aquilo. Não sei o que aconteceu
comigo para agir daquele jeito.
— Eu não me importo. Sei que você
estava assustada, confusa, magoada... E sei que fui eu que fiz isso com você.
Quem sente muito sou eu, embora eu saiba que pedir perdão nunca vai ser
suficiente.
— Perdão não é mais necessário. Eu
só... estou me esforçando para entender nossa nova situação. Começar de novo.
Só não sei de que ponto.
— Vamos descobrir juntas, então. Aos
poucos.
— Sim, aos poucos — ela confirma.
Voltamos a comer em silêncio, mas dá
para sentir que há algo diferente desta vez. Uma leveza que o ar não tinha
minutos atrás. Nosso equilíbrio não é mais tão frágil e nossos olhares estão
impregnados de futuros possíveis.
E de pedaços de um passado perdido e encontrado pairando sobre nós.
— Este apartamento me lembra muito da
nossa casa. O jeito como você arruma as coisas... — diz Marina, quando volta a
falar.
— Acho que velhos hábitos são
difíceis de perder.
— Sim. Acho que sim. Também faço
muita coisa exatamente como fazíamos naquele tempo. Sinto muita saudade daquele
lugar. Eu morei lá até me casar, sabia? E nunca consegui vender a casa. Ela
está alugada agora.
Eu também sentia muita saudade
daquele lugar, mas acho que não tinha nada a ver com a casa em si, e sim com o
que ela representou. Tanto que nunca consegui voltar lá, nem mesmo para olhá-la
de longe. No começo, porque eu não queria me arriscar a reencontrar Marina ou
Caio sem estar preparada para isso. Depois, porque percebi que ou doeria demais
saber que aquele era o lar de outra pessoa ou eu não sentiria nada, o que seria
muito pior. A morte de uma lembrança é uma força destrutiva que sempre me
pareceu assustadora demais.
— E como vocês passaram depois que
eu... hã... me mudei?
Essa pergunta sempre tinha me
corroído, apesar de ter me certificado de que ela não passaria necessidades.
Naquela época, Marina tinha um emprego que arranjei para ela na loja de uma
amiga enquanto Caio ficava na creche e, sem ter que pagar aluguel, ela teria o
suficiente para as necessidades domésticas, ainda que não pudesse desperdiçar.
Além disso, por incrível que pareça,
a casa onde ela tinha morado com a mãe era própria e pudemos vendê-la para
iniciar uma poupança. Não era lá grande coisa, aliás era quase nada, porque o
imóvel estava em péssimo estado e a localização era ruim, mas era mais do que
uma mãe adolescente e órfã podia esperar das circunstâncias. A esse dinheiro,
acresci boa parte de minhas próprias economias, de maneira que ela teria com
que contar numa emergência.
— Bem, não era exatamente um mar de
rosas, mas não posso reclamar. Acho que tenho que agradecer muito pela maneira
como você deixou as coisas.
— Não agradeça. Eu não conseguiria
fazer o que precisava se não me certificasse que vocês ficariam minimamente
bem. A única coisa que eu queria ter feito e não pude foi garantir que você
estudasse.
— Mas, de certa forma, você
conseguiu, porque eu nem consideraria faculdade se não fosse você. Com a cabeça
que eu tinha naquela época, não me parecia importante e eu só passei a desejar
isso de tanto você insistir.
— Acho que meus “discursos”, como
você dizia, valeram a pena, afinal — provoco, com a satisfação que as mães
devem sentir ao perceber que seus conselhos foram reconhecidos.
— Valeram — ela confirma, rindo. —
Eu pensei em você no dia em que passei no vestibular e Fernando me deu a
notícia de que tinha conseguido um emprego para mim no mesmo projeto em que ele
trabalhava, lá mesmo na faculdade. Naquelas alturas, ele já tinha uma certa
influência e conhecia gente importante... Eu fiquei constrangida, mas não podia
me dar ao luxo de escrúpulos bobos. Eu precisava do dinheiro e do tempo livre,
então eu simplesmente engoli a vergonha e dei o melhor de mim. Claro que eu
ganhava pouco e eles me pediam um monte de coisas, mesmo que fossem serviços
simples, para justificar o fato de eu estar lá mesmo sendo uma caloura. Mas
acho que nunca aprendi tanto e, de quebra, não precisei trabalhar de dia e
estudar à noite. Tinha tempo para ficar com Caio, mesmo que não tanto quanto eu
gostaria.
— Então você pôde largar logo o
emprego na loja?
— Não, eu fiquei lá por uns anos.
Isso que estou te contando aconteceu quando eu já estava noiva do Fernando. Mas
na época em que você foi embora eu não tinha condições de passar em vestibular
nenhum. Você tinha me obrigado a terminar o ensino médio, mas, sendo sincera,
eu fiz isso aos trancos e barrancos. Não tinha cabeça, com o bebê e tudo mais.
Mas fiquei estudando em casa, sozinha. Fiquei nessa por um tempo, até que
conheci umas meninas, Isabela e Ana, que tinham acabado de se mudar para a
cidade para fazer faculdade. Elas eram clientes da loja e ficamos amigas. Aí,
quando precisaram de um lugar mais em conta para morar, aluguei seu quarto para
elas. Era um bom negócio, porque elas me ajudavam a estudar e eu ainda tinha
uma grana a mais.
— Que ideia ótima! — Quer dizer,
nossa casa era pequena, mas era suficientemente grande para que Marina tivesse
amigas com quem dividir o espaço e as despesas. Respiro aliviada quando percebo
que ela não ficou muito tempo sozinha. — E Fernando, quando foi que ele apareceu?
À menção do nome dele, seu rosto se
ilumina, exatamente como da outra vez. Sinto o ar em volta dela mudar, vibrando
numa energia intensa e incontida quando ela começa a falar do marido que parece
amar demais.
— Ele é primo da Isabela, foi ela quem
nos apresentou — ela diz sorrindo. — Eles não eram muito próximos, mas depois
que começaram a se encontrar com frequência na faculdade se tornaram amigos. E
tinha um cara da turma dele que estava muito a fim da Ana, aí ele começou a
frequentar nossa casa por causa desse amigo, para ter uma desculpa para levá-lo
junto. Eu fiquei deslumbrada desde o primeiro momento em que o vi, mas não
consegui admitir. Só sabia que ele mexia comigo e isso me dava medo. Você sabe,
minhas experiências com homens tinham sido péssimas até ali, e ele era mais
velho, parecia experiente e daquele tipo que é seguro demais de si... Sei lá,
me assustou. Fiquei fazendo força para me convencer que um cara daquele não
poderia nunca querer algo sério comigo e eu tinha um filho com que me
preocupar, então comecei a evitá-lo. Quanto mais gentil ele se mostrava, quanto
mais ele demonstrava interesse, mais eu corria para longe. Mas aí teve um
dia... Eu precisei trabalhar até um pouco mais tarde e pedi para Isabela pegar
o Caio na creche. Quando cheguei, ele estava com Fernando, os dois riam e
brincavam como... Ah, Clara, foi demais para mim ver os dois daquele jeito.
Como pai e filho. Eu não estava preparada para aquilo.
Estou fascinada pela história. Cada
vez mais tenho certeza de que se tivesse ficado por perto, eu a teria
resguardado de muitas experiências, talvez até mesmo de conhecer Isabela e,
através dela, Fernando. Pelo menos me consola pensar dessa maneira. Tudo o que
sacrifiquei foi por acreditar que Deus tinha Seus planos, e que eu estava
agindo exatamente como o necessário para que eles se realizassem.
— Fui para o quarto com uma desculpa
qualquer e chorei até meus olhos não aguentarem mais — ela continua. — Naquela
noite, quando finalmente apareci, ele tinha feito Caio dormir e tinha ido
embora. Fiquei com medo de que ele não voltasse, que achasse que eu não valia o
esforço, já que nem conseguia ficar no mesmo cômodo que ele por mais que alguns
minutos antes de fugir feito boba. Mas ele voltou. E eu não consegui mais
evitá-lo. Principalmente porque Caio estava encantado e ficava todo dia
perguntando quando o “Teodolo” ia voltar, quando a gente ia sair com ele e
aceitar o convite para ver um desenho bobo no cinema... Eu nunca tinha levado
meu filho ao cinema — Ela ri. — Tive que aceitar. Não consegui mais dizer não
para tudo. Quando dei por mim, ele já tinha tomado conta dos meus sentimentos e
eu não conseguia mais imaginá-lo longe da minha vida.
Eu já gostava imensamente de
Fernando, mesmo antes de conhecê-lo, por conta do amor que Caio sempre
demonstrou por ele em nossas conversas. Mas é maravilhoso perceber o quanto ele
escolheu ser importante para Marina,
como ele merece a luz nos olhos dela.
— É uma história linda. Alguém como
ele foi o que eu sempre quis para você.
— Alguém como ele foi o que eu nunca
achei possível existir. E demorou para eu perceber que estava errada. Eu não
confiava nas pessoas. Não conseguia acreditar que não me abandonariam.
Uma espécie de soluço tolhe sua
respiração quando ela percebe o que disse. Em algum ponto da conversa, talvez
imersa na beleza de suas lembranças sobre Fernando, ela se esqueceu de que eu
não sou uma amiga, mas alguém que ela está tentando perdoar.
— Me desculpe — ela diz, os olhos
arregalados e tristes. — Eu não quis dizer isso.
— Sim, eu sei. Não se incomode
comigo. Não tenho direito de me magoar com a verdade.
Não é minha intenção me fazer de
vítima, mas é o que acaba parecendo quando digo isso com um amargor
mal-disfarçado em minha voz. Sinto-me ridícula. Como se estivesse tentando
convencer a mim mesma de que tudo o que a fiz sentir de ruim desapareceu
magicamente.
— Não vim aqui fazer acusações,
Clara. Eu entendo agora o que você fez. Ainda estou lidando com isso, mas
entendo e não te culpo.
— Eu sei, eu sei. Desculpe se pareci
sensível demais. É só que eu estava tão feliz pensando em como as coisas
aconteceram para você, imaginando sua vida e pensando em como sua família é
linda, que me esqueci por um momento que fiz um estrago quando fui embora.
— Não, eu não acho que você tenha
feito um estrago. Eu já estava estragada. A situação com a minha mãe foi o que
me impediu de confiar às pessoas, mas eu precisava de alguém. Precisava ter
alguém em quem confiar. Quando você apareceu, disposta a ser essa pessoa, eu me
apeguei como uma âncora, e quando achei que você tinha me abandonado a ferida
mal cicatrizada reabriu. Mas não foi você que me feriu, e eu sempre soube
disso. Só me esqueci por um tempo que não cabia a você me curar.
— Nem tampouco te causar sofrimento.
— Qualquer pessoa para quem eu me
abrisse tinha o potencial de me ferir enquanto eu não resolvesse minhas
próprias questões, enquanto eu não entendesse que eu valia a pena, por mais que
minha mãe tivesse me feito crer que não.
Ouvir isso me deixa, em certa
medida, em choque. Por mais que suas palavras façam sentido racionalmente, meu
coração continua lutando com a ideia que lhe parece inconcebível: que ela não
tenha visto o que eu, suas amigas e Fernando pudemos sempre enxergar com
absoluta clareza.
— Você sempre valeu a pena, Marina.
Você era uma menina que só tinha gentilezas para com um mundo que não tinha
sido nem um pouco generoso com você. Ainda que tudo estivesse contra, você se
manteve determinada a ser boa. E mesmo agora, você está me oferecendo o melhor
que pode. Para mim, que te magoei tanto.
Seus olhos se enchem de lágrimas,
mas ela não as deixa cair. Acho que, tal como o meu, seu coração tem comportas
que não podem ser abertas de uma só vez, sob pena de que as emoções nos façam
submergir. Mesmo assim, sei que há muitas coisas acontecendo dentro dela. Sei
que, em algum lugar, há uma chuva fina desencantando a estiagem sobre as
lembranças que ela se cansou de enfrentar.
De repente, ela se levanta e fico
com medo de que fuja de mim outra vez, que este doce e doloroso interlúdio
termine tão desastradamente quanto começou, mas ela apenas faz sinal com a mão
para que eu espere e vai até a sala. Ouço-a mexer em sua bolsa e voltar a
passos lentos que vão, gradualmente, parecendo menos incertos.
— A bondade pode ser maior que a
dor, Clara — ela diz, sentando-se de novo à minha frente. — Para mim, foi. O
que você fez de bom foi sempre mais importante do que o fato de você ter ido
embora. Porque mesmo quando eu sentia raiva, sempre soube que você tinha me
dado seu melhor. Está na hora de te devolver um pouco.
Fico confusa quando ela deposita uma
caixa sobre a mesa. É pequena e desengonçada, feita de um papelão meio amassado
coberto por dedinhos de tinta guache. Na parte de cima, escritas numa letra
infantil, estão as palavras “Mamãe” e “Caio”. Seguro a tampa de leve quando
percebo do que se trata, deixando a doce lembrança que não me pertence entrar
em meu coração, mas quando a levanto e ela se solta da base, posso ver o
interior da caixa.
Uma lembrança que me pertence.
Agora são os meus olhos que se
enchem de lágrimas ao ver as joias de minha mãe. Aquelas eram as coisas mais
preciosas que eu tinha, as mais sagradas, porque eram as preferidas dela.
Giro o relógio dourado nos dedos,
sentindo de novo sua textura, observando seu brilho. É exatamente como me
lembro, exceto que parece mais pesado agora que carrega as horas de outras
separações. A gravação está um pouco apagada, mas na parte de trás do mostrador
ainda se lê em letras diminutas: “Para Dirce. Com amor, Luís.” Foi um presente
de noivado. O anel, uma pérola solitária ladeada por dois pequenos brilhantes,
meu pai deu a ela no dia em que nasci. As duas únicas joias que ele pôde
comprar na vida eram celebrações do amor dos dois, da nossa família.
E eu as tinha deixado para minha
outra família, para Marina, como uma promessa, como um sinal de amor.
— Você...
Quero encontrar um jeito de dizer
tudo o que está acontecendo em meu coração. Quero ao menos encontrar palavras
para dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas não acho que consiga fazer nada
com o nó em minha garganta — já é muito simplesmente respirar. Sinto tantas
emoções ao mesmo tempo, que é quase como se não sentisse nada.
— Essas coisas nunca me deixaram
esquecer que você deu o seu melhor por mim — ela fala com a voz vacilante,
embargada, os cabelos longos dançando sobre os ombros quando meneia a cabeça. —
Não foi por você ter me tirado da rua naquela noite e cuidado de mim e do meu
filho pelo tempo que cuidou. Não foi sequer pela casa ou por seu esforço em me
deixar segura, embora tudo isso tenha significado muito. Mas quando eu olhava
para as joias que você usou em todos os dias que te conheci e que eram a
lembrança de sua família, eu sabia. Por baixo da dúvida, eu sempre acreditei
nas palavras daquela carta... que você ia
voltar. E acreditei por causa disso. Porque eu sabia o quanto essas joias
significavam para você e que deixá-las para mim foi seu jeito de dizer que nos
amava.
— Elas foram... Foram meu presente
para você.
— Eu sei — ela diz, lançando-me um
sorriso complacente. É a sua vez de segurar minha mão, e o contato traz uma paz
momentânea ao dilúvio de emoções que ameaça romper as comportas
convenientemente posicionadas. — Mas não preciso mais do consolo que elas me
davam, porque agora tenho você de volta em minha vida. Deixe que, de hoje em
diante, elas sejam o meu jeito de dizer que vou voltar para você, que estou
lidando com a situação e me esforçando para entender.
Não sei o que pensar. Nunca esperei
ter essas coisas de volta. Eu as dei a Marina como minha mãe as deu a mim,
porque queria um laço entre essas duas pontas tão importantes da minha vida.
Porque aquela garota e seu filho eram minha nova versão de felicidade familiar.
Ao mesmo tempo... A maneira como Marina as coloca de volta em minhas mãos deixa
claro o que eu sempre soube: os objetos não têm importância alguma por si só, é
o que eles representam que forma a bagagem que levamos através de nossas
histórias.
Eu fiz parte da história de Marina
de forma tão indelével quanto ela da minha. E agora ela me estende a mão para
encontrarmos juntas o caminho de volta para o lar que podemos ser uma para a
outra. Sábia como sempre foi, minha menina está me dizendo que posso perdoar a
mim mesma e seguir em frente. Em direção a ela.
Não penso mais. Apenas sorrio de
volta.
— Eu aceito. Obrigada.
E isso diz mais do que qualquer um
que nos visse agora poderia supor.
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