sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Capítulo 8 Entre a Luz e as Sombras

Capítulo 8 – Revelação

In my eyes
Indisposed
In disguise
As no one knows
Hides the face
Lies the snake
The sun
In my disgrace
Boiling heat
Summer stench
'Neath the black
The sky looks dead
Call my name
Through the dream
And I'll hear you
Scream again
Black hole sun
Won't you come
And wash away the rain?
(Black Hole Sun – Soundgarden)

A mãe de Marina não conseguiu sair da escuridão. Às vezes o buraco em que caímos é simplesmente fundo demais.
Ela realmente tentou, agarrando-se com força à esperança de voltar a ser quem era, de encontrar em meio a seus sentimentos destruídos e lembranças fragmentadas, a essência de quem ela foi um dia. Mas acho que era como estar perdida num corredor escuro, lutando para abrir a porta certa, quando havia portas erradas demais.
Por trás de uma delas, um resquício de um passado que ainda era perigosamente presente. Havia uma dívida, uma rixa e as pessoas erradas no caminho. E houve o fim.
Não foi lento, nem especialmente sofrido. Foi apenas o desaparecimento, o cessar de uma vida desperdiçada.
Eu nunca consegui, de fato, gostar dela. Sou humana em essência, portanto, o que me define é a imperfeição. Porém, lamentei sinceramente sua morte. É impossível não lamentar quando o fim, ainda que anunciado, interrompe o que poderia ter sido.
Marina sofreu estoicamente o fim de suas esperanças, o término de uma nova história antes mesmo que tivesse começado, mas temo que ela jamais tenha realmente acreditado que seu sonho se realizaria.
Eu fiquei ao lado dela e deixei que sofresse à sua maneira. Acho que, muitas vezes, só o que uma pessoa pode fazer para te ajudar é deixar você sofrer do jeito que escolher. O jeito de Marina foi sofrer calada. Mas chegou o dia em que a alegria gritou e o silêncio na alma dela teve que ceder. A alegria veio através de um choro de criança. Nosso bebê.
Depois disso, ela voltou a sorrir. Com o tempo voltou também a estudar e a pensar no futuro. Quando a deixei, sabia que ela estava também forte o suficiente para amar de novo. Pergunto-me se ela encontrou alguém. Se é feliz e se achou um homem bom que a amparasse. Às vezes é tão difícil manter-me afastada! Se pelo menos eu soubesse como eles estão...
Mas foi melhor assim, não foi? Se eu os procurasse, se os observasse e descobrisse que estavam sofrendo, como poderia impedir a mim mesma de interferir e estragar os planos divinos para eles?
Balanço a cabeça livrando-me desses pensamentos. Dezoito anos se passaram desde então, mas nunca, nunca deixou de doer quando penso neles. E, sabe-se lá por que, ultimamente tenho pensado neles o tempo todo. Bem, talvez fosse porque, há cerca de seis meses, resolvi voltar para a cidade onde nos conhecemos. De certa forma, senti que tinha chegado o momento de estar novamente perto deles, à espera do dia que eu mais tinha desejado, o dia em que os veria de novo.
É, faz sentido, gênio! Estar perto deles faz você pensar mais nas coisas do passado, sua coisinha perspicaz!
E aí está ela! Acho que não contei que tenho uma mente malcriada e ligeiramente auto-depreciativa, não é? Pois tenho. E é essa a minha única companheira recorrente nos meus dias solitários. De maneira que mesmo que ela às vezes me faça sentir um lixo, acabei me afeiçoando a ela. E também acabei falando de uma parte de mim mesma na terceira pessoa. Vai entender!
Deve ser porque sou sua parte inteligente, resmunga ela, mas eu ignoro porque estou muito ocupada em encher os vidros de catchup e repor os guardanapos de cada uma das mesas do bar onde trabalho. Além disso, há outras tagarelices à minha volta que me forço a escutar.
— Caramba! Acho que quero ter os filhos dele!
Essa é Paty, minha única amiga e também minha colega de trabalho. E esse é o jeito dela de dizer que achou um homem bonito.
— Ai, Paty, desse jeito, daqui a pouco você será mãe da próxima geração inteira — reclamo mal-humorada, sem sequer levantar os olhos do que estou fazendo.
— Não se ele aceitar casar comigo! — brinca ela, ignorando minha rabugice.
Isso é o que eu mais amo em Paty, o mundo para ela é do jeito que ela quer que seja. Ela é sempre alegre, brincalhona e provocadora, e se você não estiver no clima para isso, azar o seu! Ela é daquelas pessoas capazes de ignorar totalmente aquelas barreiras que impomos para nos proteger dos outros.
Eu, por exemplo, costumo fazer a linha moça séria que não se abre para ninguém. Embora eu trate todos com educação, presteza e simpatia, a maior parte das pessoas opta por tomar minha seriedade por sisudez e acaba me deixando em paz, sem falar muito comigo. É mais fácil dessa maneira, para eles e para mim. Tenho que manter as pessoas a uma distância segura, não posso ter amigos. Para alguém como eu, amigos são perigosos. Cedo ou tarde, acabam descobrindo coisas demais sobre nós.
Por isso levo minha vida sem deixar ninguém se acercar além da conta e, mesmo assim, cada vez que tenho que me mudar e sumir da vista dos poucos conhecidos de quem acabo me aproximando um pouco, termino com meu coração em frangalhos.
Não poder ter amigos é outro dos meus fardos, mas estou acostumada a manter as pessoas à distância. Só que isso não funcionou com Paty. Ela simplesmente ignorou toda e qualquer barreira que eu tenha colocado entre ela e o seu desejo de ser minha amiga, e entrou bagunçando tudo ao redor com seu jeito de pequeno furacão.
Além do mais, devo admitir que não me esforcei muito para impedi-la. De quando em quando, preciso de um amigo para não enlouquecer, embora imaginar a hora em que terei que deixá-la estraçalhe meu coração. Então, como sempre, tento não pensar nisso quando vejo seu agradável sorriso de covinhas.
— Preparada para mais uma sexta-feira? — pergunta ela, mudando de assunto enquanto me tasca um beijo na bochecha a título de cumprimento.
— Rock on, baby! — respondo, fazendo-a rir e levantar os dedos no gesto universal dos roqueiros.
Paty e eu trabalhamos como garçonetes num bar onde todo fim de semana tem um show de alguma banda amadora de rock, em geral, tocando covers de bandas famosas. Nos dias de semana, quando o movimento é menor, apenas a cozinha e o bar funcionam normalmente e a música alta das bandas é substituída por DVDs de shows transmitidos por dois telões.
Eu gosto de trabalhar como garçonete. É um trabalho que me mantém em constante contato com as pessoas sem que eu precise me preocupar que elas invadam meu espaço pessoal. Em geral, os frequentadores de um bar estão alegres — ou bêbados — demais para se preocupar com a vida alheia. E estando aqui, eu também posso ajudá-los e impedir que façam besteiras quando estão embriagados demais para dirigir ou sequer andar até um ponto de ônibus. Logo no começo, me encarreguei de cair nas boas graças de um taxista daqui de perto, e ele me faz um desconto quando o passageiro se recusa a pagar porque não se lembra de ter chamado um táxi. Eu não me importo de gastar meu próprio dinheiro com isso, embora João, o taxista, já tenha deixado muito claro que acha isso um absurdo e só faz porque eu sou “tão legal” com ele, ajudando-o a cuidar de sua filhinha quando a mulher precisa sair para um dos bicos que complementam a renda deles.
Além do mais, eu gosto da música. Não existe nada neste mundo que me traga mais paz. Hoje é uma banda chamada Seattle, que canta músicas das bandas grunge dos anos noventa e mais algumas de composição própria. É começo de noite e eles chegaram com antecedência para poder passar o repertório e preparar os instrumentos. Dentro de meia hora abriremos o bar e logo eles começarão a tocar.
Gosto de grunge e certamente admiro o fato de eles terem chegado com antecedência, mas neste momento só consigo pensar no chão que preciso limpar para ser, dentro de pouco tempo, pisoteado e sujo novamente.
— Poxa vida, Clara! Eu aqui dando o maior mole e ele não tira os olhos de você! — diz Paty, referindo-se ao vocalista da banda que ela tinha escolhido como o novo pai de seus futuros filhos.
— Eu não ligo, Paty. Ele só deve estar nos sondando para ver com qual de nós vai conseguir alguma coisa. Faça bom proveito. É só você continuar dando mole que cedo ou tarde ele desiste de mim e olha só pra você.
— Ah, obrigada, Santa Clara! Eu aceito a oferenda. Deus livre uma freira como você de beijar um roqueiro gostoso! Mas acontece que ele só teve olhos pra você desde que chegou. Se você tivesse desgrudado os seus desses frascos de catchup e olhado pra ele um segundo, teria percebido isso. Por que ele olharia pra mim?
Freira!? Santa!? Não, nem perto disso.
— Ele vai olhar pra você porque não pode ser tão burro de passar a noite ignorando o quanto você é maravilhosa.Você está linda hoje, aliás.
— Obrigada — diz ela, piscando os olhos pra mim para exibir sua maquiagem carregada, mas totalmente apropriada para uma garçonete do On The Rocks, e que combina perfeitamente com nossos uniformes pretos de saias rodadas e curtas e botas de cano longo que arrebentam nossos pés.
Paty para em minha frente e se curva para me olhar nos olhos enquanto faço meu serviço. Ela solta um suspiro e sei que é seu suspiro preciso-perguntar-uma-coisa-séria.
— O que foi? Pode falar — encorajo.
— Amiga, eu juro que não ligo. Você é minha irmã e eu te amo.
Ela para aí um momento e mentalmente agradeço, porque sua declaração me pega totalmente desprevenida e meu coração se enche de uma ternura praticamente insuportável por ela, um sentimento que me faz sentir desarmada. Não posso ficar desprotegida quando Paty me faz perguntas. A curiosidade dela é perigosa. Não obstante, enquanto desabo, ela se arma para continuar.
 — Mas já que você não diz, eu preciso perguntar... — Nova pausa dramática ao melhor estilo Paty: — Você é lésbica?
— Paty! — repreendo-a sem muita convicção, pensando por um momento se não seria melhor deixá-la pensar assim.
Depois de ponderar por um segundo, porém, percebo que aí ela tentaria me arrumar uma namorada, o que me colocaria em situação ainda mais complicada, então ensaio uma meia-verdade qualquer, mas não tenho realmente tempo de formular nada, porque Paty começa a parecer arrependida de sua pergunta súbita.
— Olha, desculpe, mas é o que todo mundo fala. Eu não ligo mesmo, por isso só fiquei esperando você me contar, mas a verdade é que é mais fácil extrair um dente de você do que uma informação espontânea! E então, você é homossexual?
— Não, Paty — confesso suspirando, porque não quero ter aquela conversa com ela ali, no meio do bar, ou em qualquer outro lugar que seja, para ser bem sincera, mas sei que minha cota de mentiras e omissões já é grande demais. Então decido eliminar a necessidade de mais uma. — Não sou homossexual. Eu só não tenho vontade de namorar.
Isso até que é bem próximo da verdade. Se não posso ter amigos, quem dirá um namorado? O que eu diria para ele? A verdade? O amor é, basicamente, a única razão para que alguns de nós optem por abrir mão de seu chamado, mas temos também o que parece ser uma espécie de proteção natural contra ele. Relacionamentos amorosos simplesmente não me interessam. Nunca aconteceu. Simples assim. Não é que eu ache impossível. Não tenho o “corpo fechado” para o amor ou algo do tipo. É só que não é uma coisa em que eu pense ou algo que deseje, mesmo que remotamente.
— Como assim, Clara? Que espécie de bobagem é essa? Eu também não curto relacionamentos sérios, mas estamos falando só de dar uns “pegas”. Todo mundo precisa de um pouco de calor humano. Francamente, às vezes acho que não tem limites para a sua esquisitice! As únicas pessoas que pensam assim são aquelas que foram magoadas... — Paty faz outra de suas pausas, desta vez deixando seu rosto se iluminar com alguma descoberta obviamente muito sagaz. — Espera aí! É isso, não é? Alguém te magoou. O que foi? Você foi traída?
— Er... Sim, foi isso! — Ufa! Outra coisa que eu adoro em Paty é que ela sempre cria suas próprias respostas, o que é um verdadeiro alívio, mesmo para uma mentirosa escolada como eu.
Ironicamente, mentiras são ossos do ofício, pensa minha mente malcriada. Então que mal tem em aproveitar o embuste que ela mesma criou?
— Podemos não falar a respeito? Eu não quero pensar nisso. Ainda mais numa sexta-feira grunge.
— É isso aí, garota! Deixa este cretino pra lá e vamos nos divertir.
— Claro! Mal posso esperar pelo show.
— Aham, eu também. Só preciso dar um pulo lá nos fundos para colocar o uniforme e estarei pronta pra tudo. Porque hoje é sexta-feira, baby! — diz Paty, arrematando a sua parte da limpeza do chão e, minutos depois, sumindo em direção ao banheiro.
E eu fico aqui, sentindo-me culpada e ao mesmo tempo aliviada por ter encontrado uma mentira que sossegasse a curiosidade dela por um tempo e que me garantisse alguns dias livres de perguntas.
Claro que mentir ou “retocar a verdade”, como gosto de chamar, não é nada agradável. Eu sou um anjo, pelo amor de Deus! É lógico que sei que é incoerente. Mas eu também sei que é necessário e que, desde que essas mentiras não prejudiquem ninguém e sirvam para me proteger, posso “acertar minhas contas” lá em cima depois. Também humana e tenho direito à imperfeição e ao erro. Além disso, vivo em sociedade. É parte essencial de meu chamado que eu esteja perto de outras pessoas. Sendo assim, como é possível ser verdadeira, ou mesmo apenas omissa, cem por cento do tempo?
Resolvo parar de pensar nisso e enquanto ajeito o bar me concentro nos sons. Não passam de pequenos ruídos inarticulados dos instrumentos sendo afinados.
Céus, quantas cordas tem uma guitarra? Seiscentas? Demora tanto assim pra afinar?
Então eles começam a tocar.
Os primeiros acordes de Black Hole Sun[1] começam a se insinuar pelas frestas de meus escudos e vou ficando vulnerável, frágil. Sei que nos próximos instantes estarei longe, pensando em um sol negro que suga tudo ao seu redor, sei que estarei pensando na luz que todos carregamos e nos buracos negros que existem em cada uma de nossas almas paradoxais. Sim, sei que soo como uma maluca, mas não posso evitar.
O garoto começa a cantar e a voz dele é linda e puxa meu olhar em sua direção pela primeira vez. É quando algo estranho acontece. Cores e sons se misturam num segundo de sinestesia eletrizante quando o vejo. Sua voz é sorrateira e entra em mim como uma intrusa bem-vinda, desfazendo-se em minúsculos pedacinhos que se diluem em minhas veias, fazendo coisas com meu sangue que vozes não deveriam fazer com sangues. É intenso e perfeito.
Ele é lindo, alto, forte. Tem uma pele pálida e os cabelos castanhos claros, quase louros, e olhos cor de mel em formato amendoado. Ele sorri enquanto canta e sei que está possuído pela música. Está vivendo num mundo só dele e tem um jeito encantador de fechar os olhos devagar e abri-los com cuidado, deixando escapar em breves vislumbres a magia que acontece dentro de seu coração enquanto se deixa levar pela música.
Nem preciso de meu dom para enxergar a luz ofuscante que emana dele. Quando saio de meu torpor e o observo fechar os olhos mais uma vez eu sei, no mesmo instante em que ele os abre novamente, que ele é um de nós.
Ele é como eu.







[1] Soundgarden, do álbum Superunknown, de 1994.

2 comentários:

  1. Hey! Amei o blog <3 Também escrevo fanfics, se puderem dar uma olhadinha... Ficarei muito feliz! candy-fanfics.blogspot.com.br

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    1. Obrigada. Agradeço em nome de todas nós pelo elogio ao blog. Pode deixar que a gente dá uma passada lá.

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