sábado, 29 de novembro de 2014

Capítulo 9 - CD2


Capítulo 9 – Minha mente, sua mente

How long, how long will I slide
Separate my side, I don't
I don't believe it's bad
Slittin' my throat
It's all I ever

I heard your voice through a photograph
I thought it up it brought up the past
Once you know you can never go back
I've gotta take it on the other side

(Otherside – Red Hot Chili Peppers)


Logan

            O primeiro jorro de lembranças não é como eu esperava. Não o último momento importante, não a sensação de ir embora. Mas, sim, imagens embaralhadas, tiradas e postas muito rápido umas sobre as outras, como cartas jogadas sobre a mesa no início de um jogo. Imagens fragmentadas e sobrepostas.

            Crianças correndo entre as árvores de uma fazenda. A sensação gelada de um pulo no riacho. O gosto de laranja.

            Uma enorme varanda de madeira onde um homem canta enquanto dedilha seu violão distraidamente. A voz dele é bonita. Lembra alguém. Eu sei. Mas a imagem já está distante demais para ser tocada.

            Enquanto isso, uma mulher pendura lençóis brancos em um varal que parece não ter fim. Eles balançam com o vento como se fossem bandeiras. Aquele é um reino. A mão da mulher se fecha em concha contra a minha bochecha. Posso sentir a aspereza macia da pele que cheira a sabão e comida quentinha, mas não consigo ouvir o que ela me diz. Os olhos dela são como um rio. Parecem continuar. Sempre.

            É noite no deserto. Gosto de como o céu estrelado sobre minha cabeça faz a solidão parecer bonita. Cabelos longos se espalham pelo travesseiro. Espalham-se pela minha alma também. Alguma coisa nasce nas rochas. Um hibisco.

            Uma vez. Esta vai ser a única vez.

            Meu peito dói. A sensação de solavanco que se tornou desagradavelmente familiar me assalta com força. Como se eu estivesse me afogando de dentro para fora.     
            Olho para mim mesmo e então entendo como isso é possível. Não sou eu. É o garoto que costumava ser um Buscador. Gosto dele. Nunca consegui evitar. Falo com ele, mas ele não responde, está confuso. Apenas me olha de volta surpreso.

            — Imagine-se cercado de paredes. Dessa forma, vai manter sua mente relativamente intacta dentro da dele.
            Outra lembrança, mas essa é diferente. Não parece que foi assim que aconteceu. Acho que me lembro da frase, mas em uma situação distinta. As palavras enigmáticas não combinam com a menininha que as diz.
            Observo-a com mais atenção. Não é muito pequena, na verdade. Deve ter uns 11 anos, talvez, mas não tenho tanta certeza. É morena, usa um uniforme de futebol e rabo de cavalo. Tem um olhar perspicaz, mas ainda me parece infantil o bastante. A pele de seu nariz e embaixo dos olhos, no alto das bochechas, está vermelha de sol, parece que ela passou o dia todo brincando. Seu rosto me é muito familiar, mas não consigo...          Lembro de pensar que aquela criança conseguiria enxergar através de qualquer parede que a forçassem a erguer. Ela é inteligente, forte...

            “Melanie.”
            Levo um susto. Faz muito tempo que não me assusto. Eu acho. Mas é outra coisa sobre a qual não tenho certeza.
            O quê...
            “Minha sobrinha. É como gosto de me lembrar dela. Por que você está se lembrando das coisas do meu jeito?”
            Eu... Ahn... Não sei.
            “Acorde, Logan! Eu é que sou novato nisso e você é que está perdido?”
            Logan. É quem eu sou. O nome me diz tantas coisas quanto as palavras contidas em uma biblioteca. Consigo me lembrar agora. Minha história. E o intruso em minha cabeça... Não, eu é que sou o intruso. Por isso as coisas parecem não funcionar tão bem e eu me sinto como se me movesse em gelatina.
            Sua mente é estranha.
            “Que simpático. Agora tente se lembrar do porquê de estarmos juntos aqui.”
            Jeb. É ele quem está comigo. Preciso salvá-lo.
            Sim, eu me lembro.
            “Ótimo. Porque eu não esqueci. Agora vamos encontrar um jeito de fazer isso funcionar...”
            Não acho que eu esteja lembrando as coisas do seu jeito. Acho que era você o tempo todo. Lembrei de coisas antes de você acordar.
            “Que coisas?”
            Não sei bem o que elas significam. Uma fazenda, um varal, riacho... Você se sentindo mal.
            “Bem, pare de lembrar minhas lembranças. Foi esse o combinado. O quebra-cabeça é meu, eu é que entendo das peças.”
            Não estou tentando invadir sua mente. Acontece que estamos fracos, eu e você. As coisas escapam pelas frestas.

            O despertar embaralha a percepção de tempo. Tudo isso pode ter transcorrido durante uns poucos segundos apenas, ou vários minutos, não sei. Aqui dentro não importa realmente. O que sei é que ele fica em silêncio por um tempo que me parece, paradoxalmente, tão indefinido quanto longo. É um alívio, mas também me angustia. Como ficar sozinho numa grande casa habitada por uma família numerosa.
            Jeb?
            Começo a temer que algo tenha dado errado. Há um propósito nisso tudo, mas esse propósito não inclui o silêncio dele.

            Então eu vejo. Paredes. Portas batendo. O estrondo me assusta e abro os olhos.

            — Tudo bem? Você está bem?
            A voz era familiar, mas parecia ligeiramente diferente. Era a voz de uma menina para estes ouvidos. Delicada demais. A cadência quase estrangeira com que soava para este hospedeiro me fazia associá-la com prata. A mesma que brilhava no fundo dos olhos escuros.
            O rosto dela se destacava em meio aos outros, também tão familiares. Procurei reconhecê-los também. Melanie, Jared, Ian, Doc. Os nomes chegaram com relativa rapidez, mas suas feições me pareciam diferentes. Através dos olhos deste hospedeiro, Doc me parecia menos excêntrico, Jared menos duro, Ian mais juvenil e Melanie... mais familiar! Tão bonita quanto poderia ser. Um misto da menina com uniforme de futebol e da mulher com jeito de guerreira. Meu olhar se demorou um pouco em cada um, mas logo voltou a buscar aquela que eu reconheceria em qualquer circunstância, a única que meus olhos realmente queriam ver.
            — Estrela.
            Era estranho, porque eu sabia que aquela não era minha voz, mas ao dizer o nome dela era assim que me parecia, como a voz humana que eu tinha ouvido sempre, dizendo a palavra que mais importava.
            Ela me observou preocupada, os olhos escuros perscrutando minhas reações lentas. Tentei me fixar neles, porque embora tudo o mais parecesse diferente, os olhos dela ainda eram os mesmos. Quando eu a conheci, eles olhavam para mim de outro rosto, tinham outra cor, outro formato. Mas a ternura que existia neles havia sempre permanecido. E mesmo que agora fosse eu que estivesse em outro corpo, aqueles olhos continuavam sendo para mim.
            — Oi — cumprimentei, exercendo meu direito de me sentir um pouco bobo.
            — Olá — ela disse, sorrindo e tocando de leve minha mão.
            Meus novos dedos sentiram seu toque e despertaram. Estendi a mão, sentindo como se meu braço pesasse uma tonelada. Eu não estava acostumado a me sentir fraco e aquilo me incomodava. Em algum lugar ali bem perto, estava o corpo que eu reconhecia como meu: forte, disposto, resistente. A sensação fazia falta. Enfrentar o mundo num corpo mais velho e, ao menos naquele momento, tão fragilizado, me parecia extremamente desafiador. Acostumar-me com aquilo seria uma experiência no mínimo singular.
            “Bem-vindo à velhice, garoto. Me lembre de esfregar isso na sua cara da próxima vez que vier com aquela história de sou-um-ser-milenar. Tem muita graça vindo de alguém com 30 anos.”
            Eu vou precisar mesmo te lembrar de esfregar alguma coisa na minha cara? Você vive para fazer isso!
            “Quanta falta de humor!”
            Continuei concentrado em me adaptar ao novo corpo, movendo-me devagar. Era um tanto frustrante o esforço que cada movimento demandava devido à doença.
            — Não se esforce muito — alertou Estrela. — Jeb precisa repousar o máximo possível. Ele está aí com você? Vocês dois estão bem?
            “Pode apostar que ainda estou aqui, Estrelinha.”
            — Sim, estamos bem — respondi por ambos.
            Devia ser difícil não poder ser ouvido. Embora lidar com outra consciência além da minha não fosse exatamente um passeio no parque, estarmos os dois aqui provavelmente era bem pior para ele do que para mim.
            “Fichinha”, ironizou Jeb.
            Minha expressão deve ter parecido algo desalentada, porque Estrela segurou minha mão e tocou meu rosto.
            — Vamos resolver isso logo. Vai ficar tudo bem — ela disse, tentando me acalmar. A sensação era tão boa que nem me importei que os dedos dela estivessem, na realidade, tocando outra pessoa.
            Era Estrela. Tudo o que havia de imutável em nós se reconhecia.
            Um assovio prolongado me chamou de volta ao diálogo interno.
            “Carambola Maria Viola!”
            Quê?O que diabos quer dizer isso?
            “Nada. Só que eu invento minhas próprias interjeições quando a ocasião é digna de tal. E, rapaz, estou admirado!”
            Com o que, exatamente?

            Uma sequência de imagens e sensações envolvendo Estrela passou pela minha cabeça vinda de um ponto de vista ímpar, como se alguém pudesse olhar o lado de dentro de meu cérebro e mostrá-las para mim.
            Estrela ainda no corpo de Peg, deitada na cama da Instalação de Cura. A sensação de que sua fragilidade testava os limites de minha sanidade. O medo de perdê-la reavivando e reinventando lembranças até então esquecidas. O desespero disfarçado de fúria quando achei que não a veria nunca mais. A hospedeira nova. Uma cujo coração podia finalmente me pertencer por inteiro. Nós dois juntos. As lágrimas de felicidade dela quando John nasceu. E Lindsay. Nossa filha. Irrevogavelmente fundidos.

            O que é isso? O que você está fazendo?
            Finalmente eu entendia a resistência dele em me deixar entrar. Aquelas eram minhas lembranças e eu não o queria ali.
            Pare com isso!
            “Eu não estou fazendo nada, você não percebeu? É você mesmo quem está deixando escapar. Eu só estava... Bom, estava tentando lidar com os sentimentos que você trouxe para o meu corpo. Sabia que você a amava, mas eu não fazia ideia de que era assim. Já faz muito tempo para mim. Não gosto dessas sensações.”
            Sentimentos que eu trouxe para o seu corpo? Você está querendo dizer que está apaixonado pela minha mulher!?
            “Estou querendo dizer que você é apaixonado por ela. O que eu estou é ficando enjoado com o quanto! Trate de controlar suas emoções!”
            Talvez seja a minha identidade tentando se sobrepor à sua.
            “Pois guarde sua identidade para seu próprio corpo. Obrigado. Concentre-se nas paredes, como Mel nos ensinou.”

            — Logan — Estrela me chamou, interrompendo a discussão. — Nós vamos mover você agora, tudo bem?
            Meneei a cabeça, consentindo, mas tudo naquilo me incomodava. Eu sabia que era preciso preservar a energia do corpo de Jeb ao máximo, mas a sensação de impotência sempre foi opressiva demais para mim.
            “Também não gosto da ideia, mas a menos que você consiga mover minhas pernas melhor do que eu estava conseguindo, vamos ter que aceitar a situação.”
            Não respondi. Apenas deixei Ian e Jared levantarem o catre com meu corpo cansado e quase inerte em cima, e tentei me concentrar em não odiá-los por, neste momento, depender completamente da força deles. Jeb não disse nada, mas eu podia sentir a interrogação em sua mente.
            Não estou acostumado a precisar de ninguém.
            “Todo mundo precisa de alguém de vez em quando, garoto.”
            Pois eu não tenho boas lembranças das vezes em que precisei de ajuda.

            Fome. A sensação de estar sempre no limite entre o desejo minimamente satisfeito e o estômago vazio. Não era o suficiente para me matar ou mesmo para enfraquecer meu corpo. Apenas para manter minha mente prisioneira da próxima vez. Haveria uma próxima vez? Em que ponto o prato seria tirado de mim como se eu devesse ter controle de quando estar saciado?
            Trabalhar além de minhas forças. Sofrer as consequências se não o fizesse. Deixar tudo limpo, mas ter a sensação de estar sempre sujo. Nunca dizer nada a ninguém. Nem na escola, nem em lugar algum. Mesmo quando as marcas no meu corpo revelavam a verdade que todos se esforçavam por ignorar.
            Lindsay morrendo sem ajuda.

            “Essas lembranças são... suas?”
            Sim, minhas. Dele. Mas minhas também.
            Jeb não sabia nada sobre meu passado. Ninguém ali sabia, exceto Estrela. Mas não era nenhum segredo. Nada que eu fizesse questão de guardar. Eram só coisas sobre as quais eu nunca tinha achado necessário falar.
            “Quem eram aquelas pessoas?”
            Responsáveis. Lares provisórios.

            Silêncio. Não havia nada a dizer.

******

            Eu me sentia cansado, muito cansado.
            Algum tempo havia se passado e eu supunha que estivéssemos quase chegando, embora sem ver a estrada não desse para ter certeza de qual distância já tínhamos percorrido. Estávamos no furgão, meu corpo acomodado no chão forrado com lençóis e almofadas, enquanto Estrela ia ao meu lado e Jared e Mel iam à frente, conduzindo o veículo numa velocidade que alertaria qualquer Alma que calhasse de cruzar nosso caminho.
            Não pensamos nisso direito, a bem da verdade. Mesmo que estivéssemos acostumados a arranjos como aquele, seria mais prudente que Estrela estivesse dirigindo e os humanos ficassem escondidos aqui atrás comigo. Por outro lado, com a sensação em meu peito ficando mais opressiva a cada instante, a velocidade de Jared era mais desejável àquela altura.
            Teríamos que contar com a proteção da madrugada para que ninguém percebesse. E com o fato de que há anos as estradas ao redor de Picacho Peek, onde humanos tinham sido flagrados uma vez, já não eram mais vigiadas. Os Buscadores provavelmente acreditavam que os membros daquela resistência estivessem mortos, ou que tivessem fugido para longe. A natureza pacífica de nossa espécie tornava até mesmo os mais vigilantes imprudentes.
            “A ilusão de superioridade é a mãe da passividade.”
            A voz de Jeb estava fraca em minha mente agora. Vez ou outra, como naquela hora, ele completava um pensamento meu com algum de seus comentários sarcásticos, mas seus próprios raciocínios estavam ficando inacabados e escassos, e isso me assustava. Em condições normais, eu não acharia que a consciência dele pudesse sucumbir, mas mente e corpo estavam ligados, afinal, e a fraqueza deste alimentava a fraqueza daquela.
            Converse comigo, Jeb! Não caia no sono. Nós temos que ficar acordados.
            “Fácil pra você falar.”
            Não, não é fácil. Mas ainda me resta mais energia do que a você. E não é minha mente que está em risco aqui. Vamos, me ajude a te ajudar. Precisamos continuar conversando.

            Silêncio de novo. Um lampejo da mulher que dormia sob a lua do deserto passou pela minha cabeça. Eles faziam muito aquilo. Acampar sob as estrelas.

            Dormir... Sob as estrelas ou em qualquer lugar. Parecia tentador para mim também. Tanto que meus pensamentos perderam o sentido por alguns instantes. Fiquei apenas atribuindo cores e cheiros aos sons em minha cabeça, e insistindo em concluir um raciocínio qualquer que já não conseguia mais saber por que era importante.
           
            Norah. O nome me chamou de volta ao mesmo tempo em que o carinho que Estrela fez em meu cabelo me despertou. Embora eu não tivesse dito nada a ela sobre meu medo de que Jeb perdesse a consciência se eu dormisse, acho que ela compartilhava de meu receio. Toda vez que meus olhos se fechavam, ela me fazia acordar. Por causa disso, suspeitei que aquilo não fosse exatamente uma lembrança, mas, talvez, um fragmento de sonho.
            Jeb?
            Nenhuma resposta. Insisti.
            Jeb?
            “Ahn?”
            Nós estávamos mesmo dormindo, não é?
            “Parece que sim.”
            Não podemos deixar isso acontecer. Se dormirmos eu não vou saber se sua consciência continua aqui ou foi suprimida.
            “Não pretendo ir a lugar algum.”
            Eu sei. Nem eu pretendo deixar. Mas a supressão da consciência do hospedeiro é um processo natural e, no momento, precisamos estar alertas o bastante para controlá-lo. Então converse comigo.
            Eu podia falar com Estrela, ou mesmo com Mel ou Jared, pedir a ajuda deles para que suas mentes mais alertas, e certamente mais despertas, encontrassem algum assunto para nos manter distraídos, mas não estava certo se qualquer conversa do tipo manteria Jeb acordado. Além disso, era mais fácil assim, sem ter que de fato organizar minhas ideias em palavras pronunciáveis e compreensíveis. Até esse esforço me parecia demais.
            Me conte sobre a mulher, pedi, num último esforço para engendrar um diálogo.
            “Mulher?”
            Norah.
            Ela agora tinha um nome. E um rosto. Ou... antes... apenas a impressão de sua beleza. Eu podia ver seus olhos claros iluminados pela luz da fogueira, mas a imagem me foi tirada antes que eu pudesse saber mais. Ele ainda estava forte o suficiente para reprimir as lembranças que parecia acostumado a rejeitar.
            Nós sonhamos com ela, lembra?
            “Certo. Eu me lembro agora. Bem, não tem muito pra falar. Eu gostava dela. Ela me chutou. Fim. Não é meu assunto preferido.”
            Senti a onda de raiva que o pensamento liberou, como magma pulsante sob a rocha adormecida. Não queria forçá-lo a falar de coisas que lhe faziam mal, mas a raiva o despertava um pouco e eu realmente precisava que ele ficasse acordado, então continuei.
            Por quê?
            “Por que não é meu assunto preferido?”
            Por que não deu certo? Você a amava.
            “Às vezes isso não é suficiente.”
            Deveria ser.
            “O que você quer que eu diga, garoto? Eu já não pensava nisso há muito tempo. Você ainda não viveu aqui tempo suficiente para saber que é besteira procurar sentido em assuntos encerrados, mas eu sim. Esta conversa não me interessa.”
            Estamos falando disso porque o assunto desperta uma reação em você. Eu só estou tentando fazer você pensar em coisas que te deixem acordado. A lembrança voltou à sua mente duas vezes hoje. Deve haver uma razão.
            “Sim, a de que você nem está tentando trabalhar nas paredes entre nós. Em vez disso, está achando mais interessante desenterrar fantasmas indesejados e remexer em coisas que não te dizem respeito.”
            Tenho tanto controle das lembranças que me chegam quanto você. Mas, acredite, nada disso é interessante para mim.

            Eu também não gostava nada daquilo. Sabia que ele tinha visto lapsos de mim. Ou do humano cujas lembranças me moldaram. Quando mais cedo naquela noite, minha própria raiva tinha escorrido como areia fina pelas imperfeições de minha armadura traidora, eu sabia que ele vislumbrara o caminho das vielas escuras e sem saída de que tive que aprender a desviar. E eu não o queria ali. Não queria que ele me visse vulnerável ou que minha dor pudesse contaminá-lo. Não queria que ele sentisse pena de mim como sentiu.
            Então, sim, eu podia entender sua relutância. Podia entender que ele protegesse as causas de suas mágoas e as enterrasse no fundo da memória, onde ninguém mais pudesse adivinhá-las. Mais do que ninguém, eu sabia que certas coisas só mereciam o silêncio em nossas almas.
            Desculpe.       
            Foi apenas um minuto. Talvez dois. Um punhado de segundos em que, aborrecidos com a conversa e irritados um com o outro, permitimos que nossas mentes divagassem em direções independentes. Pode ser que tenha sido o balanço suave e constante do carro em movimento na estrada tranquila, ou que eu não tenha percebido os instantes se alongarem, como quando os diálogos de um filme não fazem mais sentido porque você não notou que o sono lhe roubou algumas frases.
            Desculpe.
            Aconteceu sem aviso, por causa de um descuido bobo, mas de repente a cena parecia mudada. As luzes tinham se apagado e o palco fora deixado só para mim. Chamei o nome de meu amigo algumas vezes, possuído pela necessidade cega de negar a verdade. Mas eu sabia.
            Jeb não estava mais ali.


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