terça-feira, 29 de julho de 2014

CD2 Capítulo 7


Capítulo 7 - Juntos

If this is to end in fire
Then we shall burn together
Watch the flames climb higher into the night
Calling out father, oh, stand by and we will
Watch the flames burn on and on
The mountainside

And if we should die tonight
Then we should all die together

(I See Fire – Ed Sheeran)



 Logan

            — E depois o quê? Nós apontamos uma arma para a cabeça de algum Curandeiro e o obrigamos a fazer o procedimento? — provocou Kyle. — Se ele não se mijar de medo antes... Pode dar certo. Até alguém apertar algum botão de pânico maluco e 458 buscadores aparecerem para nos pegar... É. Eu acho mesmo que isso pode dar certo.
            — Kyle, agora não é hora para ironia — Ian tentou corrigi-lo. Inutilmente.
            — Tem razão. Devo guardar todo o meu estoque de cinismo pra dizer para Almas apavoradas que eu não sou um humano com uma arma apontada para um deles.
            — Ninguém falou em apontar uma arma para eles. Logan tem um plano, não é? — disse Melanie, dirigindo-me um olhar esperançoso.
            — Eu tenho — garanti para tranquilizá-la, mas se eu pudesse ser mais específico, confessaria que ainda não, pelo menos não um plano completo e sem falhas.     Eu estava, na verdade, formulando-o naquele exato momento, ocupando minha mente com a análise de todos os possíveis reveses e de como contorná-los. Seria útil contar com a ajuda dos outros para isso, sem dúvida. Mas eu conhecia o suficiente dos humanos para saber que às vezes era muito mais importante parecer confiante do que ter argumentos. O medo que eles sentiam poderia facilmente desbancar qualquer plano, antes mesmo que ele tivesse uma chance de ser posto em prática. E, francamente, eu podia entender isso bem, já que estava tentando não me deixar derrotar por minha própria antecipação do quanto as coisas podiam dar errado.
            — Sahuarita — disse eu, porque precisava explicar que já tinha, pelo menos, uma boa ideia do que fazer. — Fica no mesmo condado de Tucson, o que significa que fica perto daqui. Nós já estivemos lá uma vez, durante uma incursão. É uma cidade pequena, por isso evitamos visitá-la com frequência, mas é grande o suficiente para não sermos reconhecidos como forasteiros assim facilmente. Será madrugada, talvez 3 horas da manhã, quando chegarmos lá. A Instalação de Cura é um lugar pequeno, pouco mais que uma clínica, e provavelmente estará vazia nesse horário.
            Uma luz se acendeu nos olhos de Estrela quando mencionei a cidade. Na verdade, tinha sido ela quem estivera lá, há cerca de dois anos, quando suspeitou que estivesse grávida e procurou uma Instalação para confirmar. Era ela quem tinha me dito que o lugar era pequeno, e que devíamos mantê-lo em mente no caso de um dia precisarmos conseguir remédios rapidamente. Então, bem, acho que o momento chegou, embora precisemos de algo mais complicado do que poucos frascos que possamos roubar.
            — Haverá alguém na recepção e um Curandeiro para o caso de emergências — disse ela em meu apoio, tentando resgatar tudo o que se lembrava sobre a dinâmica noturna das Instalações de Cura. — Talvez alguém trabalhando na limpeza, algum aprendiz que tenha ficado para trás, dando assistência a alguém. Mas não creio que haja mais do que quatro ou cinco pessoas transitando por ali às 3 da manhã. E a viagem não é muito longa, Jeb pode aguentar. Não precisamos nos preocupar que eles não tenham o necessário, porque todas as Instalações são perfeitamente equipadas, por menores que sejam. Pode ser uma boa solução.
            — Certo. Nós vamos precisar de alguém que entre primeiro e alegue algum mal-estar simples, algo que possa ser resolvido rapidamente, apenas para checar quantas pessoas estão lá dentro. Depois, criaremos uma distração.
            — Eu posso fazer isso — disse Mel, ansiosa por ajudar. — Posso quebrar algo, fazer barulho e depois sair correndo para longe.
            — De jeito nenhum — Jared e eu dissemos em uníssono.
            Melanie nos olhou com sua expressão costumeira de desafio. Ela não aceitaria o que chamava de “baboseira de macho protetor”.
            — Eu posso cuidar de mim mesma melhor do que todo mundo aqui. Fiz isso durante anos e eu era só uma criança. Então, só pra constar, valeu a tentativa, mas não preciso que vocês me protejam. Vou fazer o que tiver que fazer para ajudar e pronto.
            — Não se trata disso, Mel — objetei, porque, de fato, não se tratava. — Mas qualquer distração que um de vocês, humanos, possa causar, se esgotará rapidamente. Nós vamos precisar de mais tempo do que isso. Algo que não só os atraia todos para fora, como também que os mantenha ocupados por vários minutos. Além do mais, não podemos arriscar que um de vocês seja pego. Nós podemos sustentar qualquer mentira, simplesmente porque somos Almas, mas a presença de humanos não é algo que possamos encobrir.
            — Mas você e Estrela não vão conseguir fazer isso sozinhos — insistiu Melanie.
            — Eu sei. É por isso que vamos precisar que ao menos uma das garotas nos ajude — respondi, tendo em mente incluir Sunny e Peg em meus planos, já que humanos só tornariam tudo mais perigoso do que já era.
            — Nem pensar — Kyle vociferou, sem conseguir conter sua irritação, mesmo que Doc olhasse feio para ele.
            Ian, pelo menos, teve a decência de respeitar o hospital e a delicadeza de não se opor diretamente a mim ou a Mel, ciente de que aquilo provavelmente geraria um enfrentamento desnecessário naquele momento, mas sua postura e expressão deixavam claro que ele concordava com o irmão. No que dependesse deles, nenhuma das duas teria qualquer coisa a ver com aquela aventura arriscada. E foi quando me dei conta disso que, finalmente, minha própria irritação veio à tona e já não pôde mais ser contida.
            — Bem, acho que a decisão pertence a elas, não é? Não a vocês. Eu entendo o instinto de protegê-las. Acreditem, das coisas deste mundo essa é a que mais faz sentido para mim, e, por isso mesmo, se eu achasse que uma delas correria perigo, iria sozinho. Ou vocês acham que eu arriscaria a segurança de Peg ou Sunny? Acham que eu arriscaria a vida de minha própria mulher, da mãe de minha filha?
            — Não, você não arriscaria — disse Ian, sendo razoável como Kyle provavelmente não seria capaz de ser, ainda que soubesse o significado da palavra. — Mas você não está agindo como você mesmo, Logan. Quando se trata de Jeb, você perde o foco. E por mais que ache que tem as coisas sob controle, não pode negar que isso é perigoso.
            — Nenhum de nós está em perigo de verdade, a menos que esteja acompanhado de um humano. Por mais que vocês não gostem de admitir isso, sabem que é verdade.
            — Certo, nada de humanos, então — disse Kyle. — Pensando bem, você até que tem razão. Três ou quatro Almas poderiam fazer isso dar certo, mas o que vocês pretendem fazer com relação a Jeb? Afinal, o propósito da coisa toda é colocá-lo lá dentro, mas não é como se desse para disfarçar quem ele é.
            — Bem, esse é o objetivo da distração, não é? — interferiu Mel. — Nós o colocamos lá dentro sem ninguém ver. Estrela faz a cirurgia e depois nós damos um jeito de tirá-lo de lá.
            — Olha, Mel... — Jared hesitou por uns segundos, depois pareceu tomar coragem de dizer algo que ele sabia que não seria bem recebido. — Logan... Eu entendo o empenho de vocês, mas nenhum dos dois está sendo racional. Eu também me importo com ele, não quero... — ele bufou e balançou a cabeça, hesitando mais uma vez. — Não quero que aconteça o pior, mas alguém precisa pensar como Jeb pensaria. E ele não ia querer que arriscássemos todo mundo por ele.
            — Então a gente senta e espera ele morrer. É isso? — retrucou Melanie.
            Não.
            — Pessoas morrem, filha — uma voz fraca, mas resoluta decretou.
            Enquanto discutíamos, Jeb tinha acordado e ouvido parte da conversa, provavelmente o trecho em que Jared apelava para que fôssemos racionais e não colocássemos o grupo todo em risco por causa de um só.
            — Não tente se sentar, Jeb, você precisa ficar deitado por causa da circulação — aconselhou Doc, já ao lado dele quando meu amigo tentou, imprudentemente, içar o corpo sobre o catre, caindo para trás de novo imediatamente.
            Jeb se esforçou para falar. Ele parecia pálido e ofegante. O esforço que tinha tentado fazer o exaurira e sua respiração era curta, embora sua expressão não denotasse dor.
            — Desistam. Eu não vou... — Mais esforço e mais dificuldade em respirar. Doc e Estrela estavam ao lado dele, mas não havia nada que pudessem fazer. Era quase penoso de olhar. — A lugar nenhum... Não vou a lugar nenhum.
            Simples. Direto. Preciso. Um perfeito Stryder. O mesmo velho ganso teimoso de sempre.
            O mesmo velho teimoso que não chegaria ao dia de amanhã.
            — Bem, que pena que você não esteja em condições de fazer nada para evitar. Porque eu sim estou em condições de fazer o que quiser. Saímos em 20 minutos. Estrela, esteja pronta.
            Beijei-a suavemente na testa, sentindo que ela assentia em meu benefício, mas que estava preocupada. Eu tinha que encontrar uma maneira realmente eficiente de solucionar tudo, e essa ideia me sobrecarregava. De repente, aquele lugar, aquelas pessoas, a iminência das coisas... Tudo aquilo foi demais para mim e tive que me afastar.
            Ouvi Jeb chamar meu nome. A voz fraca não tornava a demanda do chamado menos exigente e meu primeiro instinto foi o de atendê-lo. Mesmo assim, não voltei atrás. Pela primeira vez desde que o conheci, eu sabia o que ele ia dizer. E pela primeira vez, eu não queria ouvir.

******

            Entrei em meu quarto pretendendo arrumar às pressas uma bolsa para a incursão. Tinha que pegar a roupa que me identificasse como Buscador, além de uma outra mais comum, porque eu ainda não tinha certeza do que seria melhor. Minha arma não ficava mais aqui desde que Lindsay começou a andar e a mexer em tudo. Então eu precisava correr ao esconderijo alto entre as pedras do depósito, onde passamos a guardá-la.
            Também precisava ir até Peg e Sunny, se é que Ian e Kyle já não teriam feito isso, e eu provavelmente teria que enfrentar a resistência deles novamente. Mas que fosse. Eu o faria. Ter que me despedir de minha filha é o que seria mais difícil. Neste exato momento, eu precisava do sorriso de Lindsay, da vozinha dela em meu ouvido, quase tanto quanto de ar, mas, ao mesmo tempo, desejava que ela não estivesse acordada para que eu não tivesse que explicar. Por uma razão que arranhava os cantos de meus pensamentos, mas que eu não estava pronto para admitir, simplesmente pareceria errado demais dizer que voltaria logo.
            E, então, depois de tudo, eu certamente teria que dizer a Melanie que ficasse, argumentar que ela seria de mais ajuda aqui, onde poderia coordenar, ao lado de Jared, uma evacuação de emergência. Uma fuga. Caso as coisas dessem errado.
            O que eu estava fazendo?
            As coisas podiam dar errado. E muito. Meu plano era todo cheio de furos e só ia até certo ponto. Peg podia entrar, alegando uma enxaqueca ou algo assim, andar pelos corredores com alguma desculpa e checar quantas Almas teríamos que enganar. Mas não havia como garantir que não houvesse alguém que lhe escapasse e que poderia se tornar um problema no momento decisivo, como um Curandeiro fechado em um quarto tirando um cochilo, por exemplo.
            Eu podia causar danos sérios a mim mesmo, simular um acidente que me fizesse sangrar o suficiente para desmaiar. Então Sunny causaria uma comoção, pediria socorro para o irmão que tinha caído no estacionamento antes de conseguir completar o percurso até a entrada. Mas como garantir que todos os presentes sairiam em meu auxílio? E o quão prudente era estar desacordado quando eu era a principal linha de defesa das garotas, caso houvesse Buscadores por perto?
            Jeb seria levado para dentro quando Sunny tivesse conseguido atrair as Almas para fora e a entrada ficasse livre. Alguém forte teria que se encarregar de transportá-lo, provavelmente Kyle ou Ian, já que eu não imaginava nenhum dos dois ficando aqui enquanto suas mulheres estivessem lá fora. Estrela faria o que fosse preciso e eu, recuperado, encontraria uma maneira de tirá-los de lá. Supondo que tudo funcionasse do jeito previsto e eles não fossem descobertos antes do tempo. Mas e se caso isso acontecesse, o que faríamos? O velho plano suicida que eu tanto rechaçara? Ou eu seria capaz de agir com violência contra outras Almas, meus semelhantes?
            Era insustentável. Meu suposto plano era ingênuo, incompleto e absurdo.
            Talvez nós conseguíssemos, mas talvez eu condenasse a todos. E eu não podia. Jared tinha razão, nós não podíamos. Mesmo que do outro lado da balança pendesse a vida daquele que salvou a todos nós.
            Eu podia entender a lógica disso, deste equilíbrio obscuro entre o que tem valor para nós e o que é realmente importante no quadro geral das coisas. Avaliar esse quadro e agir de acordo com ele estava na natureza de minha espécie. Ainda assim, eu não era mais o mesmo e não conseguia mais aceitar que tivéssemos que fazer esse tipo de escolha. O valor de um indivíduo em oposição ao valor do grupo. A resposta era óbvia até mesmo para um humano, mais acostumado à dureza de escolhas egoístas. Mesmo assim, o que era claro como água nunca me pareceu tão errado.
            Como poderia ser certo simplesmente cruzar os braços e deixá-lo partir?
            Sentei-me no chão, no espaço apertado entre a pequena cômoda e o berço que Jeb fez à mão para Lindsay, antes mesmo de ela nascer. Não vi quando minhas mãos, movendo-se além de qualquer comando, se fecharam em punhos, mas senti-me poderosamente ciente da frustração se acumulando, prestes a explodir. Eu queria bater em alguma coisa, socar a primeira superfície que pudesse alcançar. Não pude evitar que os nós dos dedos de minha mão esquerda se espatifassem contra a madeira da lateral da cômoda, a pele ralando-se com a força do impacto, a dor se espalhando pelos ossos delicadamente intrincados da mão.
            Era algo estúpido de se fazer. A primeira coisa que alguém que já foi obrigado a usar os punhos aprende, é que existe só uma coisa que dói quase tanto quanto levar um soco: ter que desferir um. Na academia de polícia aprende-se a maneira certa de se fazer isso, um jeito de causar menos dano, mas eu não estava interessado em me preservar. Talvez a dor trouxesse alguma clareza. Talvez pudesse suavizar o que eu sentia por dentro.
            — Você não está pelado aí nem nada, né? — A voz irritante ribombou como um trovão, e muito me surpreendeu que não tivesse acordado todos nos quartos ao redor.
            — Saia daqui, Kyle!
            — Estou entrando. E é bom você estar decente senão quebro sua cara. — Ele já estava praticamente dentro de meu quarto quando disse isso, e olhou para a madeira quebrada com desdém, como se aquilo parecesse normal para ele. — Canhoto, é? Nunca tinha reparado. Você deveria ter usado o travesseiro ou batido no colchão. É meio ridículo, mas pelo menos a raiva vai embora sem levar sua carne junto, imbecil.
            — Gentil de sua parte se preocupar. Agora saia daqui.
            — Não estou preocupado. Mas Estrela está. E todo mundo também.
            — E dentre todos, você foi a escolha mais óbvia para vir até aqui me dissuadir? Estranho.
            — Escolha? — Kyle riu alto. — Não houve bem uma convenção para decidir quem vinha ver como a boneca estava. Seu chilique não é exatamente prioridade. Se você não notou, temos problemas maiores.
            — Não, nem tinha notado. Ainda bem que você me avisou. Mas e agora? Vai começar logo a despejar as razões pelas quais devemos deixar Jeb morrer, ou vai sair daqui e me deixar pensar direito?
            — Certo. Porque você está tendo muito sucesso nisso. Obviamente. — Ele não precisava apontar para as lascas de madeira no chão ou para meu estado deplorável e confuso para que eu entendesse a provocação, mas mesmo assim o fez, porque aquele era Kyle O’Shea, afinal de contas, e ele não perderia a oportunidade. — Bem se vê que você está com tudo resolvido nessa sua cabeça oca.
            — De qualquer jeito, eu sou o único que parece disposto a tentar.
            — Aham, Superman, porque sem você o que seria da humanidade? Não sabia que Almas também podiam vir de Krypton.   
            Eu ia perguntar do que ele estava falando, mas a verdade é que não havia energia em mim, ou vontade, ou neurônios para serem gastos com as brincadeiras inoportunas de Kyle, então simplesmente fiquei em silêncio.
            — Você não sabe mesmo pedir ajuda, não é? — ele continuou.
            — Quê!? Você veio... me ajudar!?
            — De jeito nenhum. Não vou deixar você sair daqui com esse seu plano capenga. Acredite, cara, não estou só cuidando de todo mundo, estou protegendo você de si mesmo também.
            Ele tinha se esborrachado na minha cama, agindo como se o lugar fosse dele. A única coisa que me impedia de ignorar essa conversa estranha e ir embora carregando Jeb era que Kyle estava entre eu e a porta. Mas do jeito que as coisas estavam indo, eu passaria por cima dele sem nenhum remorso, se ele não tivesse se sentado e continuado a falar:
            — Olha só, eu sei que você não está nem aí quando eu digo que não vou te deixar sair, porque você vai tentar de qualquer jeito. Mas você também sabe que eu não vou sair daqui, não importa o que você faça. Então só cala a boca e escuta, tá?
            — Não tenho tempo para...
            — Eu disse pra você calar a boca. Tenha um pouco de respeito, porque eu estou tentando dizer uma coisa e já é difícil o suficiente admitir para mim mesmo, tanto mais deixar você saber...
            Eu ia articular alguma coisa em resposta. De fato, abri a boca para fazê-lo, mas não encontrei nenhuma palavra. Eu podia escutá-lo por alguns segundos ou podia derrubá-lo, ir embora e me arrepender depois. No fim, optei por escutar.
            — A verdade é que... eu respeito você. Admiro sua lealdade. Sei que você provavelmente está pensando em me dar uma gravata ou um soco na cara, qualquer coisa que te ajude a passar por mim, e eu gosto disso. Gosto de gente que sabe o que precisa fazer e faz sem pestanejar. Como eu.
            Ele ficou em silêncio por um segundo, deixando suas palavras assentarem em minha consciência, ou talvez pensando no que diria a seguir. Eu não sabia o que dizer, exceto que entendia o que ele estava falando. Por menos que eu gostasse de admitir, via muito de mim em Kyle. Então ele deu um suspiro pensativo, daqueles que ficavam muito estranhos nele, depois continuou:
            — Você sabe sobre Jodi, não é? O que eu fiz antes de vocês chegarem aqui?
            É claro que eu sabia a história sobre como Sunny tinha vindo parar neste lugar. Kyle certamente estava ciente disso e a pergunta era, obviamente, retórica. Mesmo assim, ele parecia esperar por uma resposta, então assenti, confirmando.
            — Acho que isso faz de mim o maior especialista local em pôr as pessoas em perigo, porque as coisas podiam ter dado totalmente errado e eu sabia disso. Mesmo assim, não pensei em meu irmão ou em mais ninguém aqui quando fiz aquilo. Simplesmente ignorei todos os riscos.
            Kyle fez outra pausa durante a qual eu só fiquei observando aquele homem que, de uma forma completamente imprevista, tinha se tornado uma espécie de “irmão de armas”, um amigo na acepção mais tipicamente humana da palavra. Pensei um pouco no que estava ouvindo enquanto o analisava. Eu sempre soube que ele era mais inteligente do que sua brutalidade ensaiada deixavam antever, mas ele nunca tinha me parecido tão sofrido, nem muito menos tão centrado quanto agora.
            — Gosto de pensar que aprendi a lição, mas a verdade é que eu tive sorte. E a sorte é uma péssima professora. Quando penso naquele dia, quando penso que Sunny não estaria aqui e que eu nunca teria certeza de que Jodi se foi de verdade, eu sei, sem precisar ir muito fundo, que faria tudo de novo. E não tem um dia em que eu não pense em fazer o mesmo pelo meu pai...
            — Ele também se foi, Kyle. Eu sinto muito, de verdade. Mas...
            — Eu sei, eu sei. Tudo o que eu teria seria outra Alma sequestrada num corpo do qual eu não conseguiria dispor. Eu sei. Ian e eu já tivemos essa conversa muitas vezes. Mas o meu ponto é: eu sei o que você está sentindo. Talvez eu seja a pessoa que mais entende você neste momento. E tenho certeza de que se eu não te ajudar, você vai fazer uma besteira como a que eu fiz, e como a que eu penso em fazer todos os dias, e pode ser que você não tenha tanta sorte quanto eu. Pode ser que você coloque minha família e a sua em perigo. Meu sobrinho Johnny e a Lindy, e todo o resto das pessoas que amamos e até as que não gostamos tanto.
            — Então você veio aqui para... — Pensei por um momento, mas a verdade é que eu estava cansado, confuso e assustado, minha mente não estava trabalhando em seu melhor. — O que você veio fazer aqui, afinal?
            — Vim impedir você de arriscar todo mundo e te ajudar a pensar num jeito de salvar o seu velho.
            Meu velho?
            — Bom, um pouco de ajuda poderia ser útil. Então acho que... obrigado? — testei, meio sem graça, mas a palavra pareceu boa, afinal. Adequada. Momentos assim eram estranhos pra mim, mas era bom sentir que havia um amigo disposto a ponderar comigo, mesmo que pensar em Kyle dessa maneira sempre parecesse um pouco insólito. — A verdade é que essa conversa toda me desarmou e... eu realmente estou me sentindo sozinho o suficiente para não ser o cara orgulhoso que posso ser às vezes.
            — Ah, viu? Eu quase gosto de você quando não está agindo como um babaca arrogante e metido a autossuficiente.
            Tive que rir dessa vez. E o som saiu raspado de minha garganta como se fosse a coisa mais estranha que meu corpo podia produzir. Acho que fazia tempo que eu não ria.
            — Tarde demais para “eu quase gosto de você” — retruquei. — Você acabou de declarar seu amor por mim. É meio que irreversível quando se é assim tão romântico!
            Eu realmente estou brincando quando o mundo está desmoronando ao meu redor?
            Tirei um segundo para ficar atônito comigo mesmo. Kyle era a única pessoa que conseguia esse efeito. Ele era capaz de me levar da irritação profunda à brincadeira inconsequente e atípica de mim em segundos. Eu não sabia se isso era bom ou ruim, mas, no momento, me fez sentir melhor.
            — Eu disse que te respeitava, nunca disse que gostava de você, seu merda! E se você contar a alguém que eu falei essas coisas, eu nego e depois quebro sua cara.
            — Bom, acho que, nessas circunstâncias, tentar quebrar minha cara seria o mesmo que confessar que me ama. Mas tudo bem, cara. Eu respeito isso. E “respeito” você também. — Fiz questão de fazer aspas no ar para provocá-lo, e então completei: — Às vezes. Quando você não está sendo um babaca arrogante e metido a autossuficiente.
            — Rá rá! Então somos iguais, é isso? Pena que você não consegue ser engraçado como eu. E nem criativo, porque, francamente, esse seu plano é uma merda!
            — Eu sei — confessei, voltando a me sentir aturdido diante de tanta impotência.
            — Bom, então vamos fazer com que ele deixe de ser tão ruim. A coisa toda de entrarmos escondido até que não é má ideia, o problema é que se você vai estar ocupado distraindo os caras lá na frente, algum de nós vai precisar entrar carregando Jeb, porque ele não vai conseguir chegar sozinho. Mas mesmo que eu consiga entrar e sair sem ser notado, Jeb ainda estará lá dentro. Estou supondo que no fim ele vai estar bem o suficiente para sair com as próprias pernas, então o humano que entrar com ele, provavelmente euzinho aqui, não vai precisar ficar lá dentro. Só que quando ele estivesse saindo, teríamos que arrumar uma nova distração.
            — Ou outra saída — conjecturei. — Se ao menos houvesse uma saída lateral, ou nos fundos... Se não souberem que vocês estão lá dentro, não há motivo para vigiarem uma porta menos utilizada, por exemplo. Aliás, não há motivo para nem um tipo de vigilância.
            — É uma possibilidade, mas para isso teríamos que garantir que conseguiríamos entrar sem problemas. E que também não seríamos pegos em flagrante enquanto Estrela estivesse trabalhando. Eu não teria problemas em deixar alguém desacordado, se for preciso. Mas isso complicaria consideravelmente as coisas. Principalmente porque eles saberiam que há humanos sendo ajudados por Almas em algum lugar das redondezas. Eles poderiam vir atrás de nós depois.
            — Isso sem contar que você estaria sozinho para garantir a sua segurança e a de Estrela e Jeb. Se você for pego de surpresa e não conseguir reagir...
            — Pouco provável — Kyle me interrompeu.
            — Bastante provável — continuei. — Tanto quanto eles chamarem ajuda quando perceberem algo errado e vocês acabarem cercados por Buscadores.
            — E se você o levasse dizendo que Jeb é um de vocês? Ele tem a cicatriz na nuca. Todos nós fizemos uma por precaução. Assim ele entraria sem problemas, nós não precisaríamos nos preocupar em sermos flagrados em plena cirurgia, e poderíamos reservar a distração para a hora de irmos embora.
            — É arriscado também. Em algum momento eles o despertariam.
            — E assim que ele abrisse os olhos estaria acabado. Verdade.
            Kyle soltou um palavrão qualquer e eu deixei escapar o ar num bufo de frustração. Parecia não haver saída do labirinto em que nossas mentes perambulavam, as paredes se fechando bruscamente cada vez que tentávamos nos iludir com uma solução.
            De todas as coisas com que me defrontei, de todas as coisas com que tinha aprendido a me preocupar, a irreversibilidade da morte para os humanos era a pior delas. Quando chegar a hora de meu hospedeiro eu ficarei com ele, enfrentarei essa inevitabilidade da qual não se pode escapar indefinidamente. É uma decisão que todos nós daqui tomamos, assim como Peg antes de nós, porque este é nosso lugar no universo e não podemos sobreviver a ele. Estou em paz com isso. Mas isso não quer dizer que aceitei não lutar quando se trata dos outros, quando se trata de uma vida que poderia ser salva com tanta facilidade.
            Tudo poderia ser muito fácil. Tudo deveria ser muito fácil. Se Jeb fosse um de nós, o problema já estaria resolvido. Ninguém questionaria seu direito de existir, ninguém tentaria torná-lo o que não é ou o consideraria uma ameaça a ser eliminada. Conhecê-lo não teria importância, porque ele seria como qualquer outro de nós. E era aí que estava o grande paradoxo, porque conhecê-lo era saber que ele precisava viver, que este lugar e as pessoas daqui precisavam dele. Que eu precisava dele. Mas sua humanidade, aquilo que, ironicamente, o tornava especial, era o que o mataria no final das contas.
            Se ao menos...
            — Kyle!
            Percebi que tinha quase gritado quando ele deu uma espécie de pulo ao levantar os olhos perdidos para mim. Levantei-me finalmente do canto onde tinha estado por tanto tempo derrotado. Não havia mais tempo a perder. Tudo estaria resolvido ao amanhecer.
            — Estava na nossa cara o tempo todo! — De uma hora para outra, era como se tudo que antes era impenetrável e impossível fosse razoável e simples, exequível. Como se as luzes de uma cidade vista ao longe se acendessem todas de uma única vez após um blecaute. —Como foi que não vimos isso antes? Céus! Quer dizer, era tão fácil! Bom, fácil, não. Mas é a única solução. E era tão óbvio!
            — Quer se acalmar e me dizer do que está falando? O que estava na nossa cara o tempo todo?
            — É simples: se nós não podemos levar um humano até lá, não levaremos. Eu vou no lugar dele.
            — Cara, você ainda está falando grego pra mim. Eu pensei que o problema todo fosse que o Jeb tem que estar lá por causa da máquina de circulação, ou sei lá o quê.
            — Bem, o corpo dele precisa estar.
            A expressão de Kyle passou gradativamente da neutralidade para a descrença, e então para a estupefação. Fazia sentido, ele não podia negar. Daria certo, isso também era difícil de contestar. Mas só porque era óbvio não queria dizer que não fosse a ideia mais maluca que eu poderia ter.
            — Meu Deus. Você tentando convencê-lo... — Kyle riu alto, quase gargalhando. — Por favor, diga que vai me deixar ver isso.
            De fato, eu teria uma conversa difícil pela frente. Mas não estava nem perto de ser a pior coisa desta noite. E desta vez eu não seria demovido por nada.
           



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