Aí você vai para a cama pensando em
uma história que leu, acorda com uma cena específica na cabeça (talvez uma
daquelas inquietantes que parecem não ter importância alguma, mas têm), cumpre
suas obrigações do dia, dorme de novo tem filhos, netos, bisnetos, e a
coisa toda ainda não saiu da sua cabeça.
E não é que o tal livro não seja
maravilhoso, o que poderia até justificar a obsessão, mas não é bem isso que te
inquieta, certo? Convenhamos, se você é como eu, provavelmente está imaginando
qual será a história por trás e/ou à frente daquele personagem secundário pelo
qual você se apaixonou, mas sobre quem o protagonista não fala tanto quanto
você queria saber.
Talvez até, quem sabe, você esteja
se perguntando que tipo de coisa passou pela cabeça do personagem que estava do
outro lado daquela conversa tão intensa, vista apenas pelo ponto de vista do narrador
em primeira pessoa. (Eu sei que eu
imagino essas coisas o tempo inteiro!)
E se fosse apenas isso... Mas ainda
existem as lacunas. Ah, as lacunas me deixam louca! O que acontece depois do
final? O que acontece entre o último capítulo e o epílogo que se passa tempos
depois? O que aconteceu antes do início? O que aconteceu...?
A ansiedade de preencher essas
lacunas foi o que me trouxe para o universo das fics — tanto como leitora,
quanto como autora —, mas são todas perguntas que partiram da parcialidade do
foco narrativo em primeira pessoa, se você reparar bem.
Quer dizer, não é que a terceira
pessoa faça milagre, quando o que você quer é uma prequência, por exemplo, ou
então uma continuação, não é o foco narrativo que vai resolver a questão,
claro. No entanto, um narrador onisciente pode proporcionar uma distribuição
mais equilibrada, por assim dizer, dos detalhes a que o leitor vai se atentar.
Enquanto o foco narrativo em
primeira pessoa é vertical, porque permite um mergulho profundo e intenso nos
pensamentos de um único personagem que conta a história, o narrador em terceira
é mais horizontal, porque de seu ponto de vista vemos um pouco de cada um e
temos uma visão mais ampla das situações.
Isso é interessante não apenas
quando falamos de sentimentos, reações e background
dos personagens, mas também em termos de agilidade de enredo. Quando pensamos
em uma história mais complexa que tenha, por exemplo, acontecimentos
simultâneos em lugares muito distantes entre si, além de um número grande de
personagens, um narrador onisciente acaba sendo um excelente negócio para escritor
e leitor.
O Código da Vinci de Dan Brown é um
livro bem conhecido que pode ser citado como exemplo aqui. Seu enredo viaja por
vários pontos de Paris, mas também passa por outros lugares da Europa, como a
Capela de Rosslyn, na Escócia. Os personagens transitam por esses vários
cenários e nunca ficam em contato por tempo suficiente para que a história
possa ser contada por apenas um deles sem parecer incompleta.
Além disso, a trama que mistura
arte, história, religião e uma boa dose de ficção muito bem trabalhada, te
absorve por completo, justamente por causa de como os acontecimentos parecem,
de início, sem relação entre si. Você não consegue parar de ler, porque com
tanta coisa para ser esclarecida e tantos personagens importantes, o autor
acaba tendo que criar ramificações e histórias paralelas que só vão se
entrelaçar perto do final. A forma como Brown intercala as situações enche o
leitor de ansiedade pelo próximo capítulo e pela possibilidade de acompanhar o
desenrolar de uma das pontas que ficou em aberto para que outra se
desenvolvesse.
Em suma, o que se pode tirar desse
exemplo é que quando o foco do enredo não está na profundidade das relações,
mas no dinamismo da aventura; e quando a história abrange uma gama ampla de
locações e personagens ou mesmo um espaço muito grande de tempo, o foco
narrativo em terceira pessoa é a melhor escolha.
Afinal, tudo o que torna O Código da
Vinci e todos os outros livros desse autor viciantes seria impossível sem um
narrador onisciente e onipresente, verdadeiramente capaz de dar vida a uma
aventura intrincada e eletrizante. Alguém que seja, enfim, poderoso como apenas
os seres divinos e os narradores em terceira pessoa podem ser.
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