“Sou o vampiro Lestat.”
Essas palavras abrem o livro O Vampiro Lestat de Anne Rice, e também
uma porta que nunca se fecharia para mim. Eu tinha 12 ou 13 anos e o vampiro
louro de olhos cor de violeta e pendores artísticos, com sua personalidade
inquieta e seu caráter dúbio, se tornaria o meu primeiro amor literário.
A partir daquelas quatro palavras
simples e diretas, o personagem que eu já conhecia através da interpretação
afetada de Tom Cruise em Entrevista com o Vampiro, ou pelos olhos melancólicos
de Louis, para quem Lestat não passava justificadamente de seu criador
de comportamento psicopata, mudaria. Eu perdoaria seus pecados, porque
entenderia a dor por trás deles; toleraria sua conduta ambígua, porque ele era meu humano-vampiro-monstro-príncipe. Não
da Anne Rice, mas meu, porque eu o conhecia. Eu o entendia. Meu Príncipe
Moleque. Aquele que eu amaria para sempre.
Esse é o tipo de coisa que o foco
narrativo em primeira pessoa faz com você. Mergulhar nas emoções de um
personagem através dos próprios olhos dele faz você se enredar em suas
revoluções internas como numa teia inescapável. A intensidade disso é avassaladora
e só pode ser proporcionada por alguém que está contando a história de dentro —
de si mesmo, inclusive.
Grandes mestres da literatura sabiam
disso. Edgar Allan Poe, por exemplo, explorou o terror de não sabermos se as
coisas que horrorizavam seus narradores-personagens eram ameaças reais ou
simples produtos de suas imaginações deturpadas. Ou se a reviravolta seguinte de
suas vidas atormentadas estava na próxima esquina ou nunca iria acontecer.
Foi dele também a ideia de um
detetive brilhante com um parceiro. Um sidekick
narrando tudo num ritmo mais lento do que o da mente prodigiosa de seu
companheiro genial, controlando o fluxo das informações de uma maneira que o
mistério parecesse se resolver aos poucos, à medida que o investigador vai
revelando ao amigo onde as peças do quebra-cabeça se encaixam.
Mais tarde, Sir Arthur Conan Doyle
usaria essa técnica e a tornaria icônica através de Sherlock Holmes e Watson. Entender
o que se passa na mente do genial morador da Baker Street sem que ele mesmo o
revele a Watson não teria a menor graça. Contadas pelo próprio Holmes (sim,
existem, e eu já li algumas), as histórias terminam muito mais rápido, porque o
ritmo do raciocínio dele é outro, e essa é graça do personagem, mas não de uma
narrativa de mistério.
Parece óbvio, mas ainda não era
elementar naquela época, e todos os fãs de CSI da vida devem gratidão eterna a
esses dois autores geniais que souberam manejar a primeira pessoa a favor do
paradigma indiciário (sim, a maneira de se investigar nos dias de hoje tem
nome, e eu sei porque sou phoda já li um texto sobre isso). Sendo assim,
obrigada Senhor pelo Poe e pelo Doyle. Assinado: Fã de CSI (e franquias), Law
and Order (e franquias), Criminal Minds, Mentalist, House (sim, pessoas, House
= Holmes, Wilson = Watson, e, não, não é mera coincidência) etc.
Mas se não houvesse o americano e o
inglês para dar graças, euzinha aqui, fã de literatura brasileira que sou, ainda
teria que cair de joelhos e não levantar mais. Porque sabe que outro autor era
genial no manejo da primeira pessoa? Se você pensou nele, vem cá e dá um
abraço. Estou falando de Machado de Assis.
O cara. O Bruxo do Cosme Velho.
Aquele que fazia magia com as palavras. (Já deu pra notar a devoção, né? Então
se não compartilhar, senta num cantinho e come uns biscoitos para não acabar a
amizade.)
Um de seus livros mais importantes,
Dom Casmurro, é a história de uma dúvida. Capitu traiu ou não traiu? Bento
destruiu o próprio casamento por um motivo legítimo ou o ciúme o transformou em
uma versão horrível de si mesmo? Ao longo da história você tem evidências para
ambas as versões. Mas a dúvida permanecerá para sempre, espelhando seu próprio
caráter através de como você percebe e explora essas evidências, por causa de
um detalhe fundamental: a história é contada pelo “traído”. E quem pode confiar
na mente de alguém consumido desde sempre pela insegurança e pelo ciúme?
Esses são apenas alguns exemplos. Eu
teria coisas a dizer sobre vários outros livros que considero esplêndidos e
cujos autores souberam manusear as possibilidades do foco narrativo em primeira
pessoa quase como uma arma. O Menino do Pijama Listrado de John Boyne (o filme
não passa nem perto do poder do livro, justamente por causa do uso de um
narrador ingênuo que não enxerga o mesmo que o leitor), A Culpa é das Estrelas de
John Green DFTBA, nerdfighters (aposto que você não percebeu, mas o foco
narrativo determina o desfecho), Eu Sou o Mensageiro de Markus Zuzak lindo,
querido, amo (você nunca entenderia a “mensagem” em terceira pessoa), e uma
fila de outros.
Então, está mais do que comprovado
quais são as vantagens do narrador-personagem. Entretanto, não nos apressemos
em sua defesa irrestrita, pois ele tem suas limitações. Mas acho que prefiro
demonstrá-las através das vantagens do narrador-observador. Portanto, fique
comigo mais um pouco.
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