domingo, 23 de junho de 2013

CD - Capítulo 5

POV Estrela

Os dias passaram-se sonolentos e devagar.

Para mim, o sol se demorava a se pôr e a se erguer, divertindo-se à custa de minha mente perturbada.
O sol daqui, ao mesmo tempo em que era atordoante, não era quente o bastante. Não quente o bastante para que eu pudesse me sentir em casa, sob aquele sol entorpecedor, que aquecia a todos nas cavernas, que alimentava o melões-cantapulo de Jeb, que dava aos humanos força para capinar a terra dura no calor que antecedia as adoráveis monções.

Eu queria tanto, tanto, estar em casa... Ouvir a voz de Ian, ver a cor dos seus olhos. Ouvir a risada de Jamie, ver a cara de pôquer de Jeb, os leques nos olhos de Jared, o sorriso do êxtase da vida entregue de volta à Melanie, o doce olhar de Sunny, os passes invencíveis de Kyle no futebol e o seu olhar constantemente desconectado, a rápida e melancólica recuperação de Lilly, a trança mesclada de Trudy, os olhos sonolentos de Lucina, a fascinação dos seus filhinhos, o pão incrustado de sementes, a água sulfurosa e amarga. Eu sentia saudade da minha família. Mas... Ela não era a minha família. E eu sabia que jamais seria.

O Buscador vinha todos os dias me ver na instalação de Cura. Sempre com perguntas novas, informações que ele queria que eu confirmasse.

– Achamos que eles atacam principalmente cidades pequenas que rodeiam Picacho Peak. Acha que é verdade? Ouvimos casos de roubos de medicamentos nos Centros de Cura. Corta Dor, Curar, Fechar... Sabe se eles fazem isso?

E eu sempre dava a mesma resposta vaga.

– Não sei Logan. Eu não me lembro.

Isso sempre o fazia dar um suspiro de aborrecimento, revirar os olhos e murmurar. “Ah, mas que novidade.”

Eu apenas sorria debilmente, olhando através da janela para que ele não pudesse ver meu olhar, minhas lágrimas que pingavam dor.

Pior do que tudo isso – do que suas insistentes formas de fazer-me tentar lembrar algo, me acusando de estar brincando com a cara dele -, era o tédio mortal do lugar.

Eu ficava o dia inteiro deitada, olhando para o teto, sem permissão de sair para fazer nada além de ficar quieta. Minha Curandeira me ajudava no que mais fosse preciso; o resto era perigoso demais para que eu me arriscasse.

Então, eu passava horas a fio à deriva, perdida dentro de mim mesma, esperando a hora que eu pudesse voltar à realidade. Submergida em pensamentos de outra vida; que me tomavam mais do que se eles tivessem acabado de acontecer. Eu parecia constantemente fora do foco, do real, do presente. Pensar nunca era bom para mim; todos os meus pensamentos eram voltados para um só ponto. Um ponto que não podia mais existir para mim.

Eu estava prestes a me jogar no poço do esquecimento. Foi quando, ironicamente, Logan me salvou.

Foi num dia normal de suas visitas diárias. Ele me recheando de questões irritantes.

– Tudo bem. Vamos com algo básico hoje. – ele disse, como sempre, colocando sua cadeira de mogno na frente do meu catre – Esse corpo e a alma dentro dele moravam em algum lugar. Você tem que saber pelo menos exatamente o que é esse lugar.

– Não sei onde é. Mas o que é... Era algum tipo de abrigo dentro de... Seattle.

– Seattle?

– Sim.

– Estrela, por favor. - ele ergueu uma sobrancelha castanha ceticamente – Eles não estavam indo em direção á Seattle quando os capturamos. E eu também duvido que eles se esconderiam numa cidade tão grande e populosa. Não tem nem onde se fazer um esconderijo decente lá! O pouco espaço que resta de Seattle é pequeno demais para os humanos que estimamos que se escondem com os que fugiram. Acho que você está confundindo lembranças.

– Bom, elas continuam confusas. Não sei se estão certas realmente. Eu digo isso para você sempre, mas não acho que seja algo que você consiga compreender. – eu olhei para ele, erguendo as sobrancelhas zombeteiramente.

– Deve ser porque eu estou acostumado a lidar com Almas um pouco mais desenvolvidas, e não aquelas que ainda confundem as próprias lembranças. – ele escarneceu – Esse corpo é muito pequeno, Estrela. Talvez suas conexões sejam tão curtas quanto ele.

– Minhas conexões não são curtas; elas estão perfeitamente ligadas a esse corpo, sem falhas. – eu disse, aborrecida com sua acusação – Talvez aquela bala com o tal Paralisium tenha danificado o cérebro desse hospedeiro. Mas você não deveria se irritar com isso. Foi você que atirou em mim, afinal.

– Não eram balas de verdade, eram cápsulas.

– Eu sangrei, doeu, e eu achei que tinha morrido. Se forem cápsulas ou balas, não há diferença para mim.

– Argh! Não muda de assunto. Estrelinha. Sua falta de capacidade de compreender não ilegitima um ato necessário. Outros hospedeiros já foram alvos dessas balas, e nem por isso Alma alguma teve dificuldade de lembrar de que quer que seja. - Logan bradou, depois suspirou, e como já era um hábito seu, passou a mão nos cabelos curtos – Eu preciso de pistas, de respostas. Alguma você pode me dar.

– O que quer? O que há mais além de tudo que você perguntou? – indaguei, minha voz beirando na exasperação. O que havia de mais que ele ainda não tinha perguntado?

– Como... O que fez aquela Alma se juntar àqueles humanos?

– Eu já lhe respondi. Ela os ama. – eu gesticulei com as mãos, como se dissesse que ele já sabia disso.

– Sim, mas... Por que ela os amaria? Por que abandonaria sua espécie, para ficar com um bando de terroristas que só sabem criar o caos? Curiosidade? Saudades? Lembranças? Ou ela seria apenas mais uma anomalia, uma desajustada entre os seus? Isso não é óbvio. Ela percorreu oito mundos diferentes, nove com esse. Ela era uma alma, ela agia como uma. Mas esse planeta a fez ficar contra sua própria natureza. E isso, bom... Não tem explicação. Sim, há casos como esse, é claro. Eu já ouvi, e até mesmo já fiquei de frente com um. Uma alma sucumbir ao seu hospedeiro, ser levada por ele, submersa no interior do seu próprio ser. Então, só restam duas alternativas. Ou esta Alma não estava mais no controle do seu hospedeiro, ou ela realmente renegou a sua própria pátria. Fora isso, as ideias são absurdas demais para serem válidas.

Nenhuma das opções de Logan era correta. Provavelmente a certa seria alguma das suas “ideias absurdas demais para sequer serem consideradas”.

Peregrina não havia se submetido á Melanie, e tampouco havia renegado sua espécie.

Ela simplesmente havia se tornado humana.

– São coisas que devem ser perguntadas diretamente para os ditos em questão. São até muito pessoais para que eu possa dizer a alguém sem o consentimento de Peregrina. Mas de todo modo, eu simplesmente não sei.

Logan olhou para mim com um meio sorriso cético, depois expirou entredentes.

– Eu ainda tenho que continuar aqui, Estrelinha; tenho mais uma hora e meia até sua Curandeira e as harpias dela virem aqui te forçar a comer alguma coisa. E eu sei que você não vai colaborar, mesmo, não é? – ele reprimiu um sorriso, não precisava que eu respondesse - Vamos continuar com algo mais fácil?

– Continue, então, Logan. – suspirei.

– Ahh... Qual era a atividade preferida dessa hospedeira – ou de Peregrina, tanto faz.

– Hmm... – eu hesitei. Não achava que dizer algo assim pudesse entregar meus humanos – Acho que era... Futebol.

– Futebol? – Logan ergueu as sobrancelhas, o sorriso divertido – E o que ela fazia? Servia de trave?

– Claro que não. – revirei os olhos. – Ela era muito boa no futebol, mesmo com o tamanho. Ela aprendeu com... Uma humana amiga dela.

– Ok, por ora não irei perguntar sobre essa humana. Então... Uma cor?

– Azul. – respondi, automaticamente.

– Hmm. Um lugar preferido?

– Um lugar quente, com muita areia e sol.

– Uma coisa que... A deixa a vontade.

– Bom... Peregrina gostava de manter as mãos ocupadas. Isso a deixava concentrada num ponto enquanto falava, ela se sentia mais a vontade para falar o que quer que fosse. Quase como você, mas ao invés de uma arma, ela preferia massa de pão.

Ele revirou os olhos:

– Mas então, coisa para fazer a deixava a vontade? Então deve ser realmente mais difícil para você, que passa o dia inteiro fazendo nada.

– Exatamente, é enlouquecedor. E ainda mais com um Buscador questionador no meu pé o dia inteiro.

– Eu estou realmente tentando ajudar, Estrela, então não me aborreça, ou vou deixar de tentar pegar leve com você – ele disse, com o semblante bravo, mas eu sabia que estava brincando – Olha, acho que podemos tentar isso, sabe? Dar-lhe alguma coisa para fazer, enquanto conversamos. Talvez isso possa te ajudar. E me ajudar principalmente.

– Oh, sim. E o que você propõe?

– Não massa de pão. Águas Claras sob o Sol odeia que sujem o ambiente de trabalho dela. Então... Você gosta de desenhar?

– Desenhar? Hmm. Não sou a melhor do mundo, e esse hospedeiro não tinha prática com isso. Por quê?

– Por que você vai manter as mãos ocupadas enquanto conversamos. Se já se lembrou de tanta coisa, não há mais nada que lhe impeça de ter acesso a qualquer outra coisa. – disse ele, levantando-se, com um sorriso de satisfação – Vou arranjar os materiais necessários para você. Um minuto.

Então ele se foi; e eu me amaldiçoei internamente por ter lhe dado tanta informação. “Vamos continuar com algo mais fácil?” Eu jamais iria acreditar nessa frase novamente.

Um lugar, uma cor, uma atividade preferida... Como eu pude ser tão idiota? Ele poderia muito bem ter ido avisar aos seus companheiros Buscadores dessas informações, que mesmo pequenas, poderiam ser válidas e mortais para meus humanos.

Eu estava prestes a levantar da cama, ignorando todas as minhas recomendações para que não me levantasse, e ir correndo atrás do Buscador para impedir que ele fizesse algo contra minha família – eu não tinha idéia de como faria isso, uma vez que em comparação à altura dele eu era uma anã. Foi quando Logan voltou para o quarto, com uma caixa na mão.

– Aqui está, queridinha. Agora vamos voltar ao meu trabalho, e... – ele parou abruptamente, me olhando beirar para fora da cama – Você enlouqueceu? Vamos, volte a ficar deitada. Eu te trouxe uma caixa de papel e lápis; tive que pegar da ala infantil. Pois bem, agora vamos continuar.

Ele me entregou a caixa, eu ainda muito pasma e assustada para responder.

Eu espiei o conteúdo, estupidamente receosa que pudesse ser outra coisa que pudesse me fazer denunciar meus humanos novamente; mas eram apenas lápis de colorir. Havia inúmeras cores ali; tinha até mesmo um cinza e um azul que me encheram de nostalgia. E ainda havia meia dúzia de papéis brancos e beges de superfície lisa e macia. Ele queria mesmo que eu desenhasse.

E foi o que eu fiz. Mesmo não tendo nenhuma destreza ou os movimentos corretos, mesmo que esse hospedeiro nunca tenha tido grande interesse por desenhos. Eu desenhava o dia inteiro, minha se mente abrindo para minha imaginação me abarcar como uma rocha de um cais; cada vez que a maré lança uma onda, a rocha fica cada vez mais cheia de seus resíduos, se tornando cada vez mais parte desse mar. E assim se seguiu. Eu tinha uma distração, algo em que ficar concentrada e, mesmo que por segundos, não me lembrar do vazio que persistia dentro de mim. Logan continuava a fazer perguntas, eu continuava a dar minhas respostas incompletas. Minhas mãos se movendo calmamente sobre o papel, segurando cada hora uma cor diferente, dando vida aos meus rabiscos.

Que aos poucos, não continuaram a ser tão rabiscos como no início.

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