sábado, 13 de dezembro de 2014

Capítulo 10 - CD2

Capítulo 10 – Um

One love
One blood
One life you got
To do what you should
One life
With each other
Sisters, and my brothers

One life
But we're not the same
We get to carry each other
Carry each other

(One – U2)

Estrela


            O amor é complicado se você parar para analisá-lo, mesmo que as Almas não sejam estranhas ao conceito de bem comum. Ao contrário, as necessidades individuais são relegadas ao segundo plano sem hesitação quando se trata do bem de nossa comunidade.  Funcionamos como se fôssemos um único organismo com os demais e com os planetas que habitamos. O amor ao próximo, portanto, no sentido que as religiões humanas pregavam, está em nossa natureza.
            Parece, em essência, a perfeita definição do que o amor deve ser, mas às vezes não é o suficiente. Embora muitos humanos tenham vivido suas vidas sem compreender o quão fundamental é o amor que visa o bem maior, para nós Almas é o amor individual que constitui o grande mistério. Esse sentimento que move não o mundo e as grandes realizações, mas cada um dos passos que nos impulsiona para frente, cada mínima parte de cada grande jornada empreendida por cada um. Aquilo que sentimos pelas pessoas ao nosso redor, as que conhecemos e queremos passar todo o nosso tempo reconhecendo, as que nos tornam quem somos.
            Quando o amor tem nome, o próximo abstrato se torna também distante, sua importância se reduz exponencialmente perto da que atribuímos aos indivíduos especiais por quem não hesitaríamos em dar nossas próprias vidas. Nosso apreço pela felicidade do próximo conhecido suplanta em muito a relevância da felicidade coletiva quando se trata das pessoas que amamos. E isso é paradoxal para nós. Parece o oposto do que convém à nossa natureza e pode, em primeira análise, ser perigosamente confundido com egoísmo. Em vez disso, porém, é a expressão mais genuína de quem nos tornamos, a verdade que os humanos sempre conheceram e que nos iguala. A consciência de que o amor requer sacrifícios. E de que a felicidade de quem amamos vale cada um deles.
            Peregrina não hesitou em entregar sua vida para que Melanie tivesse de volta a dela. Sunny deixou para trás tudo o que conhecia pelo pedaço de seu coração que Kyle podia lhe dar na época. Eu estava disposta a abrir mão de meu futuro com Logan para devolver Peg àqueles que a amavam, que precisavam dela. Para dar a John sua verdadeira família. E, por amor a mim, meu amado Buscador se tornou o mais humano entre nós. O mais improvável e ferrenho defensor daqueles que sempre viu como uma ameaça a tudo em que acreditava. E ele era bom nisso. Proteger. Desde o começo, foi o que fez por mim além de me amar, tanto que me acostumei.
            O coração de Logan sempre foi meu lugar seguro e, gradualmente, vi-o se transformar em algo semelhante para outras pessoas também. Ele era aquele para quem corríamos quando nossos recursos pareciam esgotados. Sua inteligência aguda disfarçada de segurança cega era nosso porto seguro, e nunca falhou em produzir a impressão de que ele sempre tinha um plano. Mas não desta vez. Por mais que ele quisesse fingir para si mesmo e para nós que tinha tudo sob controle. Seu próprio lugar seguro tinha ruído e ele parecia tão perdido quanto o garotinho assustado que sempre imaginei que ele tivesse sido no passado.
            Há muito pouco que se pode saber sobre si mesmo enquanto não se permitir que outra pessoa entenda seu coração e o mostre a você. Para Logan, Jeb era esse espelho, os olhos generosos com que ele passou a enxergar sua própria humanidade. E, então, de repente, era como se seus olhos estivessem fechados, o espelho quebrado, o reflexo irreconhecível...
            Eu precisava protegê-lo. Precisava dizer não quando ele cogitava arriscar sua vida e sua sanidade, porque... E se não desse certo? E se não houvesse tempo ou o corpo fosse salvo, mas a consciência de Jeb sucumbisse? E se, não importa o que fizéssemos e o quanto nos arriscássemos, ele fosse embora para sempre, de um jeito ou de outro?
            Quando Logan finalmente parecia ter um plano coerente e me contou o que pretendia, meu primeiro impulso foi o de dizer que aquilo era uma loucura. Porque tudo em que eu conseguia pensar, por alguns instantes egoístas, era em perder meu próprio mundo, em ver o pai de minha filha morrer ou enlouquecer de dor se não fizesse tudo o que podia. Se o plano falhasse, qualquer desfecho que esta noite tivesse seria devastador para ele, para minha família. Era uma escolha impossível, mas não demorei a perceber que não era minha.
            Logan tinha voltado a ser quem era. Um único lampejo de esperança tinha restaurado sua determinação e eu compreendi que ninguém poderia dissuadi-lo de tentar. Mas a questão é que desde o início eu sabia, lá no fundo, que não tentaria fazer isso, que não tentaria convencê-lo a ficar a salvo se sua segurança custasse uma chance para seu melhor amigo. Por si só, a vida de Jeb era mais importante que todos os nossos medos juntos, que todos os riscos reais e hipotéticos que assumiríamos, e eu também queria que ele vivesse. Eu também o amava.
            Por amor a Peregrina, eu também já havia me arriscado e faria tudo novamente. Quantas vezes fossem necessárias. A determinação cega que nos impulsionava ao sacrifício por aqueles que amávamos me era perfeitamente familiar, portanto. E a verdade é que, afinal, a despeito de meu impulso primeiro, eu não considerava aquilo realmente uma loucura. Porque podia dar certo. Porque tinha de dar certo. E porque, de qualquer maneira, precisávamos tentar.
            — Ele não está aqui — Logan disse de repente, num fiapo de voz. Olhei em seus olhos e era perturbadora a clareza com que se podia enxergá-lo no rosto de Jeb, como se a semelhança moral entre os dois tivesse assumido o comando do corpo.
            — O que você está dizendo, querido? — Acariciei seu rosto, tentando acalmá-lo. Apesar da voz fraca, ele parecia mais agitado do que deveria estar.
            — Ele não está aqui — ele repetiu, mas desta vez com a voz mais firme, mais desesperada. Seus olhos se fecharam com força e era como ele tentasse se concentrar em alguma coisa. — Mel? O que eu faço? O que eu faço?
            Melanie deu um jeito de passar para a parte de trás e agora estava ao nosso lado, Jared nos observava pelo retrovisor, parecendo assustado, mas tentando controlar a própria expressão em nosso benefício.
            — Ele tem que estar aí. Jeb não seria suprimido. Ainda mais por alguém que não está tentando. Fiquem calmos — ele disse. O rosto incrédulo e os olhos se alternando entre nós e a estrada.
            — Sim, Jared tem razão — Melanie confirmou, balançando a cabeça um tanto freneticamente demais em concordância. Ela também queria parecer calma, mas eu conhecia ambos bem demais para acreditar que não estavam tão preocupados quanto eu. — Tente se concentrar, Logan. Ele só deve ter dormido um pouco.
            — Não! Tem algo de diferente de quando ele dormiu! Tem alguma coisa faltando.
            — Logan! — ela chamou vigorosamente, porque ele estava se agitando e nós duas estávamos agora segurando seus ombros para que ele não se movesse muito. — Preste atenção! Olhe para mim, Logan! Você precisa se acalmar, entendeu? Já aconteceu comigo antes. Quando estava com Peg. Eu desapareci e ela ficou com medo que eu não voltasse, assim como você está com medo agora. Mas foi só temporário, ok? Vamos nos preocupar em salvar o corpo dele primeiro. E aí eu prometo a você que vamos conseguir tirá-lo de onde quer que esteja se escondendo. Vamos trazê-lo de volta juntos. Só se acalme, está bem?
            Logan assentiu nervosamente, mas ele estava aterrorizado, assim como todos nós. Eu queria abraçá-lo e dizer que estava tudo bem, embalar meu garotinho assustado rumo ao esquecimento, à calmaria, mas eu não estava ali apenas como sua companheira. Eu era Curandeira e tinha um dever maior para com ele e, acima de tudo, para com Jeb. Não podia deixar que tanta tensão pusesse os dois em risco.
            Fiz minha escolha rapidamente, abrindo de maneira discreta e silenciosa a bolsa que tinha preparado para o caso de um procedimento de emergência. Logan fixou os olhos no spray prateado em minha mão, mas não teve tempo de protestar antes que o jato sutil de Dormir penetrasse em seu sistema. Num instante, toda a agitação tinha acabado.
            — Por que você fez isso? — perguntou Melanie. — Como vamos procurar meu tio agora?
            — Você mesma disse: precisamos garantir que Jeb tenha um corpo para o qual voltar. O estresse poderia matá-lo.
            — Mas... ele estava se acalmando.
            — Estrela tem razão, Mel — Jared interferiu. — Mesmo que ele se acalmasse, ainda estaria sob uma pressão desnecessária neste momento. Para ambos. Você se lembra como foi voltar à superfície na vez em que sua consciência desapareceu?
            — Tomou toda a energia que eu tinha — ela respondeu, seus ombros caindo numa postura derrotada.
            — E eu tive que beijar Peg, evocar uma emoção forte o suficiente para trazer você de volta. Não é algo que a gente consiga fazer agora, com o coração dele nesse estado
            — Quando Jeb estiver bem, retiraremos Logan na mesma hora — intervim. — Vai ser mais fácil quando ele não estiver mais dividindo a mente com ninguém e tendo que se proteger o tempo todo. Você vai ver.
            Melanie assentiu levemente, olhando qualquer coisa através da fresta aberta da janela, talvez tentando não parecer tão chateada. Eu conhecia aquele jeito de não querer se expor, a mania de se fazer de forte. Logan era tão bom nessa arte que tive que me acostumar a ficar atenta a outros sinais que me ajudassem a perceber quando ele precisava de mim. Com Mel não era diferente, por isso me aproximei e a abracei em silêncio. Depois de alguns instantes, ela descansou o rosto em meu ombro e suspirou.
            — E se não der tempo? E se for tarde demais para trazê-lo de volta?
            Eu queria dizer algo que realmente a tranquilizasse, mas não pude. A verdade era que nenhum de nós poderia prever com certeza o que aconteceria depois. Em condições normais, Jeb resistiria quanto tempo fosse necessário à supressão definitiva, mas não era prudente subestimar o quanto ele estava fraco. Corpo e mente trabalham um a favor do outro e, nas últimas horas, toda sua energia concentrava-se em manter-se vivo.
            — Bem, se sua preocupação é o tempo, Mel, fico feliz em dizer que já chegamos — disse Jared, estacionando numa rua paralela, como tínhamos combinado. — Agora é com você, Estrela.
            Havia um pequeno parque mais adiante, eu me lembrava dele porque fiquei uns minutos sentada ali, processando a informação quando descobri que estava grávida de Lindsay. O trecho com os bancos é bem iluminado, mas há uma concentração de árvores que fica fora do alcance das luzes, como supusemos, e Mel e Jared pretendiam ficar escondidos ali até Ian, que vinha logo atrás em outro carro, chegar para levá-los de volta para casa.
            Melanie não gostou nada da ideia, mas foi um detalhe em que eu e Logan insistimos e todos os demais concordaram. Eu precisava chegar ao hospital sozinha e parar perto da entrada para conseguir ajuda rápida. Não era seguro eles ficarem por perto, mesmo que escondidos. Durante todo o tempo em que eu ficasse lá dentro eles estariam perigosamente expostos e vulneráveis. Era melhor não termos que nos preocupar com isso.
            Despedi-me dos dois com o nó em meu peito ficando mais apertado. De algum modo, não era um alívio deixá-los para trás, mesmo que eu soubesse que teria que fazer aquilo sozinha de qualquer maneira e que era melhor que estivessem seguros. Enquanto dirigia para o hospital, porém, pude ver o carro de Ian se aproximando e consegui me tranquilizar um pouco.

******

            A recepcionista da Instalação de Cura desviou os olhos do filme a que assistia no belo aparelho de TV da sala de espera e me fitou assustada.
            — O que houve, querida? — Seu olhar atento se certificava de que eu não tinha nenhum ferimento aparente e estava me movendo muito apressadamente para alguém que estivesse se sentindo mal. — Por que está tão agitada?
            — É meu pai — respondi. — Preciso de alguém para ajudar a retirá-lo do carro, ele está desacordado. Por favor, rápido.
            A mulher, uma senhora de cabelos brancos e óculos pendurados no pescoço, agarrou o telefone sem fazer mais perguntas e repetiu meu apelo à pessoa do outro lado da linha. No instante seguinte, um homem grande e uma mulher pequenina e de semblante determinado emergiram de uma das salas de descanso e se aproximaram de mim.
            — Sou a Curandeira Melinda — ela se apresentou. — E este é meu assistente Verão Perpétuo. Vamos ajudar seu pai. Você está bem? Qual seu nome?
            — Céu Noturno — menti.
            — Bem, Céu Noturno, leve-nos até lá e logo você poderá se tranquilizar. Assim que o diagnóstico for feito, poderemos curá-lo rapidamente. Os tempos não andam para trocas de hospedeiros, não é mesmo?
            — Ele vai precisar de uma substituição da válvula mitral — adiantei, enquanto os conduzia até o furgão.
            Os dois me olharam surpresos, retirando uma maca de uma ambulância estacionada ao lado, posicionada estrategicamente para a eventualidade de um resgate de emergência.
            — Sou Curandeira também — expliquei —, mas em Washington. Estou em uma viagem de férias com a Alma que era o pai de minha hospedeira. Estávamos acampando quando ele se sentiu mal, então corremos para o hospital mais próximo.
            — Estranho — comentou Verão Perpétuo, mas não havia desconfiança em eu tom, apenas espanto. — Algo assim teria sido detectado nos exames periódicos, não?
            — Certamente — confirmou Melinda, enquanto já nos instalávamos na sala de exames. — Como foi que chegou a este ponto avançado?
            — Eu não o via há alguns meses, por isso não percebi os sintomas. Pensei que ele estivesse fazendo todos os exames requeridos, mas acho que ele se descuidou.
            — Bem, então que sorte que você estava por perto para socorrê-lo. Este tipo de mal súbito pode ser muito perigoso se a pessoa estiver sozinha e não conseguir chamar ajuda. Mande-o a um Confortador amanhã, para que o convença a se cuidar melhor. Não se pode perder um hospedeiro por descuido. A falta de hospedeiros é um problema sério hoje em dia, é preciso estarmos ciosos da saúde dos que nos foram dados. E ele sempre pode optar por um dos novos tratamentos de manutenção.
            Novos tratamentos de manutenção?
            Freei meus lábios a tempo de não fazer a pergunta em voz alta. Se eu a tivesse deixado escapar, teria revelado que meus conhecimentos de Curandeira estão desatualizados, e isso sim seria inexplicável!
            — Sem contar o risco de que ele não fosse retirado a tempo, caso o corpo morresse.
            — Sim, nem me lembre disso. Seria verdadeiramente terrível.
            Eis a primeira verdade que disse desde que conheci essas Almas. Eu não me sentia mais culpada pelas minhas mentiras, sabia que eram um mal necessário. Mas às vezes eu sentia falta de poder ter uma conversa franca, mesmo que banal, com as pessoas que conhecia e que sempre se mostravam tão prestimosas e gentis. Uma única conversa em que eu não precisasse me preocupar com as implicações de cada frase proferida.
            Agora mesmo, gostaria de poder perguntar a eles sobre os tais tratamentos, sem medo do que isso pudesse revelar a meu respeito. Mas não havia mentira que eu pudesse emendar às que já tinha contado para poder aprender com eles agora. Mentiras têm o péssimo hábito de se colarem umas às outras até que a verdade fique não só indiscernível, como muitas vezes impossível. Porém, diante do que eu estava protegendo, nada disso era verdadeiramente importante.

******

            Depois de realizar os exames necessários para confirmar o diagnóstico, Melinda e Verão Perpétuo não viram problemas em permitir que eu acompanhasse a cirurgia, embora não me deixassem participar, dado ao que, em suas próprias palavras, definiram como “um estado emocional inadequado”. Segundo eles, era desnecessário acrescentar qualquer tensão aos meus nervos já abalados pelos eventos daquela noite, o que, apesar de suas boas intenções, não pude deixar de achar engraçado e um tanto quanto condescendente.
            De qualquer forma, aceitei a gentileza, primeiro porque não havia nenhuma necessidade de me opor, e depois porque, embora eles não tivessem como saber o quanto, eu estava realmente nervosa. Meus novos amigos jamais saberiam que em sua mesa de cirurgia havia não um, mais dois seres importantes para mim, duas vidas sem as quais a minha jamais seria a mesma. E que mais do que era possível compreender racionalmente, o coração de um movia o do outro.
            O sangue, que agora ambos dividiam, fluía pela máquina de circulação externa e eu observava, meus pensamentos fluindo também, imaginando que ele significava não apenas vida, mas ligação. No sangue de Jeb também estavam Melanie, Jamie, Maggie, Sharon... a lembrança genética de todos os que ele sequer conheceu, o futuro de outros também. No sangue dos humanos, havia histórias. As escritas e as ainda por escrever.
            E agora, minha espécie era parte disso, de um jeito ou de outro. Nossa própria história era humana também. Nossos filhos humanos, nossos corpos, nossas vidas, nossos corações. Tínhamos sido refeitos. Fundidos em algo muito particular e indissolúvel. Irrevogável.
            Lenta e pacientemente, a parte afetada do coração de Jeb se regenerava. Nova e mais forte. Como todos nós. Como o amor que nos ligava, um ao outro ou à experiência humana. No fim, assim como as pessoas, o amor era um só.

“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
John Donne









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